EDITORIAL
POR QUE APENAS ALGUNS?
Data: 24/11/2020
Autores:

POR QUE APENAS ALGUNS?

Ao anunciar, com muito orgulho, o sexto volume da Revista Liberdades, é inevitável tecer algumas palavras sobre o ocorrido na cidade do Rio de Janeiro no final do ano passado, quando, pela primeira vez em décadas, o Estado demonstrou algum tipo de preocupação com os problemas de violência no interior das favelas. Foi uma atitude enérgica, com as polícias e as Forças Armadas agindo conjuntamente e, pelo menos em tese, finalizada com a ocupação do Complexo do Alemão.

Devemos lembrar que, em junho de 2007, às vésperas dos Jogos Pan-Americanos no Rio, a polícia havia realizado uma grande operação, no mesmo local, com a única finalidade de buscar acusados pela morte de dois policiais no mês anterior. Segundo o jornal O Globo, de 27 de junho daquele ano, 19 pessoas foram mortas na operação. Destas, conforme levantamento feito pela Ordem dos Advogados do Brasil, 11 não tinham qualquer antecedente criminal. Se a finalidade do embate foi eliminar traficantes, o meio utilizado demonstrou-se cruel e ineficiente. Não se pode justificar a morte de inocentes numa batalha sob o argumento de que isso é inevitável, pois não há pena de morte no Brasil; se houvesse, deveria ser precedida do devido processo legal; e não há autorização para matar em caso de flagrante delito.

Passaram-se mais de três anos e os problemas continuaram. Uma conclusão parece bastante óbvia: combater a criminalidade apenas com repressão – e uma repressão exercida apenas nas áreas mais carentes – não funciona. Mesmo parecendo clichê, deve-se insistir na tese de que a repressão por si só é insuficiente e o direito penal deve ser o último instrumento do Estado a ser utilizado. Pior: a sociedade, parece, comprou a ideia de que o combate deve ser realizado com o uso da força e que o tráfico de drogas nas favelas é o grande mal do país.

Ninguém nega que a repressão, às vezes, é necessária no combate à criminalidade. Entretanto, várias questões obscuras passam despercebidas ou são ignoradas para alimentar um discurso simbólico da “violência contra a violência”. Basta verificarmos alguns pontos poucos divulgados pela grande mídia - esta que insiste em vender a imagem de que todo problema de violência está na favela e quem ali reside, presumidamente, é culpado.

Primeiramente, a região do Complexo do Alemão, como qualquer outra favela, apresenta todos os fatores que favorecem o crescimento da criminalidade. Quem nunca recebeu dignidade do Estado fica tentado a trabalhar para quem lhe dá um pouco de atenção e poder. Quando se diz “poder” não é apenas o potencial domínio sobre uma área. Também é o poder de transformar a vida própria e da família; é o poder de comprar uma casa, um automóvel, roupas, remédios, e até de ajudar as pessoas próximas. No documentário Notícias de uma guerra particular, um dos traficantes entrevistados reconhece que, apesar de ser crime, o tráfico o ajudou a dar uma aposentadoria digna à mãe. Nessa mesma obra, o então chefe da Policia Civil do Rio de Janeiro, Helio Luz, confirma que o tráfico só não é bom negócio para quem nunca passou fome.

Segundo, se o Estado não permanecer no Complexo do Alemão, a invasão policial não demorará muito para perder efeito. Essa permanência não se resume às unidades policiais; deve haver instalação de infraestrutura para que os moradores vivam com dignidade. A vida digna permite famílias equilibradas e pessoas autônomas e menos vulneráveis aos apelos da criminalidade. Apenas como exemplo, pode-se citar a hipótese de que os traficantes, cercados, teriam fugido por tubulações de água e esgoto e, logo em seguida, desmentida, pois ali não há saneamento básico. Deve-se investir muito em educação, escolas de formação profissional, transporte público, saneamento, segurança, ou seja, tudo aquilo que só está acessível àqueles que possuem recursos financeiros. A prevenção é sempre melhor que a repressão.

Terceiro, pouco se fala da criminalidade praticada por pessoas de alto poder aquisitivo. Crimes acontecem fora das favelas e o Estado deve reprimi-los com a mesma energia. Crimes contra a Administração Pública, contra o Sistema Financeiro, contra a Economia Popular, contra o Meio Ambiente e até o tráfico de drogas, quando praticado pelas classes altas. A reprimenda somente sobre um dos lados é insuficiente. Não se defende, aqui, maior expansão do direito penal; o que se quer é a igualdade de tratamento a todos que praticam atos ilícitos e a punição a todos que alimentam a miséria humana, não apenas aos miseráveis.

O direito penal deve ser subsidiário, sem dúvidas, e, principalmente, manejado de forma igual. Tanto a prevenção quanto a repressão devem incidir, na medida do necessário, em todos os grupos de pessoas. Não se pode aceitar um Estado que tolera a criminalidade de alguns e reprime apenas determinados grupos sociais, como se isso fosse a resposta a todos os problemas. A prevenção ainda é a melhor solução para os problemas criminais, o que implica afirmar que, mais graves que os crimes praticados nos morros, são as más gestões dos sucessivos governos, em todos os níveis, que se negam a proporcionar dignidade a todos, sem restrições e preferências.

São Paulo, 15 de janeiro de 2011

JOÃO PAULO ORSINI MARTINELLI

Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo

Coordenador-chefe do Departamento de Internet do IBCCrim

CARTA DOS LEITORES
ESTE ESPAÇO É DESTINADO A VOCÊ, LEITOR
Data: 24/11/2020
Autores:

Parabéns IBCCRIM por mais uma iniciativa: Revista Liberdades, avanço no aperfeiçoamento dos operadores do Direito e sólido apoio para aqueles que dão os primeiros passos no estudo das Ciências Criminais.

Marcelo Giorgetti Junqueira – Jundiaí/SP

É digno de nota e louvor o mais novo produto com a marca IBCCRIM, a revista Liberdades, cuja edição de nº. 05 (setembro-dezembro 2010) foi abrilhantada pela excelente entrevista com o professor Ignacio Berdugo Gómez de la Torre, ilustre expoente da Alma Mater salmantina, notadamente das ciências criminais. Parabéns IBCCRIM por mais este empreendimento!

Marco Aurélio Borges de Paula – coordenador do IBCCRIM em Mato Grosso do Sul.

ESCREVA PARA NÓS!

revistaliberdades@ibccrim.org.br

 

ENTREVISTA
João Paulo Orsini Martinelli entrevista ROBERTO ROMANO
Data: 24/11/2020
Autores:

Nesta 6ª edição, a Revista Liberdades apresenta entrevista exclusiva com o Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. O entrevistado é graduado em Filosofia pela USP e pós-graduado na USP e na Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, onde se doutorou em 1978. Possui uma vida acadêmica ativa e, atualmente, leciona "História da Filosofia Moderna" na graduação e "Ética e Filosofia" na pós-graduação do IFCH. Durante dois anos, coordenou a Frente Nacional em Defesa da Ciência e Tecnologia. Foi presidente da Comissão de Perícias da Unicamp, quando esta ajudou a equacionar o problema das "Ossadas de Perus". Já proferiu centenas de conferências e palestras no País e no Exterior sobre Ética, Democracia, Direitos Humanos e Defesa do Ensino Público. Foi distinguido, em 2000, pela "Associação Juízes para a Democracia", como defensor dos direitos humanos no Brasil. Recebeu, ainda, a Medalha de Direitos Humanos da B´nai B´rith em 2007. Entre seus livros, destacam-se: O Caldeirão de Medeia (Ed. Perspectiva); Cidadania – Verso e Reverso (Ed. Imprensa Oficial-SP); Corpo e Cristal: Marx Romântico (Ed. Guanabara); Silêncio e Ruído (Ed. da Unicamp); Brasil, Igreja contra Estado (Ed. Kayrós) e Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp).

A seguinte entrevista foi concedida a João Paulo Orsini Martinelli, Coordena­dor-Chefe do Departamento de Internet do IBCCRIM:

JP: Professor, primeiramente gostaríamos de saber um pouco de sua carreira acadêmica, especialmente o que o levou a estudar a ética.

RR: Minha primeira ideia de filosofia foi me dada pelo professor Ubaldo Martini Puppi, filósofo que ensinava na Faculdade de Ciência e Letras de Marília, interior de São Paulo. Com ele, e com a leitura de Santo Tomás de Aquino, aprendi conceitos, como o de Bem Comum, essenciais para o pensamento ético. Depois, segui cursos no Convento dos Padres Dominicanos, em Juiz De Fora (MG) e São Paulo, além de ser aluno do Instituto de Filosofia e Teologia (IFC) em São Paulo. Após deixar aquele Instituto, fiz a graduação em Filosofia na USP, em que aprofundei a pesquisa em Ética e Filosofia Política. O curso de doutorado, na França (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, concluído em 1978), foi orientado para a Filosofia Política. E minha tese (Brasil, Igreja contra Estado, São Paulo, Ed. Kayrós, 1979) tratou de temas éticos e políticos a partir de questões religiosas. Quanto à motivação extra-acadêmica, ela vem do seguinte fato: o Brasil é uma sociedade na qual a corrupção política atinge níveis insuportáveis. O cidadão que paga impostos não recebe os serviços que deveriam ser trazidos pelo Estado, o grande sorvedouro de taxas e impostos. E de tempos a outros, demagogos espertos (ou partidos idem) mobilizam discursos moralistas para chegar ao poder, aproveitando a perene revolta das pessoas com o descalabro dos serviços públicos na educação, saúde, segurança. A diferença entre o moralismo e a ética tem sido o motor de minhas investigações, de modo a contribuir para que nossa gente não se deixe enganar pelos demagogos mencionados.

JP: O Brasil é um país ético? O que o senhor quer dizer com a seguinte frase, mencionada em entrevista concedida à Revista Veja: “A ética brasileira é fundada na violência, no favor e no poder?”

RR: É bom definir as premissas. A ética se define como o complexo de posturas físicas, valores anímicos e atos de uma coletividade. Uma vez aprendidos os costumes de uma sociedade, os indivíduos e grupos que a ela pertencem passam a praticá-los de modo automático, sem demasiada reflexão. Tal é o perigo da ética: os automatismos aprendidos e aprofundados. Dou um exemplo: a esmagadora maioria dos motoristas brasileiros aprendeu que os pedestres não merecem respeito. Assim, de maneira automática, diante de um sinal vermelho ou faixa de pedestre, o automatismo os leva a acelerar o veículo, raramente a parar. Todos os que agem daquele modo ficariam assustados se alguém lhes dissesse que a sua ética é assassina. De modo idêntico em todos os demais setores da vida. Raros brasileiros não pediram um favor para eludir procedimentos formais e igualitários no âmbito do Estado ou da sociedade. É uma cultura do “quebra-galho” universalizada. E existe uma hierarquia social e política inconfessada que manda dobrar a espinha a quem “pode mais”, econômica ou politicamente. A frase “sabe com quem está falando?” é por demais eloquente. Em outras terras, quando existe tensão entre indivíduos, o revoltado diz ao seu oponente: “Quem você pensa que é ?” Aqui, na pergunta já surge a lógica perversa e anti-igualitária: “eu sou importante e você terá problemas, mesmo que esteja cumprindo o seu dever funcional”. Poderíamos elencar milhares de costumes semelhantes, hediondos, mas aceitos como “normais” entre nós. Aqui, numa fila qualquer, o esperto que a desobedece é admirado. O que reclama contra ele é “chato”. Não é mesmo? Em tais exemplos micrológicos, notamos o que se passa em termos macrológicos na sociedade e no Estado.

