Os 30 anos de uma Constituição Cidadã que não incluiu a cidadania negra

Editorial publicado originalmente em setembro de 2018

Data: 13/05/2020
Autor: IBCCRIM

Em outubro de 2018, a Constituição da República Federativa do Brasil completa 30 anos. Cantada em verso e prosa como promessa de ampliação de cidadania, liberdade e participação política, não é incomum que as celebrações deste ano ocorram sem grandes comentários às incompletudes e aos desafios de sua implementação. Uma delas diz respeito à efetiva igualdade racial, a equiparação de direitos da população negra.

A promulgação da Constituição Cidadã se deu em 1988, centenário da abolição da escravização no Brasil, e contou com a participação de setores diversos da sociedade civil, incluindo o Movimento Negro. A reivindicação pelo reconhecimento da incompleta inserção social de negros e negras no país e a definição de mecanismos para a efetivação de sua cidadania não eram temas novos na Assembleia Nacional Constituinte. A demanda era pautada desde a Constituição Política do Imperio do Brazil no início do século XIX, inspirada, em grande parte, pelo contexto da Revolução Haitiana.(1)

A independência do Haiti foi um marco para as denúncias da universalidade excludente, colocando em xeque o alcance das revoluções liberais e trazendo à baila as contradições do ideal iluminista, que demandava a perpetuação da violência e colonização para se manter aceso. Esse movimento acabou impulsionando movimentos populares no Brasil como a Revolução Pernambucana, em 1817, a Confederação do Equador, também em Pernambuco, em 1824, e a Revolta das Carrancas, em 1833, em Minas. Nesta última, aproximadamente 15 participantes foram condenados à pena de morte.

Possivelmente temendo um levante negro brasileiro com as mesmas proporções do Haiti, as discussões parlamentares na Constituição do Império no Brasil culminaram na exclusão dos africanos da cidadania expressa, mantendo-se a escravatura. A dualidade que coloca cidadania, liberdade e igualdade de um lado e, de outro, medo e vigilância, destaque-se, tem o racismo como centro e fundamento.

O tema do racismo refere-se à trajetória de contingentes populacionais, indivíduos e suas contribuições para a construção de toda a sociedade. A crença na existência de seres naturalmente hierarquizados pela relação intrínseca entre os aspectos físicos, moral, intelectual e cultural denomina-se racismo; e sua manifestação se dá pela depreciação do outro, que culmina na supressão da dignidade e da liberdade plena, mediante a negação do acesso a bens materiais e simbólicos. Portanto, refletir sobre os aspectos jurídicos dedicados à questão é um imperativo para compreender a construção social dos papéis desempenhados pelas pessoas de diferentes raças.

Ainda que seja possível reconhecer o avanço e a reafirmação que o Movimento Negro conquistou ao posicionar a população negra como sujeito político, pautando discussões e conquistando a inserção de algumas demandas no texto constitucional de 1988, a implementação de políticas de igualdade material e o reconhecimento da necessidade de políticas estatais antirracistas são quase nulas.

E é a população negra a mais afetada pelo atraso na implementação dos direitos assegurados pela Constituição; e a primeira a ser impactada pelos retrocessos vividos atualmente.

A relação jurídica de domínio e de injustiça racial engendra modos de exploração, vilipêndio, marginalização e opressão. A supressão de direitos trabalhistas, o cerceamento de defesa, o afastamento da garantia constitucional da presunção de inocência e a seleção de corpos a serem aprisionados ou marcados para morrer caminham na contramão do que seria um projeto de construção do idílio das raças.

O Atlas da Violência de 2018(2) aponta que, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios contra negros aumentou 23,1%, enquanto para não negros diminuiu em 6,8%. Além disso, a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. O recorte não se resume, no entanto, à raça e ao gênero e à classe, mas pode-se afirmar que a juventude negra sofre com esse projeto de nação. São jovens negros (até 29 anos) que predominam no sistema carcerário e socioeducativo e nos índices de mortes.

O Judiciário, com ações e omissões praticadas por meio do uso da litigância, demonstra inclinações ideológicas e colabora para a manutenção das estruturas sociais, concorrendo para a marginalização dos segmentos vulneráveis no exercício do poder.

Apesar de todos os diplomas normativos dedicados ao enfrentamento do racismo no país, tais como a Lei Afonso Arinos, Lei Caó, Injúria Qualificada por Racismo, Estatuto da Igualdade Racial e a alteração processual do crime de injúria como ação condicionada, o judiciário brasileiro se mantém indiferente e ignorante aos debates sobre relações étnico-raciais, imerso no mito da democracia racial que, na realidade, é um solo fértil no qual se planta a seletividade penal.

Se parece difícil relacionar o medo instigado desde o século XVIII na formação constitucional do Brasil, basta prestar atenção aos discursos sociais e políticos que intensificam a figura da “criminalidade negra” e dos corpos negros enquanto objetos descartáveis, sobretudo no cenário político atual que precede as eleições presidenciais.

Das raízes das opressões que multiplicam as práticas do racismo, é possível encontrar outras violações de direitos que, interseccionadas, promovem avassaladoras consequências. Patriarcado, machismo, homofobia e discriminação de classe são algumas das violações que se combinam como fatores de ampliação dos efeitos da segregação racial.

Intelectual precursora das teorias do feminismo negro, Audre Lorde escreveu uma emblemática frase: “As ferramentas do senhor nunca irão desmantelar a casa grande”.(3)

Em 130 anos da abolição e 30 anos da Constituição Cidadã, negros e negras da diáspora africana no Brasil continuam à margem do projeto de nação. É hora de superar a cultura em que o Direito se coloca como uma irremediável ferramenta de manutenção das estruturas segregacionistas enraizadas na opressão de pessoas, almejando-se outro destino, em que haja distribuição do poder para a construção de uma sociedade menos desigual.


Notas de rodapé

(1) Duarte, Evandro Charles Piza; Queiroz, Marcos Vinícius Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico negro: o constitucionalismo em face do lado oculto da modernidade. Disponível em: <http://direitoestadosociedade.jur.puc-rio.br/media/Direito%2049_artigo%201.pdf>; e Queiroz, Marcos Vinícius Lustosa. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. Disponível em: <https://docplayer.com.br/82957165-Constitucionalismo-brasileiro-e-o-atlantico-negro-a-experiencia-constitucional-de-1823-diante-da-revolucao-haitiana.html>.

(2) Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/7/2018>.

(3) Tradução livre – “The master’s tools will never dismantle the master’s house.” Lorde, Audre. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 110-113.

Breve taxionomia da argumentação inconstitucional

Mauricio Stegemann Dieter

Professor Doutor do Departamento de Direito Penal e Criminologia da USP.

ORCID: 0000-0001-8444-3922


Resumo: Este ensaio aborda quatro linhas argumentativas utilizadas nos votos vencidos no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, 44 e 54, que equivocadamente tentaram negar eficácia ao texto constitucional definido no artigo 5, inciso LVII, da Constituição da República, expresso no artigo 283 do Código de Processo Penal.

Palavras-chave: Execução de pena antes do trânsito em julgado. Inconstitucionalidade.

Abstract: This essay addresses the four leading arguments used in the defeated votes delivered in the Supreme Court in 2019 that mistakenly tried to deny effectiveness to the constitutional rule defined in article 5, LVII, and later expressed in article 283 of the Criminal Procedure Code.

Keywords: Execution of a prison sentence without res judicata. Unconstitutionality.


Data: 24/04/2020
Autor: Mauricio Stegemann Dieter

Por mínima diferença de opinião entre Ministros, uma regra de tratamento definida na Constituição da República e reproduzida no Código de Processo Penal manteve-se íntegra. Refiro-me, é claro, ao histórico julgamento das ADCs 43, 44 e 54, em relação ao qual o Executivo Federal mantém-se inconformado.

Se, por um lado, o voto da Ministra Rosa Weber libertou o suspiro de alívio dos criminalistas país afora, por outro inaugurou um tempo de redobrada vigília.

Há, de fato, bons motivos para desconfiar do Supremo Tribunal Federal como guardião do texto constitucional em um contexto obscurantista: como tributar a certeza da proteção dos direitos fundamentais a homens e mulheres dispostos a tergiversar com a proibição de não contradição definida pela lógica?

A tentação autoritária de fragmentar uma cláusula pétrea permanece e ecoa perigosamente pelo Congresso Nacional, em boa medida reagindo a insinuações que partiram da Corte. Aos juristas comprometidos com a defesa do Estado Democrático caberá, novamente, resistir com as armas da crítica em todos os espaços possíveis.

Nesse ínterim, enquanto uma mudança na estrutura recursal não se concretiza, as circunstâncias obrigam revisar como foi que nosso Tribunal Constitucional se colocou à beira do precipício hermenêutico. Interessam, em particular, os argumentos utilizados pelos Ministros que abandonaram o Direito como técnica (e, no pior dos cinco votos, para abraçar a retórica como verniz do voluntarismo).

A leitura dos votos vencidos revela, nesse sentido, a preferência por quatro linhas discursivas. A primeira, reduzir todo o debate jurídico ao pó principiológico, triturando a realidade das regras à hipostasia de uma discussão axiológica. A segunda, a subordinação da presunção de inocência a um vetor decrescente, conforme avança o processo. A terceira, o moralismo escatológico, que apela para o catastrofismo para justificar medidas urgentes. Quarta, a falsificação estatística, que manipula os números para atender às convicções.

Analisemos brevemente uma a uma.

A estratégia de redução do artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República, à condição de “mero princípio” é bastante simples: apenas mais uma entre dezenas de prescrições constitucionais, a garantia do estado de inocência antes do trânsito em julgado pode ser relativizada em sua inequívoca determinação para satisfazer outros interesses de falsa equivalência. Simulando a doutrina de eminentes constitucionalistas estrangeiros, afirma-se que é possível “ponderar” uma norma diante das circunstâncias para produzir uma “adequação constitucional”, que, contraditoriamente, exige o sacrifício da literalidade da Constituição para se concretizar. Nonsense jurídico. A má compreensão da virada linguística na filosofia ocidental faz, aqui, mais uma vítima. O direito fundamental, que exclui a possibilida’de de execução de pena antes do trânsito em julgado é regra que não comporta exceção – precisamente por isso, a prisão processual tem natureza jurídica distinta, e mais não precisa ser dito. Em caso de dúvida, as lições introdutórias de Hans Kelsen e Robert Alexy (textos básicos para estudantes de graduação) são mais do que suficientes.

A segunda é a ardilosa confusão entre inocência e não-culpabilidade. A ideia é elementar: se sentença e acórdão afirmam, antes dos eventuais recursos aos Tribunais Superiores, a censurabilidade do tipo de injusto, então o cidadão “duplamente condenado” já não merece o ceticismo do Estado. Sem respeitar o método do Direito comparado, paralelismos com outras ordens jurídicas denunciam a suposta frouxidão do sistema brasileiro e clamam por punição diante de um suposto “pacto suicida” nunca confirmado. O “complexo de vira-lata” acompanha o evidente descompasso: para o direito penal brasileiro, a inocência é um predicado qualitativo absoluto somente alterado após o trânsito em julgado, porque o juízo definitivo de censura não depende apenas de prova material, mas de processo legal devido – frequentes episódios de erro judiciário à parte. Em um país com pouca tradição democrática e crônica infidelidade dos Tribunais estaduais à jurisprudência das Cortes superiores – algo mais do que recomendável, diga-se de passagem. Nesse ponto em particular, merece atenção um grave equívoco teórico identificado no voto de um dos Ministros, que em poucas linhas confundiu princípio da culpabilidade (que, simultaneamente, proíbe a responsabilidade penal objetiva e o Direito Penal do Autor), culpa (tipo subjetivo dos crimes imprudentes) e culpabilidade (categoria do conceito analítico de fato punível estruturada sobre imputabilidade, consciência da antijuridicidade e exigibilidade de conduta adequada à norma). Falha grave diante da seriedade da questão sob julgamento e que merece ser revista. Em verdade, se a coerência ainda for um valor importante, deveria inclusive reorientar as conclusões da decisão para um voto conforme a regra constitucional.

A terceira é o apelo moralista, atento à “voz das ruas”. Uma escuta seletiva, em todo caso, mais calibrada para ouvir a indignação da zona Sul do Rio de Janeiro do que os gritos das mães dos mortos pela polícia nas favelas cariocas. Seja como for, um retrocesso, que aprofunda a crise de legitimidade do Judiciário brasileiro ao deslocar o fundamento de sua autoridade, da Constituição, para o instável terreno da opinião pública. A vaidade despertada pela TV Justiça certamente não favorece à serenidade necessária para a defesa de posições impopulares, mas a recente guinada moral da Corte deve muito mais à cumplicidade entre a mídia e o projeto político conduzido pelas grandes operações policiais, especialmente pela “Lava Jato”, do que à histeria televisiva. A falácia das consequências adversas, que se alimenta do binômio “tudo ou nada”, é frequente em tais votos: renunciar ao que está escrito é necessário para “combater a corrupção” e os que se opõem só podem ser, na dicotomia simplista que coloniza quase metade do Plenário, inconsequentes profissionais pró-impunidade, sombras anacrônicas que impedem a aurora de uma nova ética juridicamente tutelada. Idealismo perigoso, que infelizmente não mostra sinais de arrefecimento, com assento definitivo na Corte.

A quarta e última linha argumentativa é um excelente exemplo de como não se faz pesquisa científica. Uma mera coleta de dados, organizada na intimidade do próprio gabinete, ignorou qualquer baliza metodológica para fundamentar a afirmação triunfante de que a “criminalidade” responde mecanicamente às decisões do Supremo Tribunal Federal. A inversão do pressuposto estatístico é radical: buscam-se dados para corroborar as opiniões, não para elaborá-las. Antes de encontrar um padrão, supõe-se um: a crença na prevenção geral (negativa e positiva) da pena transborda. Não há regressão linear ou observação da regra de Bayes, meramente apresentando-se números para fabricar inferências, isto é, fingindo jurimetria para disfarçar ideologia. O delírio vai longe e sinaliza o quão alienados estão alguns Ministros da realidade que pretendem disciplinar à distância. A falta de informação criminológica, típica de uma formação jurídica superficial, deveria ao menos constranger as melhores iniciativas à prévia consulta com especialistas: é o que se espera de toda pessoa simbolicamente portadora de notável saber jurídico.

Em conclusão, é possível afirmar com bastante segurança, que não há muita ciência por trás da tentativa de ignorar a exegese dos direitos fundamentais como limite à violência estatal. Em sentido oposto, o voto do Ministro Celso de Mello, em sua exposição linear, didática e teoricamente coerente, deve servir de modelo para decisões futuras em matéria penal, ao demonstrar a força da razão técnica diante das pretensões punitivas, concretizando a vocação do Direito como fronteira do arbítrio: que o voto do decano possa iluminar a sombra do punitivismo populista por muito tempo ainda.

É preciso estar atento e forte: muito em breve, embalados por esses ou outros argumentos, seremos confrontados com novas tentativas de legitimar o retrocesso em matéria de direitos humanos. E nesse embate, a posição intransigente em favor do direito à inocência plena antes do trânsito em julgado de sentença condenatória não deve ceder um milímetro sequer. Os incomodados que busquem uma Constituição para chamar de sua.

Direito Penal perigoso ou, afinal, perigoso é mesmo o louco?

