01 de Fevereiro de 2023

O princípio da confiança e sua aplicabilidade no âmbito da construção civil: uma análise a partir da teoria do delito

1. Introdução

O presente trabalho objetiva discutir a possibilidade de aplicação do princípio da confiança no âmbito da responsabilidade penal no setor da construção civil. De saída, observa-se que o princípio da confiança, originalmente desenvolvido na Alemanha, pode ser definido hodiernamente como: “um critério normativo de delimitação do risco permitido no âmbito da imputação objetiva” (SIQUEIRA, 2019, p. 216).

O ramo da construção civil, pela sua complexidade, desenvolve-se em uma completa divisão de trabalhos, pois o engenheiro realiza normalmente o projeto estrutural para a realização de um imóvel, enquanto o construtor se encarrega, habitualmente, da contratação de pessoas diversas para a execução da obra. Por fim, tem-se a figura do mestre de obras, sujeito responsável pela fiscalização e supervisão da obra, e todos atuam em relação de confiança uns com os outros.

Logo, na hipótese de ocorrer um ilícito penal, indaga-se se é possível a aplicação do princípio da confiança, mormente para delimitar o âmbito de responsabilidade penal a partir da imputação objetiva. Trata-se de pesquisa dialética, que aborda a confrontação de discursos teóricos opostos. O método de procedimento privilegiou a investigação bibliográfica, centrada na análise da dogmática penal, com a finalidade de demonstrar possíveis contribuições do princípio em questão.

2. A busca da origem e os contornos do princípio da confiança no ordenamento jurídico brasileiro

Primeiramente, convém referir que o princípio da confiança não é novo no Direito Penal. Começou a ser adotado pela jurisprudência alemã em meados da década de 1930 para resolver os problemas de determinação de responsabilidade penal no âmbito dos delitos culposos, cometidos no contexto do tráfego rodoviário.(1)

Em solo brasileiro, o referido princípio teve aplicação tardia: somente foi difundido nos idos de 2000, sobretudo nos delitos de trânsito, passando a reconhecer que as pessoas, ao dirigirem, podem confiar na conduta correta dos demais motoristas (SIQUEIRA, 2019, p. 61; 63-70; MARTINELLI; BEM, 2020, p. 329). Imagine se fosse necessário ter que dirigir todo tempo controlando os riscos emendados pela conduta alheia: não seria possível desenvolver a atividade.

Depois de sedimentado no contexto do trânsito, esse princípio passou por processo de expansão e começou a abarcar uma multiplicidade de outros setores, tanto no contexto empresarial, quanto no contexto médico. Parte-se de premissa que:

O indivíduo, ao atuar, não precisa preocupar-se a todo tempo com a possível conduta incorreta de terceiros que possa ensejar a ocorrência de um resultado lesivo, podendo confiar que os demais participantes da atividade irão agir de acordo com as determinações normativas (SIQUEIRA, 2019, p. 216).

Logo: “essa ideia se aplica não apenas ao trânsito, mas também à prática de atividades em conjunto” (GRECO, 2005, p. 54),(2) sobretudo àquelas que são pautáveis pela divisão de tarefas entre profissionais diversos. Melhor dizendo: a “confiança é um elemento essencial das sociedades modernas” (FIDALGO, 2018, p. 21), pois é impossível desenvolver qualquer atividade que envolva divisão de tarefas se não for possível confiar que o terceiro está atuando corretamente. Nesse sentido, disserta Ingeborg Puppe (2006, p. 3), que: “el principio de confianza es un elemento necesario de toda división del trabajo”.

Em suma, o princípio da confiança tem repercussão não apenas no tradicional Direito Penal de Trânsito, onde surgiu, mas também no Direito Penal Médico e no Direito Penal Econômico, sobretudo nos casos de responsabilidade penal pelo produto, nas relações de prestação de serviços, e no setor da construção civil, objeto do presente estudo.