JP: Na sua avaliação, como a ética pode reduzir a criminalidade?

RR: Ética, insisto, se diz de muitos modos. Existem valores éticos positivos, que levam aos atos úteis ao Bem Comum. Existem valores éticos negativos, que levam ao esgarçamento dos vínculos sociais. Para mudar os comportamentos criminosos, é preciso que toda a sociedade abandone a ética do favor, da burla face à lei, da licença política etc. No caso da lei da “ficha limpa”, notamos que mudanças microscópicas, mas significativas, começam a ocorrer e os criminosos de colarinho branco passam a ser punidos. Mas enquanto não for abolido o privilégio de foro para os políticos, uma licença para o crime, nada mudará em termos substanciais. Só existe uma fórmula para reduzir a criminalidade: democracia e respeito dos direitos de todos e de cada um (incluindo os acusados de cometer delitos ou crimes) e acatamento da lei. Fora tal fórmula, temos apenas a barbárie, a vingança, o linchamento, que não diminuem a criminalidade, visto que temos aí crimes desumanos, mera reação de massa.

JP: Qual a sua opinião sobre o sistema carcerário brasileiro?

RR: Ele ajuda a entender a lógica do genocídio. Monstruosidade é pouco para definir um sistema que gera o crime industrialmente. A professora Alba Zaluar, em seus trabalhos, mostra o quanto tal sistema deve ao positivismo que formou nossa pobre república. Não me deterei na análise dos seus textos. Mas seus trabalhos sobre o comércio de drogas a levam a considerações estratégicas sobre a conivência da “boa sociedade” com o crime, ao ser tolerado o sistema dantesco das triagens feitas pela polícia e do armazenamento de corpos que aquelas triagens acarretam, as almas são violentadas mesmo antes das prisões, mas depois delas, perde o sentido o termo “alma” porque o processo oficial conduz à animalização dos seres humanos entregues à suposta guarda do Estado.

JP: O senhor acha viável a pena de morte?

RR: A pena de morte nunca resolveu ou atenuou a criminalidade. Trata-se de uma covardia dos Estados e dos seus cidadãos. Os primeiros usam o monopólio da força em sentido oposto a qualquer tese sobre o contrato. Mesmo a tese hobbesiana é mais digna do que as doutrinas de hoje que pregam a pena capital. Quando digo que a sociedade brasileira tem como ética a violência, penso inclusive nos programas fascistas (ditos policiais) que incitam perenemente os cidadãos para que exijam a covardia de Estado a que aludi. Os inúmeros linchamentos, ocorridos devido às mentes intoxicadas pelo fascismo policialesco (existem policiais que são mais clementes e humanos do que muitos jornalistas “especializados”), mostram um lado insuportável da ética gerada e reproduzida no Brasil.

JP: E a prisão perpétua? Qual sua opinião a respeito?

RR: Estamos em 2010. Cesare Beccaria escreveu o monumento intitulado Dei delitti e delle pene em 1763. Temos, pois, 247 anos de experiência, análise, renovação das teorias sobre a pena. Prisão perpétua equivale à pena de morte civil, é algo que mostra o falecimento da sociedade, a sua fraqueza em inserir indivíduos no seu interior. O tempo cósmico pode ser finito ou infinito, conforme a perspectiva pela qual é considerado. Mas o tempo das sociedades é sempre finito e o dos indivíduos ainda mais restrito. “Perpétuo” é algo que só vigora para o registro natural ou divino. Nenhuma sociedade reúne toda a natureza, e nenhuma sociedade é divina. Ela deve premiar ou punir de acordo com o diapasão temporal que é o seu. Punir alguém “pela vida toda” que lhe resta é arrogância e, portanto, viola a essência do convívio humano. Permito-me indicar, sobre o tema, um artigo meu publicado para uma revista universitária cujo título, justamente, é o seguinte: “Os laços do orgulho. Reflexões sobre a política e o mal”. A revista chama-se Unimontes Científica, volume 6, número 1, janeiro /junho de 2005), no endereço eletrônico: http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/sumario_v6_n1.htm. Alí, mostro o quanto a arrogante atitude de homens é, ela mesma, a matriz de todos os males, de todos os crimes.

JP: Quais seriam as principais causas da criminalidade na sua opinião?

RR: As causas podem ser múltiplas, e as ciências da psicologia social, da sociologia, da política, do direito, com uso de inúmeros instrumentos técnicos (da estatística às pesquisas, como as já referidas, da Dra. Alba Zaluar) ajudam a aclarar um pouco os mecanismos que distorcem o agir humano e fazem os indivíduos e grupos seguirem a via da violência física ou psíquica contra seus semelhantes. Explicações religiosas, como a doutrina do pecado original cristã, podem ajudar a entender um pouco o mecanismo do crime. Não por acaso, nos relatos religiosos, o assassinato surge logo após a queda dos entes humanos do mítico paraíso, com a história de Caim e Abel. Tais figuras simbólicas mostram o traço arcaico do crime na sociedade. E a sua relevância. Existe também toda uma doutrina prudencial sobre o crime: apenas os hipócritas (o Novo Testamento os chama de “fariseus”, devido a uma seita rigorista em termos de moral e direito) se imaginam isentos de cair no crime. Os hipócritas não conhecem a misericórdia quando alguém comete um atentado à vida alheia, à sua propriedade etc. A justiça (os gregos a chamam “epikéia”) vai além da letra da lei, reconhecendo o fato de que todos os entes humanos são suscetíveis de praticar crimes. Ela dosa as penas de maneira a não permitir que um crime seja retribuído por outro, sob a chancela do poder político ou religioso. Se me permitem, eu diria, sabendo todo o peso das palavras, que o crime, ainda hoje e, imagino, em longo prazo, será um mistério para a humanidade. Tentar compreendê-lo com os métodos científicos ou filosóficos pode ajudar, mas não desce até suas raízes.

JP: Qual deveria ser o papel da mídia na divulgação dos casos de violência?

RR: Deveria ser exigido da mídia que preservasse o direito das vítimas e o dos agressores, sobretudo quando eles são apenas supostos agressores. A exibição pornográfica de presos (muitos depois inocentados), com sensacionalismo fascista, deveria ser proibida. Na Europa, quando alguém é preso e acusado, seu rosto aparece borrado nas telas de televisão. Aqui, lembremos o caso da Escola de Base, a TV policialesca mostra a casa, os familiares do acusado, além do próprio, julgando antes do juiz e do devido processo legal. Existem “jornalistas” que interpelam advogados de defesa, como se exercer aquele múnus fosse um crime a mais.

JP: Qual sua opinião sobre a reação popular em crimes de grande repercussão? Isso é prejudicial à democracia?

RR: Tal manipulação das massas é um treino para o fascismo.

JP: Normalmente, a massa fica mais exaltada quando ocorre um crime praticado por meio da violência. No entanto, parece haver menor mobilização popular nos casos de corrupção. A população, em geral, ainda não assimilou que um crime envolvendo a Administração Pública pode ser mais grave por atingir pessoas indeterminadas?

RR: Infelizmente, não. E pior: com o sistema de concentração quase absoluta que torna inoperante a prática federativa entre nós, os recursos monetários e humanos sendo quase monopolizados pelo poder de Brasilia, os impostos só voltam às cidades pelo mecanismo do “é dando, que se recebe”. Os políticos oligarcas conseguem, em tratos não raro espúrios com o Executivo Federal, liberar verbas e obras para suas regiões. A massa dos contribuintes que vive nos municipios, embora condenando, da boca para fora, a “corrupção”, só vota nos candidatos que já mostraram eficácia na obtenção de verbas (escolas, estradas, hospitais etc.) para suas cidades. Assim, temos uma hipocrisia política estonteante, visto que os mais prejudicados pela corrupção aprovam e só votam nos candidatos que praticam o “realismo” político, ou seja, a troca do que é público por supostos “favores” dos eventuais governantes.

JP: O senhor acha correto que autoridades públicas apareçam em público para darem suas opiniões a respeito de crimes que investigam ou denunciam? Promotores e delegados não deveriam se manifestar apenas nos autos do processo e do inquérito?

RR: Um julgamento (no júri) possui quatro partes essenciais e sem uma delas é vingança ou tirania: a acusação, a defesa, o juíz e os jurados. Eles efetivam um sistema harmônico e solidário na busca dos fatos e das leis aplicáveis a cada caso. Se o acusador (e antes dele a polícia) se permite vir a público, antes do julgamento e da sentença, para afirmar a culpa de um acusado, ele deixa o sistema e passa a operar como parte independente. Logo, subverte o sistema da justiça, abusa do seu múnus, age de maneira injustificavelmente tirânica. Gosto de recordar que a instituição do acusador público teve origem na Atenas democrática. Aquela figura, na primeira forma democrática, surgiu justamente para evitar a vingança das famílias, algo que impedia a unidade do Estado em guerras privadas. O acusador fala em nome da família ofendida, mas também em nome do povo. Contudo, naquele regime ateniense, o acusador, se não apresentasse provas ponderadas que levassem à condenação do acusado, deveria pagar multa pesada. Platão, nas “Leis”, propõe multas também para os juízes que não operam de acordo com o correto julgamento. Se, no Brasil, multas fossem aplicadas aos operadores do direito que trabalham na acusação e extrapolam seus limites, boa parte do apelo midiático (que os leva a operar fora do sistema judicial correto) já teria desaparecido.

JP: Qual a importância da interdisciplinariedade do curso de direito com outros ramos do conhecimento? O que as demais ciências humanas podem acrescentar ao jurista?

RR: Existem trabalhos sobre o assunto, de modo que eu pouco acrescentaria ao ponto. Mas com o nível e complexidade das informações teóricas e práticas a que chegamos hoje, quase nenhuma especialização dispensa o auxílio de pesquisas conexas. Isto ocorre nas ciências da natureza, nas matemáticas, na lógica e no direito. A informação pluridisciplinar permite ao profissional perceber nexos entre problemas e soluções que permaneceriam ignorados nos limites estreitos e estritos das supostas especializações.

JP: Quais seriam os pensadores que o senhor entende fundamentais aos estudiosos do direito?

RR: Ouso indicar um apenas. Como disse alguém, toda a filosofia do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé aos seus livros: Platão.

JP: Agora uma questão mais polêmica, que envolve direito e outros ramos do conhecimento: qual sua opinião a respeito da eutanásia?