Artigo de Haroldo Caetano publicado originalmente no Boletim IBCCRIM nº 294, de maio de 2017

Haroldo Caetano
Doutorando em Psicologia pela UFF e mestre em Ciências Penais pela UFG.
Promotor de Justiça do Estado de Goiás.
Vencedor do VI Prêmio Innovare com o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI).

Data: 18/05/2020
Autor: Haroldo Caetano

Mi vida va prohibida
Dice la autoridad

Manu Chao

Introdução

Na Escola Clássica, o poder do homem de tomar decisões segundo o próprio discernimento, o seu livre-arbítrio, dá fundamento ao Direito Penal, sendo a liberdade individual a base para o funcionamento de todo o sistema punitivo. O crime é um ente jurídico e a culpabilidade constitui o pressuposto para imposição da pena, que deve ser proporcional à gravidade da infração. Não é possível punir além da gravidade do delito praticado, sequer por motivações preventivas, porque a dignidade humana se opõe a que o indivíduo seja utilizado como instrumento voltado à consecução de fins sociais de prevenção a ele transcendentes.(1) É que por trás das formulações de Kant e Hegel, bases filosóficas do retribucionismo, a proporcionalidade entre a pena e a conduta ilícita revela uma garantia em favor do indivíduo.

Entretanto, a ideia de livre-arbítrio, essencial para a Escola Clássica, é negada radicalmente pelos positivistas. Para a Escola Positiva, de raiz determinista, o homem não governa suas próprias ações e não tem liberdade de agir, condicionado que é por diversos fatores, de tal sorte que a escolha, diante da opção aparentemente livre, seria resultante daqueles fatores.(2)

Para o positivismo criminológico, a infração penal é expressão sintomática de uma personalidade antissocial, anormal e perigosa. Reflexo de uma doença ou de uma anomalia, o crime não deve ter como resposta uma sanção de natureza retributiva. A pena ganha, pois, a companhia da medida de segurança, de caráter preventivo, capaz de alcançar os objetivos da correção, da educação, da inocuização e da cura, que irão proporcionar a readaptação do delinquente à vida em sociedade. Se, por um lado, a culpabilidade é premissa fundamental de aplicação da pena, será a periculosidade, por outro, o pressuposto para a imposição da medida de segurança.

Periculosidade: em busca de um conceito

Sebastián Soler evidencia as dificuldades conceituais enfrentadas nas várias formulações propostas para a periculosidade. Para Filippo Grispigni, periculosidade é “a relevante capacidade de uma pessoa para cometer um crime” ou “a probabilidade de vir a se tornar autora do crime”. Segundo Jiménez de Asúa, ela é o reflexo externo de um estado subjetivo, “la inmanenza criminale” que, por sua vez, expressa uma disposição orgânica tendente para o crime. Alfredo Rocco sustenta que a periculosidade não passa de um dos efeitos psicológicos do delito. Já o próprio Soler a conceitua como a “potência, a capacidade, a aptidão ou a idoneidade que um homem tem para converter-se em causa de ações danosas”. Contudo, foi Raffaele Garofalo quem, em 1878, havia dado os contornos conceituais primitivos da periculosidade ao falar de certa temibilidade do agente, identificada na perversidade constante e ativa do delinquente e na quantidade de mal previsto que se deve temer por parte dele.(3)

Conceitos abertos que revelam a fragilidade da própria teoria, como também se revelaram frágeis outros mitos do positivismo criminológico. Quando apontam a periculosidade como potência, capacidade ou aptidão para causar danos, probabilidade de delinquir, tendência para o crime, ou, em sentido absolutamente diverso, como simples efeito psicológico do crime, os conceitos pouco ou quase nada dizem, pois levam à inafastável conclusão de que qualquer indivíduo carregaria consigo a periculosidade. Sob tais formulações conceituais, absolutamente precárias, todas as pessoas carregariam de forma latente os atributos característicos da periculosidade.

Foi sob tal perspectiva que Enrico Ferri propôs a defesa social como fundamento da resposta para o crime. Para ele, “se cada delito, desde o mais leve ao mais cruel, é a expressão sintomática de uma personalidade antissocial, que é sempre mais ou menos anormal, mais ou menos perigosa, é inevitável a conclusão de que o ordenamento jurídico de defesa social repressiva não pode subordinar-se a uma pretensa normalidade ou intimibilidade ou dirigibilidade do delinquente”.(4)

Segundo os partidários da teoria da defesa social, diante do homem determinado à prática do crime, a sociedade deve estar determinada em defender-se, não restando à pena qualquer caráter retributivo, sendo somente um meio de defesa.(5) Corolário desse entendimento, então, e diferentemente da culpabilidade, que resulta de um juízo sobre o passado e tem no próprio crime a sua razão de ser, a periculosidade remete a um olhar rumo ao porvir, para a probabilidade de o indivíduo praticar um delito no futuro.

O criminoso nato

A concepção periculosista que aponta para a necessidade de um Direito Penal destinado à prevenção em muito se sustenta na ideia do criminoso nato, cuja aparição aconteceu na década de 1870, com a publicação do livro O homem delinquente, de Cesare Lombroso, para quem o criminoso seria como uma variedade da espécie humana definida pela presença constante de certas características anatômicas e fisiopsicológicas,(6) uma série de estigmas que, na superfície do seu corpo, expressavam as disposições de sua alma, como indicadores de uma ferocidade original e não propriamente de uma anomalia orgânica.(7)

Depois que Lombroso colocou o problema do criminoso nato, não tardou para que os delinquentes fossem identificados com as pessoas com menos poder ou em situação de vulnerabilidade social, os hóspedes de sempre dos presídios que, não por acaso, constituíram o campo das pesquisas do psiquiatra italiano, as quais tiveram ampla repercussão político-criminal, rompendo com o princípio da legalidade e servindo de instrumental ideológico para a punição e controle penal dos indesejáveis.(8)

Reflexos do positivismo criminológico

Tal teoria teve desdobramentos terríveis nos campos social e político, desencadeando um verdadeiro escândalo ideológico e, ainda que Lombroso a tenha temperado prudentemente no decorrer de sua vida, sempre esteve circunscrita a um biologismo reacionário que culminou por servir de fundamento às teorias racistas, eugênicas e higienistas do nacional-socialismo, legitimando, assim, a perseguição das raças inferiores, particularmente os judeus durante a ascensão nazista na Europa. Triste fado ideológico de um pensamento cuja mais difundida versão, por ironia do destino, foi proporcionada por Lombroso, que pertencia a uma família de judeus italianos.(9)

As doutrinas positivistas da defesa social partem dessa concepção periculosista do criminoso e levam o determinismo para o Direito Penal, que se afasta do livre-arbítrio e abraça a ideia oposta, embora também metafísica, do homem, visto como um animal desprovido de liberdade. Mais precisamente, como esclarece Ferrajoli, as doutrinas da defesa social representam a síntese de uma infeliz mistura das teorias de Lombroso, sobre o criminoso nato e sobre a natural desigualdade dos homens, com aquelas de Spencer acerca da sociedade enquanto organismo social e as ideias de Darwin a respeito da seleção e da luta pela existência, que “se aplicadas a tal organismo, legitimam-no a defender-se das agressões externas e internas por meio de práticas socialmente profiláticas”.(10) O delito é sintoma da personalidade antissocial do delinquente, ser antropologicamente inferior, o que autoriza a defesa social por meios que persigam a prevenção, em que penas e medidas de segurança assumem a dupla função de curar o condenado, visto como doente, e/ou neutralizá-lo em face da sua periculosidade.

A periculosidade, por seu fundamento racista, será identificada dentre os homens classificados como de pior qualidade, os degenerados, os biologicamente deficientes, que precisam ser controlados pelos que exercem o poder, pois se convertem em uma classe social perigosa. Essa ideologia brutal tomou conta da Europa e foi exportada para a América Latina, onde serviu para justificar o desprezo pelos índios, negros, mestiços e mulatos, os habitantes naturais de nossos cárceres.(11)

O positivismo criminológico frutificou com incrível intensidade. LombrosoFerri e Garofalo fizeram muitas cabeças, de forma que suas ideias continuam vivas na psiquiatria(12) e no meio jurídico,(13) como “um fantasma que assombra não só as nossas faculdades de direito, mas também as conversas de botequim, as páginas policiais e os repórteres sensacionalistas, sem contar os políticos de extrema direita”.(14)

O louco é perigoso apenas por ser louco?

No sistema de duplo binário, penas e medidas de segurança eram simultaneamente aplicáveis ao agente imputável. No Brasil, desde 1984, quando foi adotado o sistema vicariante pelo Código Penal, somente os indivíduos inimputáveis ou semi-imputáveis (CP, art. 26) passaram a ter a periculosidade presumida. É para essas duas categorias que hoje se reservam as medidas de segurança (CP, art. 97). A periculosidade é, nos termos da norma penal de agora, atributo exclusivo do louco.

Mas por que motivo o louco deve ser considerado perigoso?  A construção jurídica do conceito de periculosidade, embora de frágil sustentação, é bastante refinada e exige, para sua configuração que, além de louco, o indivíduo tenha cometido uma infração penal. O indivíduo não é perigoso por ser louco, de forma que só a prática do crime pode demonstrar a sua periculosidade, esta condicionada àquela. O crime, por si só, não exprime a periculosidade, como acontecia nas revogadas disposições do duplo binário, da mesma forma que a loucura, unicamente, também não a determina. Para que a periculosidade seja reconhecida devem estar presentes os dois fatores: a loucura e o crime.

Afinal, o louco é perigoso?

Conforme demonstrado, a periculosidade é de conteúdo jurídico, resultante da junção de dois elementos que tentam conferir-lhe alguma sustentação conceitual: a loucura e a prática do crime. São muito frágeis os pilares dessa teoria em que a periculosidade não resulta da loucura em si, mas de uma abstração normativa que considera perigoso somente o louco que vier a cometer uma infração penal.

Originalmente o louco não era “o” indivíduo perigoso de que falava a Escola Positiva, de vez que a periculosidade era tida como inata ao criminoso, visto como um indivíduo que nascia fatalmente destinado à prática da infração penal, independentemente de eventual transtorno psíquico. Louco ou não, perigoso era o criminoso. Só mais tarde a periculosidade foi restringida ao louco, o que demonstra o quão flexível era – e ainda é – o conceito de periculosidade, cujo sentido pode ser modificado ao alvedrio do legislador.

Como observado, o conceito de periculosidade não é de natureza médica. É certo que Lombroso era médico e responsável pelos estudos que levaram à ideia do criminoso nato, o que mais tarde serviu de referência para a construção do conceito de periculosidade no campo do Direito Penal. Ocorre que suas conclusões careciam de fundamento científico (não há como indicar uma base biológica para o crime), embora tenham ganhado terreno com extrema facilidade no contexto socioeconômico da Europa do século XIX, abalada pelo aumento da pobreza e pelos temores de guerra, ambiente que exigia providências para o controle social e para a manutenção da ordem. A teoria da periculosidade surgia, então, como um estratagema, um disfarce, um embuste para o controle de populações vulneráveis.

A periculosidade tem, nos frágeis argumentos de Lombroso, apenas uma explicação artificial, embora sedutora para tantos. A sua difícil conceituação como predicado humano, resultante que é de uma fórmula legal, acaba por expressar, pelas suas próprias deficiências teóricas, o sofisma que representa. De fato, não há como se atribuir a um ser humano a condição de perigoso. Para ser rotulado como perigoso, o homem foi reduzido a um animal aprisionado às suas necessidades naturais e somente com base nas teorias lombrosianas é que se fez possível vincular loucura e perigo.

Vale lembrar que nem sempre o termo periculosidade se prestou a designar a qualidade de uma pessoa. Antes, “podia-se usar o adjetivo perigoso como uma qualidade igual a qualquer outra, um modo de predicar situações e coisas; muito dificilmente encontraremos, nos registros anteriores ao século XIX, essa palavra usada como qualidade para predicação de pessoas”.(15) Até então, certas situações poderiam ser rotuladas de perigosas, mas tal adjetivo não se projetava para vincular a pessoa em si, com a conotação patológica que passou a carregar na linguagem jurídica.

Direito Penal perigoso

A experiência de cem anos em que o Direito Penal tem se orientado pelo mito da periculosidade do criminoso, louco ou não, mostrou-se catastrófica e permitiu que o autoritarismo penal tomasse o lugar da legalidade no sistema punitivo. No Brasil, desde o Código Penal de 1940, com suas medidas de segurança aplicadas de forma generalizada para indivíduos imputáveis ou não, o Direito Penal perigoso causou estragos que ainda hoje se fazem presentes para além das medidas de segurança. São corriqueiras expressões como bandido perigoso ou preso de alta periculosidade tanto no sistema de justiça criminal quanto fora dele, com destaque para os meios de comunicação social, o que acaba por naturalizar no imaginário da população a ideia de que a periculosidade é, de fato, um predicado humano.

Além de dar o embasamento essencial para as medidas de segurança, a periculosidade está também embutida em outros dispositivos legais, em institutos de nítido fundamento nas teorias lombrosianas, com destaque para o exame criminológico(LEP, art. 8.º) e para a análise da personalidade do agente no ato de fixação da pena pelo juiz (CP, art. 59). Não é difícil perceber as raízes profundas fincadas pela periculosidade, teoria que dificilmente será algum dia extirpada por completo do Direito Penal.

Conclusão

A periculosidade é herança lombrosiana maldita que ainda seduz. É injustificável a acomodação dos juristas, salvo honrosas exceções, diante de uma bizarrice que vem do século XIX e que passa distante de qualquer problematização mesmo depois da Constituição de 1988 e, o que expõe um pouco mais a omissão acadêmica, também em face dos avançados dispositivos da Lei Antimanicomial, que veio romper definitivamente com o mito da periculosidade para estabelecer uma nova ordem no plano da atenção em saúde mental, pautada na liberdade e no respeito à dignidade humana.

O homem deve ser respeitado em sua dignidade e jamais poderia ter sido rotulado de perigoso por qualquer motivo. Perigosa, como demonstrou o nazifascismo europeu da primeira metade do século XX, é a própria doutrina da periculosidade. Perigoso tornou-se o Direito Penal ao acolher as ideias de Cesare Lombroso.

De sua parte, os manicômios judiciários estão em pleno funcionamento na maioria dos Estados brasileiros, assegurando a perpetuação do sofrimento de milhares de mulheres e homens a pretexto de um conceito que jamais se sustentou cientificamente, uma vez que, e aqui respondendo à indagação inicialmente proposta, não! Definitivamente, o louco não é perigoso!


Notas de rodapé

(1)    Santiago, Mir Puig. Direito penal: fundamentos e teoria do delito. São Paulo: RT, 2007. p. 60.

(2)  Cernicchiaro, Luiz Vicente. Estrutura do direito penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1972. p. 94.

(3)  Soler, Sebastián. Exposición y crítica de la teoria del estado peligroso. Buenos Aires: Valerio Abeledo, 1929. p. 16.

(4)  ApudCernicchiaro, op. cit., p. 95.

(5)  Soler, Sebastián. Derecho penal argentino. Buenos Aires: Tipográfica Editora, 1992. p. 383.

(6)  Bruno, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2003. t. 1, p. 62.

(7)  Carrara, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: EdUERJ; São Paulo: EdUSP, 1998. p. 105.

