01 de Março de 2023

(NÃO) Provas obtidas a partir do congelamento de conteúdo de contas da internet: a decisão do ministro Ricardo Lewandowski no HC 222.141 foi correta?

1. O Habeas Corpus 222.141

Impetrado contra decisão do Superior Tribunal do Justiça (STJ), o HC 222.141 teve por objetivo desconstituir sucessivas decisões que mantiveram a regularidade de medida deferida sob os auspícios da Lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet. No caso, o Ministério Público do Paraná solicitou extrajudicialmente aos provedores de internet (Apple e Google), que congelassem de forma preventiva conteúdos específicos de contas virtuais de pessoas investigadas em razão da suspeita da prática de infrações penais no contexto de licitações no Detran daquele Estado.

O pedido formulado visava à “preservação dos dados e IMEI coletados a partir das contas de usuários vinculadas, tais como dados cadastrais, histórico de pesquisa, todo conteúdo de e-mail e iMessages, fotos, contatos e históricos de localização” (BRASIL, 2022a, p. 3). De acordo com a impetrante, o conteúdo indicado não se enquadrava nos conceitos de “registros de conexão” ou de “registros de acesso a aplicações de internet”, para os quais o Marco Civil da Internet possibilita a formulação de requerimento administrativo de guarda cautelar, respectivamente no Art. 13, § 2º,(1) e no Art. 15, § 2º.(2)

E mesmo que o Parquet tenha obtido, posteriormente, provimento jurisdicional favorável ao acesso especificamente de todo o conteúdo solicitado, que, por sua vez, foi formulado com fundamento e no prazo do Art. 13, § 3º,(3) do Marco Civil, defendia a impetrante que além da ilegalidade pela inadequação às mencionadas hipóteses, ocorreu também violação ao direito fundamental à privacidade em virtude de terem sido impedidos de utilizar livremente os dados que foram armazenados em decorrência do requerimento apresentado às plataformas.

A tese da impetrante, acolhida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi essencialmente pela violação do direito à privacidade. Para a concessão da ordem e anulação de todo o acervo probatório produzido no contexto da diligência provocada pelo Ministério Público, o Ministro concluiu que houve contrariedade à Constituição Federal e ao Marco Civil da Internet, pois a medida se constituiu em verdadeira medida cautelar ordenada por conta própria, sem autorização judicial, de todo conteúdo de comunicações telemáticas da impetrante.

Além disso, observou que o congelamento – e, conforme por ele destacado –, a: “consequente perda da disponibilidade [...] de todo o conteúdo de e-mails, mensagens, contatos e históricos de localização” (BRASIL, 2022b, p. 8), estaria albergada pela reserva de jurisdição, à vista do direito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, à luz do Art. 5º, X, da Constituição Federal.

Por fim, assentou que a medida solicitada pelo Ministério Público se afastou completamente do que o Marco Civil definiu conceitualmente para a guarda cautelar de: “registros de conexão” e de: “registros de acesso a aplicações de internet”,(4) de forma que a providência, tal como se deu, tratou-se de efetiva busca e apreensão prévia de conteúdos telemáticos para posterior formalização por ordem judicial: “em prática vedada por qualquer standard que se extraia da ordem constitucional vigente” (BRASIL, 2022b, p. 15).

2. A Decisão Foi Correta?

Não. Com todas as vênias ao Ministro e a suas colocações, pondera-se que a decisão caminha até certo ponto na jornada legítima e escorreita da tutela dos direitos e garantias fundamentais, mas se distancia de outros pontos igualmente relevantes, equivalentes ou até superiores, que envolvem mais do que somente a posição jurídica da paciente no HC 222.141.

De fato, o conteúdo indicado pelo Ministério Público na solicitação formulada aos provedores de internet não se enquadra no teor dos dispositivos que o legitimavam a adotar a providência estudada; vai além. No entanto, a casuística ganha outra dimensão quando observado que, a despeito do parcial descompasso, os provedores de internet Apple e Google acataram a solicitação administrativa na sua integralidade quando podiam recusar o seu cumprimento, em razão do que preconiza a legislação.

Além disso, é de bom alvitre pressupor que o Ministério Público não tenha agido de má-fé, seja por não ser comum a atuação deliberadamente ilegal, seja porque, consoante a máxima do Direito: a boa-fé se presume; a má-fé se comprova. Frise-se, porém, que não se quer estabelecer nenhuma espécie de defesa ou justificativa para eventuais violações a direitos fundamentais, com ou sem intenção.

Almeja-se, na verdade, salientar a circunstância da possibilidade de haver dúvida e boa-fé de todos os envolvidos quando a solicitação foi formulada aos provedores de internet para o congelamento dos dados dos investigados, até mesmo do próprio juízo de primeiro grau, que, poucos dias depois de o pedido de congelamento dos dados ter sido acatado, deferiu a sua disponibilização ao Ministério Público.

Esse detalhe não poderia ter sido meramente desconsiderado porque não há como negar que, para todos os efeitos, o Ministério Público sempre atua no sentido de cumprir um mister investigativo de ordem constitucional, que prima pela tutela de outros interesses também de cariz fundamental – como, em último grau, o de segurança, expresso em diversas passagens do texto constitucional (Arts. 5º e 6º, 144, capita).

Logo, ao ser redesenhado o quadro julgado no HC 222.141 para incluir outros aspectos merecedores de ponderação, constata-se: i) a existência de interesses fundamentais de ambas as partes – investigador/Estado e investigado; ii) a possibilidade de dúvida quanto aos termos e alcance da medida de congelamento dos dados virtuais; iii) a existência de indícios da prática de infrações penais em desfavor dos investigados, sem os quais a medida não obteria chancela jurisdicional posterior;(5) iv) o estado e as consequências da reclamada violação ao direito de privacidade da impetrante.