RR: A morte abraça a vida desde a gênese dos seres. Como diz André Leroi-Gourhan, um etnólogo maior do século 20, os humanos construíram seu corpo e seus instrumentos na luta, de instante a instante, contra a violência da natureza, ou seja, da morte. E sabemos, com as teses sobre a entropia, que os mundos, as estrelas, as constelações, o universo, todos morrem. Importa sobremodo determinar o jeito pelo qual o tempo que nos resta é usado, se a soma das tristezas e misérias é menor ou maior do que a que resulta em felicidade.

Desconfio das palavras e atos que se iniciam com a inicial grega "eu". Tais ações e termos podem conduzir a coisas deslumbrantes e saudáveis, como é o caso do Euangelion (Evangelho, boa notícia). Mas não podemos ignorar o quanto o século 20 se esmerou em atrocidades em nome da eugenia e da eutanásia. Basta ler o pungente livro de Edwin Black, A Guerra contra os Pobres, traduzido para nossa língua pela Editora Girafa. Aliás, as raízes da violência contra os desvalidos vem do predomínio, sem demasiadas vigilâncias, da ordem médica. Não é preciso aprovar as análises de Michel Foucault sobre o poder da clínica, para suspeitar de medidas supostamente oferecidas para "minorar o sofrimento" humano. Um dado: ainda no século XVI, o estatuto do louco era o de "ausente". Aos juízes e advogados, era atribuído o seu cuidado. Se houvesse "retorno a si", decidido pelo juiz, o tutor do louco deveria prestar contas a ele e à sociedade de a respeito de sua pessoa, seus bens etc. Com o domínio do "saber médico", no entanto, o estatuto do louco passou a ser o de morto. Os abusos, a falta de proteção jurídica e toda uma panóplia de malefícios surgiram do poder médico. A história dos choques, das castrações e outras, ainda mais trágicas (que desembocaram no Holocausto), indica que devemos, se quisermos ser prudentes, desconfiar de doutrinas "humanitárias" como a eutanásia. Quem desejar informações sobre o que digo, recomendo a leitura do simpósio internacional ocorrido em Bruxelas: Folie et déraison à la Renaissance. Colloque international (1973), Fédération Internationale des Instituts et Sociétés pour l'Etude de la Renaissance, Bruxelles, Editions de l'Université de Bruxelles. Decisões "humanitárias" levam, de maneira constante, a decisões como a do juiz norte-americano que exigiu a castração de uma jovem, depois de a mãe da mesma jovem ter sido castrada, em nome do bem-estar social. Basta conferir o processo Buck versus Bell, no qual se definiu o direito de usar a eugenia em nome da "proteção e da saúde do Estado". As vítimas, supostamente, deveriam consentir no "bem maior" em favor do coletivo. Alí se consagrou a doutrina eugênica, exportada para a Alemanha e nela usada como instrumento de aniquilação de massa.

Face à dor que antecede a morte, é previsível que entes humanos desejem a libertação com o fim da vida. Mas oficializar a licença para a morte, dando mais poderes ainda ao poder médico, anuncia desgraças futuras. Quem sofre dores insuportáveis não tem pleno domínio de si mesmo, seu livre-arbítrio está abalado até os fundamentos. Não esqueçamos a pressão coletiva, e mesmo de familiares, para que o fim seja apressado. O egoísmo se transforma, como por mágica (na verdade, a partir de intensa propaganda), em humanitarismo. Dar licença para a sua morte, sobretudo aos médicos, é retirar da pessoa doente a liberdade efetiva, atribuindo-a ao estamento médico, cuja arrogância "científica" já mostrou sobejos frutos de arbítrio, erros, atentados à ética. 

JP: Por fim, quando se fala em punição no Brasil, existem desigualdades?

RR: Sim, inúmeras. A Justiça lenta e apegada a ritos formais, e menos atenta à “epikéia”, conduz ao privilégio negativo (o conceito é de Max Weber) dos pobres e dos que não têm poder. O privilégio de foro demonstra o quanto somos uma sociedade injusta, com uma justiça que raramente merece seu nome.

***

ARTIGO
A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS DE PROTEÇÃO INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E AS NORMAS DO DIREITO INTERNO: CONSOLIDAÇÕES E CRÍTICAS.
Data: 24/11/2020
Autores: Luiz Gustavo Araujo

Sumário: Introdução - 1. Dualismo e monismo e a interface com o direito brasileiro - 2. As variadas formas de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos desenvolvida pelo direito comparado, pelo tribunal constitucional pátrio e pela doutrina: 2.1. A valoração dos tratados acima das normas constitucionais; 2.2. O § 3º do artigo 5º da Constituição Federal e a nova sistemática de valoração dos tratados de direitos humanos: 2.2.1. As críticas ao § 3º do artigo 5º da Constituição Federal; 2.3. O § 2º do artigo 5º da Constituição Federal e a cláusula de recepção material constitucional dos tratados de direitos humanos; 2.4. A incorporação dos tratados de direitos humanos como direito supralegal - Bibliografia.

Resumo: O presente artigo toma por base a sucessão do antigo Estado Legalista de Direito para o atual Estado Constitucional de Direito. Assim, é possível observar uma mudança no panorama internacional no que tange à proteção dos direitos humanos por meio dos tratados internacionais, bem como pela constitucionalização desses direitos humanos, por ora, quando constitucionalizados, denominados de fundamentais. As antigas discussões doutrinárias a respeito do mecanismo de incorporação dos tratados internacionais (monismo ou dualismo) passam a ser irrelevantes diante da nova sistemática constitucional adotada por diversos países, inclusive pelo Brasil, levando-se em consideração a chamada cláusula de recepção material de direitos fundamentais atípicos. Neste contexto, procurou-se demonstrar as mais atuais manifestações acerca da proteção internacional dos tratados de direitos humanos e sua incorporação, validade e hierarquia com relação ao direito pátrio. Dessa forma, apresentaram-se teorias desenvolvidas diante do direito comparado, pela doutrina atual, pelo acréscimo da Emenda Constitucional n. 45 e a mais recente inovação dada ao tema pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão que serve como parâmetro atualmente. Ainda, foram tecidas considerações críticas quanto à limitação interpretativa das disposições constitucionais por grande parte dos doutrinadores nacionais.

Palavras-chaves: Monismo/dualismo. Direitos humanos. Valoração dos tratados internacionais. Cláusula de recepção material aberta. § 3º do artigo 5º da Constituição Federal.

Introdução

Diante da nova sistemática normativa do Direito Internacional dos Direitos Humanos, foram apontadas objeções que inviabilizavam a aplicação dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, os quais compõem as denominadas normas jus cogens de direito internacional no ordenamento jurídico nacional.

Dentre as objeções apontadas, encontra-se a questão dos sistemas jurídicos, se estes são divisíveis, como defendem os dualistas, ou, ao contrário, se o sistema é uno, como propugnam os monistas.

Toda discussão decorre do ordenamento jurídico interno de cada Estado, via de regra, a própria Constituição Estatal é que dispõe sobre o quanto ao tema e, desta forma, adota os critérios aos quais se filia, optando por uma ou outra corrente doutrinária. Geralmente, as Constituições dos Estados dividem o tema em Direito Internacional Geral e Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo que, para cada um dos temas, adota um sistema diferente.

Hoje, as atenções se voltam à temática dos Direitos Humanos, devido a sua importância para a afirmação dos povos e da própria democracia como sistema de governo.

Durante muito tempo, estabeleceu-se entre nós a discussão sobre qual teoria, satisfatoriamente, define a ordem jurídica, seria a dualista ou a monista? Neste período, as duas teorias, em momentos diversos, tiveram preponderâncias uma à outra e, assim, estabeleceu-se um grande debate jurídico quanto a melhor opção.

A Teoria Dualista ou Pluralista, como hoje é preferível, no cenário dos Tratados em geral, concebida no ano de 1899 pelo jurista Carl Heinrich Triepel, visualizava e defendia que, assim como nos dias de hoje, para que o direito internacional possa ter validade em determinado Estado, esse necessariamente precisa ser incorporado como direito interno, ou seja, tem de haver uma espécie de conversão. Ainda, segundo a doutrina, o direito internacional não tem o condão de legitimar direitos aos indivíduos, mas sim somente entre os Estados.[1] .

Melhor esclarecendo, no contexto em que se desenvolveu o dualismo, torna-se imperioso mencionar que, neste momento da história, somente os Estados soberanos detinham a qualidade de sujeitos de Direito Internacional.[2]

Em suma, este é o conteúdo da doutrina dualista, segundo a qual esta se torna inconcebível a submissão do Estado nacional e soberano às normas do Direito Internacional. Necessariamente, deverão os tratados internacionais ser incorporados pelo Direito Interno a fim de que com esse se conformem e passem a ter executoriedade.

Em posição oposta ao dualismo encontra-se a doutrina do monismo que, por sua vez, defende a interação dos sistemas jurídicos de maneira unitária. Desenvolvida inicialmente por juristas contrários ao dualismo, teve como forte aliado em seu desenvolvimento o jurista Hans Kelsen.

Dentro do monismo ainda há divergência sobre a prevalência do Direito Internacional ou do Direito Interno. Daí advém a subdivisão, intitulada como monismo com primado no Direito interno e monismo com primado no Direito Internacional.[3]

1. Dualismo e monismo e a interface com o Direito brasileiro

Como se pode notar, a discussão que permeia o tema é antiga e o debate se estende desde o século XIX e há entre as divergências das doutrinas dualista e monista um grande contraponto que é a soberania estatal.[4] Nesse diapasão, na atualidade, diante do moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos, a tendência das Constituições modernas é que optem pelo monismo, tendo em vista que, diante do que dispõe sua doutrina, a soberania estatal sofre forte limitação em detrimento da incorporação do Direito Internacional humanitário.

Essa questão da soberania é relevante quando estudamos a moderna proteção internacional dos Direitos Humanos, já que, diante desta estrutura, não está legitimado apenas o Estado como sujeito de direitos, mas também o ser humano, indo contra o voluntarismo apregoado pela doutrina dualista.

Desde já, é necessário salientar que, por opção do legislador constituinte brasileiro de 1988, adotou a nossa Constituição o modelo dualista quanto aos tratados internacionais gerais. Isso se depreende dos artigos 84, incisos VII e VIII, 49, inciso I, e 59, inciso V, art. 102,III b, todos da Constituição da República brasileira, conforme citados, in verbis:

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

VII- manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;

VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;”

“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;”

“Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

(...)

VI - decretos legislativos;”

“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

(...)

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

(...)

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;”

Além desses mencionados dispositivos integrantes da Constituição, devemos ainda nos atentar que esta é a orientação da Corte Suprema nacional[5] desde o século passado, afinal as antigas Constituições também regulavam o Direito Internacional de maneira bem parecida com a atual.

Merece crítica o ponto em que foi tratada a matéria do Direito Internacional em nossa Carta Magna de 1988, na parte de incorporação dos tratados de direitos humanos, tendo em vista que poderia ter sido mais esclarecedora, inclusive porque tal maneira lacunosa dá azo a interpretações pouco coerentes do sistema quando se cuida dos Direitos Humanos reconhecidos pelos tratados internacionais e pela comunidade internacional.