(8)  Santos, Bartira Macedo de Miranda. Defesa social: uma visão crítica. São Paulo: Estúdio, 2015. p. 48.

(9)  Zaffaroni, Eugênio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 1997. p. 298.

(10)  Ferrajoli, Luigi. Direito e razão. São Paulo: RT, 2006. p. 249.

(11)  Zaffaroni; Pierangeli, op. cit., p. 297.

(12)  Como, por exemplo, Guido Arturo Palomba, para quem “os alienados mentais criminosos são, salvo raras exceções, biocriminosos puros (o biológico determina a psicopatologia que leva ao crime)” (Palomba, Guido. Tratado de psiquiatria forense civil e penal. São Paulo: Atheneu, 2003. p. 188).

(13)  No direito, embora não sejam poucos os autores que problematizam o assunto, especialmente na criminologia crítica (Ferrajoli, Zaffaroni, Nilo Batista, Salo de Carvalho, Sérgio Salomão Shecaira), prevalece na academia e nas instituições do sistema de justiça criminal o entendimento segundo o qual a periculosidade do louco é pressuposto apto a legitimar a imposição de medidas de segurança. Tal quadro se explica pela relativamente recente Lei Antimanicomial e pela não assimilada elevação da culpabilidade à condição de princípio constitucional (CF, art. 5º, incisos XLV e LVII). São incontáveis os autores que dão sustentação à teoria da periculosidade, com forte penetração nas faculdades de direito e que, por isso mesmo, se faz hegemônica. A título de ilustração, podemos mencionar Damásio Evangelista de Jesus, René Ariel Dotti, André Estefam, Rogério Greco, Guilherme Nucci, dentre muitos.

(14)  Jacobina, Paulo. Direito penal da loucura. Brasília: ESMPU, 2008. p. 79-80.

(15)  Barros-Brisset, Fernanda Otoni de. Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte: TJMG, 2010, p. 18.


Do epistemicídio a epistemologias do aparecimento: mulheres negras no sistema de justiça e nas ciências criminais

Allyne Andrade e Silva

Doutora e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo.

Advogada, possui doutorado (2019) e mestrado (2015) em Direito pela Universidade de São Master of Laws na área de Teoria Crítica Racial da UCLA School of Law.

allyneaes@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0179-4650

Autora convidada


Resumo: O artigo critica o tratamento dado as mulheres negras, utilizando como exemplo o duplo lugar ocupado pelas mulheres negras no sistema de justiça e nas Ciências Criminais: visíveis como alvos preferenciais do encarceramento feminino e invisíveis como vítimas da violência contra a mulher e feminicida. O objetivo é realizar uma crítica acerca das produções que, embora críticas ao sistema penal e cientes da sua seletividade, apenas utilizam essas mulheres como números para retratar os problemas do sistema de justiça. Tais análises, de maneira geral, são incapazes de observar as mulheres negras enquanto intérpretes desse mesmo sistema e da sua própria realidade, de trazer raça como elemento central das causas dessas violências. Por fim, proponho que interseccionalidade seja utilizada como uma epistemologia do aparecimento das mulheres negras e como uma perspectiva crítica antirracista, que confere às estas a primazia epistêmica de interpretação de suas próprias realidades.

Palavras chave: mulheres negras, epistemicídio, interseccionalidade

Abstract: This paper criticizes the treatment given to black women, using as an example the double position occupied by Black women in the justice system and in the Criminal Sciences: visible as preferential targets of female incarceration and invisible as victims of violence against women and femicide. My main goal is to criticize analysis that, although critical of the penal system and aware of its selectivity, only uses these women as numbers to portray the problems of the justice system. These analyzes, in general, are incapable of using Black women as interpreters of the same system and of their own reality, of bringing race as a central element of the causes of this violence. I also propose that intersectionality be used as an epistemology of the appearance of black women and a critical anti-racist perspective that gives them the epistemic primacy of interpreting their own realities.

Keywords: black women, epistemicide, intersectionality

(Publicado originalmente no Boletim nº 328 - março de 2020)


Data: 17/04/2020
Autor: Allyne Andrade e Silva

Introdução

O objetivo desse breve ensaio, desde a perspectiva feminista negra da interseccionalidade, é realizar uma crítica acerca da “posição” conferida às mulheres negras no debate comumente feito nas Ciências Criminais. Para tal, recorro a dois exemplos: o do “combate” ao tráfico de drogas e o superencarceramento, de um lado, e à violência feminicida, de outro. Cumpre ressaltar que há complexas relações entre gênero, raça e classe nos processos de criminalização e vitimização da mulher negra e não pretendo esgotá-las aqui.

Meu intuito é demonstrar a fragilidade das análises que, embora se digam críticas, promovem apenas a “contagem dos corpos” das mulheres negras, seja como alvo preferencial do encarceramento feminino, seja como vítimas da violência contra mulher e feminicida. Quando eu falo da contagem dos corpos, refiro-me às produções que, embora críticas ao sistema penal e cientes da sua seletividade, são incapazes de considerar as mulheres negras como intérpretes desse mesmo sistema e da sua própria realidade ou de trazer raça como elemento central das causas dessas violências.

Para essa abordagem, apresento brevemente dados sobre as mulheres negras e o cárcere, tratando das mulheres negras e violência de gênero. Em seguida, apresento a mulher negra enquanto (não) sujeito visível e invisível no sistema de justiça e no epistemicídio frequente nas Ciências Criminais. Por fim, falo da interseccionalidade como uma epistemologia do aparecimento das mulheres negras e uma perspectiva crítica antirracista, que confere às mulheres negras a primazia epistêmica de interpretação de suas próprias realidades.

1. Mulheres negras e o cárcere

O sistema prisional brasileiro tem a quarta maior população carcerária feminina do mundo. Os três primeiros lugares são ocupados por Estados Unidos, China e da Rússia, respectivamente. Em junho de 2016, havia cerca de 42.355 mulheres, de acordo com o novo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias sobre Mulheres (Infopen Mulheres). O número representa um crescimento de 656% em relação ao total registrado no início dos anos 2000, quando menos de 6 mil mulheres se encontravam no sistema prisional.

Oficialmente, há apenas 27.029 vagas no sistema carcerário, o que representa uma taxa de ocupação de 156,7% e um déficit de 15.326 vagas. Cabe ressaltar que 45% das mulheres presas no Brasil, em junho de 2016, eram presas provisórias e, portanto, não haviam sido ainda julgadas e condenadas. De acordo com a mesma pesquisa, 62% da população prisional feminina é composta por mulheres negras. ( i Sobre a escolaridade, 66% da população prisional feminina ainda não acessou o ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental. Apenas 15% da população prisional feminina concluiu o ensino médio. A maioria das mulheres privadas de liberdade condenadas ou aguardando julgamento em 2016 (62%) receberam acusação ou foram sentenciadas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. ( ii)

Portanto, o superencarceramento feminino no Brasil tem um perfil bastante específico. Trata-se de mulheres negras, pobres, com baixa escolaridade e condenadas majoritariamente por tráfico de drogas. Os números cansam, não? Eu já cansei de ouvir. Qualquer pessoa que conheça minimamente o debate sobre cárcere e tráfico de drogas, conhece essa realidade.

Normalmente, nos debates críticos sobre sistema de justiça, seletividade penal e encarceramento feminino são apontadas as causas da super expansão do Estado Penal no Brasil, além de temas adjacentes, como: a feminização da pobreza, debates sobre legislação e tipos penais , acesso à justiça, interpretação jurídica, causas sociais do crime, o que significa ser criminosa, superlotação e privatização dos presídios...

A “guerra às drogas” e a própria forma como a legislação de drogas são interpretadas estão no centro das causas do superencarceramento do Brasil. É sabido que a seletividade sociorracial do sistema de justiça determina quem é usuário e traficante, o tamanho da pena, dentre outros.

Durante os debates, assim, no meio da frase eu ouço alguém falar: “...e , inclusive, as negras são a maioria das mulheres encarceradas...”. Desta maneira, como se raça fosse um argumento de reforço a tudo que se disse antes e não elemento central desse encarceramento.

2. Mulheres negras e violência de gênero

Juridicamente, no Brasil, temos duas legislações principais no que tange à violência contra a mulher. A primeira é a Lei Maria da Penha (11.340/2006), que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, reconhecendo qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual, psicológica, moral e patrimonial (art. 7º da lei).

A categoria do feminicídio foi juridicamente inaugurada no Brasil pela Lei 13.104/2015 como qualificadora do crime de homicídio. Ele é entendido como o homicídio cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” (art. 121, §2º, Código Penal). Embora a lei represente um avanço para o sistema jurídico, ela já é um retrocesso para os estudos do campo de gênero.

Primeiro: a lei fixou a possibilidade do feminicídio usando sexo e não gênero como critério. Segundo: a legislação brasileira não englobou outras formas de violência patriarcal, que também resultam em morte, como, por exemplo, as formas institucionais, dentre as quais podemos destacar: a proibição do aborto e outras políticas de controle de sexualidade e do corpo feminino; ou mesmo a negligência dos Estados em coibir, punir e erradicar as formas diretas de violência contra a mulher ocorridas no âmbito privado (ROMIO, 2017). 

Atenta, a essas múltiplas formas de violência, a pesquisadora Jaqueline Romio desenvolveu uma nova tipologia dos feminicídios, dividida entre feminicídio doméstico (no espaço da residência), reprodutivo (mortes por aborto) e sexual (quando a morte decorre da violência sexual). A análise permite que seja formada uma compreensão mais abrangente do significado da violência de gênero e de suas diferentes manifestações a depender da faixa etária, raça/cor e classe. Embora a concepção da definição jurídica do conceito seja menor do que o conceito formulado pelas teorias feministas, concentrarei minha análise no número de homicídios e faço a ressalva de que os dados se baseiam na categoria sexo e não gênero. ( iii)

O Mapa da Violência 2015 aponta um crescimento de 54%, em dez anos, no número de homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, passando de 1.747 para 1.576 no mesmo período. Mais da metade desses crimes (55,3%) foram cometidos no ambiente doméstico e 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas, segundo dados de 2013 do Ministério da Saúde.

Vale reforçar uma vez mais, que esses dados são conhecidos de quem se propõe a fazer o debate de violência de gênero no Brasil. Nas discussões sobre o tema, não raro, vejo o machismo, o patriarcado, a pobreza, a falta de acesso à justiça e a cultura do estupro sendo elencados como causas dessa violência de gênero; e, muito raramente, vejo raça/cor elencada como um fator relevante para essa violência.

3- Mulheres negras visíveis e invisíveis nas Ciências Criminais

Tanto o cárcere como a violência de gênero são fenômenos complexos e não pretendo aqui oferecer nenhuma genealogia sobre essas violências. Não se trata ainda de propor um ranking da opressão, com o propósito de apontar onde a dor dói mais ou de diminuir a dor de mulheres brancas, vítimas do cárcere e da violência. Meu objetivo, ao enfatizar esses dados tão conhecidos pelos estudiosos, é, em primeiro lugar, estabelecer o lugar de desconforto que o racismo e a desigualdade racial devem produzir em qualquer pessoa que pretenda criticar esse sistema. É preciso repetir para que ninguém se esqueça. Em seguida, buscamos trazer para a superfície esse duplo lugar, do visível e do invisível, da mulher negra nas Ciências Criminais e no sistema de justiça. Minha intenção, ao retratar esses dados, é destacar um certo conforto dentre diversos teóricos das Ciências Criminais em utilizar o corpo negro apenas como reforço teórico ou retórico da crítica ao sistema penal, sem, entretanto, trazer a raça como fator central de análise no mesmo sistema.

É um (eterno) jogo de aparecimento e desaparecimento da mulher negra. Visível como encarcerada e como morta após ser vítima de violência. Invisível como sujeito de política pública e como teórica de sua própria realidade. Essa representação das mulheres negras enquanto corpos, seja no sistema prisional superlotado ou como vítimas preferenciais da pobreza, do aborto não legalizado, da violência obstetrícia, da violência doméstica e do feminicídio é um reforço da representação negativa da mulher negra enquanto inferior e, portanto, passível e violência.

Como nos ensina Wilma Reis (2005), é no corpo que se inscrevem marcas profundas e emblemáticas de representações negativas do que significa ser negro. A punição, o constrangimento, a violência e a coerção são mensagens explícitas, que situa o lugar do negro e da negra para si e para os seus, mas também para os outros. A contagem de nós, enquanto presas ou mortas, é testemunho do sucesso dessa pedagogia.

O mesmo sistema de justiça, que enxerga as mulheres negras como criminosas, mesmo quando elas não são, é incapaz de enxergá-las enquanto vítimas, permitindo que elas estejam em um ciclo contínuo de violência que, por muitas vezes, só é encerrado com o ato final: a morte. Por vezes, nem a morte freia essa violência. Embora esses parecem fenômenos estanques ou contradições em si, eles são manifestações de um “projeto genocida de Estado que vai desenhando as vulnerabilidades que fragilizam, matam e impedem a formação de uma consciência histórica capaz de sedimentar as bases de uma reação articulada do contingente negro.” (FLAUZINA, 2006, p.92).

O reconhecimento do perfil racial do cárcere e da violência não pode servir apenas para melhor ilustrar o conhecimento de um dado sujeito – normalmente, que não é alvo desse mesmo sistema – sobre o sistema penal do seu próprio país. Feito desse modo, ele atua apenas como reforço de outra face desse genocídio: o epistemicídio e a negação do sujeito (a mulher negra) enquanto produtor de saber. Se eu não penso sobre minha própria realidade, eu não existo. Se o conhecimento produzido por nós sobre a nossa realidade não é tido como válido, eu também não existo.

Trocando em miúdos, eu entendo o genocídio – e nesse caso o feminicídio - como uma tripla morte. A morte física, resultante da violência obstétrica, da negligência do acesso à saúde e à justiça, dos altos índices de mortalidade materna por causas evitáveis, da violência contra a mulher, do homicídio, da tortura etc. Uma morte simbólica causada pela invisibilidade ou estereotipação na mídia, pela impossibilidade de acesso aos locais de mando e decisão, ou pela negação de validade dos saberes produzidos por nós.

Uma terceira dimensão dessa morte, a das nossas consciências, da nossa memória, do legado deixado pelos nossos. É aquela morte causada pelo esvaziamento da violência sofrida, que ocorre, por exemplo, na tentativa de acusar de criminosas ou de merecedoras as jovens vitimadas pela violência - afora o rótulo de traficante aplicado às usuárias de drogas. O genocídio é um projeto que vai se adaptando as circunstâncias, por hora sendo omisso, por hora sendo ativo, porém, continuamente, se movimento para a promoção da morte negra enquanto resultado.

Dito isso, meu convite é para que as Ciências Criminais e os sujeitos que a operam superem esse conhecimento da vitimação negra apenas pelo conhecimento e pelo bem da sua própria erudição. Entendo que este saber deve representar uma tomada de posição, que sirva, em primeiro lugar, para romper com qualquer discurso que coloque a democracia racial como premissa teórica da análise jurídica. Em segundo lugar, defendo que ele deve servir para que se busque um espaço teórico onde a raça seja estabelecida como dimensão central - embora não única - para qualquer pretensão de explicação do sistema penal no Brasil. Em terceiro lugar, que isso deve significar que seja dado às mulheres negras a primazia epistêmica da interpretação de suas próprias realidades (Curiel, 2014), bem como o reconhecimento do lugar da experiência vivida como fonte de saber (Collins, 2000).

