O conceito de equidade possui uma história associada à justiça. A equidade de gênero, portanto, é uma das expressões da realização de uma virtude política, que deve ser perseguida por todas as sociedades consideradas civilizadas. Longe de ser sinônimo de alternância de sujeição nos círculos de poder, corresponde ao empenho e comprometimento renovável pela correção de distorções sociais e desigualdades.
Em um país como o Brasil, cuja história está marcada por mais de três séculos de escravização de pessoas negras e pelo extermínio dos povos indígenas, a condição social, política e econômica das mulheres se soma aos efeitos de opressões estruturais. Para tais violências que atravessam os corpos femininos podem concorrer ou não ações individuais com potencial para agravá-las ou minimizá-las.
Nesse sentido, as particularidades relativas a gênero, raça, classe e sexualidade, que tornam mais consciente o processo estrutural de exclusão de determinados grupos sociais, passaram a ser alvos de atenção do IBCCRIM, que dedica um esforço de entendimento, respeito e possibilidades institucionais de enfrentamento às violações de direito.
Medidas efetivas foram tomadas, como a implementação da política de bolsas em todos os cursos e eventos promovidos pelo Instituto, a abertura de espaços de visibilidade e a garantia de novos protagonismos em atividades institucionais, além da criteriosa política de isenção associativa que, entre outras, resultaram em um ganho significativo e diverso de aprendizagens, assim como contribuiu para amadurecimentos institucionais e individuais. O compromisso do IBCCRIM com a pluralidade o torna apto a afirmar que caminha em direção à equidade.
Tal compromisso se intensifica na luta constante pelo questionamento e pelo desafio dos padrões de comportamento naturalizados.” Esse processo de “construção social destrutiva”, a partir de opressões normalizadas, impõe-se tanto às mulheres quanto aos homens, favorecendo, por omissão, o aumento dos sofrimentos e tornando dolorosos os processos de socialização.
As parcerias firmadas pelo IBCCRIM buscam a superação dos padrões de comportamento femininos estabelecidos pela imposição silenciosa da masculinidade. Elas pretendem ainda (i) se contrapor à suposta “normalidade” heterossexual, que oprime os homossexuais; e (ii) visam o combate ao entendimento de que ser negro é ser o “outro” do branco, que, por sua vez, deve perder a sombra da neutralidade. Entender o outro é uma maneira de compreendermos a nós mesmos. Todo e qualquer percepção que se norteia por discursos sobre insuficiências e contraditórios tenderá a colocar o diferente em falsa situação de inferioridade.” A compreensão das causas e dos efeitos da violência de gênero, nessa perspectiva, exclui qualquer justificativa que apoie a existência de um modelo ideal de sujeito. A eleição do “sujeito de direito”, sem dúvidas, é política, hierarquizada e parcial e, portanto, compõe um conjunto de diretrizes econômicas, sociais, raciais e sexuais, que têm como parâmetro a identidade de quem detém poder na sociedade.
O balanço dos resultados obtidos até o presente momento deve envolver o exercício da autocrítica, compreendendo suas suficiências e insuficiências, nas dimensões individual e coletiva. Autocriticar-se não significa a conscientização momentânea para, no momento seguinte, voltar a cometer os mesmos erros. Trata-se de uma demonstração de seriedade, de coragem com os compromissos assumidos e de aprendizado. A autocrítica é, portanto, o oposto da hipocrisia, que consiste em prescrever aos outros o que deixamos de fazer em nossas próprias vidas e espaços de trabalho.
Reforçando: não há instituição isenta ou acima da sociedade que a produz. É certo que os avanços ainda podem expandir e auxiliar, sobremaneira, a concretização irrevogável dos vetores políticos e valorativos que notabilizam o IBCCRIM entre as mais respeitadas organizações de direitos humanos no Brasil. Os mesmos que, diga-se de passagem, fazem do Instituto um importante espaço de contribuição acadêmica e de resistência.
Nessa mesma perspectiva, as mulheres têm aumentado em quantidade a sua presença nos espaços jurídicos, dando contribuições inafastáveis aos debates. Mas, como as mulheres não são um todo homogêneo sem cor, orientação sexual e classe, é sintomático que estes fatores passem a se impor como preocupações urgentes e incômodas ao mundo tão tradicionalmente masculino, heterossexual, branco, cisgênero e elitista das ciências criminais.
A não correspondência radical ao tradicional ou, até mesmo, a não aceitação dos papéis sociais determinado pelas convenções influenciam uma produção necessária às ciências criminais. Logo, a inclusão de mulheres no campo jurídico não deveria ser vista como uma abertura benevolente de resposta à capacidade que se presume social às mulheres, mas como fundamental autocrítica em assumir que as ciências criminais dependem das contribuições de mulheres plurais para efetivar mudanças estruturantes.
Ao IBCCRIM resta indiscutível, que as particularidades somadas ao gênero, como raça, classe e sexualidade, determinam qual será o grau de abertura para contribuições de mulheres, sendo que algumas, inevitavelmente negras, lésbicas e/ou transexuais, tampouco terão uma pequena fresta. O enfrentamento ao abismo nas participações sociais, políticas e econômicas dentro do grupo “mulheres” é um desafio às naturalizações de práticas presumidamente inofensivas. Da mesma forma, a promoção da visibilidade de mulheres historicamente marginalizadas pode representar uma afronta às hierarquias tradicionais de poder.
Nas palavras de Sueli Carneiro: “são perplexidades, ainda, que decorrem de inquietações acerca da permanência de idéias [sic] e das práticas de discriminação de base racial num contexto em que diferentes campos do conhecimento as desautorizam (...).”().
O IBCCRIM convida a todas e todos, neste mês de março de 2020, a desautorizarem as perplexidades. Inseridas na sociedade brasileira, todas as pessoas, invariavelmente, são forjadas, de alguma maneira, pelas estruturas de manutenção e reprodução das opressões, delas recebendo tratamentos sociais, políticos e econômicos variados. Autocriticar a falsa neutralidade é concorrer para a equidade e afastar igualdades presumidas e prejudiciais.
(1) CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Feusp, 2005. p. 9.