Por outro lado, no tocante aos tratados internacionais que têm como objeto os Direitos Humanos, defendem a maioria dos doutrinadores pátrios e estrangeiros, ainda com recente apoio do Supremo Tribunal Federal, que aqueles devem ser incorporados ao Direito Interno no momento em que são ratificados e passam a preencher as exigências de conclusão de um tratado, inclusive com o depósito do competente instrumento no local pactuado.

Assim, estaria se reconhecendo o valor do monismo para o Estado brasileiro quando o assunto é a proteção dos direitos elementares de todos os povos.

Os tratados internacionais, atualmente, constituem meios mais usuais pelos quais os Estados se obrigam entre eles e para com os indivíduos (posição adotada quando se trata de direitos humanos), observando o princípio da boa-fé e do pacta sunt servanda, consistindo, assim, em legítimas obrigações contraídas e que deverão ser cumpridas sob pena de sanção.

Nessa esteira, defendendo a cogência dos direitos humanos e princípios internacionais, elucida Arthur Cortez Bonifácio:

“(...) a Constituição brasileira acompanha a tendência de universalização do direito internacional público, o que significa a aceitação crescente de normas e princípios internacionais de caráter imperativo; a ordem constitucional brasileira faz uma opção pelo sistema misto, adotando o sistema de recepção plena ou automática somente quanto à matéria relativa de direitos humanos” (BONIFÁCIO, 2008, p. 187).

Na atualidade, já se fala em Direito Constitucional Internacional, e, num futuro, já vislumbra-se um Direito Constitucional Internacional uno. Para tanto basta conferir o atual art. 4º e seus incisos, da Constituição Federal, que estabelece princípios nos quais deverá o Estado brasileiro se reger diante de suas relações internacionais.[6]

Diante do dispositivo aludido, é possível concluir que a relação entre o Direito Interno e o Direito Internacional é íntima e que realmente se complementam, assim nos dizeres de Luiz Flávio Gomes, se retroalimentam.

Ainda no contexto aludido, depois de se analisar o § 2º do art. 5º da CF, mais uma vez se afirmará a tese de recepção automática dos tratados que versem sobre Direitos Humanos e sua incorporação material à Magna Carta.

Nosso propósito com este estudo não é aprofundar e dissecar a discussão doutrinária acerca do dualismo e monismo, para isto seria necessário um trabalho específico.[7]

2. As variadas formas de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos desenvolvida pelo direito comparado, pelo tribunal constitucional pátrio e pela doutrina

Superada a antiga discussão quanto à opção pela doutrina dualista ou pelo monismo, seja com primado na ordem interna, seja na ordem internacional, voltamos ao debate, agora, mais especificamente no tocante aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, para esclarecermos outra questão tormentosa, questão essa que está diretamente ligada a opção pelo dualismo ou pelo monismo. Trata-se da incorporação dos tratados de direitos humanos ao direito brasileiro ou como são recepcionados.

Embora tenha sido demonstrada claramente a posição pela hierarquia constitucional destes tratados de direitos humanos, este item se faz necessário para apresentar outras posições e firmar de uma vez o entendimento de que tais direitos humanos advém da ordem internacional e merecem ser encarados como preceitos constitucionais, em que, entre eles e os demais direitos humanos, não haverá hierarquia.[8]

Delimitando o objeto de estudo deste item, citamos as seguintes correntes:

a) os tratados de direitos humanos teriam hierarquia supraconstitucional, posição adotada dentre diversas Constituições estatais, por exemplo, a portuguesa;

b) os tratados de direitos humanos serão recepcionados como Emendas Constitucionais, conforme preencham o rito previsto no art. 5º, § 3º, da CF;

c) os tratados de direitos humanos serão recepcionados como normas constitucionais materialmente, independente da formalidade mencionada acima. Este entendimento deriva da denominada cláusula aberta, prevista no art. 5º, § 2º, da CF;

d) serão, os tratados de direitos humanos, incorporados como direito supralegal, ou seja, o tratado terá uma posição entre as leis ordinárias e a própria Constituição, posição esta com supedâneo em atuais decisões do STF;

e) serão, os tratados de direitos humanos, incorporados com força de leis ordinárias, conforme esta antiga posição do STF.

Esse tema encontra-se hoje bem polarizado entre duas correntes no Brasil: de um lado temos os vários doutrinadores que defendem a incorporação material constitucional dos tratados de direitos humanos; e de outra banda, temos as atuais decisões do STF nas quais é defendida a posição supralegal destes tratados.

2.1 A valoração dos tratados acima das normas constitucionais

De fato, algumas Constituições atualmente passaram a dispor, de maneira expressa em seus preceitos, regras que dão maior alcance às normas de direito internacional, principalmente em relação ao direito internacional dos direitos humanos.

Dentre estes sistemas, o que mais se assemelha ao brasileiro, em termos gerais, é o lusitano. No entanto, quando o assunto é a proteção internacional dos direitos humanos, a interpretação dada ao art. 16, 1 e 2 da Constituição Portuguesa é no sentido de que o direito internacional dos direitos humanos se sobrepõe àquela Constituição.

Nesta esteira, é o ensinamento da doutrina de Artur Cortez:

“Podemos considerar de alta juridicidade as opiniões levantadas, tomadas em função dos arts. 8.1, 16.1 e 16.2 da Constituição Portuguesa, especialmente ao considerar o direito internacional geral ou comum e o direito relativo aos direitos humanos como de hierarquia superior à Constituição. Trata-se de doutrina sistematizada e consentânea com os novos paradigmas do direito internacional, decorrentes da relativização da soberania em nome do apoio que se deve dar ao universalismo e, alternativamente, ao direito comunitário e ao privilégio à política de proteção dos direitos humanos” (BONIFÁCIO, 2008, p. 194).

Por ora, cumpre salientar, como mencionado por Bonifácio (2008, p. 204): “(...) em razão da redação do art. 16.2, que determina que ‘os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem’”. Como se pode denotar a opção dos legisladores lusitanos é expressa e constitui uma ótima fonte para as demais Constituições, trata-se de um dos melhores dispositivos constitucionais quanto à matéria.

Seguindo essa posição, encontram-se as Constituições da Holanda (art. 91.3), da Colômbia (art. 93) e da Guatemala (art. 46). Nestas Constituições, o sistema previsto é de recepção imediata e consequente derrogação das normas constitucionais.

A ampla maioria das Constituições que possuem esse tipo de disposição assegura, tão somente, essa supremacia quanto aos tratados de direitos humanos.

2.2 O § 3º do artigo 5º da Constituição Federal e a nova sistemática de incorporação dos tratados de direitos humanos

No ano de 2004, após vários debates doutrinários e jurisprudenciais quanto à constitucionalidade ou não dos tratados de direitos humanos diante da regra de abertura material proveniente do § 2º do art. 5º da CF, é que foi introduzido, pela Emenda Constitucional n. 45, o preceito normativo do § 3º, in verbis:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

No entanto, embora tenha o legislador encontrado um meio formal de elevar os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao status de norma constitucional, acabou, noutro lado, por gerar imensos equívocos numa doutrina que já se encontrava sedimentada pelos juristas pátrios, no que tange à interpretação do § 2º do art. 5º da CF.

Para tanto, lançamos mão da questão pontual proposta por Valério Mazzuoli:

“Na medida em que a nova alteração constitucional prevê que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos somente equivalerão às emendas constitucionais uma vez que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respecitvos membros, fica a questão de saber se o novo § 3º do artigo 5º da Constituição, acrescentado pela Emenda nº 45/2004, prejudica ou não o entendimento que já vinha sendo seguido em relação ao § 2º do mesmo artigo 5º da Carta de 1988, no sentido de terem os tratados de direitos humanos status de norma constitucional” (MAZZUOLI, 2007, p. 167).

Como se pode notar, ao contrário do que se pensava, a inclusão do § 3º não alterou significativamente o panorama central da incorporação do direito internacional dos direitos humanos.

A opção da ampla maioria dos doutrinadores continua a ser aquela que pugna pela incorporação material de status constitucional em razão da cláusula de recepção semiplena prevista no § 2º do art. 5º da Carta da República.

A defesa do § 3º é que sua finalidade essencial é somente para dar o suporte aos tratados da devida formalidade de emenda constitucional e, neste entendimento, corrobora a doutrina de Valério Mazzuoli:

“O que se deve entender é que o quorum que tal parágrafo estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do § 2º do artigo 5º da Constituição” (MAZZUOLI, 2007, p. 184).

Neste sentido, boa parte da doutrina defende que os efeitos do § 3º do art. 5º da CF não devem retroagir para atingir àqueles tratados de direitos humanos que já produzem seus efeitos em decorrência de sua incorporação como norma de status constitucional. Assim, continua expondo Valério:

“O raciocínio faz chegar à conclusão de que o § 3º do artigo 5º não pode abranger situações pretéritas (como as normas constitucionais em geral também não podem), não podendo ter jamais efeito ex tunc, e portanto, poderá somente ser aplicado aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados posteriormente à data de sua entrada em vigor (8 de dezembro de 2004)” (MAZZUOLI, 2007, p. 185).

Objetando esse entendimento, nosso estudo propõe uma análise de outra faceta da matéria, também abordada com profundeza por Valério de Oliveira Mazzuoli, que seriam as diferenças entre os efeitos produzidos pelos §§ 2º e 3º, ambos da Constituição, que podem levar o intérprete e estudioso do tema a integrar e harmonizar a convivência desses dois dispositivos constitucionais da melhor maneira possível. Nesse diapasão, a abordagem de Mazzuoli:

“No nosso entender a diferença existe, e nela está fundada a única e exclusiva serventia do imperfeito § 3º do artigo 5º da Constituição, fruto da Emenda Constitucional nº 45/2004. Falar que um tratado tem ‘status de norma constitucional’ é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material (e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele é ‘equivalente a uma emenda constitucional’, o que significa que esse mesmo tratado já integra formalmente (além de materialmente) o texto constitucional. Perceba-se que, neste último caso, o tratado assim aprovado será, além de materialmente constitucional, também formalmente constitucional. Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto constitucional em vigor, à luz dos princípios constitucionais e internacionais de garantismo jurídico e de proteção à dignidade humana, chega-se a seguinte conclusão: o que o texto constitucional reformado quis dizer é que esses tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que já têm status de norma constitucional, nos termos do § 2º do artigo 5º, poderão ainda ser formalmente constitucionais (ou seja, ser equivalentes as emendas constitucionais), desde que, a qualquer momento, depois de sua entrada em vigor, sejam aprovados pelo quorum do § 3º do mesmo artigo 5º da Constituição” (MAZZUOLI, 2007, p. 186).

Como consequência da conversão dos tratados de direitos humanos em emendas constitucionais, temos o fato de que haverá uma reforma parcial da Constituição, assim, por mais que tenha se reconhecido este estado de norma constitucional material, com tal trâmite de emenda, passará o tratado a integrar formalmente a Constituição.

Por conseguinte, a reforma certamente alterará disposições da Constituição e tais alterações poderão ser para pior, tendo em vista que o tratado pode conter norma que restrinja algum direito previsto na Carta constitucional, e isso pode gerar um grande malefício para as vítimas dos direitos humanos, dessa forma, completamente inadmissível diante da interpretação do princípio pro homine.