Com isso, não quero dizer que os trabalhos até então produzidos nas Ciências Criminais não dão conta de explicar uma grande e importante parte do sistema de justiça ou do sistema penal brasileiro, nem que eles não forneçam explicações válidas. Quero apenas ressaltar, que tais trabalhos, ao não possuírem raça como dimensão central – e não lateral- de análise ou ao não possuírem mulheres e homens negros como referências, - são incapazes de romper com o pacto da democracia racial, por um lado, e com o projeto genocida e epistemicida do outro. Nesse sentido, eles seriam incapazes de colaborar com um projeto verdadeiramente antirracista.

Na próxima e última seção, defendo a interseccionalidade como lugar teórico onde é possível que se firmem alguns desses compromissos.

4- Para melhor ver: a Interseccionalidade como projeto teórico de aparecimento da mulher negra

Interseccionalidade é compreendida como uma categoria teórica, que focaliza múltiplos sistemas de opressão em particular, articulando raça, gênero e classe social para propor um entendimento sobre determinado fenômeno de empoderamento /desempoderamento ou para produção de igualdades/desigualdades. Crenshaw usou a metáfora de um cruzamento, uma encruzilhada entre várias avenidas e diversos eixos, que representam as diversas opressões sofridas por alguém.

Crenshaw apresenta três perspectivas distintas de interseccionalidade: (a) interseccionalidade estrutural, (b) interseccionalidade política e (c) interseccionalidade representacional. Essas perspectivas, grosso modo, são sobre estruturas sociais, movimentos políticos e diálogo cultural, respectivamente.

Por conseguinte, uma análise interseccional do fenômeno do encarceramento envolveria, por exemplo, uma análise das estruturas de poder, que leva à maior criminalização da mulher negra em relação aos outros grupos raciais. Dito de outra forma, ela busca discutir as maneiras em que o lugar das mulheres negras na intersecção entre raça, classe e gênero faz com que nossas experiências de encarceramento ou de violência sejam qualitativamente diferentes das experiências das mulheres brancas. Partindo deste ponto de vista, seria preciso analisar como ambas as políticas feministas e antirracistas têm paradoxalmente - e com frequência - ajudado a marginalizar a questão da violência contra as mulheres negras, seja ignorando sua participação majoritária na condição de vítimas dessa violência, seja desconsiderando o feminicídio como aspecto do genocídio contra elas. No caso do encarceramento, uma análise de como a feminização da pobreza e a guerra às drogas afetam de forma desigual mulheres negras em relação aos demais grupos raciais é a resistência dos movimentos que buscam discutir uma nova política de drogas em considerá-las protagonista desse debate.

Por fim, uma análise do que pode ser denominado “intersecção representacional”, ou seja, as formas como são produzidos os estereótipos das mulheres negras como criminosas ou como passíveis de serem violentadas, através de uma confluência de narrativas predominantes de raça e gênero, bem como o reconhecimento de como as críticas contemporâneas de uma representação racista e sexista marginalizam mulheres não-brancas.

Defendo que a interseccionalidade é uma ferramenta conceitual, que visa (a) combater apagamentos teóricos e possui (b) uma agenda que tenta constantemente relacionar aspectos aparentemente não relacionados de um determinado domínio de investigação. Nesse sentido, é uma epistemologia do aparecimento. ( iv) Torna a mulher negra visível não apenas enquanto corpo ausente do mundo social - seja pelo cárcere, seja pela morte -, mas também como sujeito de produção de saber, de explicação de um fenômeno e protagonista na produção de soluções acerca desse fenômeno

5. Considerações finais 

Ao compartilhar as inquietações que me tomam ao presenciar essa contagem e a exposição desses dados desacompanhada de qualquer análise que tenha gênero e raça como elementos principais de explicação do sistema de justiça; bem como não utilizam mulheres negras como intérpretes desse sistema, objetivei estimular a formação de uma agenda teórica e política, que permita visibilizar as mulheres negras seja pela utilização do método interseccional, desenhando dentro do feminismo negro, seja pela utilização das mulheres negras como produtoras de saberes e soluções para essa realidade.

Já há um corpo teórico, produzido por homens e mulheres negras - alguns deles citados aqui -, que são capazes de articular os eixos de poder e dominação que afastam ou aproximam um dado sujeito do sistema de justiça criminal e de fornecer interpretações, assim como soluções acerca desse sistema. Essa visibilidade da mulher negra, de suas experiências, seus saberes e experiências é passo essencial para uma produção de um conhecimento antirracista.

Ressalto que não defendo a interseccionalidade como a única teoria possível de explicar a realidade de múltiplas opressões, nem mesmo como uma explicação acerca de identidade. Minha defesa é que a interseccionalidade seja utilizada como esquema teórico, que possibilite considerar múltiplos terrenos identitários e eixos de poder ao analisarmos um determinado fenômeno social e a forma como o mundo social é construído. Ademais, permite que sejam pensadas soluções em campos distintos, político e teóricos. Por fim, ela confere às mulheres negras, criadoras desse esquema teórico, a primazia na construção de soluções políticas e teóricas das realidades que as afetam.



Referências


BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019.

CRENSHAW, Kimberle. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, Standford, p. 1241-1299, jul. 1991.

CURIEL, Ochy Curiel. Construyendo metodologías feministas desde el feminismo decolonial. In: Otras formas de (re)conocer. Reflexiones, herramientas y aplicaciones desde la investigación feminista. Organizadoras: Irantzu Mendia Azkue, Marta Luxán, Matxalen Legarreta, Gloria Guzmán, Iker Zirion, Jokin Azpiazu Carballo, 2014

Dotson, Kristie, On Epistemologies of Disappearing: On How Not to Critique the Intersectionality from “Mapping. 2019 No prelo.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro.Corpo negro caído no chão: sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. 2006. 145 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da UnB, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J. M.; MEYER, D.E.; WALDOW, V.R. (Orgs.) Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, B.H. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

REIS, Vilma. Atucaiados pelo Estado: as políticas de segurança pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações de 1991 a 2001. 2005. 247 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.

ROMIO, Jackeline Aparecida Ferreira. Feminicídios no Brasil, uma proposta de análise com dados do setor de saúde. 2017. 

WAISELFISZ, Julio Jacob. Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil. 1ª ed. Brasília: Flacso, 2015.


Notas de rodapé

i() De acordo com o Infopen Mulheres, a informação sobre a raça, cor ou etnia da população prisional feminina estava disponível para 29.584 mulheres (ou 72% da população prisional feminina). O número é calculado a partir da análise da amostra de mulheres sobre as quais foi possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia.

ii() Para fins de comparação, entre os presos do sexo masculino, o crime de maior incidência é tráfico de drogas, correspondendo, entretanto, a 28% dos detentos. Em 2005, antes da reforma da lei de drogas, 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. O perfil racial se mantém o mesmo: 64% são negros.

iii() Pode-se dizer que sexo está relacionado às distinções anatômicas e biológicas entre feminino e masculino. Gênero é o termo utilizado para designar a construção social do sexo biológico. Cada cultura possui um sistema de gênero, isto é, um sistema simbólico ou de significações, que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais, estando interligado a fatores sociopolíticos e econômicos. Tal estrutura e sua dinâmica são determinantes na organização da desigualdade dentro das diferentes sociedades. (Kergoat,1996; Lauretis, 1994)

iv() Esse termo é utilizado por mim, a partir de uma interpretação pessoal e livre do texto de Dotson, que foi compartilhado comigo diretamente pela autora em uma classe sobre Intersecccionalidade , no ano de 2019 , na Universidade da California , onde ela foi uma das palestrantes , intitulado “On Epistemologies of Disappearing: On How Not to Critique the Intersectionality from “Mapping”. Como a ideia me surgiu da leitura e dos diálogos com ela, cito-a no texto e nas referências, mas não há informações completas sobre a publicação. De modo geral, a autora crítica as epistemologias do desaparecimento, que abrem mão de uma visão interseccional apenas para fazer a mulher negra “desaparecer” do campo de análise. Nesse sentido, denominei a interseccionalidade como uma das epistemologias do “aparecimento”.

Lei de abuso de poder ou de proteção da autoridade?

Juarez Cirino dos Santos

Professor de Direito Penal da UFPR.

Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal - ICPC. Advogado.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5135-523X

juarezcirinodossantos@gmail.com

Autor convidado

Resumo: O artigo discute os conceitos de função e de poder para definir o abuso de autoridade contra o cidadão. Mais: a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e de provas pela autoridade exclui o injusto de modo mais radical que o erro de proibição ou de tipo, que dependem da natureza evitável/inevitável do erro. Assim, é possível dizer que o legislador criminalizou com uma mão, mas descriminalizou com a outra, criando um estranho direito penal do amigo.

Palavras-chave: Direito penal, Lei de abuso de poder, Poder

(Publicado originalmente no Boletim nº 328 - março de 2020)

Data: 17/04/2020
Autor: Juarez Cirino dos Santos


1. Os conceitos de poder e de função

As disposições gerais da lei de abuso de autoridade contêm normas incomuns, que atribuem uma natureza sui generis à criminalização e reclamam uma análise sistemática prévia. Este estudo tem por objeto essa parte geral da lei de abuso de autoridade, que exclui a configuração dos tipos de injusto definidos.

1.1.      Os crimes de abuso de autoridade descrevem situações de abuso do poder realizadas por agente público (servidor ou não) no exercício das funções ou a pretexto de exercer tais funções.([i]) Logo, se o crime é definido como abuso do poder no exercício de funções, é necessário esclarecer o conceito de função e, depois, o conceito de abuso do poder no exercício da função - uma pesquisa que precede a análise dos novos tipos de crimes de abuso de autoridade instituídos, cuja aplicação pressupõe esses conceitos.

1.2.      O conceito de função em sociologia é definido como a relação da parte (órgão) com o todo (organismo), enquanto o órgão é o mecanismo equipado para o exercício de funções;([ii]) a função, contudo, em órgãos da administração pública, define os papéis específicos do cargo e, por isso, costuma-se falar das funções do cargo.

1.3. O conceito de poder - talvez a grande questão política da atualidade - parece transcender os limites do Direito, assim como as relações econômicas (manutenção das relações de produção): do ponto de vista político, único capaz de compreender o conceito, segundo FOUCAULT,([iii]) o poder é uma relação de força que existe, essencialmente, como o que reprime - e, por isso, é útil para garantir as relações de produção econômicas -, em especial, através do Direito. Mais: se o poder político nas sociedades capitalistas representa o poder do capital, então as relações de poder são as relações do capital na esfera política das relações sociais. Nesse contexto, a lei trata do abuso do poder político praticado por funcionário público no exercício irregular das funções do cargo, que ultrapassa os limites legais da relação de força do poder político da autoridade pública, em face do cidadão.


2. Elementos subjetivos especiais dos tipos de injusto

A lei introduz elementos subjetivos especiais necessários para caracterizar o injusto do fato: a) intenções especiais consistentes na finalidade (i) de prejudicar outrem, ou (ii) de beneficiar a si mesmo ou a terceiro; b) estados psíquicos de mero capricho ou de satisfação pessoal, como motivos determinantes do injusto do fato.([iv])

Esses elementos subjetivos especiais ou estados psíquicos especiais do tipo de injusto (antes definidos como dolo específico) são essenciais para configurar todo e qualquer crime definido como abuso de autoridade - e, assim, a sua existência subjetiva deve ser demonstrada em cada crime de abuso de autoridade, ao lado do dolo como elemento subjetivo geral, responsável pela produção da ação típica. Mas existem diferenças que distinguem as várias situações psíquicas indicadas na lei.

2.1. Primeiro, a finalidade específica de prejudicar outrem, ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro, pode consistir em situações objetivas de natureza econômica, política, social, pessoal ou outras, que devem existir como intenções especiais no psiquismo do agente, mas que não precisam se realizar no mundo real. Assim, conforme a teoria do crime, a existência dessas intenções especiais nos processos psíquicos do agente é suficiente para a consumação formal do crime, enquanto a realização dessas finalidades no mundo exterior representa a consumação material do fato, importante para medida da pena, assim como para efeito de participação.([v])

2.2. Segundo, o mero capricho ou satisfação pessoal são estados psíquicos ou tendências psíquicas especiais definíveis como motivos do agente, de natureza emocional ou afetiva, cuja existência real também se exaure no âmbito da subjetividade do autor, igualmente sem necessidade de realização no mundo exterior: o prazer sádico, o sentimento de vingança, o desejo de humilhação, a exposição ao ridículo e outras situações psíquicas emocionais ou afetivas, definíveis como capricho ou satisfação pessoal, devem existir como a força impulsiva da ação, independente de sua realização no mundo real.([vi])


3. A divergência de interpretação da lei e de avaliação do fato e da prova como exclusão do injusto.

A lei de abuso de autoridade instituiu novas modalidades de exclusão do injusto, representadas por duas hipóteses inéditas de divergência, também aplicáveis a todos os tipos de crimes: a) a divergência na interpretação de lei; e b) a divergência na avaliação de fatos e de provas.([vii]) Para definir divergência na interpretação de lei e na avaliação de fatos e de provas parece necessário examinar o significado de interpretar a lei e de avaliar fatos ou provas no processo penal - ou seja, é preciso esclarecer o conteúdo da divergência.

3.1. Divergências na interpretação de lei.

3.1.1. Técnicas de interpretação. Interpretar uma lei representa o ato psíquico de apreender o significado da norma, mediante aplicação das técnicas de interpretação. A interpretação da lei, como processo intelectual de conhecimento da norma, tem por objeto a linguagem escrita da lei, que pode ser abordada de três pontos de vista: a abordagem semântica, que define o significado isolado das palavras da lei; a abordagem sintática, que define o significado conjunto das palavras na oração da lei; e a abordagem pragmática, que define a adequação do significado teórico da lei à situação prática.([viii])

Como se vê, a interpretação de lei é um processo intelectual complexo, informado por múltiplas variáveis: por um lado, o objeto das divergências pode abranger todos os níveis de interpretação científica referidos - os níveis semântico, sintático e pragmático de interpretação; por outro lado, a natureza das divergências de abordagem científica é condicionada por fatores objetivos (a posição de classe ou o status social do intérprete na sociedade) e por fatores subjetivos (a ideologia ou as idiossincrasias pessoais do sujeito), que estão na base da Weltanschauung de cada um.