Resumo: O artigo discute os conceitos de função e de poder para definir o abuso de autoridade contra o cidadão. Mais: a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e de provas pela autoridade exclui o injusto de modo mais radical que o erro de proibição ou de tipo, que dependem da natureza evitável/inevitável do erro. Assim, é possível dizer que o legislador criminalizou com uma mão, mas descriminalizou com a outra, criando um estranho direito penal do amigo.
Palavras-chave: Direito penal, Lei de abuso de poder, Poder
1. Os conceitos de poder e de função
As
disposições gerais da lei de abuso de autoridade contêm normas incomuns, que
atribuem uma natureza sui generis à
criminalização e reclamam uma análise sistemática prévia. Este estudo tem por
objeto essa parte geral da lei de
abuso de autoridade, que exclui a configuração dos tipos de injusto definidos.
1.1. Os
crimes de abuso de autoridade descrevem situações de abuso do poder realizadas por agente público (servidor ou não) no exercício das funções ou a pretexto
de exercer tais funções.([i])
Logo, se o crime é definido como abuso do poder no exercício de funções, é
necessário esclarecer o conceito de função
e, depois, o conceito de abuso do poder no
exercício da função - uma pesquisa
que precede a análise dos novos tipos de crimes de abuso de autoridade instituídos, cuja aplicação pressupõe esses
conceitos.
1.2. O conceito de função em sociologia é definido como a relação da parte (órgão) com o todo (organismo), enquanto o órgão é o mecanismo equipado para o exercício de funções;([ii]) a função, contudo, em órgãos da administração pública, define os papéis específicos do cargo e, por isso, costuma-se falar das funções do cargo.
1.3. O conceito de poder - talvez a grande questão política da atualidade - parece
transcender os limites do Direito, assim como as relações econômicas
(manutenção das relações de produção): do ponto de vista político, único capaz
de compreender o conceito, segundo FOUCAULT,([iii])
o poder é uma relação de força que
existe, essencialmente, como o que
reprime - e, por isso, é útil para garantir as relações de produção
econômicas -, em especial, através do Direito. Mais: se o poder político nas
sociedades capitalistas representa o poder do capital, então as relações de
poder são as relações do capital na esfera política das relações sociais. Nesse
contexto, a lei trata do abuso do poder político praticado por
funcionário público no exercício irregular das funções do cargo, que ultrapassa os limites legais da relação de força do poder político da
autoridade pública, em face do cidadão.
2.
Elementos subjetivos especiais dos tipos de injusto
A
lei introduz elementos subjetivos
especiais necessários para caracterizar o injusto do fato: a) intenções
especiais consistentes na finalidade (i) de prejudicar
outrem, ou (ii) de beneficiar a si
mesmo ou a terceiro; b) estados psíquicos de mero capricho ou de satisfação
pessoal, como motivos determinantes do injusto do fato.([iv])
Esses elementos subjetivos especiais ou estados psíquicos especiais do tipo de
injusto (antes definidos como dolo específico) são essenciais para configurar
todo e qualquer crime definido como abuso
de autoridade - e, assim, a sua existência subjetiva deve ser demonstrada
em cada crime de abuso de autoridade, ao lado do dolo como elemento subjetivo
geral, responsável pela produção da ação típica. Mas existem diferenças que
distinguem as várias situações psíquicas indicadas na lei.
2.1. Primeiro, a finalidade específica de prejudicar outrem, ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro,
pode consistir em situações objetivas de natureza econômica, política, social,
pessoal ou outras, que devem existir como intenções
especiais no psiquismo do agente, mas que não precisam se realizar no mundo
real. Assim, conforme a teoria do crime, a existência dessas intenções
especiais nos processos psíquicos do agente é suficiente para a consumação formal do crime, enquanto a
realização dessas finalidades no mundo exterior representa a consumação material do fato, importante para medida da pena, assim como para
efeito de participação.([v])
2.2. Segundo, o mero capricho ou satisfação
pessoal são estados psíquicos ou tendências psíquicas especiais definíveis
como motivos do agente, de natureza
emocional ou afetiva, cuja existência real também se exaure no âmbito da
subjetividade do autor, igualmente sem necessidade de realização no mundo
exterior: o prazer sádico, o sentimento de vingança, o desejo de humilhação, a
exposição ao ridículo e outras situações psíquicas emocionais ou afetivas,
definíveis como capricho ou satisfação pessoal, devem existir como a força
impulsiva da ação, independente de sua realização no mundo real.([vi])
3. A divergência
de interpretação da lei e de avaliação do fato e da prova como exclusão do
injusto.
A lei de abuso de autoridade instituiu novas
modalidades de exclusão do injusto, representadas por duas hipóteses inéditas
de divergência, também aplicáveis a
todos os tipos de crimes: a) a divergência na interpretação de lei; e b) a divergência na avaliação de fatos e de provas.([vii])
Para definir divergência na interpretação de lei e na avaliação de fatos e de provas parece
necessário examinar o significado de interpretar a lei e de avaliar fatos ou
provas no processo penal - ou seja, é preciso esclarecer o conteúdo da
divergência.
3.1. Divergências
na interpretação de lei.
3.1.1. Técnicas de
interpretação. Interpretar uma lei representa o ato psíquico de apreender o
significado da norma, mediante aplicação das técnicas de interpretação.
A interpretação da lei, como
processo intelectual de conhecimento da norma, tem por objeto a linguagem escrita
da lei, que pode ser abordada de três pontos de vista: a abordagem semântica, que define o significado isolado
das palavras da lei; a abordagem sintática, que define o significado
conjunto das palavras na oração da lei; e a abordagem pragmática, que define a adequação do significado teórico da lei à
situação prática.([viii])
Como se vê, a
interpretação de lei é um processo intelectual complexo, informado por
múltiplas variáveis: por um lado, o objeto das divergências pode abranger todos
os níveis de interpretação científica referidos - os níveis semântico,
sintático e pragmático de interpretação; por outro lado, a natureza das
divergências de abordagem científica é condicionada por fatores objetivos (a
posição de classe ou o status social
do intérprete na sociedade) e por fatores subjetivos (a ideologia ou as
idiossincrasias pessoais do sujeito), que estão na base da Weltanschauung de cada um.