Para que não haja tal equívoco, a solução a ser adotada diante das diversas fontes de direitos humanos é preservar-se uma única hierarquia, conforme conteúdo do princípio interpretativo pro homine.[9] Sendo os tratados de direitos humanos incorporados pela Constituição como emendas constitucionais, estes, agora direitos fundamentais, deverão conviver com os demais. Assim, não há que se falar em revogação ou invalidade de uma ou outra norma para que numa eventual aplicação possa ser alcançada aquela norma que mais beneficie a vítima da lesão. Esse entendimento deriva, inclusive, da redação que estabelece como cláusula pétrea os direitos e garantias fundamentais, prevista no art. 60, § 4º, inciso IV, da CF.

Outra consequência atribuída a tal regime de incorporação do § 3º, neste ponto positiva, é no que tange a denúncia a ser realizada contra os instrumentos de proteção dos direitos humanos. Sob a posição da equiparação material dos tratados à Constituição é possível a denúncia do tratado, de competência atribuída exclusivamente ao Presidente da República (diga-se de passagem, um erro), no entanto, embora seja admitida a denúncia, entende boa parte da doutrina que está não geraria efeito algum, já que o tratado ainda seria válido, por disposição da cláusula pétrea.

Incorporado como emenda constitucional, então, não haverá mais nenhuma preocupação quanto à denúncia, já que mesmo que esta seja realizada, ainda assim o tratado humanitário estará formalmente em nosso ordenamento jurídico.

Assim, leciona Valério Mazzuoli:

“De acordo com o § 3º do artigo 5º, uma vez aprovados os tratados de direitos humanos, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão eles ‘equivalentes às emendas constitucionais’. Passando a ser equivalentes às emendas constitucionais, isto significa que não poderão esses tratados ser denunciados mesmo com base em Projeto de Denúncia encaminhado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional. Caso o presidente entenda por bem denunciar o tratado e realmente o denuncie (perceba-se que o Direito Internacional aceita a denúncia feita pelo Presidente, não se importando se, de acordo com seu direito interno, está ele autorizado ou não a denunciar o acordo), poderá ser responsabilizado por violar disposição expressa da Constituição (...)” (MAZZUOLI, 2007, p. 192).

Ainda, a respeito do § 3º, há discussões acerca de sua constitucionalidade, quanto à sua redação, entre outros aspectos que serão a seguir analisados.

2.2.1 As críticas ao § 3º do artigo 5º da Constituição Federal

Diante da inclusão do § 3º no artigo 5º da Constituição, que, como pontuam alguns doutrinadores, como Valério Mazzuoli, Flávia Piovesan, Cançado Trindade, André Tavarez, dentre outros, se demonstrou completamente descriteriosa e acabou, de certo modo, por colocar em conflito os preceitos do § 2º e § 3º do art. 5º. Logo, faltou ao legislador, mais uma vez, bom senso, sobretudo para descurar a vontade do legislador constituinte.

Ainda, com tal atitude, o Brasil, por meio de seu poder constituinte reformador, demonstra um total descompromisso com os princípios adotados pela Constituição em nome da boa relação internacional e com seus respectivos órgãos, caracterizando um completo retrocesso quanto à matéria de proteção internacional dos direitos humanos.

Com isso, o Brasil opta por introduzir em sua ordem o malfadado conceito de soberania absoluta, que há muito, desde os tempos do legislador constituinte, já fora abandonado:

“Além de demonstrar total desconhecimento do direito internacional público, notadamente das regras basilares da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em especial as de jus cogens, traz o velho e arraigado ranço da já ultrapassada noção de soberania absoluta” (MAZZUOLI, 2007, p. 175).

É possível acrescentar a este argumento que, com tal atitude, o legislador pátrio veio a limitar o alcance das normas de direitos humanos provenientes de tratados e convenções, ofendendo, assim, o princípio da dignidade humana diretamente.

Tal entendimento poderá culminar na declaração de inconstitucionalidade do dispositivo em comento, e o entendimento acima exposto não seria o único a embasar a declaração. Outro contundente argumento provém da doutrina de Ingo Sarlet, que aponta:

“Da mesma forma argumenta-se que a inovação trazida pela EC 45 é inconstitucional por violar os limites materiais à reforma constitucional, no sentido de que acabou dificultando o processo de incorporação dos tratados internacionais sobre direitos humanos e chancelando o entendimento de que os tratados não incorporados pelo rito das emendas constitucionais teriam hierarquia meramente legal, de tal sorte que restou restringido, desta forma, o próprio regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais oriundos dos tratados” (SARLET, 2008, p. 62).

Incongruências não faltam diante da redação do § 3º, inclusive afirma boa parte dos juristas que com tal regra houve uma temerária hierarquização dos tratados de direitos humanos.

Essa crítica tem fundamento lógico, primeiro que, se de tal sistema resulta em interpretações diversas, falta segurança jurídica e, consequentemente, neste particular, há uma insegurança quanto à hierarquia dos tratados ratificados anteriormente à Emenda Constitucional n. 45.

Não poderia o legislador, diante de uma interpretação completamente distorcida que o STF já realiza atinente à cláusula de recepção semiplena dos tratados de direitos humanos, vir e praticamente ratificar esse entendimento, já que, diante de uma interpretação pouco inteligível da redação do § 3º, pode decorrer que se sedimente de uma vez um valor legal aos tratados de direitos humanos.

Mais uma vez invocam-se os ensinamentos de Valério Mazzuoli para esclarecer este absurdo:

“(...) também rompe a harmonia do sistema de integração dos tratados de direitos humanos no Brasil, uma vez que cria ‘categorias’ jurídicas entre os próprios instrumentos internacionais de diretos humanos ratificados pelo governo, dando tratamento diferente para normas internacionais que têm o mesmo fundamento de validade, ou seja, hierarquizando diferentemente tratados que têm o mesmo conteúdo ético, qual seja, a proteção internacional dos direitos humanos” (MAZZUOLI, 2007, p. 176).

Trata-se de um absurdo jurídico referida interpretação, completamente divorciada do sistema ético e da prevalência dos direitos humanos fundados na dignidade das pessoas. Para ilustrar ao que pode levar tal interpretação, Artur Cortez aduz:

“Seria complicado imaginar a Convenção Americana de Direitos Humanos com hierarquia inferior a um tratado que fosse submetido ao novo regramento. Na realidade estaríamos malferindo a regra isonômica, porque o que conduz a hierarquia de tratado, nos termos analisados, é a matéria versada, em última análise, é a completa proteção do homem e da sua dignidade, segundo objetivos constitucionais bem delineados no preâmbulo, no art. 1º, III (Princípio da Dignidade da Pessoa Humana), no art. 3º, I, III, e IV (quanto aos objetivos da República Federativa do Brasil), no art. 4º, II (quanto à prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais) e em todo Título II, relativo aos direitos fundamentais” (BONIFÁCIO, 2008, p. 211-212).

No que concerne a aplicação do novo procedimento de incorporação dos tratados de direitos humanos, surge outro problema, já que não expressa o preceito normativo que decorre do § 3º se será obrigatório ou não o procedimento para conversão em emenda constitucional.

Abalizado pela melhor doutrina, entre elas a de Sarlet e Mazzuoli, este estudo aponta que tal sistema, para que encontre efetividade, deverá ser cogente, para novamente não invocarmos a insegurança jurídica. Assim, Ingo Sarlet, ao corroborar com Valério Mazzuoli, expressa:

“Como igualmente bem aponta o referido autor, compromete a segurança jurídica (nacional e internacional) e os princípios que regem as relações internacionais deixar ao alvedrio do legislador nacional a escolha de optar, ou não, pela outorga do status de emenda constitucional aos tratados, o que justamente parece representar, no fundo, mais um argumento em prol da cogência do novo procedimento a partir da entrada em vigor da EC 45” (SARLET, 2008, p. 65).

No momento, a solução encontrada que decorre da doutrina, e apoiada em razoáveis fundamentos, é aquela que procura integrar o sistema, que compreende, neste caso concreto, os §§ 2º e 3º do art. 5º da CF, em busca de dar maior alcance ao § 2º por ele estabelecer a recepção material constitucional dos tratados, priorizando, dessa forma, a norma estabelecida pelo constituinte originário, a qual, como sabemos, não poderá sofrer condicionamentos.

Assim, o mesmo fundamento que antes fora utilizado para demonstrar eventual inconstitucionalidade do § 3º serve, também, para reforçar o sentido interpretativo que deve decorrer da exegese do § 2º, tratando-se de harmonizar ambos dispositivos para que, quando o tratado não seja incorporado como emenda constitucional, adequando-se material e formalmente à Constituição, seja reconhecida, de outro modo, a incorporação material diante do respeito à dignidade humana e à real intenção do poder constituinte originário de ver o Brasil como protetor dos instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos.

Cumpre consignar, ainda, que o § 3º deveria ter o sentido de reafirmar o já exposto no § 2º, todos do art. 5º da Constituição, o que mais uma vez demonstra o equívoco do legislador. Flávia Piovesan, neste sentido, pontua:

“Vale dizer, seria mais adequado que a redação do aludido § 3º do art. 5º endossasse a hierarquia formalmente constitucional de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados, afirmando – tal como o fez o texto argentino – que os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional” (PIOVESAN, 2007, p. 71).

Visando essa finalidade, no ano de 1999, Valério Mazzuoli encaminhou ao Congresso Nacional, um projeto no qual continha a seguinte redação como proposta. Vejamos:

“§ 3º - Os tratados internacionais referidos pelo parágrafo anterior, uma vez ratificados, incorporam-se automaticamente na ordem interna brasileira com hierarquia constitucional, prevalecendo, no que forem suas disposições mais benéficas ao ser humano, às normas estabelecidas por esta Constituição” (MAZZUOLI, 2007, p. 173-174).

Por fim, caberá ao STF, como órgão garantidor de nossa Magna Carta, a tarefa interpretativa, e esperamos que voltem os ministros a realmente dialogar com os textos da Constituição para que, assim, alcancem a real finalidade da norma e definam da maneira correta o tema.

2.3 O § 2º do artigo 5º da Constituição Federal e a cláusula de recepção material constitucional dos tratados de direitos humanos

A corrente a ser estudada agora deriva do § 2º do art. 5º da Constituição Federal e tem entre seus defensores parte considerável da doutrina, tais como Flávia Piovesan, Cançado Trindade, Artur Cortez Bonifácio, Valério de Oliveira Mazzuoli, Luiz Flávio Gomes, entre outros.

O status constitucional defendido por essa parte da doutrina se apoia na cláusula de recepção material de direitos humanos provenientes de tratados ou convenções internacionais. O § 2º apresenta a nós a típica inclusão de direitos fundamentais não enumerados na Constituição, consistindo, assim, em norma aberta, conforme decorre da leitura do parágrafo, in verbis:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (grifo nosso)

Como se pode notar, a segunda parte do § 2º expressa claramente a opção do legislador constituinte em que fossem inclusos, dentre a enumeração extensiva de direitos fundamentais, os tratados de direitos humanos.

