01 de Fevereiro de 2023
“Se todas as vidas importassem nós não precisaríamos proclamar enfaticamente que a vida dos negros importa”. Ângela Davis
1. Introdução
O mundo de hoje procede de inúmeras transformações adquiridas no decorrer dos tempos. Em 2019, todas as nações se viram submetidas à pandemia, em consequência do coronavírus SARS-CoV-2, comumente conhecido como COVID-19, uma doença infecciosa e de fácil contágio que promoveu a morte de milhares de pessoas.
A repercussão dessa tragédia mundial deu-se em várias situações inusitadas, como por exemplo, a que o Papa Francisco, em 2020, realizou a bênção “Urbi et Orbi”, na Praça de São Pedro, no Vaticano, intensificando à cidade de Roma e à todas as nações. De forma estarrecedora o mundo viu pela primeira vez, por meio da internet, o Papa celebrar o grande evento religioso desacompanhado de suas centenas de fiéis. Os poucos que puderam acompanhá-lo eram seus assessores. Todos dotados com máscaras de proteção e a observância do distanciamento de segurança entre eles, cujo propósito foi oferecer o suporte técnico necessário à realização desse momento épico em solidariedade às vítimas da pandemia.
É fato que os fenômenos sociais, o dinamismo e a pluralidade são fatores significativos na vida humana. Desta feita, as analogias oriundas do passado buscam uma construção possível para a correção de diversos efeitos negativos, tais como a discriminação sistêmica de nosso país e a de outros países corroborados em dados econômicos e políticos.
Prevalece o racismo configurado de forma sistêmica que deixa de ser algo aleatório e avulta-se acompanhado de total descaso diante de sua gravidade histórica. Especificamente no Brasil a colonização sucedeu-se sob as régias da opressão, da exploração e da dominação de povos indígenas, negros e apoiadores. Todos aplacados pela violência, injustiça, ganância e constituição social miserável.
Infelizmente, após a instituição da abolição da escravatura, as barbáries desencadeadas pelo antigo sistema de exploração e discriminação de raça ainda persistem, de modo que, até hoje, não se preponderam soluções efetivas, afirmativas e punitivas aos diversos problemas.
Muitas vezes a discriminação claramente preconceituosa, mas, não reconhecida pelos seus praticantes; ou em forma institucional de racismo velado, subentendido para que sua autoria seja negada.
Essa hegemonia provocada por um grupo específico no poder fere os princípios fundamentais da Constituição Federal, dos Direitos Humanos e Direitos do Homem, e insere-se assim o dilema da diferenciação entre o “eu e eles”, ou o “nós e eles” (domínio de poder).
Neste sentido, o impacto casuístico nas observâncias legais denota a negligência do Estado frente ao racismo. Realidade sórdida e nutrida pelos meios midiáticos que em suma passam diante das injustiças sociais acometidas aos vulnerabilizados.
Quando alguns poucos casos de racismo ocupam as manchetes, geralmente são por causa da possibilidade de se gerar lucro frente ao sensacionalismo midiático. Logo, casos como o do trabalhador e morador de uma determinada comunidade periférica, que numa noite chuvosa, ao esperar pela família na esquina de sua residência foi surpreendido com três tiros disparados pela Polícia Militar, por confundirem o guarda-chuva dele com um fuzil. Mais fácil alvejar o cidadão para depois averiguar. Predomina a arbitrariedade e o despreparo na rotina discriminatória.
No entanto, o preconceito no Brasil também se apropria da institucionalização em outros países, à exemplo, o caso ocorrido, em 2020, na cidade de Minneapolis, com George Floyd, jovem negro que após abordagem policial foi imobilizado no chão e asfixiado até a morte sem piedade.
Ressalta-se que esta ação policial se sucedeu na presença de pessoas clamando para que se findasse a ação agressiva, face a possibilidade de morte iminente do rapaz. De nada valeram os apelos e as gravações por celulares para que se intimidasse o policial, pois que este se autossustentava nos critérios da dominação racial de superioridade em cor e do rigor autoritário da profissão.
Esses fatos não são isolados e deveriam provocar inquietação e indignação perante o conjunto social e a sonoridade frente ao outro. O pensamento de coisificação deveria estar extinto do senso comum que fecha os olhos diante deste cenário desigual.
Faz-se necessário apontar a inércia, expor a hostilidade e reconhecer o significado do modismo propagado, tantas vezes de forma velada; ou até de casos proclamados abertamente por políticos lúgubres que se utilizam de frases generalizantes e preconceituosas, tais como “CPF cancelado”, “bandido bom é bandido morto!”, entre tantas.