3.1.2. Divergência na interpretação de lei e erro
de proibição. Antes de tudo, é importante verificar a relação
entre (i) divergência na interpretação de
lei, como construção psíquica capaz de excluir o abuso de autoridade, e (ii) erro de proibição, como construção psíquica capaz de excluir/reduzir o juízo de
culpabilidade. Como se sabe, o erro
de proibição,([ix])
disciplinado no CP conforme a teoria limitada da culpabilidade, existe em três modalidades
principais: a) erro de proibição direto, incidente sobre a existência, a
validade e o significado da lei penal, em que o erro inevitável exclui e o erro
evitável reduz a culpabilidade dolosa; b) erro de proibição indireto (ou erro
de permissão), incidente sobre justificação inexistente ou sobre limites
jurídicos de justificação existente, com idênticos efeitos determinados pela
natureza do erro; e c) erro de tipo permissivo, como representação errônea
sobre a existência real da situação justificante, em que a natureza do erro
produz efeitos diferentes: o erro evitável exclui o dolo e o erro inevitável
exclui o tipo de injusto.([x])
Em princípio,
todas as modalidades de erro de proibição constituem formas concretas de interpretações divergentes da lei, de modo que as situações definidas como objetos do erro de proibição também podem
constituir objetos de interpretações
divergentes da lei, conforme a lei de abuso de autoridade. O verbo
transitivo direto interpretar significa,
segundo HOUAISS, “determinar o
significado preciso de texto, lei etc.”. Logo, as hipóteses de erro de
proibição são construções psíquicas pessoais, que configuram interpretações divergentes da
interpretação oficial da lei, produzida pela literatura e pela jurisprudência
dominantes, cuja relevância depende da natureza evitável/inevitável do erro.
3.1.3. Semelhanças e diferenças dos processos
psíquicos. Do ponto de vista dos processos psíquicos, as
situações de divergência na interpretação
de lei parecem semelhantes às
hipóteses de erro de proibição: a) no
erro de proibição, o sujeito interpreta o fato como lícito, porque desconhece a
proibição da lei; e b) na divergência de interpretação, o sujeito interpreta o
fato como lícito, mas está em erro de proibição. A diferença entre as situações de erro
de proibição e de divergência na
interpretação de lei aparece nas consequências jurídicas: a) o erro de
proibição reduz ou exclui a reprovação conforme
a natureza do erro (evitável ou inevitável); b) a divergência na interpretação
de lei exclui o injusto do fato,
independente da natureza dos processos psíquicos subjacentes. Nesse sentido, os
efeitos da divergência na interpretação
de lei são mais radicais do que
os efeitos do erro de proibição: toda
divergência na interpretação de lei exclui o tipo de injusto, mas nem todo erro
de proibição exclui a culpabilidade do fato.
Assim, é possível
dizer: na criminalidade comum, divergências
na interpretação de lei são hipóteses de erro de proibição dependentes da natureza do erro; na criminalidade
de abuso de poder, o erro de proibição
constitui hipótese de divergência na
interpretação de lei, que não depende da natureza do erro. E, nos inevitáveis conflitos entre as
situações de exclusão do injusto e
as situações de exclusão da culpabilidade, prevalece a hipótese mais favorável: a
divergência de interpretação da lei,
que exclui o tipo de injusto - e, de fato, cancela o erro de proibição.
3.1.4. Indeterminação e inversão do princípio in dubio pro reo. Aqui aparece outro
problema: a lei delimita o objeto da divergência, mas não determina a natureza
ou a extensão da divergência sobre o objeto. Logo, introduz uma área nebulosa,
cujas inevitáveis dúvidas deverão ser resolvidas pelo princípio in dubio pro reo - uma solução normal no
processo penal. Mas, no caso específico, o princípio tradicional sofre uma
inversão política: em lugar de proteger o réu oprimido pela autoridade, protege
a autoridade que oprime o réu, por abuso de poder.
3.1.5. Amplitude das hipóteses de divergência de
interpretação da lei. Como se pode observar, o problema subsistente é a
amplitude ilimitada das hipóteses de divergência
na interpretação de lei e, portanto, a extensão ilimitada das situações de
exclusão do injusto dos crimes de abuso de autoridade. Assim, se o fenômeno psíquico definido como divergência na interpretação de lei
impede a configuração do abuso de
autoridade, então qualquer
divergência de compreensão da lei, como construção psíquica de interpretação
pessoal, é suficiente para excluir o injusto do fato, independente do
fundamento jurídico e da consistência do argumento divergente. Enfim, a
situação instituída pela nova lei parece mais ou menos assim: uma mão do
legislador criminalizou várias hipóteses de abuso
de autoridade, mas a outra mão do legislador descriminalizou as mesmas hipóteses de abuso de
autoridade, mediante simples divergência
na interpretação de lei pela autoridade pública.
3.2. Divergências
na avaliação de fatos
A percepção
sensorial de acontecimentos do mundo exterior condiciona a avaliação de fatos e as inevitáveis divergências na avaliação desses fatos. O conhecimento de fatos do
mundo da vida somente é possível pelos sentidos humanos, cujo funcionamento
diferenciado determina divergências de percepção
e, portanto, diferenças de (re)construção psíquica desses fatos. A avaliação de fatos, como outro momento
de construção psíquica, estimula emoções envolvidas na percepção e aciona
valores despertados pela percepção, na dinâmica intelectual e emocional dos
acontecimentos humanos. Como se vê, são muitas as fontes de divergência dos processos psíquicos na avaliação de fatos que podem impedir a
configuração dos crimes de abuso de autoridade.
