05 de Junho de 2023

Nota Técnica | Instituto Brasileiro de Ciências Criminais


 
Projeto de Decreto Legislativo nº 81/2023

Autoria: Deputado Federal Kim Kataguiri (UNIÃO BRASIL/SP)

São Paulo, 02 de junho de 2023.


  • Contextualização

  • O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 81 de 2023 tem como objetivo sustar a aplicação da Resolução 487, de 15 de fevereiro de 2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

    A Resolução 487/2023, que entrou em vigor em 26/05/2023, instituiu a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabeleceu procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001 no âmbito das medidas de segurança. A Resolução também atendeu às medidas impostas ao Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por ocasião da condenação relativa à morte de Damião Ximenes Lopes.

    O PDL 81/2023 e seus apensados sustentam a contenção da Resolução sobretudo porque ela teria extrapolado o seu poder regulamentar, invadindo, com isso, a competência do Poder Legislativo. 

    Nesse contexto, pelas razões que se seguem, o IBCCRIM manifesta-se contrário à aprovação do PDL 81/2023 e em defesa da Resolução 487/2023 do CNJ.

  • Preliminar: cabimento do pdl

  • De acordo com a leitura conjunta dos arts. 49, V, da CRFB, e 24, XII, do RICD, cabe ao Congresso Nacional propor, por decreto legislativo, a sustação de atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.

    Frisa-se, a teor dos dispositivos, que a ideia central é melhor regular a relação do Poder Legislativo com o Executivo – consequência lógica de sua função primária de fiscalização. 

    Essa incumbência, contudo, não é extensível ao Poder Judiciário – não, pelo menos, nos termos legais –, não cabendo ao Congresso interferir na agenda de construção de seus atos normativos. Sendo o Conselho Nacional de Justiça órgão do Judiciário, não há que se falar no cabimento de PDL para sustar a Resolução 487/2023, que nada mais é do que um ato administrativo regulamentar.

    Mesmo considerando o argumento de que “deva ser privilegiado o contexto geral da orientação da Constituição e do Regimento Interno, de forma a abarcar a sustação de atos do Judiciário”, é importante ter em mente que os textos normativos são explícitos em referenciar apenas o Poder Executivo. Não há como ignorar ou suprimir tal disposição, sobretudo no olhar da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). 

    Logo, de princípio, o PDL 81/2023 não merece prosperar por ausência de hipótese normativa de cabimento.

  • O poder regulamentar da Resolução 487/2023

  • Ainda que se conceba o cabimento de PDL para sustar atos do Judiciário, o argumento de que a Resolução teria extrapolado o seu poder regulamentar e, por isso, invadido a competência legal do parlamento, não é devido e nem sustentável.

    A rigor, é importante que se diga que a Resolução 487/2023 apenas e tão somente adequou o procedimento de cumprimento das medidas de segurança ao arcabouço normativo em vigor.

    Além de atender ao Ponto Resolutivo 8 da sentença da CIDH no caso Ximenes Lopes, a Resolução tem como função regulamentar a incidência dos seguintes dispositivos legais à sistemática das medidas de segurança: 

    (1) Lei n. 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica); 

    (2) Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006), internalizada pelo Congresso Nacional pelo DL 186/2008; 

    (3) Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e seu Protocolo Facultativo (2002), de caráter supralegal, por tratar-se de tratados de Direitos Humanos; 

    (4) Lei n. 13.146/2015 - Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência); 

    (5) o art. 112, § 3° do Estatuto da Criança e Adolescente, instituído pela Lei n. 8.069/1990; 

    (6) o art. 64, em especial, o par. 7° da Lei n. 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. 

    Diante disso, o arcabouço legal do qual a Resolução 487/2023 toma seu fundamento de validade é claro e explícito, não havendo que se falar em ato administrativo autônomo. 

    Não há qualquer inovação processual ou penal, na medida em que a sistemática trazida pela Resolução extrai a sua fundamentação da Lei 10.216/2001, com mais de 20 anos de vigência, bem como das outras disposições citadas.

    Se oportuno citar, o próprio Supremo Tribunal Federal já consolidou o fato de que a Lei da Reforma Psiquiátrica é plenamente aplicável às hipóteses de medida de segurança na Justiça Criminal. Também no âmbito das medidas socioeducativas, o STF já certificou a plena aplicabilidade da Lei.

    Primeiro, sob um olhar sistêmico, devem-se cumprir as legislações vigentes e; segundo, a retirada da Resolução ensejaria provável nova condenação do Brasil ou reconhecimento de descumprimento das determinações da CIDH.

    Com a Resolução do CNJ, portanto, não se está diante de ato administrativo autônomo ou de qualquer ingerência em matéria de competência legislativa, devendo ser mantida em pleno vigor.

  • O importante mérito da resolução 487/2023

  • De início, importa ressaltar que a normativa do CNJ, elaborada por uma comissão com alguns e algumas dos(as) mais destacados(as) especialistas no tema no país, representa extraordinário avanço no tratamento e na reabilitação psicossocial de um significativo número de pessoas, que atualmente sofrem de violências e abandono. Em outras palavras, que sofrem pela não aplicação prática da Lei 10.216/2001.