Comprobações sistêmicas de inversão de valores, pesos e medidas adentram a área da justiça em âmbito de punição.
Enfatiza Marilena Chauí (2008) que a mediocridade da classe média faz com que se aproprie das leis como se estivesse acima do bem ou do mal.
Denota-se que nas parábolas ensinadas por Jesus, o pão é direito de todos, ao passo que a falta de pão, significa que alguém está com porções excedentes. Logo, a sociedade tem sua parcela de culpa ao reverberar o problema da desigualdade; do egocentrismo; da indiferença ao semelhante, alicerces das condutas de excludência.
Inicia-se com olhares de comparação, pensamentos e palavras pejorativos. Posteriormente, as ações preconceituosas tornam-se habituais. Situações de segregação repercutem-se desde espaços exclusivos a determinada classe social ou cor, a atos simples como o impedimento do uso de elevador social.
Constrangimentos vinculados ao preconceito a vários trabalhadores e cidadãos, que mesmo amparados na legislação trabalhista, suportam as injúrias, visto que para eles o medo, a humilhação e o desrespeito são companheiros em sua trajetória de vida desde o nascimento, fortalecidos e mantidos pela sociedade dominante e excludente.
São os círculos sistêmicos e progressivos do racismo que conduzem ao encarceramento em massa da população negra e aos altos índices de mortes de jovens negros brasileiros. Fatos, por vezes, mascarados pelas agências de controle penal. Pressupõe-se assim, a população negra como alvo de perseguição devido à seletividade penal classificatória.
Quebrar o silêncio frente ao racismo é compreender a problematização em que determinados segmentos da sociedade absorvem-se de privilégios em função de sua raça/etnia e outros, em detrimento de condições de sobrevivência dos vulnerabilizados.
Portanto, os recursos metodológicos de abordagem qualitativa e de referencial bibliográfico ressaltam o fenômeno do racismo estrutural e institucional como pauta de estudos e debates, ainda prementes dentro e fora dos muros acadêmicos.
2. Contextualização da influência colonizadora no sistema criminal do Brasil
Posiciona-se o sistema de justiça criminal no Brasil muito distante da justiça restaurativa. Ele se apoia no sistema penal de políticas punitivas; reflexo da seletividade penal pactuada nos cernes sociais. Resquícios da colonização carregados de conceitos análogos de racismo.
Segundo Zaffaroni e Batista (2007), o sistema penal brasileiro é cogente na aplicação dos instrumentos legais, paralelamente o Estado negligencia os ditames Constitucionais de 1988 na aplicabilidade de políticas públicas.
Em reflexo, ao racismo está institucionalizado na seletividade penal e nos preâmbulos da política criminal assertiva dentro do arcabouço estrutural implícito na hegemonia racial de segregação, vértice da inserção dos negros sem considerá-los detentores de direitos e deveres, fatores presentes até no retardo do abolicionismo no Brasil; este fato se deu muito em razão da corroboração da sociedade que em nome da ganância e do poder, estimula-se estigmas eugenistas contra a população negra.
Subverte-se a hermenêutica da seletividade penal mediante as inúmeras deficiências estatais acometidas, inclusive, no cotidiano das penitenciárias ao ponto de recusar o garantismo penal defensor do Estado Democrático de Direito. Todavia, essas ações políticas aferem a Constituição Federal e multiplicam as políticas raciais de cunho segregacionista.
3. Seletividade penal: reiteração do racismo estrutural
Nos paradigmas da luta e do debate político sobre o racismo estrutural só há sonoridade por meio da equidade social. Enquanto a desigualdade se solidifica no capitalismo liberal, tanto no cotidiano como no âmbito do trabalho, são seguidas pela obstinação de “mão de obra barata”.
[...]Sobre a base da ficção de igualdade de todos os homens, pressupõe-se a existência de um mercado regido pela oferta e procura. Nele cada um oferece o que tem de forma completamente livre e, como é natural, aquele que nada tem somente pode oferecer o seu trabalho (ZAFFARONI; BATISTA; 2007, p. 209).
Como o sistema de racismo estrutural está pautado na excludência e na massificação que assombra as vidas dos seres humanos e a harmonia do sistema civilizatório, o Estado justapõe-se ao declive de ignorar a opressão racial e desconhece o papel fundante dos negros ao desenvolvimento do país.