3.2.1. Avaliação de fatos e erro de tipo. Aqui também é
importante verificar a relação entre (i) avaliação
de fatos, como construção psíquica capaz de excluir o abuso de autoridade,
e (ii) erro de tipo, como construção psíquica excludente do
dolo. O verbo transitivo direto avaliar
significa, segundo HOUAISS, “ter ideia
de, conjeturar sobre ou determinar a qualidade, a extensão, a intensidade de”;
e em sentido figurado, significa “apreciar
o mérito, o valor de, estimar” - no caso, fatos ou provas de fato. Como
se sabe, o erro de tipo é um defeito intelectual na formação do dolo, sob as
formas de conhecimento falso ou de
conhecimento inexistente de elemento
constitutivo do tipo legal, que
exclui o injusto, se inevitável, mas exclui apenas o dolo, se evitável.([xi])
3.2.2. Semelhanças e diferenças dos processos
psíquicos. Do ponto de vista dos processos psíquicos
correspondentes, também pode-se dizer o seguinte: a) por um lado, a divergência na
avaliação de fatos tem semelhança com
as situações de erro de tipo: avaliar um fato significa valorar a sua natureza
real de acontecimento do mundo da vida; b) por outro lado, a divergência na
avaliação de fatos tem diferenças com
as situações de erro de tipo: as hipóteses de divergência na avaliação de fatos excluem
o injusto do fato, independente da natureza da divergência. Nesse sentido,
também os efeitos da divergência na
avaliação de fatos são mais radicais do que os efeitos do erro de tipo: toda divergência na avaliação de fatos exclui o tipo de injusto, mas somente o
erro de tipo inevitável exclui o
injusto, enquanto o erro de tipo evitável exclui apenas o dolo. Ou, de outro
modo: na criminalidade comum, divergência
na avaliação de fatos constitui hipótese de erro de tipo, dependente da natureza do erro; na criminalidade de
abuso de poder, o erro de tipo
constitui hipótese de divergência na
avaliação de fatos, independente da natureza da divergência. Mais uma vez, nos
inevitáveis conflitos entre as situações de exclusão do dolo e as situações de exclusão do injusto, prevalece
a hipótese mais benéfica: a divergência
na avaliação de fatos, que exclui o tipo de injusto e, na prática, anula o
erro de tipo.
3.2.3. Nova
inversão do princípio in dubio pro reo. Mais uma vez, a
lei delimita o objeto da divergência, mas não determina a natureza ou a
extensão da divergência sobre o objeto. Logo, introduz a mesma área nebulosa,
cujas dúvidas são regidas pelo princípio in
dubio pro reo, normal no processo penal. E, novamente, com igual inversão
política: em lugar de proteger o réu oprimido pela autoridade, o princípio
protege a autoridade que oprime o réu, por abuso de poder.
3.3. Divergências na avaliação de provas
3.3.1. A interpretação de lei ou a avaliação de fatos definem acontecimentos
psicológicos característicos do direito penal, capazes de determinar ou de
influenciar o tipo de injusto ou a culpabilidade do fato imputado. Mas a
avaliação de provas, como demonstração de fatos portadores de
tipicidade aparente para verificar se
constituem tipos de injusto, ou como demonstração da relação de autoria do
fato, define procedimentos de cognição característicos do processo penal,
capazes de fundamentar juízos de condenação ou de absolvição do autor.
3.3.2. A prova jurídica,
como conhecimento de fatos do processo, pode ser abordada segundo dois modelos
principais: o modelo argumentativo e
o modelo narrativo. O modelo
argumentativo se baseia no confronto dos argumentos inferidos dos meios de
prova, com a enumeração dos fatos provados e a formação da convicção pela força
dos argumentos inferidos dos meios de prova. O modelo narrativo se baseia na
aproximação global do caso mediante cenários explicativos, com a escolha da
melhor narrativa conforme a coerência interna, determinada pelos atributos (i)
de consistência (ausência de contradições), (ii) de plausibilidade (conforme
regras da experiência) e (iii) de completude (ausência de lacunas).([xii])
Divergências na avaliação de provas podem resultar dos
diferentes critérios desses modelos - e, também, do modelo híbrido, como combinação dos aspectos positivos dos modelos
originários -, conforme a preferência pessoal pelo melhor argumento ou pela
melhor narrativa. Logo, as possibilidades de divergência na avaliação de provas parecem igualmente
ilimitadas e, portanto, as hipóteses de exclusão do injusto por divergência na avalição de provas são incontroláveis.
4. Silogismo, a lógica de interpretação da lei e de avaliação do fato
4.1. O silogismo jurídico é a lógica da decisão
judicial, que consiste no processo psíquico de interpretação da lei (premissa maior) e de avaliação do fato (premissa menor) como premissas da conclusão do raciocínio: se o fato,
segundo a prova (dados do ser), corresponde à lei (regra de dever ser), a
sanção legal é aplicada.([xiii])
Nessa relação, a verdade da conclusão depende da verdade das premissas: se as premissas são verdadeiras
- e se a conclusão está implícita nas premissas -, então a conclusão é verdadeira.([xiv])
O silogismo é um processo psíquico em que a convergência da interpretação da lei e da avaliação do fato se exprime em uma conclusão lógica, impossível em
divergências na interpretação de lei
ou na avaliação de fatos ou de
provas.
4.2. A lógica do silogismo jurídico, como lógica da subsunção jurídica, pode apresentar problemas relacionados com a subjetividade do intérprete, consistentes em duas espécies de erros, incidentes sobre objetos diferentes: a) o erro de interpretação da lei, determinado por falhas ou defeitos de conhecimento científico do Direito; e b) o erro de percepção do fato, determinado por falhas ou defeitos de representação psíquica de acontecimentos reais - o silogismo regressivo([xv]) na literatura.
A abordagem fenomenológica da Criminologia explica deformações na representação psíquica da realidade objetiva por mecanismos inconscientes denominados metarregras (ou basic rules), definidos como fenômenos psíquicos emocionais determinantes do significado concreto da aplicação do direito, especialmente relevantes em erros de percepção e de avaliação dos fatos e das provas em processos criminais, originários de preconceitos, estereótipos, traumas, distorções ideológicas e idiossincrasias pessoais, em geral, decisivos do processo de criminalização.([xvi]) A avaliação de fatos e de provas dos fatos não pode ignorar as distorções emocionais dos acontecimentos reais produzidos por metarregras, a principal fonte de deformações psíquicas na reconstrução de fatos sociais - e, portanto, de divergências na avaliação de fatos e de provas.
5. Conclusões
1. A finalidade de prejudicar outrem, ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro,
como intenção especial que deve
existir no psiquismo do agente, mas não precisa se realizar no mundo real, é
essencial para configurar o abuso de autoridade. Entretanto, a óbvia dificuldade
de comprovar esse elemento psíquico tende a excluir a dimensão subjetiva do
fato e, portanto, a excluir o próprio tipo de injusto do crime de abuso de
autoridade.
2. Os
estados psíquicos de capricho ou de satisfação pessoal, como motivos de natureza emocional ou
afetiva, que também devem existir no psiquismo do agente mas não precisam se
realizar no mundo real, igualmente são essenciais para configurar o abuso de
autoridade, mas a mesma dificuldade de comprovação desse componente psicológico
tende a excluir a dimensão subjetiva do fato e, assim, o tipo de injusto
respectivo.