Esta cláusula aberta é fruto de sugestão do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade em conferência realizada na então Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais em trabalhos da Assembleia Constituinte.

Como menciona Sílvia Loureiro:

“Nessa palestra, em que o Professor Cançado Trindade analisou tema como a experiência brasileira no campo da proteção internacional dos direitos humanos, sua projeção no campo do direito interno e as conseqüências resultantes de dita experiência para o campo do Direito Constitucional, destacou-se, dentre inúmeras outras recomendações, a sugestão trazida pelo Ilustre Jurista de se incluir no texto constitucional um modelo aberto de proteção dos direitos humanos” (LOUREIRO, 2004, p. 44).

Por óbvio, havia motivos para a inclusão da cláusula de direitos fundamentais atípicos. Em análise do contexto histórico, vemos que o ano de 1988 encontrava-se dentre as décadas nas quais foram elaboradas as amplas maiorias dos tratados de direitos humanos. Ainda, as Constituições daquele período também adotavam tal sistema aberto.

Outro fator relevante foi a inclusão em forma de princípio fundamental do Estado brasileiro da dignidade da pessoa humana. Somente tal princípio já alarga o leque de direitos e garantias fundamentais de maneira incrível.

Imbuído na busca de uma fundamentação adequada, Artur Cortez enfatiza duas, e assim leciona:

“1) o constituinte não teria exaurido o rol dos direitos fundamentais entre os catalogados; 2) as hipóteses de direitos cujos radicais apontem para a proteção da dignidade da pessoa humana, sintetizadas na igualdade e/ou na liberdade estão sempre a se renovar, assim como o ideal de vida digna das pessoas” (BONIFÁCIO, 2008, p. 209).

É neste sentido que, como já exposto, a doutrina, em regra, demonstra duas vertentes. De um lado, o tratamento conferido aos direitos humanos provenientes de tratados ou convenções internacionais, e, de outro, os demais tratados internacionais que abrangem diversos temas serão recepcionados como normas equiparadas às leis ordinárias.

Assim, na atualidade brasileira a discussão permeia tão somente os tratados relativos à matéria de direitos humanos até pelo tratamento especial que recebeu em decorrência da cláusula que conferiu um modelo de monismo no que tange as tratativas internacionais de direitos humanos.

Atento a essa situação, Artur Cortez assim esclarece, com supedâneo em Cançado Trindade:

“À realidade brasileira, Cançado Trindade, responsável pela inclusão do dispositivo em comento na Constituinte, esboça idêntica posição à de Flávia Piovesan, ao entender que o texto constitucional pátrio introduz um sistema misto de incorporação dos tratados ao ordenamento jurídico, nesses termos: i) por força no disposto no § 2º do art. 5º da Constituição, os tratados relativos aos direitos humanos ratificados pelo Brasil seriam incorporados automaticamente e exigíveis direta e indiretamente, com o nível axiológico dos direitos fundamentais (art. 5º § 1º); ii) à incorporação dos demais instrumentos internacionais, carecer-se-ia de intermediação do Poder Legislativo, por meio de normativo interno” (BONIFÁCIO, 2008, p. 215).

Diante do elemento material, qual seja os direitos humanos, foi dada essa condição de recepção automática pelo direito interno, estabelecendo assim vasos comunicantes entre o Direito Internacional e o Interno. Esses vasos comunicantes acabam por perfazer uma linha condutora que traz do âmbito internacional instrumentos de proteção dos direitos humanos materialmente recebidos e conformados com a Constituição nacional.

“Em outras palavras, ressalte-se que essas normas decorrentes dos tratados internacionais sobre direitos humanos, de natureza materialmente constitucional, por força do dispositivo em exame, possuem o mesmo status que as demais normas constitucionais definidoras dos direitos e garantias fundamentais inseridos na Carta de 1988 pelo Legislador Constituinte” (LOUREIRO, 2004, p. 89).

Tudo isto que está sendo analisado poderia ter maior eficácia não fosse a ação de alguns parlamentares que mudaram o projeto inicial proposto por Cançado Trindade, mas infelizmente houve a mudança e dela derivou o não apego do STF a esta tese e as demais divergências doutrinárias. A redação proposta inicialmente era bem clara no sentido que esses tratados internacionais mencionados no texto do art. 5º, § 2º, da CF seriam tratados de proteção dos direitos humanos.

Desta feita, a parte final do § 2º, proposta pelo Professor Cançado Trindade, assim era formulada, segundo Loureiro (2004, p. 59): “(...) quanto os consagrados nos tratados humanitários de que o Brasil é parte e nas declarações internacionais sobre a matéria de que o Brasil é signatário”.

A supressão do termo “humanitários” ainda hoje causa prejuízos a este tema, no entanto, deve ser superada por uma hermenêutica que leve em consideração os axiomas modernos acrescidos em nossa Magna Carta, que, de certa forma, corrigem o erro do passado.

Ademais, novamente levantamos a questão de interpretar a Constituição conforme a vontade do legislador constituinte. Este é um dos maiores desafios de hoje, e esta interpretação certamente nos levará a uma exegese que concretizará a real função deste § 2º do art. 5º da Constituição brasileira.

Mencionamos, ainda, que o reconhecimento de todos os tratados que preencham o requisito material de direitos humanos, sendo incorporados pelo sistema de recepção automática, se enquadraria aos anseios de não criar espécies hierarquizadas diversamente, mantendo, assim, a unidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, seja na ordem internacional, ou interna.

Todos esses fundamentos aqui expostos fazem com que este trabalho opte por este sistema de incorporação em completa consonância com os princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos humanos (art. 1º, inciso III, e art. 4º, inciso II, da CF), além dos demais valores éticos que o Direito na atualidade busca proteger de maneira positiva.

2.4 A incorporação dos tratados de direitos humanos como direito supralegal

Tal corrente, que defende a incorporação do direito internacional dos direitos humanos como norma supralegal, emana da atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,[10] o qual firmou referida posição, e tem como fundamento principal a complementação entre as leis infraconstitucionais e a própria Constituição.

Dessa situação resultaria o que o STF atualmente vem consolidando. Em casos de conflitos entre leis ordinárias e complementares com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, devem prevalecer os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, desde que em conformidade com a Constituição Federal.

Na visão de Artur Cortez:

“O posicionamento defendido não deixou de representar um avanço na jurisprudência do STF, ao pretender estabelecer um mecanismo de compatibilização entre a legislação infraconstitucional e os tratados de direitos humanos, desde que não fossem afetados dispositivos constitucionais. Ao sujeitar a legislação infraconstitucional – lei ordinária ou lei complementar – aos tratados de direitos humanos e estes à Constituição, a aplicação desta tese traria como implicação a prevalência dos tratados, no plano dos efeitos jurídicos, sobre as leis infraconstitucionais, ainda que fosse lícito admitir o exercício do controle de constitucionalidade contra as normas internacionais” (BONIFÁCIO, 2008, p. 223).

Essa forma de introdução dos tratados humanitários como norma supralegal encontra respaldo em outros ordenamentos jurídicos, como a Constituição alemã (art. 25), francesa (art. 55) e grega (art. 28).

Diante desta nova posição adotada pelo Pretório Excelso, podem-se extrair algumas considerações:

a) fica assim reconhecida a norma de direito internacional como fonte do direito interno;

b) a pirâmide jurídica passa a contar com uma outra hierarquia que posiciona os tratados internacionais acima das leis infraconstitucionais, mas abaixo da Constituição;

c) nos processos de elaboração de novas leis, deverá ser observado, agora, se não há contrariedade ao direito internacional que disciplina normas de proteção aos direitos humanos.

No tocante à vinculação aos tratados de direitos humanos para elaboração de novas leis, aborda Luiz Flávio Gomes:

“A primeira e natural conseqüência do que acaba de ser exposto é a seguinte: a produção da legislação ordinária, doravante, está sujeita não mais a uma senão a duas compatibilidades verticais (teoria de dupla compatibilidade vertical): toda produção legislativa ordinária deve ser compatível com a Constituição bem como com os Tratados de Direitos Humanos. A lei que conflita com a Constituição é inconstitucional; se se trata de lei antinômica anterior à Constituição de 1988 fala-se em não-recepção; a lei que conflita com os TDH é inválida (vigente, mas inválida), mesmo que se trate de lei anterior à sua vigência no Direito interno” (GOMES, 2007, p. 01).

Na verdade, a questão da supralegalidade dos direitos humanos internacionais somente tomou essa proporção devido a julgados recentes debatendo a matéria da prisão civil do depositário infiel.

No julgamento pelo Pleno do STF no HC 94307-RS, foi reconhecida a ilicitude da prisão civil por dívidas que não seja de natureza alimentar, assim como dispõe a norma internacional da Convenção Americana de Direitos Humanos, nestes termos:[11]

“EMENTA: PRISÃO CIVIL. Inadmissibilidade. Depósito judicial. Depositário infiel. Infidelidade. Ilicitude reconhecida pelo Plenário, que cancelou a súmula 619 (REs nº 349.703 e nº 466.343, e HCs nº 87.585 e nº 92.566). Constrangimento ilegal tipificado. HC concedido de oficio. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”

Outro julgado de importância reconhecida para que o STF chegasse a esse entendimento é o RE 466343-SP que possui a seguinte ementa:[12]

“EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”

Embora esta não constitua a posição deste trabalho, visualizamos nela uma evolução quanto à anterior posição do STF, o que já é significativo, tendo em vista a mudança hierárquica e a submissão legislativa das leis internas aos tratados de direitos humanos.

Não obstante o grande salto interpretativo decorrente dessa posição, é possível compreender que o fato de se reconhecer a supralegalidade dos tratados que não preencheram os requisitos do § 3º do art. 5º da Constituição levará a uma hierarquização das normas de direitos humanos, o que geraria uma interpretação desvirtuada do sistema internacional e interno de proteção à dignidade humana.

BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONIFÁCIO, Artur Cortez. O direito constitucional internacional e a proteção dos direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2008.

BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil. 35. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2005.

CAMPAGNOLO, Umberto; KELSEN, Hans. Direito internacional e estado soberano. Organizador: LOSANO, Mario G. Trad. Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. ampl. atual. Salvador: Jus Podivm, 2009.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

FRANCO, Marcelo Veiga. Direitos Humanos x Direitos fundamentais: matriz histórica sob o prisma da tutela da dignidade da pessoa humana. In: OLIVEIRA, Márcio Luís (org.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: interface com o direito constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

GARCIA, Emerson. Influxos da ordem jurídica internacional na proteção dos direitos humanos: o necessário redimensionamento da noção de soberania. In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras complementares de direito constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. Salvador: Jus Podivm, 2008.

GOMES, Luiz Flávio. Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008.

