03 de Outubro de 2022
Antes de adentrar na temática proposta, no caso, a natureza dos crimes previstos na Lei 14.197, de 1º de setembro de 2021, chamada de Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito – que tive a honra de ajudar na elaboração do projeto – faz-se necessária uma contextualização das razões que fizeram com que essa legislação fosse editada, pois trata-se de aspecto fundamental para compreensão do que são os crimes políticos nela tratados.
Até a entrada em vigor da Lei 14.197/2021, encontrava-se vigente no Brasil a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), legislação oriunda do período da ditadura e que, desde a década de 1990, eu já inquinava não recepcionada pela Constituição Federal.
De fato, não há como se pensar em uma legitimidade constitucional da Lei de Segurança Nacional, porque tinha uma péssima filiação, sua origem era viciada, o fundamento que a amparava era a Ditadura Militar; a própria lei fala em defesa do regime, daquele nefasto regime. Então, havia uma série de problemas relativos a essa lei.
A LSN deve ser compreendida a partir da chamada "Doutrina da Segurança Nacional". Com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e a bipolarização do mundo, iniciou-se toda uma nova configuração de quem seria o inimigo, que não precisava mais se encontrar além das fronteiras nacionais. A "Doutrina de Segurança Nacional" teve na Escola Superior de Guerra o seu grande centro difusor. Trata-se de um discurso marcado pela mais completa intolerância para quem discorda dos ideais hegemônicos. O slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” representa indelevelmente essa incapacidade em conviver com o pensamento diferente.
Após o esgotamento do chamado "milagre econômico", a ditadura civil-militar começou a ser cada vez mais questionada pela sociedade civil que buscava a fruição das liberdades. O último general-presidente já não governou tendo o amparo do Ato Institucional 5. No dia 15 de março de 1985, o poder político era enfim devolvido às lideranças civis. Era, de certo modo, a consolidação do processo lento, gradual e seguro concebido pelos generais Geisel e Golbery.
Porém, a transição para a democracia não se deu de forma completa. A participação de atores políticos vinculados ao regime autoritário, a começar pela figura do Presidente José Sarney, não foi o único legado recebido pela Nova República. A própria Lei da Anistia não fez o devido acerto de conta com o passado.
A Lei de Segurança Nacional se encontrava inserida nesse conjunto de uma herança – tóxica – da ditadura civil-militar, no período compreendido entre 1964 e 1985.
Para além disso, cumpre destacar que, desde o ano de 2019, a LSN voltou à pauta a partir do surpreendente aumento do número de inquéritos que passaram a ser instaurados tendo por base a referida legislação (CONJUR, 2021).(1) Antes mesmo de o atual Presidente da República chegar ao Palácio do Planalto, já era possível verificar a existência de procedimentos inquisitivos lastreados na LSN. Esse dado, por si só, já seria preocupante. A questão se agrava com o considerável incremento desses inquéritos ocorrido após o ano de 2019.
Portanto, em face desse retorno à pauta do uso corriqueiro da Lei de Segurança Nacional, fazia-se necessário que algo fosse feito para cessar o uso desta legislação de viés autoritário contra aqueles que criticavam o atual governo. O primeiro passo foi o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 799, questionando os dispositivos da LSN. Mas, além deste instrumento manejado pela via judicial para extirpar a LSN do ordenamento jurídico, era necessário substituir essa legislação por uma nova lei que não tratasse adversários políticos como inimigos, foi assim que surgiu a Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito.
Assim, com a entrada em vigor da Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito, esta não somente revogou a Lei de Segurança Nacional, como também introduziu uma série de dispositivos no Código Penal que tutelam o Estado Democrático de Direito enquanto bem jurídico a ser protegido, elencando uma série de tipos penais passíveis de serem opostos àqueles que atentarem contra a Democracia e não a um regime ou governo específico.
Feita esta introdução, o questionamento que surge é: qual a natureza jurídica desses destes tipos penais que passaram a compor o Título XII do Código Penal? Por certo que não podemos dizer que são crimes comuns. A própria lei fala em crime político. Frise-se o art. 359-P da referida lei que fala claramente em violência política. Ademais, a existência de crimes políticos no ordenamento jurídico encontra amparo na Constituição Federal, em especial no art. 102, II, que estabelece a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar em Recurso Ordinário o crime político; e o art. 109, IV da CF, que estabelece a competência originária da Justiça Federal para processar e julgar os crimes políticos.