3. A
divergência na interpretação de lei é um evento psíquico capaz de impedir a configuração
do tipo de injusto, independente do fundamento
jurídico ou da consistência do argumento divergente, permitindo concluir que o
legislador criminalizou com uma mão
e descriminalizou com a outra mão,
atribuindo à divergência na interpretação
de lei efeitos mais radicais do que ao erro
de proibição, porque toda divergência de interpretação da lei exclui o tipo de injusto, mas nem todo erro
de proibição exclui a culpabilidade do fato.
4. Nos conflitos
entre situações de divergência na
interpretação de lei e situações de erro
de proibição deve prevalecer a hipótese mais favorável, definida pela divergência de interpretação da lei, que
exclui o tipo de injusto e, de fato, cancela o erro de proibição.
5. A divergência na avaliação
de fatos, estimulada pelas emoções envolvidas na percepção e pelos valores
acionados pela percepção, também pode impedir a configuração do tipo de injusto,
sendo possível concluir que os efeitos da divergência
na avaliação de fatos são mais radicais do que os efeitos do erro de tipo, porque toda divergência na
avaliação de fatos exclui o tipo de
injusto, mas somente o erro de tipo inevitável
exclui o injusto do fato.
6. Também os
conflitos entre a divergência na avaliação
de fatos e situações de erro de tipo
devem ser resolvidos pela hipótese mais benéfica: a divergência na avaliação do fato, que exclui o tipo de injusto e,
na prática, anula o erro de tipo.
7. A divergência na
avaliação de provas, como procedimento de cognição de fatos
portadores de tipicidade aparente ou
da relação de autoria do fato, segundo os modelos argumentativo ou narrativo
da lógica processual, parece igualmente ilimitada em face da metodologia desses
modelos e, portanto, as hipóteses de exclusão do injusto ou da autoria do fato nos
crimes de abuso de autoridade, por divergência na avaliação de provas, também tendem a ser incontroláveis.
8. O silogismo
jurídico, como processo psíquico de subsunção da premissa menor do fato na
premissa maior da lei, é afetado pelos mecanismos emocionais das metarregras,
que ativam preconceitos, estereótipos, traumas, distorções
ideológicas e idiossincrasias pessoais, que intensificam as divergências na
interpretação de lei e, de modo especial, as divergências na avaliação de fatos
e de provas, fazendo delirar a lógica formal dos crimes de abuso de autoridade.
9. Na
perspectiva das relações de poder político das sociedades neoliberais
contemporâneas, os crimes de abuso de autoridade parecem constituir formas
ilusórias de criminalização dos agentes do poder estatal, porque os princípios
jurídicos aplicáveis são mecanismos de proteção da autoridade pública, formando
um estranho direito penal do amigo.
10. O
uso democrático do Direito Penal para conter os abusos de poder na repressão da
população oprimida não está em contradição com a proposta crítica de redução do
sistema penal - que garante a desigualdade das sociedades desiguais -, mas é
preciso reconhecer: não há motivo de júbilo quanto à eficácia da lei para
conter ou reduzir os abusos de poder da autoridade estatal.
i() “Art. 1º. Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.” BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.
ii() Ver SANTOS, J. C. dos. A Criminologia da repressão: crítica à criminologia positivista.2. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 87.
iii() Ver FOUCAULT, M. Il faut déféndre la societé. Paris: Hautes Etudes, Gallimard/Seuil, 1977. p. 3-19.
iv() “Art. 1º, §1º. As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.” BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.
v()SANTOS, J. C. dos. Direito Penal - parte geral. 8. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 167-170.
vi() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 168.
vii() “Art. 1º, § 2º. A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.
viii() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 59-60.
ix()Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. BRASIL. Código Penal. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
x() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 335.
xi() “Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”BRASIL. Código Penal. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
xii() Ver SOUZA MENDES, P. A incerteza virtual e a prova no processo penal. In: SANTOS, M. S.. Liber Amicorum, Lisboa: Rei dos livros, 2016.
xiii() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 67-68.
xiv() SUSAN STEBBING, A modern elementary logic. Londres: University Paperbacks, 1957. p. 159.
xv() BERGEL, Methodologie juridique, 2001, p. 147, apud DIMOULIS, Manual de Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 93.
xvi() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 66-67.
A DEVIDA DILIGÊNCIA COMO GARANTIA NO DIREITO DE IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO CONTRA AS MULHERES: CASO GONZÁLEZ E OUTROS (“CAMPO ALGODOEIRO”) VS. MÉXICO E A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Ana Rita Souza Prata
Mestra em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Defensora Pública do Estado de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4373-6969 LATTES: http://lattes.cnpq.br/8439568953437983 E-mail: anaritasprata@hotmail.com
Resumo: O artigo aborda o caso do “Campo Algodoneiro” (González e outros vs. México), julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se de um dos precedentes pioneiros sobre o desaparecimento forçado de mulheres no Estado Mexicano e a ausência de investigação efetiva. O caso é ilustrativo sobre a relação entre violência estrutural e discriminação das mulheres em razão de seu gênero. Ao final, aponta-se os parâmetros desenvolvidos pela Corte Interamericana sobre o dever de devida investigação como forma de não repetição.
Palavras-chave: Direitos das mulheres, devida diligência, violência estrutural.
Abstract: The article analyses the “Cotton Fields Case” (González et al. Vs. México), sentenced by the Inter-American Court of Human Rights. The precedent is pioneer on the issue of women’s enforced disappearance and the lack of an effective investigation. The case is illustrative of the relationship between structural violence and discrimination against women based on their gender. Finally, one points the importance of the parameters adopted by the InterAmerican Court on the duty of due investigation as a guarantee of nonrepetition.
Keywords: Women Rights, due diligence, structural violence.
“Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”. 1
I - Introdução
O ano de 2020 mal começou, mas já demonstrou que as perspectivas para as mulheres não são boas.
São Paulo enfrentou, em 2019, em comparação ao ano anterior, um aumento de 29% dos feminicídios e 4% dos estupros. 2
Sabe-se que essa realidade também é refletida em todo o país.
É nesse contexto, que as coordenadoras dessa coluna me convidaram para escrever algumas palavras para edição de março do Boletim, mês dedicado às mulheres.
Um desafio.