No que se refere à sua função na teoria do delito, hodiernamente, o princípio da confiança está inserido na teoria da imputação objetiva, sendo um critério que delimita o risco permitido; por outro lado, há quem defenda que o princípio da confiança é um princípio que serve para delimitar o dever de cuidado no âmbito dos crimes culposos. Esta última visão é defendida sobretudo por Sónia Fidalgo. A autora entende o princípio da confiança como princípio concretizador do dever objetivo de cuidado. Então, de acordo com esse sistema, o princípio da confiança vai permitir uma delimitação de responsabilidade a partir do ilícito culposo.(3)

De outro lado, Flávia Siqueira (2019, p. 216), com lastro na doutrina de Roxin, reconhece que o: “princípio da confiança é um critério normativo de delimitação do risco permitido no âmbito da imputação objetiva, que possui pertinência na determinação da relevância penal do risco criado tanto nos delitos culposos como dolosos”.(4)

Ademais, Tavares evidencia esse duplo papel do princípio da confiança: na verdade, “tanto em um como em outro caso, as soluções conduzirão ao mesmo desfecho, que será o de delimitar a incidência da norma criminalizadora ao caso concreto” (TAVARES, 2018, p. 349). Portanto, por mais que exista essa divergência doutrinária, essa questão não passa de: “uma celeuma teórica existente em torno dos elementos necessários para caracterização do tipo negligente” (SÁNCHEZ RIOS, 2020, p. 179). Atualmente, tanto em uma como em outra concepção, o resultado será o mesmo: a exclusão do aspecto do tipo objetivo.(5)

3. O princípio da confiança e sua aplicabilidade no âmbito da Construção Civil

Inicialmente, imperioso destacar que: “a atividade desenvolvida por uma empresa, sobretudo no âmbito da construção civil, é também uma atividade especialmente perigosa, em que a produção de um resultado lesivo pode ver-se condicionada pela intervenção de diversos sujeitos” (FIDALGO, 2018, p. 83).(6) Tem-se, por exemplo, o proprietário do terreno/da obra, os engenheiros ou arquitetos, o construtor, e, além disso, o mestre de obra, os empreiteiros e obreiros, e espera-se que cada sujeito atue conforme os seus deveres, para o melhor desempenho das atividades.

Como aponta Sónia Fidalgo (2018, p. 83): “o empresário – frequentemente o construtor – procede habitualmente à contratação de várias pessoas, realizando-se uma divisão de trabalho semelhante à que se verifica no exercício da medicina”. Ocorre que, no âmbito de preocupação deste trabalho: “as pessoas contratadas executam as tarefas em cumprimento de ordens que recebem do empresário ou do encarregado da obra” (p. 83). Contudo: “uno de los problemas que se plantean en los accidentes laborales es el de determinar la responsabilidad del empresario por las lesiones que se pueden ocasionar a sí mismas las personas que trabajan para él” (MARAVER GÓMEZ, 2007, p. 107).

No entanto, de acordo com Wilhelm Gallas (apud MARAVER GÓMEZ, 2007, p. 106):

[…] el promotor cumple con su deber de cuidado desde el momento em que contrata con un arquitecto y una empresa constructora que, en principio, resultan fiables, es decir, no está obligado a supervisar la ejecución de la obra en la medida en que puede confiar en su profesionalidad.

A ideia de Gallas é que, no âmbito da construção civil, pode-se confiar que os outros executem cuidadosamente o seu serviço.

O proprietário da obra, desde que selecionada adequadamente a empresa executora desta, vai poder confiar na construtora, no arquiteto, no engenheiro civil, presumindo que executarão corretamente as atividades por eles desempenhadas. Não cabe ao proprietário da obra a supervisão dos serviços por eles realizados, tendo em vista que não é um especialista. Portanto, há que se considerar que se pode: “em regra, confiar que os demais se comportarão de modo correto” (GRECO, 2005, p. 53-54). Conforme Maraver Gómez (2007, p. 107), o proprietário da obra apenas: “excepcionalmente tiene un deber de supervisión o de intervención cuando, casualmente, sin necesidad de una previa indagación, encuentra motivos para dudar de la cuidadosa actuación del arquitecto o de la empresa ejecutora”.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado em relação ao arquiteto perante a construtora: el arquitecto puede ‘confiar’ en la correcta actuación de la empresa constructora en la medida en que no haya motivos para dudar de ello” (GALLAS, 1964, p. 60-63 apud MARAVER GÓMEZ, 2007, p. 107). Também o engenheiro tem o direito de confiar na construtora, que executará corretamente o seu projeto. Contudo, o responsável pela obra ou o mestre de obras “[…] está obligado no sólo a dar las indicaciones oportunas para asegurar los riesgos de la obra, sino también a supervisar su correcto cumplimiento” (GALLAS, 1964, p. 60-63 apud MARAVER GÓMEZ, 2007, p. 107).