GONÇALVES, Thomas de Oliveira. Princípios processuais, materiais e indicativos do direito internacional dos direitos humanos: a subsidiaridade e a livre escolha, a universalidade e a superioridade normativa e a interpretação pro homine e a interpretação evolutiva. In: OLIVEIRA, M.L (org.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: interface com o direito constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Direito natural: visão metafísica e antropológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

LOUREIRO, Sílvia Maria da Silveira. Os tratados internacionais sobre direitos humanos na constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O novo § 3º do artigo 5º da Constituição e sua eficácia. In: GOMES, Eduardo Biacchi e REIS, Tarcísio Hardman (coords.). O direito constitucional internacional após a emenda 45/04 e os direitos fundamentais. São Paulo: Lex Editora, 2007.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. tomo IV.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

RIBEIRO, Patrícia Henriques. As relações entre o direito internacional e o direito interno: conflito entre o ordenamento brasileiro e normas do Mercosul. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

SARLET, Ingo Wolfgang. A reforma do judiciário e os tratados internacionais de direitos humanos: observações sobre o § 3º do art. 5º da Constituição. In: NOVELINO, M. (org.) Leituras complementares de direito constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. Salvador: Jus Podivm, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992.

SILVA, Lívia Matias de Souza. Soberania: uma reconstrução do princípio, da origem à pós-modernidade. In: OLIVEIRA, M.L. (org.) O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: interface com o direito constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

Luiz Gustavo Araujo

Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito.

[1] Destaca Patrícia Henriques Ribeiro, que (RIBEIRO, 2001, p. 40-41): “A concepção proposta por Triepel levou a denominada ‘teoria da incorporação’, ou seja, para que uma norma internacional fosse aplicada internamente em um determinado Estado seria necessário, inicialmente, a sua transformação em Direito interno, incorporando-a ao seu sistema jurídico.”

[2] Ao abordar o assunto, informa a doutrina de Patrícia (RIBEIRO, 2001, p. 40-41): “É importante destacar que o dualismo surgiu num momento em que somente os Estados soberanos eram considerados sujeitos de Direito internacional, mantendo relações através de tratados bilaterais, objeto de manifestação de sua vontade.”

[3] Nessa esteira, leciona Patrícia Henriques Ribeiro (RIBEIRO, 2001, p. 54-55): “Para os partidários desta teoria, tanto o Direito internacional como o Direito interno constituem um único sistema jurídico. Todavia, estão situados em campos opostos, sendo que uns defendem a primazia do ordenamento interno, enquanto outros defendem a primazia do ordenamento internacional.” Ainda, arremata a iminente autora (RIBEIRO, 2001, p. 55): “De acordo com os monistas, havendo um único sistema, ocorrerá a equiparação de sujeitos, fontes, objeto e estrutura das duas ordens, que estabelecem uma comunicação e ao mesmo tempo se interpretam. Ademais, o monismo foi elaborado sob o princípio da subordinação em que as normas jurídicas se acham subordinadas umas às outras.”

[4] A Soberania estatal hoje deve ser compreendida de maneira relativizada, segundo a moderna doutrina, haja vista que dogma como a indivisibilidade da soberania já não é absoluto. Hoje os sujeitos, membros de um Estado dito soberano, são legitimados de direitos humanos, inclusive com o poder de buscar uma solução em jurisdição internacional caso a doméstica não ponha fim ao problema. Trata-se de evolução sem volta, inclusive há doutrinadores, como Luigi Ferrajoli, que, num estudo aprofundado sobre o tema, defendem o fim da soberania, pois que, segundo escólio de Ferrajoli, a soberania é a negação do direito, assim como o direito é a negação da soberania.

[5] Vide RE n. 80.004 do STF.

[6] “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I - independência nacional;

II - prevalência dos direitos humanos; (grifo nosso)

III - autodeterminação dos povos; (grifo nosso)

IV – não intervenção;

V - igualdade entre os Estados;

VI - defesa da paz;

VII - solução pacífica dos conflitos; (grifo nosso)

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; (grifo nosso)

X - concessão de asilo político.”

[7] Para melhor conhecimento quanto à matéria ver: RIBEIRO, Patrícia Henriques. As relações entre o direito internacional e o direito interno. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. MELLO, Celso D. Albuquerque de. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. QUADROS, Fausto de; PEREIRA, André Gonçalves. Manual de direito internacional público. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1991.

[8] A hierarquização dos direitos humanos é algo desconsiderado pelos mais importantes teóricos do tema, pois que geraria uma indesejável valoração classista dos direitos humanos e fundamentais. Assim, apoiado na doutrina de Luiz Flávio Gomes, entendemos que (GOMES, 2008, p. 53): “(...) todas as normas que dispõem sobre os direitos humanos acham-se lado a lado, uma tem contato direto com a outra, uma se comunica com a outra, cabendo ao intérprete e aplicador do Direito eleger a que mais amplitude confere ao direito concreto.”

[9] Mais uma vez invocamos a lição de Luiz Flávio, segundo o qual (GOMES, 2008, p. 53-54): “Todas as normas sobre direitos humanos são vigentes, mas no momento de se eleger a que vai reger o caso concreto, aí sim ganha singular relevância o princípio pro homine, ou seja, vale a norma que mais amplia o direito, ou a liberdade, ou a garantia (aliás, sem mencionar expressamente o princípio ora em destaque, foi isso que o STF reconheceu nos HCs 90.172-SP e 88.420-PR).”

[10] Conforme os precedentes: RE 404276, HC 94307 e HC 89634, todos do Supremo Tribunal Federal.

[11] Disponível no sítio do STF: <http://www.stf.gov.br>.

[12] Disponível no sítio do STF: <http://www.stf.gov.br>.

ARTIGO
LA FUNCIÓN DE LA CORTE PENAL INTERNACIONAL EN LA PREVENCIÓN DE DELITOS ATROCES MEDIANTE SU INTERVENCIÓN OPORTUNA
Data: 24/11/2020
Autores: Héctor Olásolo Alonso

De la Doctrina de la Intervención Humanitaria y de las Instituciones Judiciales Ex Post Facto al Concepto de Responsabilidad para Proteger y la Función Preventiva de la Corte Penal Internacional(1)

El legado de atrocidades del siglo veinte muestra amargamente las deficiencias colectivas de las instituciones internacionales y el profundo fracaso de los Estados para cumplir con sus responsabilidades más básicas. Dada la gravedad y la duración en el tiempo de los costes generados para una sociedad por la comisión de delitos atroces (genocidio, crímenes de lesa humanidad y crímenes de guerra), el reforzamiento de la acción preventiva se convierte en fundamental. Esto aparece subrayado en el nuevo concepto de “responsabilidad de proteger”.

En la presente lección inaugural, se abordará la función de la Corte Penal Internacional (“CPI”) en la aplicación de este nuevo concepto a través de medidas distintas a aquellas que se dirigen a terminar con la impunidad de los responsables de delitos atroces ya cometidos.

I. La doctrina de la intervención humanitaria y el concepto de responsabilidad para proteger

Los años noventa vieron el establecimiento por las Naciones Unidas, o con la participación directa de las Naciones Unidas, de varios tribunales internacionales con jurisdicción sobre delitos atroces que ya se habían producido. Estos tribunales se caracterizaron por su primacía sobre las jurisdicciones nacionales, su naturaleza temporal y la limitación de su jurisdicción a situaciones de crisis determinadas, como el conflicto en la antigua Yugoslavia o el genocidio en Ruanda. En definitiva, como Leila Sadat y Michael Scharf han señalado, dichos tribunales no eran sino parte de una estrategia más amplia de las Naciones Unidas para enfrentar situaciones post-conflicto, siendo su objetivo principal promover la reconciliación.

La convivencia entre el fortalecimiento de la justicia penal internacional y el mantenimiento de un sistema internacional que, a través de su inacción, toleraba delitos atroces era insostenible. Por ello, los años noventa experimentaron también el desarrollo más importante de la doctrina de la intervención humanitaria y su aplicación a situaciones como las de Somalia, en 1993, y Kosovo, en 1999.

La doctrina de la intervención humanitaria tiene su fundamento en un entendimiento del concepto de soberanía como responsabilidad, cuyos orígenes pueden remontarse a las ideas de Francisco de Vitoria y Bartolomé de las Casas, las cuales llevaron a la aprobación, en 1552, de las Nuevas Leyes de Indias, en las que, por primera vez en la historia colonial europea, se abolía la esclavitud de los pueblos indígenas. Así mismo, al inicio del siglo XVII, el jesuita Francisco Suarez, representante principal de la Escuela de Salamanca en aquel periodo, subrayó que el origen del poder político se encontraba en el consenso de las voluntades libres y que, por lo tanto, los hombres tenían el derecho a desobedecer hasta el punto de terminar con un gobierno injusto. Con posterioridad, Hugo Grotious, John Locke y los teóricos del contrato social del siglo XVIII desarrollaron el concepto de soberanía como responsabilidad tal y como lo conocemos en la actualidad.

Sobre esta premisa, la doctrina de la intervención humanitaria, formulada, por primera vez, por Hersch Lauterpacht, al término de la Segunda Guerra Mundial, justificaba el derecho a la intervención armada en un Estado que no tenía la disposición o la capacidad para proteger a su propia población de los delitos atroces. Según sus seguidores, la intervención humanitaria de las Naciones Unidas o de terceros Estados, con la autorización o, incluso, sin la autorización de las Naciones Unidas, sería conforme con los principios de soberanía e integridad territorial recogidos en la Carta de las Naciones Unidas. Como estos principios se dirigirían a proteger a los ciudadanos de los Estados, y no a los Estados en cuanto entidades, no podrían aplicarse a favor de aquellos Estados que o bien cometían ellos mismos delitos atroces, o bien no eran capaces de prevenirlos.

La doctrina de la intervención humanitaria ha sido abandonada, de manera progresiva, en la última década, por varias razones. En primer lugar, no ha sido capaz de ofrecer criterios precisos que permitan definir aquellas circunstancias que darían lugar al derecho de intervención armada. En segundo lugar, no ha recibido un apoyo amplio porque, para muchos, la prohibición del uso de la fuerza contenida en la Carta de las Naciones Unidas no admite excepciones en casos de intervención humanitaria. En tercer lugar, como el concepto de intervención humanitaria se limita a ofrecer un mecanismo de reacción frente a situaciones en las que ya se han cometido delitos atroces, presenta a los Estados dos opciones igualmente indeseables: (i) permanecer impasibles; y (ii) enviar unidades militares para proteger a la población amenazada.

Con el declive de la doctrina de la intervención humanitaria y las limitaciones estructurales de las instituciones judiciales ex post facto, era necesario identificar nuevos mecanismos para la prevención de delitos atroces. El concepto de responsabilidad para proteger, adoptado por la Asamblea General de las Naciones Unidas en la Cumbre Mundial de 2005, reafirmado por el Consejo de Seguridad en 2006 y desarrollado por el Secretario General de las Naciones Unidas en 2009, pretende cumplir esta función.

Como la doctrina de la intervención humanitaria, el concepto de responsabilidad para proteger tiene también su fundamento en el entendimiento de la soberanía como responsabilidad. Sin embargo, presenta varios elementos propios, que, como Carsten Stahn ha señalado, le han permitido obtener una amplia aceptación en un corto espacio de tiempo. En primer lugar, aborda el dilema de la intervención armada desde la perspectiva de aquellos que sufren delitos atroces, y no desde la perspectiva de quienes alegan tener un derecho a intervenir.

