01 de Fevereiro de 2023

Superlotação prisional, tratamento desumano e a redução da pena, segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos

1.  Introdução

Denomina-se, neste texto, “redução compensatória” a medida que antecipa a liberdade, ao diminuir o tempo de pena a ser executada, em relação ao que foi fixado na sentença, como forma de compensar o sofrimento adicional causado pelas condições desumanas em que a pena privativa de liberdade é cumprida.

Após constatação do tratamento desumano empregado, especificamente, no Centro  Penitenciário Professor Aníbal Bruno, o “Complexo do Curado”, no Recife; e no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, que faz parte do Complexo de Bangu, no Rio de Janeiro; a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) entendeu pela necessidade de emitir Resoluções, ambas em novembro de 2018, a fim de que os presos que se encontrassem nas referidas instituições tivessem contado em dobro o período de privação de liberdade que ali cumprissem.

Evidenciando-se a generalização de tal situação, o presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de concessão da redução da pena a presos acautelados em estabelecimentos prisionais diversos, que se encontrem em situação análoga à constatada pela CorteIDH no Complexo do Curado e no Instituto Plácido de Sá.

2. A Crise Prisional: a severa superlotação e as violações aos Direitos Humanos dos presos

O Brasil, embora não seja o único, vem enfrentando grave crise relativa ao Direito Penal, que pode ser melhor compreendida a partir do que Eugenio Raúl Zaffaroni (2005, p. 72) atribui à soma da alienação técnica do político e a alienação política do técnico.

Esta crise é sentida com muito mais intensidade na execução da pena privativa de liberdade, quando “o protagonista transita para uma situação de maior vulnerabilidade do que aquela em que se encontrava até então e que, em termos axiológicos, é ainda mais merecedora de tutela” (RODRIGUES, 2013, p. 14).

O problema, sabe-se, não é recente, tendo sido identificado, até mesmo, na exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, em 1984,(1) mas tem se tornado ainda mais grave, diante do crescente superencarceramento e desrespeito sistêmico à dignidade do preso.

Tais fatos foram constatados, entre outros importantes julgados, em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, em que se reconheceu o “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro.

Desde então, apesar de todos os dados apurados, inclusive, pelo Ministério da Justiça, parece passar ao largo dos Poderes constituídos a decisão política necessária à solução do problema prisional. Ao contrário, para este contribuem, de forma destacada, a dita alienação jurídica do político, que, com legislação e práticas meramente simbólicas, busca atender ao clamor de uma sociedade acuada e enraivecida; e a alienação política do técnico, que se recusa a tomar a realidade em consideração e a adotar as necessárias medidas legais, com vistas à redução de danos e respeito aos Direitos Humanos dos presos (PENNA, 2021, p. 223 ss).

Agrava-se, assim, a crise causada, entre outros, pela “severa superpopulação carcerária”, terminologia utilizada por organismos internacionais, para descrever uma lotação que supera níveis considerados “toleráveis” e que, conforme descreveu o Conselho de Direitos Humanos da ONU, como aquela que “conduz a condições caóticas dentro dos estabelecimentos e impacta fortemente nas condições de vida dos presos e seu acesso a comida, água, defesa, cuidados de saúde, suporte psicossocial, bem como oportunidades de trabalho e educação, assim como à luz do sol, ar fresco e recreação” (ONU, jan./2016).

2.1 A severa superlotação prisional e o espaço pessoal do detento

Como não há um padrão universal relativo ao quantitativo espacial a ser considerado para o cálculo da lotação prisional, os estabelecimentos prisionais são construídos conforme regras próprias de cada Estado ou cada região, que estipulam sua capacidade de alojamento.

Contudo, para se determinar o número de pessoas que podem ser abrigadas em cada cela ou estabelecimento, é necessário que se observem regras mínimas, como “o espaço real disponível por detento, ventilação; iluminação; acesso às instalações sanitárias; o número de horas que os detentos passam trancados em suas celas ou dormitórios; o número de horas que os detentos passam ao ar livre; e as possibilidades que eles têm de exercício físico, trabalho, entre outras atividades” conforme se extrai do “Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Américas”, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2011).