A possibilidade de confiar na conduta correta de terceiro é pressuposto que obviamente não tem validade irrestrita. Caso os indivíduos, no exemplo mencionado acima, percebam a existência de indícios concretos de que os sujeitos atuaram incorretamente ou de que não são confiáveis, resta afastada, a priori, a aplicabilidade do princípio da confiança. (7) Se assim não for, estar-se-á diante de responsabilidade penal objetiva, o que é vedado em nosso ordenamento. (8)

Assim, o empresário/construtor pode confiar em outras pessoas, mas não cegamente. Antes, devem ser cumpridos os deveres de cuidado na contratação de cada uma das empresas e funcionários, verificando a sua qualificação (deveres de seleção, instrução, coordenação, supervisão, etc.). Pode-se dizer, portanto, que, se forem cumpridos esses deveres, o empresário poderá valer-se do princípio da confiança – claro, desde que não existam outros deveres inerentes à sua atividade.(9)

Arroyo Zapatero (1981, p. 177) defende uma aplicação mais restrita do princípio da confiança: “está sometido a diversas restricciones, afectando unas a la propia naturaleza de la institución y otras a la distinta categoría de personas que pueden intervenir en los procesos de riesgo, bien sean técnicos y directivos”. Contudo, há quem sustente ainda que se aplica o princípio da desconfiança. (10) Mas seria isso algo viável, partindo do pressuposto de que estamos num ambiente de divisões de tarefas? Entende-se como questionável essa posição, pois uma total desconfiança tornaria inviável o desenvolvimento de uma construção.

Contudo, concorda-se com Mario Maraver Gómez (2020, p. 219): “no es correcto, por ello, ni en este ni en ningún otro ámbito, proclamar la existencia de un principio de desconfianza”. No limite: “não se pode exigir que todos os indivíduos orientem suas condutas na sociedade visando controlar os riscos que decorrem da atuação de terceiros, tornando-se ‘vigias’ da conduta alheia” (SIQUEIRA, 2019, p. 110).

Portanto, nossa perceptiva é que no âmbito da construção civil, torna-se inviável dizer que não se pode confiar nas atividades dos demais. Isso ganha luz a partir do seguinte exemplo: como seria viável o trabalho do engenheiro em uma construção civil se não pudesse confiar nos terceiros e ficasse objetivamente responsável por tudo o que pudesse acontecer naquela atividade? O princípio da confiança é algo que basicamente viabiliza as atividades sociais em uma sociedade tão complexa e moderna. Ademais, tal princípio é de suma relevância para solucionar os problemas de imputação penal no âmbito dos acidentes de trabalho no contexto da construção civil.

Contudo, o que se pode admitir são restrições do princípio da confiança: “neste ramo de atividade, na medida em que certas regras de segurança imponham deveres de controle de risco que, por isso, se afasta a lógica da divisão de trabalho” (FIDALGO, 2018, p. 83).(11) Ocorrerá certa limitação do princípio nos casos em que o dever de cuidado esteja dirigido exatamente no sentido de controle, fiscalização e guarda de condutas de outrem; “tais limites, porém, não implicarão a solução da generalidade destes casos com base numa ideia de desconfiança” (p. 83). Em suma, nos casos em que são impostos, por exemplo, ao construtor, ou ao engenheiro, os deveres de controle, vigilância e supervisão da conduta dos empregados, a confiança será menor, mas isso não exclui, por si só, a possibilidade de o indivíduo se valer da confiança.

4. Algumas conclusões

Em uma sociedade tão complexa, é impossível que se tenha alguém responsável pelo sistema todo, seja no âmbito do trânsito, seja nos acidentes de trabalho no âmbito da construção civil. Exatamente por isto, a adoção de um “princípio da desconfiança” inviabilizaria toda e qualquer atividade que envolva a intervenção de pessoas diversas.

Conclui-se não apenas que se pode aplicar esse princípio para delimitar a responsabilidade penal dos indivíduos no contexto da construção civil – afastando a tipicidade, por exemplo, em casos de crimes culposos –, razão pela qual é cogente a conclusão de que a sua aplicação é fundamental para viabilizar atividades complexas na atualidade.