Assim, tendo por base o reconhecimento pela própria Constituição do Brasil da existência de crimes políticos em nosso ordenamento jurídico, parece que não há como sustentar a inexistência de crimes políticos em um regime democrático. Como defender a democracia contra eventuais predadores?
Ademais, o simples fato desta Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito não ter expressamente conceituado o que vem a ser um crime político, não é elemento capaz de inviabilizar a existência de crimes políticos sob a égide da Constituição Federal de 1988, ou que somente se possa pensar em crimes políticos em um contexto ditatorial, de resistência à tirania. De fato, é possível extrair o que vem a ser um crime político mediante uma adequada hermenêutica do texto constitucional. Afinal, não somente as tiranias são alvo de resistência. Regimes democráticos também têm detratores e inimigos.
Neste sentido, cumpre destacar algumas anotações formuladas aos referidos artigos da Constituição Federal que falam em crime político, presentes nos “Comentários à Constituição do Brasil” que ajudei a coordenar junto aos professores J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Mendes e Ingo Sarlet.
De fato, deve-se assinalar que inexiste de forma expressa e positiva, seja na legislação internacional ou nacional, um conceito amplamente aceito com relação ao que vem a ser um crime político, sendo este objeto de controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, ao longo do tempo. Talvez porque o crime político tenha um conceito autoevidente, como um elemento que se preencha com a especificidade de diversos tipos penais.
Todavia, no que se refere à competência de o Supremo Tribunal Federal para apreciar os recursos ordinários referentes a crimes políticos, escrevi com Gilmar Mendes que, quando a Constituição Federal se refere à crime político nos arts. 102, II e 109, IV, ainda que a doutrina não traga soluções definitivas para a definição de crime político, há autores que defendem que os crimes políticos seriam os delitos que representam ameaça à segurança interna do Estado. E, no caso brasileiro, de um Estado Democrático de Direito e não de um Estado ditatorial. Há, ainda, outros que dão amplitude maior referindo que são delitos que atentam contra a segurança externa, ou seja, contra a própria soberania do Estado em sua relação com os demais Estados.
Reconheço a existência das denominadas correntes objetivas e subjetivas quanto à definição do crime político. A corrente objetiva, tendo por base o bem jurídico protegido, defende que o crime político seria aquele praticado contra a ordem política estatal; de outra parte, a corrente subjetiva, fundada na intenção ou na motivação do criminoso, assevera que são políticos os crimes praticados com finalidade política, com a intenção de modificação do regime político.
Existem divergências, no entanto, quanto à distinção entre delitos comuns e políticos. De fato, talvez seja esta uma das maiores controvérsias no que diz respeito ao tratamento dado pela Constituição Federal aos crimes políticos, em face a regra de não extradição de estrangeiro por crime político, insculpida no art. 5º, LII, da Constituição Brasileira. Neste caso, ao contrário dos dispositivos anteriores em que a Constituição Federal elenca mecanismos de julgamento de crimes políticos na jurisdição brasileira, o inciso LII apresenta verdadeira garantia fundamental, ligada a uma concepção do crime político, como resistência a regimes autoritários. No entanto, aqui se apresenta o problema relativo à conexão entre crimes políticos e comuns, os chamados delitos conexos e delitos complexos.2 Trata-se, portanto, de situação distinta daquela prevista nos outros artigos da Constituição Federal que se referem ao julgamento de crimes políticos.
De igual sorte, cumpre destacar que a Constituição brasileira alterou a antiga competência da Justiça Militar para julgar os crimes contra a segurança nacional, substituindo esta denominação por crime político, passando a competência para o seu julgamento para a Justiça Federal. Precisamente, ao comentar o art. 109, IV da Constituição Federal, Vladimir Passos de Freitas menciona que os crimes políticos que o dispositivo em questão se refere são aqueles que eram previstos na malfadada Lei de Segurança Nacional.