3.1.2. Divergência na interpretação de lei e erro de proibição. Antes de tudo, é importante verificar a relação entre (i) divergência na interpretação de lei, como construção psíquica capaz de excluir o abuso de autoridade, e (ii) erro de proibição, como construção psíquica capaz de excluir/reduzir o juízo de culpabilidade. Como se sabe, o erro de proibição,([ix]) disciplinado no CP conforme a teoria limitada da culpabilidade, existe em três modalidades principais: a) erro de proibição direto, incidente sobre a existência, a validade e o significado da lei penal, em que o erro inevitável exclui e o erro evitável reduz a culpabilidade dolosa; b) erro de proibição indireto (ou erro de permissão), incidente sobre justificação inexistente ou sobre limites jurídicos de justificação existente, com idênticos efeitos determinados pela natureza do erro; e c) erro de tipo permissivo, como representação errônea sobre a existência real da situação justificante, em que a natureza do erro produz efeitos diferentes: o erro evitável exclui o dolo e o erro inevitável exclui o tipo de injusto.([x])

Em princípio, todas as modalidades de erro de proibição constituem formas concretas de interpretações divergentes da lei, de modo que as situações definidas como objetos do erro de proibição também podem constituir objetos de interpretações divergentes da lei, conforme a lei de abuso de autoridade. O verbo transitivo direto interpretar significa, segundo HOUAISS, “determinar o significado preciso de texto, lei etc.”. Logo, as hipóteses de erro de proibição são construções psíquicas pessoais, que configuram interpretações divergentes da interpretação oficial da lei, produzida pela literatura e pela jurisprudência dominantes, cuja relevância depende da natureza evitável/inevitável do erro.

3.1.3. Semelhanças e diferenças dos processos psíquicos. Do ponto de vista dos processos psíquicos, as situações de divergência na interpretação de lei parecem semelhantes às hipóteses de erro de proibição: a) no erro de proibição, o sujeito interpreta o fato como lícito, porque desconhece a proibição da lei; e b) na divergência de interpretação, o sujeito interpreta o fato como lícito, mas está em erro de proibição. A diferença entre as situações de erro de proibição e de divergência na interpretação de lei aparece nas consequências jurídicas: a) o erro de proibição reduz ou exclui a reprovação conforme a natureza do erro (evitável ou inevitável); b) a divergência na interpretação de lei exclui o injusto do fato, independente da natureza dos processos psíquicos subjacentes. Nesse sentido, os efeitos da divergência na interpretação de lei são mais radicais do que os efeitos do erro de proibição: toda divergência na interpretação de lei exclui o tipo de injusto, mas nem todo erro de proibição exclui a culpabilidade do fato.

Assim, é possível dizer: na criminalidade comum, divergências na interpretação de lei são hipóteses de erro de proibição dependentes da natureza do erro; na criminalidade de abuso de poder, o erro de proibição constitui hipótese de divergência na interpretação de lei, que não depende da natureza do erro. E, nos inevitáveis conflitos entre as situações de exclusão do injusto e as situações de exclusão da culpabilidade, prevalece a hipótese mais favorável: a divergência de interpretação da lei, que exclui o tipo de injusto - e, de fato, cancela o erro de proibição.

3.1.4. Indeterminação e inversão do princípio in dubio pro reo. Aqui aparece outro problema: a lei delimita o objeto da divergência, mas não determina a natureza ou a extensão da divergência sobre o objeto. Logo, introduz uma área nebulosa, cujas inevitáveis dúvidas deverão ser resolvidas pelo princípio in dubio pro reo - uma solução normal no processo penal. Mas, no caso específico, o princípio tradicional sofre uma inversão política: em lugar de proteger o réu oprimido pela autoridade, protege a autoridade que oprime o réu, por abuso de poder. 

3.1.5. Amplitude das hipóteses de divergência de interpretação da lei. Como se pode observar, o problema subsistente é a amplitude ilimitada das hipóteses de divergência na interpretação de lei e, portanto, a extensão ilimitada das situações de exclusão do injusto dos crimes de abuso de autoridade. Assim, se o fenômeno psíquico definido como divergência na interpretação de lei impede a configuração do abuso de autoridade, então qualquer divergência de compreensão da lei, como construção psíquica de interpretação pessoal, é suficiente para excluir o injusto do fato, independente do fundamento jurídico e da consistência do argumento divergente. Enfim, a situação instituída pela nova lei parece mais ou menos assim: uma mão do legislador criminalizou várias hipóteses de abuso de autoridade, mas a outra mão do legislador descriminalizou as mesmas hipóteses de abuso de autoridade, mediante simples divergência na interpretação de lei pela autoridade pública.

3.2. Divergências na avaliação de fatos

A percepção sensorial de acontecimentos do mundo exterior condiciona a avaliação de fatos e as inevitáveis divergências na avaliação desses fatos. O conhecimento de fatos do mundo da vida somente é possível pelos sentidos humanos, cujo funcionamento diferenciado determina divergências de percepção e, portanto, diferenças de (re)construção psíquica desses fatos. A avaliação de fatos, como outro momento de construção psíquica, estimula emoções envolvidas na percepção e aciona valores despertados pela percepção, na dinâmica intelectual e emocional dos acontecimentos humanos. Como se vê, são muitas as fontes de divergência dos processos psíquicos na avaliação de fatos que podem impedir a configuração dos crimes de abuso de autoridade.

3.2.1. Avaliação de fatos e erro de tipo. Aqui também é importante verificar a relação entre (i) avaliação de fatos, como construção psíquica capaz de excluir o abuso de autoridade, e (ii) erro de tipo, como construção psíquica excludente do dolo. O verbo transitivo direto avaliar significa, segundo HOUAISS, “ter ideia de, conjeturar sobre ou determinar a qualidade, a extensão, a intensidade de”; e em sentido figurado, significa “apreciar o mérito, o valor de, estimar” - no caso, fatos ou provas de fato.  Como se sabe, o erro de tipo é um defeito intelectual na formação do dolo, sob as formas de conhecimento falso ou de conhecimento inexistente de elemento constitutivo do tipo legal, que exclui o injusto, se inevitável, mas exclui apenas o dolo, se evitável.([xi])

3.2.2. Semelhanças e diferenças dos processos psíquicos. Do ponto de vista dos processos psíquicos correspondentes, também pode-se dizer o seguinte: a) por um lado, a divergência na avaliação de fatos tem semelhança com as situações de erro de tipo: avaliar um fato significa valorar a sua natureza real de acontecimento do mundo da vida; b) por outro lado, a divergência na avaliação de fatos tem diferenças com as situações de erro de tipo: as hipóteses de divergência na avaliação de fatos excluem o injusto do fato, independente da natureza da divergência. Nesse sentido, também os efeitos da divergência na avaliação de fatos são mais radicais do que os efeitos do erro de tipo: toda divergência na avaliação de fatos exclui o tipo de injusto, mas somente o erro de tipo inevitável exclui o injusto, enquanto o erro de tipo evitável exclui apenas o dolo. Ou, de outro modo: na criminalidade comum, divergência na avaliação de fatos constitui hipótese de erro de tipo, dependente da natureza do erro; na criminalidade de abuso de poder, o erro de tipo constitui hipótese de divergência na avaliação de fatos, independente da natureza da divergência. Mais uma vez, nos inevitáveis conflitos entre as situações de exclusão do dolo e as situações de exclusão do injusto, prevalece a hipótese mais benéfica: a divergência na avaliação de fatos, que exclui o tipo de injusto e, na prática, anula o erro de tipo.

3.2.3.   Nova inversão do princípio in dubio pro reo. Mais uma vez, a lei delimita o objeto da divergência, mas não determina a natureza ou a extensão da divergência sobre o objeto. Logo, introduz a mesma área nebulosa, cujas dúvidas são regidas pelo princípio in dubio pro reo, normal no processo penal. E, novamente, com igual inversão política: em lugar de proteger o réu oprimido pela autoridade, o princípio protege a autoridade que oprime o réu, por abuso de poder.

3.3.      Divergências na avaliação de provas

3.3.1. A interpretação de lei ou a avaliação de fatos definem acontecimentos psicológicos característicos do direito penal, capazes de determinar ou de influenciar o tipo de injusto ou a culpabilidade do fato imputado. Mas a avaliação de provas, como demonstração de fatos portadores de tipicidade aparente para verificar se constituem tipos de injusto, ou como demonstração da relação de autoria do fato, define procedimentos de cognição característicos do processo penal, capazes de fundamentar juízos de condenação ou de absolvição do autor.

3.3.2.   A prova jurídica, como conhecimento de fatos do processo, pode ser abordada segundo dois modelos principais: o modelo argumentativo e o modelo narrativo. O modelo argumentativo se baseia no confronto dos argumentos inferidos dos meios de prova, com a enumeração dos fatos provados e a formação da convicção pela força dos argumentos inferidos dos meios de prova. O modelo narrativo se baseia na aproximação global do caso mediante cenários explicativos, com a escolha da melhor narrativa conforme a coerência interna, determinada pelos atributos (i) de consistência (ausência de contradições), (ii) de plausibilidade (conforme regras da experiência) e (iii) de completude (ausência de lacunas).([xii])

Divergências na avaliação de provas podem resultar dos diferentes critérios desses modelos - e, também, do modelo híbrido, como combinação dos aspectos positivos dos modelos originários -, conforme a preferência pessoal pelo melhor argumento ou pela melhor narrativa. Logo, as possibilidades de divergência na avaliação de provas parecem igualmente ilimitadas e, portanto, as hipóteses de exclusão do injusto por divergência na avalição de provas são incontroláveis.  


4. Silogismo, a lógica de interpretação da lei e de avaliação do fato

4.1.      O silogismo jurídico é a lógica da decisão judicial, que consiste no processo psíquico de interpretação da lei (premissa maior) e de avaliação do fato (premissa menor) como premissas da conclusão do raciocínio: se o fato, segundo a prova (dados do ser), corresponde à lei (regra de dever ser), a sanção legal é aplicada.([xiii]) Nessa relação, a verdade da conclusão depende da verdade das premissas: se as premissas são verdadeiras - e se a conclusão está implícita nas premissas -, então a conclusão é verdadeira.([xiv]) O silogismo é um processo psíquico em que a convergência da interpretação da lei e da avaliação do fato se exprime em uma conclusão lógica, impossível em divergências na interpretação de lei ou na avaliação de fatos ou de provas. 

4.2. A lógica do silogismo jurídico, como lógica da subsunção jurídica, pode apresentar problemas relacionados com a subjetividade do intérprete, consistentes em duas espécies de erros, incidentes sobre objetos diferentes: a) o erro de interpretação da lei, determinado por falhas ou defeitos de conhecimento científico do Direito; e b) o erro de percepção do fato, determinado por falhas ou defeitos de representação psíquica de acontecimentos reais - o silogismo regressivo([xv]) na literatura.

A abordagem fenomenológica da Criminologia explica deformações na representação psíquica da realidade objetiva por mecanismos inconscientes denominados metarregras (ou basic rules), definidos como fenômenos psíquicos emocionais determinantes do significado concreto da aplicação do direito, especialmente relevantes em erros de percepção e de avaliação  dos fatos e das provas em processos criminais, originários de preconceitos, estereótipos, traumas, distorções ideológicas e idiossincrasias pessoais, em geral, decisivos do processo de criminalização.([xvi]) A avaliação de fatos e de provas dos fatos não pode ignorar as distorções emocionais dos acontecimentos reais produzidos por metarregras, a principal fonte de deformações psíquicas na reconstrução de fatos sociais - e, portanto, de divergências na avaliação de fatos e de provas.


5. Conclusões

1. A finalidade de prejudicar outrem, ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro, como intenção especial que deve existir no psiquismo do agente, mas não precisa se realizar no mundo real, é essencial para configurar o abuso de autoridade. Entretanto, a óbvia dificuldade de comprovar esse elemento psíquico tende a excluir a dimensão subjetiva do fato e, portanto, a excluir o próprio tipo de injusto do crime de abuso de autoridade.

2. Os estados psíquicos de capricho ou de satisfação pessoal, como motivos de natureza emocional ou afetiva, que também devem existir no psiquismo do agente mas não precisam se realizar no mundo real, igualmente são essenciais para configurar o abuso de autoridade, mas a mesma dificuldade de comprovação desse componente psicológico tende a excluir a dimensão subjetiva do fato e, assim, o tipo de injusto respectivo.

3. A divergência na interpretação de lei é um evento psíquico capaz de impedir a configuração do tipo de injusto, independente do fundamento jurídico ou da consistência do argumento divergente, permitindo concluir que o legislador criminalizou com uma mão e descriminalizou com a outra mão, atribuindo à divergência na interpretação de lei efeitos mais radicais do que ao erro de proibição, porque toda divergência de interpretação da lei exclui o tipo de injusto, mas nem todo erro de proibição exclui a culpabilidade do fato.

4. Nos conflitos entre situações de divergência na interpretação de lei e situações de erro de proibição deve prevalecer a hipótese mais favorável, definida pela divergência de interpretação da lei, que exclui o tipo de injusto e, de fato, cancela o erro de proibição.

5.  A divergência na avaliação de fatos, estimulada pelas emoções envolvidas na percepção e pelos valores acionados pela percepção, também pode impedir a configuração do tipo de injusto, sendo possível concluir que os efeitos da divergência na avaliação de fatos são mais radicais do que os efeitos do erro de tipo, porque toda divergência na avaliação de fatos exclui o tipo de injusto, mas somente o erro de tipo inevitável exclui o injusto do fato.

6. Também os conflitos entre a divergência na avaliação de fatos e situações de erro de tipo devem ser resolvidos pela hipótese mais benéfica: a divergência na avaliação do fato, que exclui o tipo de injusto e, na prática, anula o erro de tipo.

7. A divergência na avaliação de provas, como procedimento de cognição de fatos portadores de tipicidade aparente ou da relação de autoria do fato, segundo os modelos argumentativo ou narrativo da lógica processual, parece igualmente ilimitada em face da metodologia desses modelos e, portanto, as hipóteses de exclusão do injusto ou da autoria do fato nos crimes de abuso de autoridade, por divergência na avaliação de provas, também tendem a ser incontroláveis.  

8.  O silogismo jurídico, como processo psíquico de subsunção da premissa menor do fato na premissa maior da lei, é afetado pelos mecanismos emocionais das metarregras, que ativam preconceitos, estereótipos, traumas, distorções ideológicas e idiossincrasias pessoais, que intensificam as divergências na interpretação de lei e, de modo especial, as divergências na avaliação de fatos e de provas, fazendo delirar a lógica formal dos crimes de abuso de autoridade.

9. Na perspectiva das relações de poder político das sociedades neoliberais contemporâneas, os crimes de abuso de autoridade parecem constituir formas ilusórias de criminalização dos agentes do poder estatal, porque os princípios jurídicos aplicáveis são mecanismos de proteção da autoridade pública, formando um estranho direito penal do amigo.

10. O uso democrático do Direito Penal para conter os abusos de poder na repressão da população oprimida não está em contradição com a proposta crítica de redução do sistema penal - que garante a desigualdade das sociedades desiguais -, mas é preciso reconhecer: não há motivo de júbilo quanto à eficácia da lei para conter ou reduzir os abusos de poder da autoridade estatal.


Notas de rodapé

i() “Art. 1º. Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.” BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.

ii() Ver SANTOS, J. C. dos. A Criminologia da repressão: crítica à criminologia positivista.2. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 87.

iii() Ver FOUCAULT, M. Il faut déféndre la societé. Paris: Hautes Etudes, Gallimard/Seuil, 1977. p. 3-19.

iv() “Art. 1º, §1º. As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.” BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.

v()SANTOS, J. C. dos. Direito Penal - parte geral. 8. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 167-170.

vi() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 168.

vii() “Art. 1º, § 2º.  A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.

viii() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 59-60.

ix()Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. BRASIL. Código Penal. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

x() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 335.

xi() “Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”BRASIL. Código Penal. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

xii() Ver SOUZA MENDES, P. A incerteza virtual e a prova no processo penal. In: SANTOS, M. S.. Liber Amicorum, Lisboa: Rei dos livros, 2016.

xiii() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 67-68.

xiv() SUSAN STEBBING, A modern elementary logic. Londres: University Paperbacks, 1957. p. 159.

xv() BERGEL, Methodologie juridique, 2001, p. 147, apud DIMOULIS, Manual de Introdução ao estudo do direito, 2003, p. 93.

xvi() Ver SANTOS, J. C. dos. Direito Penal..., op. cit., p. 66-67.