Com isso, a questão relativa à violação ao direito de privacidade, antes de ser o argumento silenciador da discussão, merecia, no mínimo, que fosse cotejada com aqueles outros aspectos, ainda que para rejeitá-los. Além de não os abordar, a decisão estabelece como o único viés apenas a perspectiva da paciente, o que torna a solução sedimentada pelo STF, indiscutivelmente, limitada.

Com efeito, não houve o exame sob a ótica da teoria das nulidades, que, mesmo em relação às de caráter absoluto – como se dá em casos de violações a direitos fundamentais –, autoriza a aplicação do princípio do prejuízo ou da instrumentalidade das formas.(6) Esta regra é: “a viga mestra em matéria de nulidade”.(7)

Em verdade, dados os inúmeros inconvenientes e perdas que a decretação de uma nulidade representa à persecução penal, não é razoável: “que a simples possibilidade de prejuízo dê lugar à sanção; o dano deve ser concreto e efetivamente demonstrado em cada situação” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2011, p. 28). Tanto que o próprio STF admite a manutenção do ato judicial ainda que infirmando por nulidade absoluta quando não demonstrado haver prejuízo.(8)

Ainda nesse sentido:

A manutenção da eficácia do ato atípico ficará na dependência da demonstração de que a atipicidade não causou prejuízo algum. E será o juiz ‒ a quem incumbe zelar pela regularidade do processo e observância da lei ‒ que, para manter a eficácia do ato, deverá expor as razões pelas quais a atipicidade não impediu que o ato atingisse sua finalidade (BADARÓ, 2015, p. 790).

Portanto, se ao longo de todas as decisões nas instâncias inferiores a ausência de prejuízo não só foi um ponto discutido, como foi o próprio fundamento para a manutenção da investigação no primeiro grau, era mais do que razoável esperar que o Supremo Tribunal Federal também se debruçasse sobre essa questão.

No caso concreto, entre a solicitação do Ministério Público, o atendimento pelos provedores e a obtenção da autorização judicial de acesso ao que foi demandado (e não só aos “registros de conexão” e de “registros de acesso a aplicações de internet”) se passaram pouco menos de duas semanas (de 22/11 a 3/12/2019).

Nesse período, conforme a impetrante e o Ministro Ricardo Lewandowski, teria havido a perda da disponibilidade, por seus titulares, sobre os conteúdos telemáticos congelados. Com arrimo em passagem do voto do também Ministro Edson Fachin na ADPF 403/DF, estabeleceu o Ministro Relator que a violação ao direito de privacidade se deu pela afronta ao: “direito de manter o controle sobre a sua própria informação e de determinar a maneira de construir sua própria esfera pública” (BRASIL, 2022b, p. 11).

Ocorre que, do ponto de vista semântico, e salvo melhor juízo, “perda” se relaciona com a ideia de definitividade, ou seja, deixo de poder fazer o que quiser, quando quiser e como quiser com o conteúdo privativo.

Entretanto, o que houve na hipótese fática foi de que, por 13 dias, os investigados até poderiam exercer o controle sobre os conteúdos telemáticos congelados, mas apenas parcialmente, pois continuariam guardados junto aos provedores de internet por força de medida inicialmente administrativa e, depois, judicial.

Logo, verifica-se ter ocorrido mera suspensão da possibilidade do controle absoluto sobre o conteúdo privativo, tornando-se definitiva a partir do momento em que, constatados os indícios da prática de ilícitos penais e procedido conforme a legislação de regência, aqueles elementos passariam a pertencer à investigação.

Vale dizer que, durante todo o período da alegada indisponibilidade, o conteúdo foi mantido sob absoluto sigilo, de forma que somente quem sempre teve, em tese, conhecimento dos dados virtuais – os investigados e os provedores de internet – assim permaneceu até o deferimento de acesso ao Ministério Público.

Sendo assim, realmente não se compreende qual foi o prejuízo experimentado pela impetrante se, em termos práticos, nada em sua situação jurídica foi alterada até ser expedida ordem judicial. Efetivamente, não há nem que se falar em “ameaça a direitos”, pois, se havia indícios de ilícitos criminais que pesavam em desfavor dela e dos demais investigados, isso é justamente razão para que se autorizam medidas de ingerência à esfera individual ou patrimonial de uma pessoa, e não o contrário.

3. Considerações Finais

Da mesma forma que não se tolera lesão ou ameaça de lesão a direitos, principalmente os de caráter fundamental, do mesmo modo não se admite que nenhuma pessoa se arvore neles para cometer ilícitos e se furtar à aplicação da lei.

Ao conceder a ordem no HC 222.141 e anular todas as provas de operação levada a efeito pelo Ministério Público do Estado do Paraná, entende-se, com a devida vênia, que o Supremo Tribunal Federal se afastou da integralidade dos standards da ordem constitucional por ele mesmo preconizados, os quais, certamente, acolhem a sistemática das nulidades previstas na legislação processual penal.

Assim agindo, descurando-se da inexistência de prejuízo que autorizaria a manutenção de toda a investigação, a Corte Constitucional caminhou exclusivamente na direção do indivíduo, ainda que contra ele pesassem informações do cometimento de crimes e outras circunstâncias que, no caso, reclamavam por maior atenção.

Sob outro viés, a sociedade se viu descoberta e sozinha – nem sequer lembrada em seus interesses –, a qual, representada não só pelo Parquet, como também por todos os juízes de instância inferior (o Superior Tribunal de Justiça inclusive), laborou para manter tão custosa e desgastante hipótese de persecução penal.

A forma superou a finalidade.