Segundo Nascimento (1978, p. 48): “O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com a flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia.” E acrescenta:
O Genocídio do Negro Brasileiro com a propagação de ideias de embranquecimento uma das medidas adotadas foi o estupro da mulher negra, gerando um processo de mulatização, sendo os filhos desses ocupavam cargos de confiança junto aos senhores, como os capitães do mato, isso ocorre devido a cor da pele ser mais clara, porém não branca o suficiente para que não fossem alvo da escravidão e do racismo. O mulato era o degrau para o branqueamento da sociedade brasileira, mostra-se claro o genocídio da população negra, inclusive, na era pós-abolição, pois não era só a pele que clarearia, mas a cultura negra africana ia se perder ao pouco, como ocorreu durante a escravidão quando os negros foram obrigados a abandonar todas suas crenças e ideologias, sendo impostos os pensamentos europeus vigente na época, pois o objetivo desse ideal de branqueamento é “clarear” por dentro e por fora (NASCIMENTO, 1978, p. 48).
Neste contexto, o joguete manipulativo de descaracterizar a integridade existencial dos negros e imputar-lhes caracterizações de animais sem alma, justifica as atrocidades e a dominação.
Este comércio de carne humana é, pois um cancro que rói as entranhas do Brasil, comércio, porém, que hoje em dia já não é preciso para aumento da sua agricultura e povoação, uma vez que, por sábios regulamentos, não se consinta a vadiação dos brancos, e outros cidadãos mesclados, e a dos forros; uma vez que os muitos escravos que já temos, possam às abas de um governo justo, propagar livre e naturalmente com as outras classes, uma vez que possam bem criar e sustentar seus filhos, tratando-se esta desgraçada raça africana com maior cristandade, até por interesse próprio; uma vez que se cuide enfim na emancipação gradual da escravatura, e se convertam brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados (BONIFÁCIO, 2012, p. 39).
Muitos estudiosos aludem à morosidade e à ausência de planejamento para o processo abolicionista no país como pretextos do novo sistema de aprisionamento dos negros, relegados à própria sorte, anulou-se a força de trabalho do negro em demanda de validar o valor do trabalho. Por conseguinte, a discriminação social se agrava perante a ausência de políticas de inclusão do negro na sociedade, o que contrapõe a funcionalidade na defesa e na dignidade ao ser humano.
De acordo com Baratta (2002), o Estado deve administrar seguindo o princípio da legitimidade como representação gestora em nome do povo, a priorizar políticas públicas de desenvolvimento social, econômico, cultural, político e outros.
Cabe ao Estado o papel de reprimir a criminalidade e, para tal função, ele conta com as instâncias oficiais a garantir seguridade ao cidadão brasileiro.
Destarte, os díspares padrões de hierarquização das relações de gênero, raça, classe social em junção ao vértice da subcidadania permeia-se análoga à colonização. Essa reinserção sistêmica do fenótipo racial estereotipa-se na individualidade do campo de padrão social, como leciona Faria (2016, p. 25):
A reduzida ou nenhuma importância dada à questão racial, inclusive pelos setores mais progressistas demonstra a força do racismo na sociedade brasileira. Racismo, que pode ser definido como uma ideologia, ou seja, um conjunto de crenças e valores que classifica e ordena os indivíduos em função de seu fenótipo. Na escala de valores proporcionada pelo racismo, o modelo branco europeu ariano assume a posição de destaque, como padrão positivo superior, enquanto, do outro lado, o modelo negro africano se fixa como padrão negativo e inferior.
Neste aspecto, o combate ao racismo sai da linha do pensamento e adentra-se aos movimentos sociais para que essas vozes possam ser ouvidas clamando por mudanças antes banalizadas e inferiorizadas nas instâncias governamentais. Moore (2007, p. 29) explica que:
Denota-se que as questões raciais passaram a ser vistas de forma banalizada, forçando que a partir dos anos 2000 movimentos se organizassem a provocar o debate da questão racial no Brasil, em relativização as políticas públicas e o combate efetivo do racismo sistêmico, partindo para a construção de uma nova concepção do negro na sociedade.
Em perspectiva ao sistema de justiça não caberia nenhum tipo de seletividade, ainda mais no campo penal; porém, a linha punitiva estatal distingue-se em fases: criminalização primária (elaboração da lei penal) aferidora dos elementos de determinada conduta tipificada; a criminalização secundária que consta na aplicação da lei (PELLIZZARO, 2017).
Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações (CRI, 2006, p. 22 apud PELLIZARO, 2017, n.p.).