Desafio porque não gostaria de tratar apenas de uma sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH e sua aplicabilidade, mas tentar fazer uma reflexão de como a existência de um corpus iuris internacional protetivo em nada altera a realidade de muitas mulheres brasileiras, especialmente as negras, mais pobres, lésbicas, trans, travestis, com deficiência, em situação de rua ou prisão, que continuam sofrendo discriminações e violências de gênero.
Por que ainda há mulheres esterilizadas forçosamente por ordem judicial?3 Por que ainda há meninas com gravidez fruto de uma violência sexual impedidas de exercer o direito a interrupção da gestação?4 Ou mulheres processadas e/ou presas por prática de aborto inseguro?5 Por que ainda há mulheres mães presas sem sentença condenatória definitiva?6 Por que há uma legislação que determina aos profissionais de saúde, que noticiem à polícia indícios de violência sexual após atendimento de uma mulher, mesmo se esse não for o seu desejo?7
Tudo isso se dá, porque existe um padrão cultural de que as mulheres - e aqui devo ressaltar que algumas mais que a outras - ocupam um lugar de não importância na sociedade. Há um padrão de discriminação de gênero estruturado na sociedade, ou seja, intrincado na forma de pensar e agir sobre as mulheres.
Recorde-se que, nos termos da CEDAW, discriminação contra a mulher é “toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”. 8 No âmbito interamericano, a Convenção de Belém do Pará afirma, que a violência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.9
Violência contra a mulher é caracterizada porque é a ela dirigida pelo simples fato de ser mulher ou porque a afeta de forma desproporcional.10
Essa estrutural desigualdade é refletida em legislações, políticas públicas – ou falta delas –,11 violações de direitos e violências, processos e sentenças. Esse fenômeno é tão naturalizado, que há situações que as discriminações de gênero são compreendidas como práticas protetivas às mulheres.
Tão prejudicial quanto à existência desse padrão discriminatório é a compreensão de que mulheres são seres únicos e que há uma mulher universal que deve ser considerada quando se fala de uma prática não discriminatória e baseada no gênero.
Assim, ao tratar dos direitos das mulheres deve-se ter o compromisso com uma visão interseccional 12 e crítica.
Tais conceitos, que decorrem de estudos feministas, já estão acolhidos na jurisprudência internacional e, por tal razão, devem basear nossa atuação junto ao sistema de justiça como um todo e não só em atuação na defesa de mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Assim, ressalto o equívoco de quem compreende como prejudicial ao sistema de justiça criminal os estudos feministas. Numa perspectiva interseccional e crítica, não cabe uma postura de apoio às propostas e práticas exclusivamente punitivas.
Ademais, rechaçar os estudos de gênero acaba por gerar revitimização das mulheres – acredito que não haja dúvida sobre a violência doméstica e familiar ser um problema social -, mas também gerar uma defesa ineficiente em casos de mulheres criminalizadas.
Recordo estudo feito pelo ITTC,13 em 2017, chamado Mulheres Sem Prisão,14 que trouxe reflexão sobre a falta de uma perspectiva de gênero no tratamento dado pelo sistema de justiça às mulheres criminalizadas
E é com vistas a trazer debate sobre atuação defensiva de mulheres, quando vítima de violência de gênero e, também, quando criminalizada, que tratarei do conceito de devida diligência numa perspectiva de gênero.
Para tanto, vou tratar do caso mais conhecido de violência contra as mulheres da Corte IDH, Caso González e Outras (“Campo Algodoeiro”) vs. México,15 citando, ainda, outras decisões advindas do sistema interamericano de garantia dos Direitos Humanos.
II - O caso
Após o desaparecimento de algumas mulheres, inclusive meninas, em 2001, em Cidade Juarez, no México, suas famílias procuraram as autoridades e não foram adequadamente atendidas, sendo certo que nenhuma providência foi tomada no sentido de buscar as desaparecidas e/ou investigar o caso. Ao contrário, os agentes públicos acabaram por agir de forma indiferente e discriminatória, insinuando que elas poderiam estar na companhia de namorados ou outros homens.
Posteriormente, corpos de mulheres com sinais de tortura, violência sexual e mutilações foram encontrados num campo de algodão. No entanto, isso não gerou qualquer movimentação para deslinde do caso – cinco anos depois, suas identidades sequer haviam sido reconhecidas adequada e formalmente.
O caso, levado à Corte IDH pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, tratou do desaparecimento e morte de três dessas mulheres, todas jovens e pobres. Após a denúncia, houve pedido de inclusão de outras, totalizando 11 mulheres desaparecidas e mortas naquela mesma época e contexto.
O Caso Campo Algodoeiro é conhecido nos estudos de Direito internacional de Direitos Humanos e de Gênero, sendo o primeiro caso que a Corte IDH reconhece a existência de uma desigualdade estrutural de gênero, que acaba por permear a atuação dos agentes públicos tanto do sistema de segurança quanto do sistema de justiça.
Ressalte-se aqui que a sentença é datada de 2009, ocasião em que a Corte IDH já havia, na Opinião Consultiva OC-18/03, elevado o dever de igualdade e não discriminação de gênero a direito ius cogens e erga omnes. 16
Há reconhecimento de que houve, na condução das investigações, uma discriminação de gênero e raça e que a manutenção da desigualdade e de padrões discriminatórios é causa da falta de devida diligência no presente caso.
A responsabilidade estatal se deu porque há um dever jurídico de “prevenir, razoavelmente, as violações dos direitos humanos, de investigar seriamente com os meios a seu alcance as violações que tenham sido cometidas dentro do âmbito de sua jurisdição a fim de identificar os responsáveis, de impor as sanções pertinentes e de assegurar à vítima uma correta reparação”. 17
Assim, a Corte IDH deixa claro que os Estados não possuem responsabilidade apenas quando violam direitos, mas também quando deixam de tomar providências no sentido de dar particular proteção a um grupo de pessoas vulnerabilizadas por condições pessoais ou por estarem em situações específicas.
Nesse caso, o Estado mexicano foi condenado pela Corte IDH por violação aos direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade pessoal e aos direitos das crianças, reconhecidos nos artigos 4.1, 5.1, 5.2, 7.1 e 19 da Convenção Americana, em relação à obrigação geral de garantia contemplada no artigo 1.1 e à obrigação de adotar disposições de direito interno contemplada no artigo 2 da mesma, bem como às obrigações contempladas no artigo 7.b e 7.c da Convenção de Belém do Pará.