Ainda segundo a CIDH (2011), no que tange ao espaço real disponível, cada detento deve ter espaço suficiente para dormir deitado, para andar livremente dentro da cela ou dormitório e para guardar seus pertences pessoais.” (2011, p. 178).

A superlotação, que conforme o Conselho da Europa (2016, p. 05) se caracteriza “quando a demanda por espaço em prisões excede a capacidade prisional de um determinado Estado ou mesmo de um determinado estabelecimento” pode ser sutil, quando o número, embora ultrapasse a quantidade de vagas, não exceda a ponto de trazer maiores danos aos presos; pode, ainda, ser apenas momentânea e localizada. Por outro lado, pode a superpopulação carcerária ser severa, generalizada e sistêmica, como reconhecido pelo STF, em julgamento da ADPF n. 347, em 2015.

A título de exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no julgamento “Plata v Brown”, após reconhecer a “severa” superlotação como um dos maiores problemas do sistema prisional californiano, determinou que se reduzisse a lotação para um máximo de 137,5% da capacidade de cada instituição (SUPREME COURT OF THE UNITED STATES, 2011), o que seria uma espécie de limite máximo de superpopulação aceitável.

No Brasil, segundo informações obtidas através do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), publicado em 2019, a lotação era de 197,4% da capacidade de alojamento, considerando-se a existência de 726.712 (setecentos e vinte e seis mil, setecentos e doze) presos, para apenas 368.049 (trezentas e sessenta e oito mil e quarenta e nove) vagas (BRASIL, 2019).

O número de vagas, é importante se destacar, é calculado com base em Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), entre as quais a Resolução n. 9, de 2011, que chega a prever que uma cela de 13,85m2, teria capacidade para abrigar até 8 presos (BRASIL, 2011).

2.1.1 Superlotação prisional e violação de Direitos Humanos, por falta de espaço pessoal

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) reconhece, de forma bastante frequente, a violação de Direitos Humanos em razão da superpopulação carcerária. Embora não seja um parâmetro absoluto, a superlotação prisional tem destacada relevância na configuração de tratamento desumano.

A superlotação é considerada um forte indicativo de maus-tratos aos presos, uma vez que é a origem de grande maioria das demais violações, como más condições de aeração, limpeza, privacidade para utilização das instalações sanitárias, falta de assistência à saúde, entre outros, como constatado no julgamento “Sulejmanovic contra Itália”, em 2009 (TEDH, 2009).

Há casos, contudo, em que a severidade da superpopulação tem sido considerada, por si só, caracterizadora de violação aos Direitos Humanos dos presos, nos termos em que prevê o art. 3º, da Convenção Europeia de Direitos Humanos, dispositivo que inspirou a redação do art. 5º, da Convenção Americana, em razão da redução do espaço mínimo reservado para cada preso.

No que se refere à lotação prisional, especificamente no que se refere à metragem pessoal, o Comitê Europeu de Prevenção da Tortura e de Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante definiu, para celas individuais, o espaço de 6 m2 (seis metros quadrados), enquanto para celas coletivas o mínimo de espaço pessoal fixado é de 4 m2 (quatro metros quadrados), excluindo-se de tal metragem, o necessário para as instalações sanitárias, que devem existir em cada cela (COUNCIL OF EUROPE, 2015).

Considerando-se tal previsão (COUNCIL OF EUROPE, 2015), a jurisprudência do TEDH considera violadora de direitos humanos a manutenção de pessoas presas em celas que garantam menos de 3 m2 (três metros quadrados) de espaço individual, como bem lembrou Massimo Pavarini (2013), apontando a condenação da Itália, na sentença-piloto proferida no processo “Torregiani e outros contra a Itália” (TEDH, 2013).

Influenciadas pela jurisprudência europeia, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos têm dedicado especial atenção às condições de aprisionamento nos estabelecimentos penais brasileiros, com destaque à superlotação, como parâmetro indicador de maus-tratos, como verificado no Complexo do Curado e no Instituto Plácido de Sá Carvalho, estabelecimentos que, em 2018, contavam com superpopulação em torno de 200% (CorteIDH, 2018a; 2018b).