Privatização das prisões: direções opostas na penalidade neoliberal

Patrick Cacicedo

Doutor e mestre em Direito Penal pela USP.

Defensor Público do Estado de São Paulo.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5623-8224

patrickcacicedo@gmail.com


Resumo: O artigo analisa os movimentos contemporâneos da política de privatização das prisões no Brasil e Estados Unidos, especialmente representados pelos Estados de São Paulo e da Califórnia, que caminham em direções opostas quanto à adoção da medida: São Paulo empreende os primeiros passos para a implementação, enquanto a Califórnia encerra sua política de privatização prisional.

Palavras-chave: Privatização de presídios. Neoliberalismo. Encarceramento em massa. Política criminal. Prisões.

Abstract: The article analyzes the contemporary movements of the prisons privatization policy in Brazil and the United States, especially represented by the states of São Paulo and California, which go in opposite directions regarding the adoption of the measure: São Paulo undertakes the first steps for the implementation, while California terminates its prison privatization policy.

Keywords: Prison privatization. Neoliberalism. Mass incarceration. Criminal policy. Prisons.

(Publicado originalmente no Boletim nº 327 - fevereiro de 2020)

Data: 17/04/2020
Autor: Patrick Cacicedo


Uma das questões de destaque na penalidade neoliberal, a privatização das prisões, segue na ordem do dia. Em setembro de 2019, em um intervalo de apenas cinco dias, duas medidas foram tomadas em Estados centrais no grande encarceramento de seus respectivos países: no dia 6, São Paulo iniciou seu processo de privatização de presídios, com o lançamento de edital para construção de quatro unidades prisionais; no dia 11, a Califórnia aprovou uma lei que encerra a privatização das suas prisões, sancionada pelo governador um mês depois, em 11 de outubro de 2019.

Estado com a maior população dos Estados Unidos da América, a Califórnia tem a segunda maior população prisional do país, com 202.700 presos, cerca de 15.000 a menos que o Texas.([i]) Os dois Estados economicamente mais importantes também foram as locomotivas do encarceramento em massa estadunidense, que hoje conta com a maior população prisional do mundo: mais de 2 milhões de pessoas encarceradas.

O avanço do controle social punitivo nos Estados Unidos da América não só coincidiu com a implantação do neoliberalismo, como foi parte constitutiva da política criminal desse modelo socioeconômico de Estado. À redução das prestações estatais no campo das políticas sociais, correspondeu uma ampliação do seu braço punitivo, materializada em um vasto processo de gestão da pobreza([ii]) com nítido corte racial.([iii])  Dentre as diversas dores do encarceramento em massa,([iv]) destacou-se a toda evidência a superlotação dos presídios e a piora das condições do aprisionamento.

Na lógica da penalidade neoliberal, era de se esperar como resposta ao problema posto, a proposição de uma política de retração de gastos públicos: diante da superlotação dos presídios e das mazelas que dele decorrem, em 1983, foram iniciadas as obras da primeira prisão privada dos Estados Unidos, no Tennessee. Desde então, tal política penitenciária se espalhou pelo país e atualmente abriga 7,8% da população prisional norte-americana, totalizando 113.791 presos. Desde 2000, as prisões privadas cresceram 39,3%, chegando a 479% no Arizona,([v]) mas tal expansão não se deu sem a devida crítica em relação aos seus resultados político criminais.

Com efeito, para além da privatização de uma função essencialmente pública, os resultados esperados não só foram reversos aos propostos, como ultrapassaram os muros das prisões. Dos objetivos eleitos, o lucro das empresas foi de fato alcançado. Anunciado como uma “nova fronteira” de investimentos em Wall Street no final dos anos 1980, em meados da década seguinte a Corrections Corporartion of America estava entre as cinco empresas mais lucrativas do país.([vi]) Todavia, como política penitenciária, o modelo privado não tardou a entrar em crise.

Se de início implementou-se uma ou outra unidade prisional “modelo” para servir de plataforma política do populismo penal da vez, a consolidação da política trouxe consequências desastrosas. É possível destacar dois aspectos, que foram especialmente influenciados pelo anseio lucrativo. De um lado, as prisões privadas foram submetidas a um regime de austeridade carcerária para redução dos custos de funcionamento, seja pela transferência de despesas do encarceramento aos familiares e aos próprios presos, seja pelo corte de toda sorte de direitos da população prisional, notadamente aqueles de cunho prestacional.([vii]) O rebaixamento das condições de vida nas prisões foi o modus operandi da gestão privada penitenciária, que moldou suas práticas na anulação dos direitos mais básicos da população carcerária. A consequência concreta do apelo ao setor privado foi a expressiva deterioração das condições materiais de aprisionamento, a tal ponto de estarem as prisões privadas entre as piores dos Estados Unidos.

Por outro lado, a conversão da pessoa presa em mercadoria insere o sistema de justiça criminal na dinâmica do mercado, de modo que os interesses privados passam a influenciar de maneira mais decisiva e direta a seara da política criminal. Aos empresários do ramo interessa um progressivo endurecimento penal, a fim de que sua fonte de lucro não falte. No plano concreto, as empresas do ramo passaram a exercer um lobby concreto por leis penais mais duras, que representassem um número ainda maior de presos e o cumprimento de penas mais longas. Movimento semelhante foi realizado no campo do controle de imigrantes, já que essas empresas também se dedicam ao mercado dos centros de controle de imigrantes.([viii])

Apontada como solução para os problemas que decorreram do processo de encarceramento em massa estadunidense, a privatização das prisões não só proporcionou um rebaixamento das condições de vida no cárcere, como fomentou o mesmo movimento que a inaugurou como política penitenciária: de remédio, passou a combustível do grande encarceramento.

Questão quase invisível ao grande público nos Estados Unidos da América até cerca de quinze anos atrás, o encarceramento em massa passou a ser debatido publicamente diante dos seus índices extraordinários e das suas consequências sociais cada vez mais danosas.([ix]) Tema constante no debate político e eleitoral, motor de mobilizações sociais – notadamente do movimento negro -, e pauta midiática de relevo, o aprisionamento massivo tem sido avaliado não só no campo acadêmico, no qual tem vasta produção teórica.

Na esfera judicial igualmente resvalaram algumas de suas consequências. É paradigmática, nesse sentido, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que, em 2011, no caso Brown v. Plata, determinou que o Estado da Califórnia reduzisse sua população prisional ao limite de 137,5% da sua capacidade oficial como forma de remediar a violação de direitos constitucionais decorrentes da superlotação.([x]) A Califórnia, com efeito, é o centro das discussões sobre o encarceramento em massa nos Estados Unidos da América, em seu “papel tradicional de farol e bússola que apontam a direção a seguir pelo resto do país.”([xi])

A avaliação negativa sobre os efeitos do encarceramento em massa identificou o nefasto papel das prisões privadas nas dinâmicas da política criminal e penitenciária. Na esteira desse movimento, foi aprovada na Califórnia a lei AB32, que alterou o Código Penal local para proibir, a partir de 1º de janeiro de 2020, a celebração de novo contrato – ou a renovação de contrato existente – do Departamento Penitenciário com prisão privada com fins lucrativos. A lei, que engloba os centros de detenção de imigrantes, excepciona apenas a renovação desse tipo de contrato em razão de decisão judicial sobre limite de população prisional. A lei impõe ainda, que após 1º de janeiro de 2028 nenhuma pessoa deve estar presa em estabelecimento privado.([xii])

Não se trata de medida isolada. Em maio de 2019, o Estado de Nevada aprovou lei em semelhante sentido – AB183 -, cuja proibição valerá a partir de 1º de julho de 2022.([xiii]) No mês seguinte, o Estado do Illinois também aprovou lei sobre a matéria, a HB2040, na qual ficou expresso que “a administração e operação de qualquer estabelecimento de detenção envolve funções, que são inerentemente governamentais” e que “a detenção requer o exercício de ações coercitivas, poderes policiais sobre indivíduos, que não devem ser delegados a setor privado”, sendo “diferente da privatização em outras áreas do governo.”([xiv]) Por sua vez, o Senado de Nova York aprovou a S433A, que proíbe as instituições bancárias estatais de investirem e fornecerem financiamento para prisões privadas. O projeto ainda carece de aprovação da outra Casa Legislativa e do Governador do Estado.([xv])

No laboratório das experiências do encarceramento em massa, a avaliação é de fracasso das prisões privadas, o que motivou um verdadeiro movimento - com medidas concretas - para o banimento de tal política penitenciária. Se referido movimento por si só não é capaz de reverter o grande encarceramento estadunidense, ao menos contraria a lógica de sua promoção.

Na contramão da experiência norte-americana, que paradoxalmente é utilizada discursivamente como exemplo, a adoção das prisões privadas avança no Brasil. Na curta experiência brasileira de privatização prisional, o país inteiro testemunhou verdadeiros massacres no Complexo de Pedrinhas, no Maranhão, em 2013, e em Manaus, em 2017 e 2019.

No último mês de setembro, a “locomotiva” do encarceramento em massa brasileiro construiu os primeiros trilhos de uma ferrovia que se destina ao desastre. Com mais de um terço da população prisional brasileira, São Paulo pretende alimentar uma política penitenciária que se mostrou na experiência estadunidense fracassada em todos os seus objetivos, salvo o de gerar lucro ao setor privado. Não bastassem a dor e sofrimento causados pelo aprisionamento massivo brasileiro, o fomento à privatização prisional não só intensifica tais efeitos, como o faz por meio da sua mercantilização. Em um dos países mais desiguais do mundo, o enriquecimento por meio de um mecanismo reprodutor de desigualdade, o aprisionamento, expõe os limites da irracionalidade punitiva. Nesse sentido, a partir da experiência norte americana, Donna Selman e Paul Leighton apontaram, que “as prisões privadas pegaram dinheiro dos ricos para construir prisões para prender cidadãos pobres e desproporcionalmente minoritários, dando aos ricos a oportunidade de ficarem mais ricos com os pobres que ficam presos.”([xvi])

A privatização das prisões é mais uma medida que se adota com algum atraso e escassa reflexão. O processo de encarceramento em massa estadunidense, que antecedeu o nosso, já proporcionava reflexões críticas, que foram ignoradas ao trilharmos semelhante caminho. Uma vez mais a experiência histórica nos revela, se não a estrada a percorrer, ao menos que um dos destinos nos levará ao fracasso. É o aviso do tempo presente. Ele está passando na janela, mas Carolina parece não querer ver.


Notas de rodapé

([i]) Dados de 2017 do Bureau of Justice Statistics. Disponível em:  <https://www.bjs.gov/index.cfm?tid =11&ty=tp.>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([ii]) Cf. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. ed. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2019; EDELMAN, Peter. Not a crime to be poor: the criminalization of poverty in America. New York: The New Press, 2017.

([iii]) Cf. ALEXANDER, Michelle. A nova segregação. Racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017; TONRY, Michael. Punishing race: a continuing American dilemma. Oxford: Oxford University Press, 2011; PAGER, Devah. Marked: Race, crime, and finding work in an era of mass incarceration. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.

([iv]) Cf. FLEURY-STEINER, Benjamin; LONGAZEL, Jamie. The pains of mass imprisonment. New York: Routledge, 2014.

([v]) Dados disponíveis em: <https://www.sentencingproject.org/publications/private-prisons-united-states/>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([vi]) WACQUANT, Loïc., op. cit., p. 286-287.

[vii] WACQUANT, Loïc., op. cit., p. 294-295.

[viii] Sobre a criminalização dos imigrantes, cf. GOTTSCHALK, Marie. Caught: the prison state and the lockdown of American politics. Princeton: Princeton University Press, 2015, p. 215 e ss.

[ix] Ibid, p. 1.

([x]) Para uma análise desse e outros casos, cf. SIMON, Jonathan. Mass incarceration on trial: a remarkable court decision and the future of prisons in America. New York: The New Press, 2014.

([xi]) WACQUANT, Loïc., op. cit., p. 268.

([xii]) Disponível em: <https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/billTextClient.xhtml?bill_id= 201920200AB32>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xiii]) Disponível em: <https://www.leg.state.nv.us/App/NELIS/REL/80th2019/Bill/6286/Overview>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xiv]) Disponível em: <http://www.ilga.gov/legislation/publicacts/fulltext.asp?Name=101-0020>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xv]) Disponível em: <https://www.nysenate.gov/legislation/bills/2019/s5433>. Acesso em: 07 dez. 2019.

([xvi]) SELMAN, Donna; LEIGHTON, Paul. Punishment for sale: private prisons, big business and incarceration binge. Mariland: Rowman & Littlefield Publishers, 2010, p. 4. Tradução livre.

Criminologia em pedaços: manifesto por uma aliança para a brasilidade

 Vera Regina Pereira de Andrade

Professora da Escola da Magistratura do Estado de Santa Catarina, Pesquisadora, Professora Titular de Criminologia da Universidade Federal de Santa Catarina; Pós-Doutora em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná (2010); Pós-Doutora em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de Buenos Aires (2003); Doutora (1994) em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre (1987); Especialista em Direito Processual pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1988); Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (1983). vrpandrade@hotmail.com


Resumo 1 Neste artigo desenvolvo uma reflexão sobre as relações entre Criminologia crítica e feminista no Brasil, apontando para as interações e acúmulos até aqui produzidos, vistos como necessários, mas insuficientes, assim como para as tensões e os separatismos que têm vertido a melhor Criminologia em pedaços. Desta forma, postulo um salto qualitativo nesse campo traduzido na construção de uma Criminologia para a brasilidade, alicerçada numa aliança que, recolhendo o contributo daquele acúmulo, na forma de uma interação criativa, se edifique a partir das estruturas fundacionais da nossa sociedade, tendo como vértice a sua História. A História como Mãe terra dessa Criminologia.

Palavras-chaves: Criminologia crítica – Feminismo – Criminologia feminista – Gênero – brasilidade

Abstract: In this article I develop a reflection on the relationships between critical and feminist Criminology in Brazil, pointing to the interactions and accumulations hither to produced, seen as necessary but insufficient, as well as to the tensions and separatisms that have spilled the best Criminology into pieces. In this way, I postulate a qualitative leap in this field translated into the construction of a Criminology for Brazilianness, based on an alliance that, collecting the contribution of that accumulation, in the form of a creative interaction, builds on the foundational structures of our society, having as vertex your History. History as Mother Earth of this Criminology.