    Mesmo com 20 anos de vigência, a Lei da Reforma Psiquiátrica não deu conta de imprimir na prática padrões civilizatórios mínimos no tratamento da pessoa com transtorno mental ou, ao menos, não foi capaz de confrontar alguns dos problemas mais estruturais desse universo. 

    Apenas para que se tome dimensão do trágico cenário, horrores como aqueles que marcaram a história brasileira, como o Hospital Colônia, continuam a ocorrer nas dezenas de Manicômios Judiciários país afora. 

    São escandalosos, por exemplo, os dados colhidos pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) no relatório de inspeção da Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento (UPCT), no Rio Grande do Norte:

    As celas da unidade são insalubres, não possuem ventilação cruzada (os familiares podem comprar ventiladores para os pacientes), estavam todas sujas e com odor fétido, pisos quebrados, havia uma lixeira na porta da cela, com resíduos de alimentação não recolhidos desde o dia anterior, gerando mau cheiro e acúmulo de insetos, não há chuveiro elétrico, ou seja, não podem tomar banho quente. (...)

    Conforme quadro de funcionários, podemos constatar que não existe acompanhamento com médico clínico e as urgências são levadas pelo SAMU para UPA. Isso é muito grave, pois as doenças clínicas só são avaliadas em caso de agravamento. (...)

    Segundo informações recebidas durante as entrevistas da direção e das pessoas privadas de liberdade, a instituição não promove a construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), o que faz com que as pessoas sejam submetidas a uma rotina de abandono por parte da instituição no que se refere às estratégias terapêuticas, tendo a intervenção medicamentosa como a principal estratégia de “cuidado”.


    Essa mesma realidade já havia sido captada, em âmbito nacional, pelo Censo dos Hospitais de Custódia, que constatou que 21% das pessoas em cumprimento de medida de internação estavam custodiadas há mais tempo que o máximo da pena cominada para o delito, além de haver um número considerável de pessoas não identificadas, sem plano terapêutico, tratadas como “esquecidos anônimos”.

    Por essa razão é que a Resolução 487/2023 apresenta particular relevância: pretende garantir a efetiva aplicabilidade da Lei 10.216/2001.

    No que se refere a algumas das suas principais disposições, esclarece-se que a Resolução apenas encarrega o Poder Judiciário e o Sistema Único de Saúde (SUS) da constituição de fluxos e termos de cooperação para a alocação dos(as) pacientes judiciários(as) a unidades vinculadas à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) – ambiente devido para gestão das melhores opções de tratamento. 

    Ainda, a INTERNAÇÃO NÃO ESTARÁ ABOLIDA, mas sim, de acordo com os parâmetros da própria política nacional, deverá ficar adstrita aos casos clínicos que a demandem como último recurso, pelo prazo mínimo necessário à estabilização do quadro e mediante avaliação de equipe multiprofissional e laudo médico circunstanciado.

    Os Manicômios Judiciários, nomeados Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico pela LEP e pelo Código Penal, são instituições asilares, proibidas pela Lei 10.216/2001, de edição posterior aos referidos diplomas. Ou seja, tornam-se instituições ilegais, que pouco ou nada aparentam estar contribuindo ao tratamento desses(as) pacientes no país.

    Prevendo o progressivo fechamento de leitos manicomiais e a reversão dos(as) pacientes para a RAPS, a quem caberá a elaboração de Plano Terapêutico Singular e a escolha do melhor tratamento, a Resolução apenas caminha no sentido de prestigiar as atualizações legislativas existentes, a literatura científica, os parâmetros internacionais e, principalmente, os direitos mais fundamentais destas pessoas.

    Em tempo: o fornecimento de tratamento psicossocial adequado e justo ao(à) paciente judiciário(a) é direito incontestável, integrante do fundamento da dignidade humana, reconhecidamente imposto pela legislação interna e externa. E aqui mora o mais genuíno valor da Resolução 487/2023.



  • Conclusão
    Diante do que se expôs, o IBCCrim opina pela total rejeição do Projeto de Decreto Legislativo 81/2023 pelo Congresso Nacional e, por consequência, pela defesa da Resolução 487/2023 do CNJ.

  • RENATO STANZIOLA VIEIRA

    Presidente do IBCCRIM                                                     



    BRUNO SHIMIZU

    Membro da Diretoria do IBCCRIM

    Segundo Secretário



         

    IARA MARIA MACHADO LOPES
    Coordenadora Adjunta do Depto. de
    Política Legislativa Penal

                                                         

    CHIAVELLI FALAVIGNO

    Coordenadora-Chefe do Depto. de
    Política Legislativa Penal


    ROBERTO BARBOSA DE MOURA

    Coordenador-chefe do Depto. de 

    Sistema Prisional


    Contato
    Renato Stanziola Vieira I presidencia@ibccrim.org.br I (11) 3111-1040 I ibccrim.org.br



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