Importa destacar, como advertido acima, que o cálculo de lotação em 200% toma por conta a metragem prevista nas Resoluções do CNPCP, que chegam a prever uma metragem de cerca de 1,73 m2 de espaço pessoal para cada preso.

A partir destas informações, tendo em vista que a legislação brasileira reserva pouco mais da metade do espaço pessoal que o TEDH considera, por si só, gerador de tratamento desumano,(2) é possível se concluir, com segurança, que no Brasil, ainda que não estivesse em situação de generalizada superlotação prisional (BRASIL, 2015), estar-se-ia aplicando pena ilícita, pelo excesso de sofrimento infligido aos presos (PENNA, 2021, p. 259-263).

3.  O Tratamento Desumano e a Redução Compensatória da Pena Privativa de Liberdade

O superencarceramento – fenômeno mundial que se mostra especialmente grave no Brasil – e a consequente – e severa – superlotação prisional aumentam, exponencialmente, a violação dos direitos humanos dos presos, na medida em que levam ao aprisionamento de pessoas em espaço físico inferior ao mínimo necessário, o que, nos termos da jurisprudência europeia, por si só ou por implicar na piora das condições de limpeza, ventilação, iluminação, acesso a instalações sanitárias, entre outras, constitui tratamento desumano.

Intensificam-se, por outro lado, as discussões acerca de medidas necessárias à prevenção das referidas violações ou, ao menos, para compensação aos que tenham seus direitos desrespeitados, como é o caso da redução da duração da pena, apontada como método de contenção dos danos causados pelo tratamento desumano a que são submetidos os presos ao redor do mundo.

Influenciada pela jurisprudência do Tribunal Europeu, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, após evidenciar múltiplas violações aos Direitos Humanos de presos em estabelecimentos prisionais localizados em quase todas as regiões do Brasil; bem como após emitir recomendações para a adoção de diversas medidas de contenção das ilegalidades verificadas, definiu que o Estado brasileiro adotasse o cômputo em dobro do tempo de prisão cumprido no Complexo Penitenciário de Curado e no Instituto Penal Plácido de Sá, em decisões de novembro de 2018.

Referido cômputo foi fixado de forma proporcional à população prisional que, à época, em cada um dos estabelecimentos, estaria, como dito, em torno de 200% da capacidade das instituições, o que “duplica também a inflicção antijurídica eivada de dor da pena que se está executando, o que imporia que o tempo de pena ou de medida preventiva ilícita realmente sofrida fosse computado à razão de dois dias de pena lícita por dia de efetiva privação de liberdade em condições degradantes” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2018a, p. 23).

4. Conclusão

As decisões da CorteIDH, pela redução da duração da pena desumana, se referem exclusivamente às pessoas privadas de liberdade no Complexo do Curado e no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Contudo, sabe-se que as violações ali encontradas não estão restritas aos ditos estabelecimentos, mas generalizadas, constituindo “um indício de eventual generalização de um problema estrutural de âmbito nacional do sistema penitenciário” (CorteIDH, 2017).

A crítica superlotação prisional e as consequentes e generalizadas violações aos Direitos Humanos dos presos no Brasil requerem medidas imediatas que visem restaurar a constitucionalidade da execução da pena privativa de liberdade, sendo a redução compensatória do excesso de sofrimento uma das mais indicadas, como reconhecido, há tempos, pelo Tribunal Europeu e, mais recentemente, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Embora as Resoluções da CorteIDH sejam vinculantes apenas em relação ao Complexo do Curado e Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, entende-se seja possível – e recomendável – a adoção de referidos precedentes às demais instituições que apresentem situações análogas, a fim de se aplicar a redução compensatória da pena de todos os presos que se encontrem submetidos a tratamento desumano, seja pela crítica superlotação prisional, seja pelas diversas outras violações de direitos humanos evidenciados por todo o sistema prisional brasileiro, como forma de possibilitar o progressivo resgate da dignidade do tratamento prisional e da licitude da execução da pena privativa de liberdade.