III - Devida Diligência
Declara a Corte IDH, nesse caso, que existe uma violência estrutural de gênero e que cabe aos estados investigar e responder à essa forma de violência também numa perspectiva de gênero, afastando estereótipos ou “padrões sociais discriminatórios que usualmente são aplicados em prejuízo das mulheres”. Reforçou, assim, a necessidade de devida diligência numa perspectiva de gênero, sem discriminação. Associa, portanto, a violência de gênero ao dever de não discriminar.
Houve, ainda, análise sobre o dever de prevenção dos Estados. “La Corte sostiene que los Estados deben adoptar uma “estrategia integral” encaminhada a “prevenir los factores de riesgo” que contribuyen a que esta violencia se perpetue, y estabelece a cargo de las autoridades públicas el deber de “adoptar medidas preventivas em casos específicos em los que es evidente que determinadas mujeres y niñas pueden ser víctimas de violencia”
O artigo 7 da Convenção de Belém do Pará trata do dever de devida diligência em prevenir violações de direitos por questões de gênero, investigar e responsabilizar caso elas ocorram. Esse dever é de todo o Estado e, claramente, de seus agentes.
O dever de devida diligência já vinha sendo debatido no âmbito da CEDAW, surgindo também na Plataforma de ação da Conferência Mundial sobre Mulheres de Pequim18 em 1995.A omissão estatal no exercício da devida diligência para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar foi reconhecida pela CIDH no Caso 12.051, que trata da violação aos direitos de Maria da Penha Maia Fernandes pelo Brasil.
A omissão estatal no exercício da devida diligência para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar foi reconhecida pela CIDH no Caso 12.051, que trata da violação aos direitos de Maria da Penha Maia Fernandes pelo Brasil.
Devida diligência não deve ser apenas compreendida no sentido reativo, ou seja, no dever de atuar de forma compromissada na busca de provas ou com objetivo de “solucionar” um crime, sem revitimizar a mulher vítima, mas também no dever de agir na garantia de um direito com respeito às normas de Direitos Humanos, numa perspectiva de gênero e raça.
Esse dever estatal e, consequentemente, de todos os seus agentes, decorre do compromisso assumido pelos Estados Partes do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ao ratificarem a CADH.19 Vejamos seu primeiro artigo. “1.1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.”
Pode-se, assim, compreender, que o dever de devida diligência dos estados está associado às garantias das liberdades e da não discriminação de gênero, raça, orientação sexual, dentre outras, associadas ao próprio conceito de dignidade.20
V - Conclusão
O dever de devida diligência pode ser compreendido como o dever processual dos Estados e de seus agentes integrantes do Sistema Interamericano de Garantia de Direitos Humanos, que decorre dever de respeito e não discriminação.
É dever de todos os atores do sistema de justiça, portanto, atuar no sentido de cumprir ou exigir cumprimento desse dever, sendo certo que ainda há muito a evoluir. As violências de gênero descritas no início desse texto provam isso. “(...) sea necesario incorporar una perspectiva sensible ao valor de las diferencias entre hombres y mujeres, así como a suas consecuencias sobre el goce y ejercicio de los derechos fundamentales por parte de estas ultimas, tanto em la interpretación y aplicación de los tratados generales sobre derechos humanos, como em la formulación e implementación de todas las estrategias y acciones em materia de derechos de la persona”. 21
Assim, o desafio é entender que a desigualdade continua dominando nossas práticas do dia a dia, apesar de propostas em sentido diverso estarem felizmente aparecendo, porque ela é estrutural e já acomodada na sociedade e, claramente, no sistema de justiça, e, com isso, assumir um compromisso com a mudança e com garantia dos Direitos Humanos das Mulheres, especialmente as mais vulnerabilizadas.
Compreender a repercussão da legislação para mulheres diversas, de contextos diversos, e das políticas públicas, caminhos ou perspectivas oferecidas às diferentes mulheres em contexto de violação de Direitos é um exercício necessário.
Ainda, buscar desconstruir estereótipos e preconceitos nos julgamentos e argumentos tanto a favor, contra mulheres, mas sim dar uma perspectiva de gênero na prática do direito.
Nada disso por militância - ou também por militância -, mas porque é dever garantir o Direitos Humanos das mulheres, em especial as mais invisibilizadas. São tantas, somos tanta.
Referências
LORDE, Audre. 1981. The Uses of Anger: Women Responding to Racism. Sister Outsider: Essays & Speeches by Audre Lorde. Berkeley: Crossing Press, 2007.
PASTOR, Marta María. Los Extranjeros Y El Devido Processo Legal. In ALBANESE, Susana. Opiniones Consultivas Y Observaciones Generales – Control de Convencionalidad. Buenos Aires: Ediar, 2011.
TRAMONTANA, Enzamaria. Discriminación y violencia de género. Aportes del sistema interamericano de derechos humanos. In BOGDANDY, Armin Von de et al (orgs.). Estudos Avançados de Direitos Humanos. Democracia e Integração Jurídica: Emergências de um novo Direito Público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
1 LORDE, Audre. 1981. The Uses of Anger: Women Responding to Racism. Sister Outsider: Essays & Speeches by Audre Lorde (Berkeley: Crossing Press, 2007), pp. 124-133.
2 Ver em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/06/casos-defeminicidio-batem-recorde-em-sao-paulo-em-2019.ghtml
3 Ver em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2018/06/ justica-ainda-que-tardia.shtml
4 Ver em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/aborto-sentimental-exigeprova-estupro-decide-tj-rs
5 Ver em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/destaques/tj-nao-concede-83- dos-habeas-corpus-pedidos-pela-defensoria-para-mulheres-acusadas-deaborto-em-sp-diz-pesquisa/
6 Ver em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/02/06/justicade-sp-nega-60percent-dos-pedidos-de-prisao-domiciliar-para-mulheresgravidas-ou-com-filhos-de-ate-12-anos.ghtml
7 Ver em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-violencia-contramulher_br_5d9fa8c0e4b06ddfc516bdd0 e https://g1.globo.com/politica/ noticia/2019/11/27/congresso-derruba-veto-e-obriga-setor-de-saude-ainformar-a-policia-casos-de-violencia-contra-mulher.ghtml
8 Art. 1º, Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulheres.
9 Art. 1, Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará.
10 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso del Penal Miguel Castro Vs. Perú. Sentencia de 25 de noviembre de 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2020. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_160_esp.pdf
11 Ver em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,governo-zera-repassesa-programa-de-combate-a-violencia-contra-a-mulher,70003184035
12 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Gonzales Lluy y Otros vs. Ecuador. Sentencia de 1 de septiembre de 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2020.