Key words: Critical Criminology - Feminism - Feminist Criminology - Gender - Brazilianness 

(Publicado originalmente no Boletim nº 328 - março de 2020)

Data: 17/04/2020
Autor: Vera Regina Pereira de Andrade

A chegada do Feminismo (em sua diversidade de matrizes ou ondas 2 ) na Criminologia, com seu universo até então completamente prisioneiro do androcentrismo, tem produzido um impacto científico e político tão expressivo (sob a denominação de Criminologia feminista) quanto à mudança paradigmática decorrente da chegada do interacionismo simbólico e do marxismo que originaram a Criminologia crítica, da qual é contemporânea e com a qual passa a estabelecer um diálogo que, desde meados do século XX, 3 vem despertando grande interesse mas também grandes tensões com potencialidades, ora interativas e criativas, ora separatistas. E em torno dessa intersecção se erigiu, também no Brasil, intenso movimento legislativo de via dupla em relação às mulheres: descriminalizador (da intervenção penal em matéria de liberdade feminina de disposição sobre a vontade e o corpo, sobretudo quanto à outrora denominada “moral sexual”) versus criminalizador (intervenção penal, em especial, no campo da proteção da mulher contra violências); adensando o já complexo campo incide sobre ele, como uma metanarrativa, o campo da política criminal. É talvez neste que a tensão mais agudamente se tenha alojado.

Ambos os saberes têm produzido resultados de enorme importância que podem ser, salvo possíveis retificações, considerados irreversíveis.

Da Criminologia crítica deriva, lato sensu, uma teoria interacionista-materialista do desvio e da pena (controle social punitivo) nas sociedades capitalistas centrais e periféricas ou marginais, que vai de uma teoria da seletividade a uma teoria da desigualdade classista e do genocídio racista policial-militarizado na América Latina e no Brasil. O controle penal é revelado, através de sucessivas subteorias e conceitos, como uma página central da dominação imperialista e burguesa e seus resultados se traduzem na deslegitimação estrutural do sistema penal, à qual respondem movimentos abolicionistas-minimalistas de política-criminal.

Derivadas da Criminologia feminista resultam também sucessivas aproximações a uma teoria crítica do androcentrismo em criminologia e do controle social e punitivo em relação às mulheres na sociedade capitalista, perpassando pelas categorias patriarcado, sexo-gênero, colonialismo e colonialidade de gênero e enfim, pela intersecção entre gênero-classe-raça/etnia, que reforçam, analiticamente, a deslegitimação do sistema penal, mas culminam por relegitimá-lo politicamente ao demandar sua intervenção para criminalização da violência contra a mulher.

Ao indagarmos sobre uma possível zona de intersecção entre ambas as Criminologias, identificamos tanto posturas impermeáveis, marcadas pelo silêncio em relação ao outro campo, quanto posturas focadas nas “ausências” e “limites” do outro campo, que não raro assumem os contornos de uma disputa pelo poder de definição e produção de conhecimento, bem como, enfim, posturas focadas nas “potencialidades” e na incorporação de acúmulos recíprocos. Sob diferentes matrizes e adensamentos ambas as vias têm chegado a avanços que alargam a moldura analítica da criminologia crítica e/ou feminista, chegando inclusive à questão colonial, racial e interseccional. 4

No segundo sentido, criminólogos críticos são acusados de priorizar a classe e invisibilizar o gênero e a raça e de não compreenderem o sentido das demandas feministas, uma vez que acusam estas de punitivistas em sentido lato sensu, jogando-as na mesma vala das demais demandas da direita eficientista. As feministas esclarecem que, além de mera demanda “punitivista”, o sentido pleno que reivindicam é o da “nominação”, isto é, a necessidade de nominar, através da criminalização, as condutas que simbolizam violência contra as mulheres como violências de gênero e, por essa via, cumprir uma função simbólica exemplar na sociedade, como uma dimensão importante de apropriação do Direito Penal na luta pela redução e libertação feminina da violência (ANDRADE, 2018).

Feministas são, por sua vez, criticadas por não compreender o limite do sistema penal atravessado por uma deslegitimação estrutural. Sua insistência na punição, em vez de seguir a senda aberta pelos abolicionistas em busca de alternativas de controle, é vista como perigosamente relegitimadora de um mecanismo que, ao invés de protegê-las e libertá-las, duplica as violências que denunciam, sem impactar as relações de gênero.

Enquanto a hegemonia político-criminal dentro da Criminologia crítica parece pertencer ao minimalismo-abolicionismo, com base na deslegitimação do sistema penal, que ela coconstitui, a hegemonia dentro do feminismo parece se inclinar ao punitivismo–garantismo com base no argumento da referida função simbólica.

Preocupada com este “estado da arte” expressei, há uma década, que “uma das mais fortes interpelações criminológicas do presente” é “precisamente o desenvolvimento cumulativo e integrado das perspectivas ‘crítica’ e ‘feminista’, juntamente com outras, como a Criminologia racial e cultural visto que tal bipartição epistemológica não pode ser senão provisória” (ANDRADE, 2012). Realizei nessa direção uma análise integradora entre Criminologia crítica e feminista buscando não apenas uma “justaposição”, uma “colagem” ou um “atalho” de categorias microssociológicas como classe e gênero, mas uma dialetização entre as categorias macrossociológicas capitalismo e patriarcado e o acúmulo até então produzido, utilizando a estrutura “capitalismo patriarcal. ” 5

Tal análise, que é referida como pioneira no Brasil a respeito, não apenas não parece ter prosperado como a dualidade entre ambas as Criminologias dá sinais cada vez mais separatistas. E o separatismo analítico, que parece ganhar corpo na intersecção e predominar sobre uma interação dialética e criativa que leve os resultados de ambas as disciplinas às últimas consequências, com impacto negativo sobre a compreensão da totalidade e a busca de alternativas conjuntas, torna-se também separatismo político, (notadamente, como já mencionado, pela tensão na visão de política criminal) com impacto na práxis, o que é um grave problema para a cada vez mais minguada esfera pública do contexto presente: a do capitalismo neoliberal conduzido pelo protofascismo bolsonarista.

Já tratei, em outro lugar também, de tema semelhante, a saber, das dificuldades havidas, na década de 70 para 80 do século XX, de construir um projeto criminológico crítico coletivo para a América Latina, o qual foi tentado, mas não prosperou, restando esforços biográficos e grupais específicos de produção de Criminologias latino-americanas.

À época o subcontinente vivia sob a escolta da ditadura civil militar, hoje, vive sob a escolta do bolsonarismo protofascista. Em um Brasil despedaçado, seja pelo medo, seja pelo ódio-fobias ou pela guerra civil cotidiana oficialmente não declarada pelo Estado, o despedaçamento do saber crítico é um desperdício democrático e libertário que não estamos em condições de suportar. Em um Brasil apartado pela perversão da atual governabilidade, atravessado por um processo de destruição sem precedentes, tanto de nossa institucionalidade, quanto de nossa sociabilidade e patrimônio público, em que violências simbólicas e instrumentais (contra mulheres, negros, indígenas, camponeses-agricultores, LGBTT, desempregados, pessoas em situação de rua e demais grupos vulneráveis) assumem sua face odiosa e homicida, só saberes em profunda aliança podem resistir.

O imperativo do contexto, portanto, vem a somar com o imperativo do texto, da episteme, a favor do aprofundamento da interação e da aliança entre Criminologia crítica e feminista. Mais do que oportuno, e talvez vital, no sentido conferido por ZAFFARONI a uma Criminologia das margens, “de salvar vidas humanas,” 6 torna-se importante propor nessa direção uma leitura do campo que priorize o conceito de acúmulo e de potencialidades na busca da totalidade e de alternativas de controle, sobre o conceito de “ausências” ou “faltas”, cuja visão da história e do conhecimento emite resquícios de anacronismo.

A utopia, aqui, é a da reunião, a da aliança, a favor de uma práxis de resistência, diante de um contexto de horror, em que não há espaço para saberes egocentrados; como também não existe para silenciamentos e omissões patriarcais e racistas. O androcentrismo e o racismo estão estruturalmente deslegitimados. O tributo que uma Criminologia para a brasilidade deve aos povos negro e indígena e às mulheres começa a ser pago e o silenciamento das suas produções criminológicas é um grave déficit epistemológico e político.

É vital, com humildade e alteridade, reconhecer os avanços recíprocos dos campos e fortalecer a caminhada coletiva. Para tanto é necessário reconhecer e superar nossos “ismos”, (machismo, heterosexualismo, racismo e branquitude, adultocentrismo, geracionalismo, regionalismo, especismo, etc.), o que antes de ser epistêmica e politicamente potente, é subjetivamente libertador.

Pois bem, seria como caminhar na direção da interação criativa, potencializando em vez de desperdiçar o acúmulo de saberes e de experiências, para usar uma gramática proposta por Boaventura de Sousa Santos 7

Advogando a favor desta interação existem vários fatores e podemos fazer uma reflexão inicial. Primeiramente, o fato de estarmos perante saberes construídos a partir de epistemologias abertas, processuais, que vêm se redefinindo internamente e que podem adensar suas potencialidades dialógicas, criativas e propositivas, inclusive utópicas.

Tanto a moldura analítica do feminismo interacionista marxista branco quanto a moldura do feminismo negro, interseccional e decolonial ensejam potentes cruzamentos e dialetizações com a da Criminologia crítica.

Em segundo lugar, por estarmos perante saberes com afinidade política de luta. Se por esquerda entendemos uma posição social defensora dos sujeitos dominados, excluídos, vulneráveis, oprimidos, inferiorizados (as metades sacrificadas pelo sistema vigente, de que nos fala BARATTA) 8 em relações de dominação, exploração e opressão. Nessa tomada de posição, incluída a defesa intransigente dos direitos humanos, da democracia e da justiça substanciais, ambos os campos representam saberes “de esquerda”. 9 E penso que sua luta, apesar das especificidades, é uma luta comum, sobretudo, no duro território do controle penal.

Nesta reflexão inicial, vou priorizar o vetor de análise da Criminologia crítica para o feminismo porque estruturou-se primeiro, sendo a matriz da constrastação criminológica. Por se tratar de um saber reconhecido na sua luta libertária que conseguiu acumular uma resistência cognitiva e política no Brasil, aos horrores do nosso poder punitivo formal e informal, às idiossincrasias dos positivismos e que tem operado como saber pedagógico na formação de nossas várias gerações, coconstituindo o terreno sobre o qual podemos hoje realizar uma leitura crítica e revisionista, bem como fazer avançar o campo.

A criminologia crítica é, primeiramente, um saber datado, contextual. Ela se propôs a trabalhar dentro de uma moldura analítica e, como toda moldura, tem produzido conhecimento e avanços no seu âmbito. Essa moldura já foi longa e repetidamente explicitada. 10 A base epistêmica original da criminologia crítica é o interacionismo e o marxismo, a década é a de 70 do século XX, inicialmente nos Estados unidos, a seguir na Europa chegando à América Latina. O conceito fundante, extraído da economia política da pena acumulada à época é o de modo de produção da vida social recortado como capitalismo, por ser o modo de produção vigente nas nossas sociedades, visto como estrutura social e totalidade. Daí se segue uma teoria materialista do desvio e da pena, ou seja, dos processos de criminalização formais e informais. É esta a moldura analítica que opera o salto qualitativo em relação ao interacionismo desde uma episteme já consolidada, do desvio (e do crime) concebido como construção social seletiva (a teoria da seletividade, dos estereótipos, dos estigmas, das carreiras criminógenas, etc.) e caminha para uma teoria da desigualdade (de classe).

A Criminologia crítica, portanto, faz análise estrutural, macrossociológica e assume a posição condicionante do capitalismo (estrutura social) em relação ao sistema de controle social e penal, demonstrando, assim, a sua funcionalização na reprodução instrumental e simbólica da dominação burguesa (um controle de classe) num contexto predominantemente urbano, masculino e branco que não se propôs a trabalhar relações de gênero ou raciais.

Desta forma, já cumpriu - e com exuberância - o seu programa, soando anacrônico cobrar, descontextualizadamente, análises de gênero ou raciais a que não se propôs. E fez mais, ela nos conduziu, como timoneira, como bússola, com uma ousadia ímpar, quando só tínhamos as trevas dos positivismos em todas as direções do controle social, especialmente o penal. Seu método e papel pedagógico, antídoto contra a cegueira dogmática nas Escolas de Direito, são atemporais. Enfim, é de potência, muito mais do que défices, o território que nos toca explorar; neste mesmo sentido, também se pode afirmar quanto à Criminologia feminista, com seu exuberante e incansável território de descobertas a um só tempo tão corajosas quanto dolorosas, sobretudo, para Nós, Mulheres, cujo script vertido em criminologia feminista no espaço público soa demasiado familiar.

Em síntese, a indicação epistemológica da Criminologia crítica de busca da totalidade e da conexão funcional entre estrutura social e pena permanece válida e necessária para a Criminologia, mas, em definitivo, insuficiente, porque o capitalismo continua sendo a estrutura central, mas não esgota a totalidade estrutural que se busca para a compreensão da brasilidade, demandando, como temos vindo a proceder, ao seu alargamento, com o contributo de outras estruturas de poder - especialmente o colonialismo e o racismo, o patriarcalismo e o sexismo, o especismo e outras a elas conectadas, que condicionam, na sua dialetização, o controle social e penal.

Tratam-se de estruturas, de regularidades, não apenas de modos de produzir, mas simultaneamente de reproduzir a vida social e que destituem, bem como expropriam o Brasil da sua brasilidade pela violência constitutiva do pacto de exclusão seletiva de pedaços do seu povo (mestiço na raiz) que tornou-se então um vir-a-ser: um povo no qual todas as etnias-raças (índios, negros, brancos), como propôs Darcy Ribeiro 11 , classes, gêneros, sexualidades, geracionalidades, regionalidades, capacidades, aduzimos, tenham lugar, inclusão e protagonismo na construção da vida e destino comum.

Assim, as mulheres – que constitui grande parte deste povo despedaçado-, estão em secular vir-a-ser: as índias, as negras, as camponesas e ribeirinhas, as idosas, deficientes, loucas, brancas, prostitutas, lésbicas, trans, todas. De objetos e propriedades do colonizador, depois do Senhor, depois dos Pais, padrastos, maridos, estranhos; mulheres de corpos coisificados, torturados, estuprados a corpos trabalhadores, domésticos, rurais, urbanos. De corpos a corpos, enfim, o direito a pensar? A ter voz? A ser escutada? A exercer poder no espaço público? A definir os rumos não apenas da família e dos filhos, mas da pólis? A ser sujeito e não apenas objeto? Mas, como passar de vítima a sujeito se a estrutura patriarcal reitera, a cada passo, o estalido do tronco? E como sair da condição de vítima da violência masculina, do homem ao Estado e o sistema penal? “Violência contra a Mulher”, eis a longa agenda da Criminologia feminista, que uma Criminologia crítica não pode ignorar, embora possa redefinir.

A base latino-americana da Criminologia crítica, por sua vez, tem sua moldura alargada em relação ao centro capitalista, incluindo um pluralismo epistêmico, que tem a ver, desde sempre, com nosso contexto periférico e marginal, e nela estão presentes tanto as matrizes originais (o interacionismo simbólico e o marxismo - especialmente na obra de Lola Aniyar de Castro, Juarez Cirino dos Santos, Roberto Lyra Filho) quanto a teoria da dependência, a microfísica do poder, e mesmo o funcionalismo e o liberalismo político (Roberto Bergalli, Rosa Del Olmo, Raúl Zaffaroni), para ficar com alguns dos pioneiros, mas todos sob os preceitos do paradigma da reação social, do controle ou da definição.