Por toda a parte territorial do Brasil estão enclausurados, no sistema prisional, cerca de 700 mil pessoas. No ranking mundial, o Brasil ocupa o quarto lugar em taxa numérica de presos, sendo estes em sua maioria negros (BRASIL, 2018).
O relatório do Infopen específica que a população prisional se caracteriza da seguinte forma: em termos de escolaridade, 89% dos presos não têm acesso ao estudo; apenas 5% da população carcerária têm educação superior; 86% deles estavam desempregados.
No mesmo estudo 67% da população carcerária são de negros e 56% jovens (faixa etária de 18 a 24 anos). Assustadoramente, 250 mil pessoas vivem em cárcere privado, sem sequer terem a condenação confirmada.
Para Carvalho (2015), a população negra compõe os “autos de resistência” do encarceramento massivo, efeito nocivo da seletividade penal. Já na perspectiva de Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 48): “pessoas em posição social desvantajosa e, por conseguinte, com educação primitiva, cujos eventuais delitos, em geral, apenas podem ser obras toscas”.
Dessa maneira, reforçam-se que: “não é a consciência do homem que determina seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 124). Em análise, a Constituição Federal foi ímpar na defesa do ser humano ao qualificá-lo como igual. E especificá-lo na Lei nº 7.716, de 1989 (Lei Caó) como crime imprescritível e inafiançável os atos resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Em linha temporal, a Lei 9.459/1997 tipificou em seu artigo 1° a punição pelos crimes resultantes de discriminação e preconceito de etnia, religião e procedência nacional; no artigo 20, alude-se o: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é crime”, incluído a injúria no Código Penal (injúria racial), por meio da inclusão do parágrafo 3° ao artigo 140 do Código.
Então, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2010, sanciona o Estatuto da Igualdade Racial - Lei 12.288/2010, dispositivo legal para assegurar ações efetivas na igualdade de oportunidades na sociedade brasileira em prol da coletividade.
Em suma, o Estatuto da Igualdade Racial acolhe as denúncias de discriminação racial. Avanços propiciados pelas Leis 9.394/1996, 10.639/2003 e 11.645/2008 que culminaram na inclusão da temática de estudo da “História e Cultura Afro-Brasileira” na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN).
4. Considerações finais
Como resultado do próprio esboço social, o racismo estrutural remonta a historicidade da escravização, etiologia primordial para as muitas das interferências proferidas nas decisões em esfera penal.
Considera-se o Estado como gestor das políticas públicas e garantidor dos princípios fundamentais e sociais. Contudo, o cenário brasileiro favorece determinadas predileções à pequena faixa da sociedade, a “elite brasileira”; cujo aspecto formal da alta burguesia, no anseio de sobrepujar aos demais, sustenta-se na desigualdade de um sistema injusto.
Conjuntura resultante da operatividade dual do bem e do mal, precipitada pela ambivalência do princípio da culpabilidade, que reitera ao crime atitudes reprováveis perante à sociedade.
Quando se estabelece o princípio da igualdade, em que a lei penal é igual para todos, realça-se o princípio da finalidade na premissa de recolocar-se, e não de simplesmente punir. Em seguida, o princípio do interesse social, protegidos pelo Direito Penal, na circunstância social configura a igualdade legal e proíbe a distinção de quaisquer naturezas mencionadas na Constituição Federal de 1988.
No artigo 5º do caput, observa-se o distanciamento teórico forjado nas mediações do preconceito e na desigualdade social, melindres do autoritarismo prefigurado em ações políticas de período eleitoral, em que que os candidatos a cargos públicos se projetam em discursos defensores do povo e da igualdade de direitos.
Não obstante, ao término do período eleitoral negligencia-se os compromissos afirmados com o eleitor, e os governantes fazem parceria aos conchavos do poder paralelo dos interesses escusos do sufrágio da corrupção e intensificam políticas de cunho segregacionista e antidemocráticas.
Sendo assim, a ausência do cumprimento dos direitos e das garantias atribuídas às pessoas negras, atrelada a associação do negro à criminalidade e à falta de reconhecimento de que o racismo é uma patologia que deve ser debatida, tratada e evitada contribuem para que ainda ocorram no judiciário do país várias decisões de crivo racista.
Deste modo, cabe a nós, portanto, estimular o diálogo, o estudo e a integração da realidade em políticas de reparação e conscientização do drama vivido por inúmeros brasileiros frente à opressão da questão social, para que assim possa haver a construção e o desenvolvimento da justiça social para todos.