13 Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2020.
14 Disponível em: http://ittc.org.br/wp-content/uploads/2017/03/relatorio_ final_online.pdf?fbclid=IwAR3-uKxzQrH7V2SiDYfxKjytO0QQkPnEP1xd TW3_VCvAWTwpIvk-ykxjFyE>. Acesso em: 18 fev. 2020.
15 Disponível em: Acesso em: 18 fev. 2020.
16 “(...) la Corte consideró que el principio de igualdad ante la ley, igual protección ante la ley y no discriminación pertence al jus cogens toda vez que “...sobre él descansa todo el andamiaje jurídico del orden público nacional e internacional y es un principio fundamental que permea todo ordenamento jurídico. Hoy día no se admite ningún acto jurídico que entre em conflito com dicho principio fundamental, no se admiten tratos discriminatorios em perjuicio de ninguna persona, por motivos de género, raza, color, idioma, religión o convicción, opinión política o de outra ídole, origen nacional, étnico o social, nacionalidade, edad, situación económica, patrimonio, estado civil, nascimiento o cualquier outra condición...”. PASTOR, Marta María. Los Extranjeros Y El Devido Processo Legal. In ALBANESE, Susana. Opiniones Consultivas Y Observaciones Generales – Control de Convencionalidad. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 326.
17 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso González e Outras (“Campo Algodoeiro”) vs. México. Sentença de 16 de novembro de 2009. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_205_por.pdf. Acesso em: 18 fev. 2020.
18 Nações Unidas, Relatório da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, Beijing, 4 a 15 de setembro de 1995, Declaração e Plataforma de Ação de Beijing aprovada na 16ª sessão plenária realizada em 15 de setembro de 1995. A/ CONF.177/20/Rev.1, página 54, par. 124 b
19 Art. 1.1, Convenção Americana Sobre Direitos Humanos.
20 “La noción de igualdad se desprende directamente de la unidad de naturaleza del género humano y es inseparable de la dignidad esencial de la persona, frente a la cual es incompatible toda situación que, por considerar superior a un determinado grupo, conduzca a tratarlo con privilegio; o que, a la inversa, por considerarlo inferior, lo trate con hostilidad o de cualquier forma lo discrimine del goce de derechos que sí se reconocen a quienes no se consideran incursos en tal situación de inferioridad. No es admisible crear diferencias de tratamiento entre seres humanos que no se correspondan con su única e idéntica naturaleza. Sin embargo, por lo mismo que la igualdad y la no discriminación se desprenden de la idea de unidad de dignidad y naturaleza de la persona es preciso concluir que no todo tratamiento jurídico diferente es propiamente discriminatorio, porque no toda distinción de trato puede considerarse ofensiva, por sí misma, de la dignidad humana.” Corte Interamericana de Derechos Humanos. Propuesta De Modificación A La Constitución Política De Costa Rica Relacionada Con La Naturalización. 19/01/1984. p. 16. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2020.
21 TRAMONTANA, Enzamaria. Discriminación y violencia de género. Aportes del sistema interamericano de derechos humanos. In BOGDANDY, Armin Von de et al (orgs.), Estudos Avançados de Direitos Humanos. Democracia e Integração Jurídica: Emergências de um novo Direito Público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 468. LORDE, Audre. 1981. The Uses of Anger: Women Responding to Racism. Sister Outsider: Essays & Speeches by Audre Lorde. Berkeley: Crossing Press, 2007. PASTOR, Marta María. Los Extranjeros Y El Devido Processo Legal. In ALBANESE, Susana. Opiniones Consultivas Y Observaciones Generales – Control de Convencionalidad. Buenos Aires: Ediar, 2011. REFERÊNCIAS TRAMONTANA, Enzamaria. Discriminación y violencia de género. Aportes del sistema interamericano de derechos humanos. In BOGDANDY, Armin Von de et al (orgs.). Estudos Avançados de Direitos Humanos. Democracia e Integração Jurídica: Emergências de um novo Direito Público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. Supremo Tribunal Federal JURISPRUDÊNCIA HABEAS CORPUS COLETIVO. CONSTITUCIONAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. HABEAS CORPUS AO QUAL NEGADO SEGUIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RESSALVA DE ENTENDIMENTO PESSOAL. PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. RECONSIDERAÇÃO. CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM. (STF – Monocrática – Ag.Rg. HC 156.583 – rel. Cármen Lúcia – j. 19.11.2019 – public. 25.11.2019 – Cadastro IBCCRIM 6133). Agravo regimental em habeas corpus. Penal. Agravante condenado em recurso especial no Superior Tribunal de Justiça. Prática do crime previsto no art. 183 da lei 9.472/1997. Absolvição em primeiro e segundo graus de jurisdição. Aplicação do princípio da insignificância em razão do mínimo potencial ofensivo da conduta. Restabelecimento da sentença absolutória. Agravo regimental provido. Habeas corpus concedido. I – Agravante condenado no Superior Tribunal de Justiça pela prática do delito tipificado no art. 183, caput, da Lei 9.472/1997 (desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação), por considerar que a conduta de disponibilizar o acesso à internet a terceiros sem a autorização da Anatel configura crime formal e de perigo abstrato. II – A questão de saber se esse serviço de internet é ou não uma atividade de telecomunicações ou simples serviço de valor adicionado, embora relevante, não é decisiva. Isso porque, ainda que se considere uma atividade de telecomunicações e que tenha sido exercida de forma clandestina, é necessário examinar se trata-se de atividade de menor potencial ofensivo ou não. III – Na específica situação dos autos, a jurisdição ordinária, que está vis-à-vis com o réu e diante de todo o contexto probatório, concluiu pela aplicação do princípio da insignificância, em razão do mínimo potencial ofensivo da conduta, sendo indevida, portanto, a invocação pura e simples da gravidade em abstrato do delito. IV – Agravo regimental 1