Talvez por isso haja uma hermenêutica tão confusa entre nós quando se trata de caracterizar o conceito de criminologia crítica, que oscila entre os níveis micro do paradigma da reação social, reconduzindo-a ora ao interacionismo simbólico, ora à teoria da seletividade.

E a tradução tanto da Criminologia crítica quanto da Criminologia feminista no Brasil passou por várias formas de aproximação e acúmulos para chegarmos hoje ao estágio em que nos encontramos. A respeito é pertinente situar o trabalho que realizamos nesse sentido nas disciplinas de “Criminologia e Política Criminal”, “Cidadania e Direitos Humanos”, “Sistema de Justiça Penal” e “Justiça Restaurativa”, junto aos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, em nível de ensino, pesquisa e extensão, em cujo locus produzimos, eu e meus orientandos de graduação, mestrado e doutorado, uma quantidade expressiva de pesquisas, parcialmente publicadas, que seguiram quatro linhas, cumulativas (entre os anos de 1993 e a primeira década do século XX até 2016). Essa história foi parcialmente abordada em recente tese sobre o Ensino da Criminologia 12 e objeto de uma Obra-Homenagem organizada pelos meus ex-orientandos.

No Brasil dos anos 90 trabalhamos as seguintes linhas de pesquisa, sobretudo, criminológicas: 1) a recepção - tradução do paradigma da reação social e da Criminologia crítica no Brasil: abolicionismos, minimalismos e eficientismo penal; 2) relações entre Criminologia crítica, feminismo e a questão racial; 3) da recepção da criminologia crítica na América Latina e no Brasil à construção da Criminologia crítica latino-americana e brasileira: em busca da latinidade e da brasilidade; 4) Justiça Restaurativa e Justiça Penal.

Destarte, a comunidade criminológica crítica brasileira, que assumiu expressiva dimensão, de norte a sul do país, vem trabalhando cumulativamente com o saber já produzido, em continuidade e aliança com ele, a favor dele e não contra ele; pois não se trata de superá-lo, mas de alargá-lo e enriquecê-lo 13 .

Com efeito, quando esta indicação epistemológica chega às sociedades latino-americanas e à brasileira em particular, que aqui interessa, a questão central foi perguntar: Qual capitalismo? Qual patriarcado? Qual racismo? E ao fazê-lo fomos em busca de nossa especificidade, da latinidade e da brasilidade. O nosso é um capitalismo tardio, dependente e periférico (à margem) que, tendo por matriz a colonização europeia e o modo de produção escravista, assentado numa economia agrária latifundiária, se estrutura como (o que proponho denominar) um “escravocapitalismo”, cuja herança tão persistente quanto vergonhosa será uma estrutura de classe racializada, excludente dos afrodescendentes e dos povos originários e mantenedora de métodos de controle social à imagem e semelhança dos métodos escravistas, como a tortura, o estupro e a pena de morte informal (penas cruéis e infamantes) exercidos pelo poder policial, prisional, patriarcal e outros.

Com base nos estudos historiográficos, sociológicos e, sobretudo, decoloniais, sabemos hoje que uma adequada compreensão do poder punitivo no Brasil deve partir da colonização relida, da inferiorização étnica dos povos originários (denominados “índios” pelo colonizador) e afrodescendentes (separados em negros, mulatos, pardos pelo colonizador) da formação agrária latifundiária, e, sobretudo, do patriarcalismo e da escravidão.

Enfim, é importante notar que o avanço do debate racial focado na dualidade brancos e negros, (feminismo negro, branquitude) tem deixado para trás a discussão sobre os povos originários, visibilizados, enfim, pelo feminismo indígena e pela justiça comunitária e restaurativa, com os quais tanto a criminologia crítica quanto a feminista registram um forte déficit de atenção e diálogo (e vice-versa) que necessita ser valorizado e alargado; pois justo os campos que mais potencializam a intersecção, a mediação com o abolicionismo e cujo objeto se situa na intersecção entre a Justiça estatal vigente e as Justiças emergentes e que tem muito a contribuir neste debate, com suas ricas possibilidades de realização de justiça e controle não violento das violências. Diante desse cenário complexo é preciso superar o anacronismo (críticas do texto fora do contexto) pela diacronia (críticas do texto no seu contexto, no seu tempo).

Em tempos de neoliberalismo (horror em ato) conduzido pelo bolsonarismo (meta horror) há que se promover um intenso diálogo do campo das criminologias com a Justiça Restaurativa e suas noções de dano que aponte para uma saída epistemológica aos impasses das Criminologias crítica e feminista em relação ao conceito de crime e pena desde uma revisão consequente do clássico binômio do labelling approach, qual seja, crime = conduta + reação social.

O segundo passo seria superar o purismo, a saber, tanto uma razão punitivista ou abolicionista pura, cujo meio termo minimalista admite várias gradações, constitui um obstáculo à tensão criativa, seja porque meramente reprodutora do status quo presente na primeira hipótese, seja porque anunciadora de um futuro talvez longínquo, na segunda. É que entre os opostos do punitivismo puro e do antipunitivismo puro, existe o contexto impuro que os contamina, e se, como na teoria dos sistemas, os saberes, ao escutarem os ruídos da impureza se fecham e os rejeitam, para manter a sua integridade e lógica interna de funcionamento, as respostas puras não cobrem a complexidade, passam ao largo dela, mas o sistema se autorreproduz. O oposto do purismo, entretanto, não é a promiscuidade, é a mestiçagem, 14 uma aliança na qual a razão pura se torna impura de e a partir do contexto, tornando-se mestiça na alteridade e na intersecção criativa, que vem e só pode vir dessa mistura de texto e contexto, a favor de respostas resolutivas positivas.

Sigo postulando, pois, uma razão utopicamente abolicionista e metodologicamente minimalista 15 que reconheça a legitimidade da nomeação simbólica de graves violências contra a pessoa 16 quando decorrente de lutas legítimas dos próprios sujeitos do polo sacrificado naquelas relações. Importante, nessa direção, que a ainda masculina e branca Criminologia crítica escute e dialogue com os argumentos feministas sem que isso implique renunciar ao acúmulo de análises sobre as potenciais consequências desta escolha. Igualmente relevante que a Criminologia feminista escute e dialogue com as críticas à criminalização, ponderando se esta escolha pode ser considerada necessária para a sua luta, na melhor das hipóteses ela corre os alertados riscos criminológicos críticos e na pior das hipóteses, ela é insuficiente, não sendo um fim em si mesmo, mas uma metodologia a médio curto prazo.

As lutas identitárias (que no caso das mulheres e negros cobrem mais da metade da população brasileira!) já adquiriram sua legitimidade no espaço público e sua potencialização depende, certamente, de sua capacidade de demarcarem suas demandas específicas, mas, a seguir, devem se conectar com a totalidade do processo de transformação social. Uma totalidade que a Criminologia crítica, que também lutou muito para adquirir sua legitimação pública, coloca no centro de sua epistemologia, cuja potencialização também depende, ademais da notável capacidade de descrever estruturas, de tocar e resolver os problemas concretos do cotidiano dos sujeitos envolvidos em situações-problemas, notadamente “violências”. O valor e também princípio subjacente à interação é o da “alteridade”.

Através da Lei Maria da Penha socializou-se no país, inclusive com o aval da Rede Globo de Televisão, em horário nobre de Jornal Nacional e tema novelístico (encampando pautas identitárias), o simbolismo do denuncismo e da punição rigorosa. Ora, se a pena se apresenta como a sacralizada oferta na bandeja do feminismo, sem a possibilidade de transcendê-la, obviamente que o efeito é o fortalecimento e a relegitimação do controle punitivo porque a função simbólica por assim dizer “cola” na função instrumental de denunciar e punir como caminho único para vítimas e agressores, ficando intocadas as relações de violência.

É apenas conjugando a política de nomeação com uma razão abolicionista sobre a punitiva que o feminismo criminológico poderá avançar, inclusive no seu tema mais caro, que é apropriação da Lei Maria da Penha nos seus potenciais dialógicos e restaurativos (sobre os punitivistas, como vem ocorrendo no senso comum) e assim conectar-se ao caminho já percorrido no Brasil da Justiça Restaurativa (ainda muito eurocentrada, masculina, classista e branca), o que temos no presente para trabalhar relações de gênero em situações problemáticas e com potencialidades para superar o impasse punitivismo versus abolicionismo. Este é o outro campo a se interseccionar com as Criminologias estruturais, revitalizando um outro muito minoritário diálogo brasileiro alargado entre Abolicionismo versus Justiça Restaurativa, criminologias crítica e feminista e vice-versa, como propusemos em recente pesquisa para o CNJ. 17

Mulheres que chegam às Delegacias (quando “sobreviventes”) sangrando, física e emocionalmente, necessitam ser acolhidas e ter garantido o distanciamento em relação aos seus agressores, a letra “protetora” da lei precisa empunhar sua “fita métrica” e a letra punitiva, uma sentença condenatória, mas ao depois, e às vezes logo ao depois, quando mulheres tendem inclusive à reconciliação, à percepção dos danos produzidos pelo sistema penal em pessoas e família, e mesmo ao perdão, precisam ter abertas, se assim o desejarem, outras possibilidades de compreensão e enfrentamento da dor e das relações. 18 Eis aí a sabedoria de não desperdiçar nem o saber e nem a experiência, tampouco o saber e as alternativas.

A intersecção é então validada no cruzamento do saber com a experiência, da teoria (às vezes pura) com a empiria, da episteme com a doxa e do diálogo com a dor, pois a dor não se trata eternamente com a dor; vale dizer, validade na práxis, e deve resultar de uma escuta atenta que evite o desperdício, tanto do saber, quanto da experiência, sempre norteada por princípios e valores que apontem para equilíbrios de poder e simetria (como a cartilha dos direitos humanos, as vulnerabilidades, as identidades de gênero, raça e classe, a dignidade da pessoa humana, o respeito, a alteridade, etc.) e que apontem, em definitivo, para um sentido de justiça e democracia de base substancial, às quais precisamos urgentemente discutir no Brasil.

Diante do exposto, afigura-se como fundamental escrutinar inicialmente o que é necessário, mas insuficiente para a construção de uma Criminologia para a brasilidade, substantivo do qual venho lançando mão para nominar uma criminologia que avance sobre o longo acúmulo euroamericano de conhecimento e experiência (acerca do poder punitivo e o controle social) e verticalize-o em relação ao Brasil real (dimensão analítica), nos termos das estruturas acima delineadas, mantendo como pauta criminológica o compromisso com a compreensão e a superação das violências (estrutural, institucional, simbólica, intersubjetiva), esta também sua dimensão utópica e libertária dos violentados em relações de dominação, exploração, opressão, inferiorização e assimetrias: enfim, libertadora das metades sacrificadas em todo o projeto de violência como o poder punitivo formal ou informal; ou, como no Brasil bolsonarista, o poder punitivo informal (as milícias) que se fizeram poder formal (estão no Estado). E uma tal utopia envolve muitos passos e uma longa agenda para tratar das próprias questões aqui discorridas, a começar por uma discussão coletiva profunda sobre quem são hoje no Brasil os sujeitos dessa libertação, os sujeitos da luta criminológica(?) em nome dos quais lutamos. E creio que, das “classes subalternas” (fundação da Criminologia crítica) às mulheres (feminismos), passando pelo povo negro está a central, derradeira e esclarecedora pauta para as tantas questões em aberto.


Notas de rodapé

1 Devido ao limite deste texto, lançarei mão de um detalhamento maior de fontes, para ocupar seu corpo com ideias mais fluídas, à guisa de um manifesto, que não se pretende panfletário. De outra parte, muitas das ideias aqui expostas já foram objeto de publicações anteriores, devidamente fundamentadas.

2 Sejam europeias, norte e latino-americanas ou brasileiras; principalmente o feminismo branco e as categorias patriarcalismo e gênero, seguido do feminismo negro, decolonial e interseccional.

3 1) Na década de 1960, consolida-se a passagem de um paradigma criminológico etiológico, centrado na investigação do crime e no criminoso (violência individual), de corte ainda positivista, para um paradigma centrado na investigação da reação ou controle social e penal (violência institucional), de corte construtivista-interacionista, dando origem a uma Criminologia da reação ou controle social, amadurecida por dois saltos qualitativos; 2) A partir da década de 1970, o desenvolvimento materialista desta Criminologia marca o surgimento das chamadas Criminologia radical, nova Criminologia e Criminologia crítica, Criminologia dialética, Criminologia da liberação, no âmbito das quais o sistema penal receberá uma interpretação macrossociológica, no marco das categorias capitalismo e classes sociais (Criminologia da violência estrutural); 3) quase simultaneamente, o desenvolvimento feminista deste paradigma origina a chamada Criminologia feminista, no âmbito da qual o sistema penal receberá também uma interpretação macrossociológica, inicialmente no marco das categorias patriarcado e gênero, passando a incluir as categorias colonialismo, colonialidade de gênero, raça-etnia e branquitude, até a tríade intersetorial gênero-raça-classe. Daí em diante a análise sobre a(s) mulher(es) no controle social punitivo, historicamente situadas em gênero e sexualidades, raça e classe, ou seja, não universalizadas nem coisificadas, passa a assumir um lugar central.

4 ANDRADE, Mailô de Menezes Vieira. “Ela não mereceu ser estuprada”. A cultura do estupro nos casos penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

5 PATMAN, Carole. El contrato sexual. Trad. Maria Luisa Femenías. Barcelona: Antropos; Mexico: Universidad Autonoma Metropolitana, 1995.

6 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología. Aproximación desde una margen. Bogotá: Temis, 1988.

7 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2005.

8 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 48.

9 O texto KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 1, número 1, 1º semestre de 1996 já classicamente simboliza esta tensão.

10ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria/Editora do Advogado, 2015. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

11RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

12CARDOSO, Helena Schiessl. Criminologia brasileira: um mosaico à luz do Ensino do Direito. Tese de doutorado.Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. 2018. No prelo.

13 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. ALVES, Marcelo Mayora; GARCIA, Mariana Dutra de Oliveira. O controle penal na sociedade escravocrata: contributo da economia política da pena para a compreensão da brasilidade. Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Instituto Carioca de Criminologia/Revan. Nº 23/24, 1º e 2º sem. 2016. p. 162-178.

14 Penso que este é um conceito importante a ser explorado em uma Criminologia para a brasilidade, mas não é possível fazê-lo, apenas enunciá-lo, nos limites deste texto.

15 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: ICC/Revan, 2012. Coleção pensamento criminológico (n. 19).

16 Mulheres, negros, índios, LGBTT, idosos, sujeitos e animais vulneráveis) e de todas as violações de direitos humanos animais e não animais, do meio ambiente incluindo graves danos coletivos produzidos por empresas, corporações, instituições financeiras, poderes do Estado, etc. contra pessoas, grupos, povos e natureza.

17 Relatório analítico da pesquisa "Pilotando a justiça restaurativa: o papel do poder judiciário”. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/04/7697d7ac45798202245f16ac41ddee76.pdf.

18 MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

Nosso website coleta informações do seu dispositivo e da sua navegação por meio de cookies para permitir funcionalidades como: melhorar o funcionamento técnico das páginas, mensurar a audiência do website e oferecer produtos e serviços relevantes por meio de anúncios personalizados. Para saber mais sobre as informações e cookies que coletamos, acesse a nossa Política de Privacidade. Para falar sobre envie um e-mail para: privacidade@ibccrim.org.br