Este era o mesmo entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, antes da edição da Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito, citando-se o posicionamento afirmado no julgamento do Recurso Crime 1.473 de Relatoria do Ministro Luiz Fux,3 bem como aquele exposto por ocasião do julgamento da Reclamação 1.468/RJ, de Relatoria do Ministro Maurício Corrêa.4
Assim, levando-se em consideração que a Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito revogou e substituiu a Lei de Segurança Nacional, parece-me bem claro que esta nova legislação estabelece que os crimes previstos nela própria devem ser considerados crimes políticos, respaldados na Constituição Federal, em substituição àqueles anteriormente previstos na Lei de Segurança Nacional. Ora, mudou o fundamento de validade: antes, era um regime que derrubou um regime democrático; agora, um regime democrático sustentado em uma Constituição legítima. Quem atentar contra o regime democrático comete crime político previsto na nova Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.
Trata-se, portanto, de uma legislação que, ao definir uma série de novos crimes políticos, estabelece um – necessário – mecanismo de defesa do Estado Democrático de Direito contra os seus inimigos, contra os seus detratores que se insurgem contra as regras do jogo democrático. Para tanto, esta legislação estabelece sete tipos penais, tipificando tanto crimes políticos externos nos ilícitos contra a soberania nacional, quais sejam atentado à soberania (art. 359-I); atentado à integridade nacional (art. 359-J); e espionagem (art. 359-K); os crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais, no caso, o crime de sabotagem (art. 359-R). Mas também estabelece crimes políticos internos, como são os casos dos crimes contra as instituições democráticas: a abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L); e golpe de estado (art. 359-M); e, ainda, os crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral: interrupção do processo eleitoral (art. 359-N), violência política (art. 359-P).
De tal modo, qualquer indivíduo que incorra em um desses tipos penais estará cometendo um crime político, sujeito ao tratamento descrito na Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito e as disposições constantes na Constituição Federal quanto ao seu processamento e julgamento. Delitos como estes jamais poderão ser considerados crimes comuns, sobretudo porque o bem jurídico tutelado é o próprio Estado Democrático de Direito.
A democracia deve ter mecanismos de autodefesa; assim como não existe liberdade de expressão absoluta e são vedados discursos de ódio e autocontraditórios; em nome da democracia ninguém pode tentar derrubar um regime constituído e isso ser epitetado de crime comum, como se o indivíduo estivesse cometendo um furto ou um estelionato. Não, o bem jurídico tutelado neste caso é muito maior, é a sobrevivência da própria democracia e aquele que atentar contra ela não pode ser tratado como um criminoso comum. É nessa perspectiva que está inserida na Lei de Defesa ao Estado Democrático e Direito, amparada na previsão específica da Constituição Federal de existência de crimes políticos.
Penso, ao fim e ao cabo, que o conceito de crime político não pode ser fragilizado por questões criteriais (no sentido de que fala Dworkin). Isso colocaria o conceito da substância do crime político no âmbito de um mero convencionalismo, por vezes refém de certa historicidade. Afinal, porque construímos crimes políticos a serem imputados aos inimigos do regime ditatorial, isto não quer significar que não possamos construir tipos penais ao revés, agora apontados contra os que não aceitam pacificamente a democracia e contra ela atentam. Conceitos de crime (político) não podem ser fixados a priori.
A pergunta final que se estabelece é: se antes da edição da Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito – e já no âmbito da Constituição de 1988 – se admitia a existência de crimes políticos amparados em uma lei flagrantemente inconstitucional, a Lei de Segurança Nacional, por que agora não se admitiria que os crimes previstos em uma legislação que visa justamente rechaçar delitos cometidos contra a ordem democrática sejam reconhecidos, então, como crimes políticos? Repito, não se pode admitir que aquele que atenta violentamente contra o Estado Democrático de Direito seja tratado como um criminoso comum.
Assim, feitas estas considerações e respeitadas as opiniões contrárias, parece não haver como afirmar de maneira diversa sobre a natureza dos crimes tipificados na Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito. Trata-se, sim, de crimes políticos, uma vez que tutelam um bem jurídico maior, no caso, a sobrevivência do próprio Estado Democrático de Direito contra seus detratores. Talvez por isso o constituinte de 1986-88 tenha previsto a existência de crimes políticos em nosso ordenamento jurídico. Faltava uma lei para os especificar.