En segundo lugar, los conceptos de responsabilidad e intervención no se limitan a la mera reacción frente a la comisión de delitos atroces. Por el contrario, el concepto de responsabilidad para proteger constituye una aproximación global a situaciones de crisis que se basa en la premisa de que una respuesta efectiva requiere una intervención continua que debe comenzar con la adopción de medidas de prevención. Sólo si estas medidas fallan será necesario reaccionar a la comisión de delitos atroces. Además, la elección de los mecanismos más apropiados para la reacción, incluyendo la intervención armada, debe tener en cuenta la necesidad de cumplir, con posterioridad, el compromiso de construir una paz duradera y promover el fortalecimiento del Estado de Derecho, la buena gobernabilidad y el desarrollo sostenible.

En tercer lugar, el concepto de responsabilidad para proteger se aplica conforme a un principio de complementariedad con tres pilares bien definidos. Conforme al primer pilar, aquellos Estados cuyas poblaciones se encuentran en peligro tienen la responsabilidad principal de protegerlas frente a la instigación y la comisión de delitos atroces. Cuando, debido a su falta de capacidad o control territorial, los Estados afectados no pueden proporcionar dicha protección, terceros Estados, así como la comunidad internacional en su conjunto, deben asistirles en aplicación del segundo pilar. Finalmente, en aquellos casos en los que las medidas de asistencia sean ineficaces por la falta de disposición de la clase dirigente nacional o la existencia de graves problemas de capacidad, la responsabilidad se traslada a la comunidad internacional para adoptar medidas rápidas y eficaces en aplicación del tercer pilar, lo que incluiría, también, en circunstancias excepcionales, la intervención armada.

En consecuencia, se puede afirmar que el concepto de responsabilidad para proteger pone su acento sobre la prevención, lo que, a su vez, ha favorecido que el centro del debate se haya trasladado, en gran medida, desde la determinación de los criterios que justificarían, o incluso requerirían, la intervención armada, con o sin la autorización de las Naciones Unidas, a la adopción de medidas de prevención eficaces.

II. Las dos dimensiones del mandato preventivo de la Corte Penal Internacional: prevención general e intervención oportuna

Así como el siglo XXI ha experimentado un progresivo alejamiento de la doctrina de la intervención humanitaria en aras del concepto de responsabilidad para proteger, también ha observado el paso desde las instituciones judiciales ex post facto hacia el establecimiento y consolidación de una Corte Penal Internacional de carácter permanente.

Como Cherif Bassiouni ha afirmado, la CPI representa un nuevo modelo de persecución y enjuiciamiento de delitos atroces porque: (i) ha sido creada por los Estados Partes a través de un tratado internacional; (ii) constituye una organización internacional independiente con un carácter permanente; y (iii) no es parte de la estrategia de las Naciones Unidas para hacer frente a situaciones de post-conflicto.

En particular, la CPI ha sido creada para conocer de situaciones de delitos atroces ocurridas a partir del 1 de julio de 2002 en el territorio de cualquiera de sus 114 Estados Partes, e incluso fuera de dicho territorio cuando haya una participación significativa de nacionales de Estados Partes o una remisión por parte del Consejo de Seguridad. Además, la CPI opera conforme a un régimen de complementariedad, conforme al cual sólo puede ejercitar su jurisdicción cuando los Estados afectados no actúan o, si lo hacen, no tienen la disposición necesaria o la capacidad suficiente para desarrollar de manera genuina sus actuaciones.

Existe una clara conexión entre el concepto de responsabilidad para proteger y el mandato de la CPI, en cuanto que ambos se centran en situaciones futuras de delitos atroces y tienen, como fundamento de actuación, la responsabilidad principal de los Estados afectados. Por esta razón, el Secretario General de las Naciones Unidas, Ban Ki-moon, se refirió, el año pasado, al Estatuto de la CPI como uno de los instrumentos claves en la aplicación del concepto de responsabilidad para proteger.

En este sentido, es importante subrayar que la CPI comparte con las instituciones judiciales ex post facto de los noventa el compromiso de terminar con la impunidad como medio para promover: (i) la prevención general positiva consistente en garantizar la aplicación del derecho penal internacional y reforzar, de esta manera, los bienes jurídicos protegidos por el mismo; y (ii) la prevención general negativa resultante de transmitir a la clase dirigente mundial el mensaje de que aquellos que incurran en delitos atroces no quedarán impunes. Este compromiso es cumplido mediante una combinación de actuaciones judiciales con relaciones internacionales, programas de sensibilización y actividades de información pública.

Es importante señalar que los esfuerzos de la CPI en materia de prevención general pueden asistir a los representantes de las Naciones Unidas y de otras organizaciones y a los Estados interesados que actúen en aplicación de los pilares segundo y tercero del concepto de responsabilidad para proteger, a la hora de subrayar ante las autoridades nacionales de los Estados afectados los costes de incurrir en delitos atroces y las ventajas de su desistimiento.

Sin embargo, a diferencia de las instituciones judiciales ex post facto de los noventa, el mandato preventivo de la CPI tiene una segunda dimensión consistente en la intervención oportuna en situaciones en las que existan amenazas concretas de futuros delitos atroces o en las que este tipo de delitos ya se están cometiendo. Esta segunda dimensión es principalmente desarrollada por el Fiscal de la CPI, a través de sus investigaciones preliminares e investigaciones, y puede cubrir un amplio abanico de situaciones tal y como lo demuestran:

i. las nueve mil comunicaciones recibidas hasta la fecha por el Fiscal, provenientes de personas y organizaciones residentes en más de 140 Estados; y

ii. la variedad de ubicaciones geográficas en las que se han llevado a cabo exámenes preliminares e investigaciones desde el año 2003: Afganistán, Colombia, Costa de Marfil, Darfur, Georgia, Guinea, Iraq, Kenia, Palestina, República Centro-Africana, República Democrática del Congo, Uganda y Venezuela.

Como el concepto de responsabilidad para proteger pone su acento en la prevención mediante una intervención rápida y efectiva, la segunda dimensión del mandato preventivo de la CPI, consistente en su intervención oportuna, puede contribuir significativamente al cumplimiento de la responsabilidad asumida por la Comunidad Internacional, conforme a los pilares segundo y tercero de dicho concepto.

III. La intervención oportuna de la Corte Penal Internacional como consecuencia de amenazas concretas de futuros delitos atroces

Los delitos atroces no son inevitables. Su comisión requiere un planeamiento y preparación que se extiende a lo largo del tiempo, en cuanto que son fruto de un esfuerzo colectivo llevado a cabo a través de un marco organizativo. Además, repetidas experiencias han mostrado que existe normalmente suficiente información sobre el hecho de que delitos atroces van a ser cometidos en un futuro próximo, la cual, desgraciadamente, es ignorada, desconsiderada o relativizada por altos dirigentes nacionales e internacionales con distintas agendas políticas. En consecuencia, las disposiciones legislativas sobre planeamiento, preparación, instigación y tentativa son de gran relevancia para la eficacia de los esfuerzos preventivos a través de una intervención oportuna.

Desde esta perspectiva, no puede causar sorpresa que, excepto en relación con la definición del delito de genocidio que ha sido tomada siempre verbatim de la Convención contra el Genocidio de 1948, la posición adoptada en el Estatuto de la CPI es significativamente distinta de la posición adoptada en los estatutos de las instituciones judiciales ex post facto de los años noventa. En estos últimos, tal y como William Schabas ha afirmado, no se incluyeron disposiciones sobre planeamiento, preparación, instigación y tentativa porque habrían sido superfluas, dado que los delitos ya se habían cometido.

El artículo 25 del Estatuto de la CPI recoge a la figura de la tentativa en relación con todos los delitos atroces (de manera que se encuentra limitada al delito de genocidio), entendiendo como tal la realización de “actos que supongan un paso importante para su ejecución”. Si bien esta definición de la tentativa requiere algo más que el mero planeamiento, el problema que plantea es el de donde establecer la frontera entre actos meramente preparatorios y conductas que constituyan realmente un “paso importante” para la ejecución de delitos atroces.

Ni el Estatuto de la CPI, ni la jurisprudencia de los tribunales internacionales ofrecen criterios a este respecto. Algunos sistemas nacionales, como el alemán, han adoptado un enfoque más restrictivo y requieren un movimiento directo hacia la consumación del delito. Otros sistemas, como el de los Estados Unidos, favorecen una concepción más amplia, conforme a la cual conductas como la posesión, obtención o fabricación del instrumento del delito o el seguimiento de la víctima serían suficientes para incurrir en responsabilidad penal por tentativa.

En consecuencia, si la jurisprudencia de la CPI adopta una concepción menos restrictiva de la figura de la tentativa, esta podría ser de aplicación en situaciones como la ocurrida en Ruanda, donde, durante dieciséis meses consecutivos, comenzando en 1993, más de medio millón de machetes fueron importados y distribuidos, junto con armas de fuego y granadas, bajo el disfraz de un pretendido programa de defensa nacional.

El artículo 25 del Estatuto de la CPI también atribuye responsabilidad penal a los actos de instigación pública y directa para cometer genocidio. A pesar de su limitación al delito de genocidio, el alcance de su aplicación podría ser significativo en situaciones como las ocurridas en Ruanda, donde, desde 1991, los medios de comunicación sistemáticamente incitaron a la población Hutu a cometer actos de violencia contra la población Tutsi, o en Camboya, donde, durante años, la radio del régimen de los Jémeres Rojos solicitó a sus radio-oyentes que “purificaran” la población de Camboya.

En relación con el delito de agresión, la definición recientemente aprobada en junio de 2010, durante la primera Conferencia de Revisión del Estatuto de la CPI, atribuye responsabilidad penal tanto al planeamiento como a la preparación de un acto de agresión.

Con ello, el Estatuto de la CPI se acerca, al menos en lo que se refiere al delito de agresión, a la regulación contenida en la gran mayoría de las legislaciones penales nacionales, en las que se atribuye responsabilidad penal a actividades tales como el acuerdo para la comisión del delito, la participación en el diseño de un plan criminal común o la contribución al establecimiento de las condiciones necesarias para su ejecución. De hecho, si hoy en día es ampliamente aceptado a nivel nacional que actos preparatorios de este tipo den lugar a responsabilidad penal, entendemos que no existe justificación para concluir lo contrario en la esfera internacional en relación con delitos de la magnitud y la gravedad de los delitos atroces.

Aunque la actual regulación de la instigación y la tentativa en el Estatuto de la CPI constituyen una base suficiente para la intervención oportuna de la CPI, no cabe duda que la extensión de la responsabilidad penal por planeamiento y preparación a todos los delitos atroces reforzaría significativamente la función preventiva de la CPI. Así mismo, en tanto en cuanto son líderes políticos y militares quienes se encuentran normalmente involucrados en el planeamiento y preparación de delitos atroces, el hecho de que la actividad de la CPI ponga particular énfasis en esta fase del inicial del iter criminis reduciría notablemente las controversias sobre algunas de las formas de responsabilidad puestas de manifiesto por Kai Ambos, George Fletcher, Göran Sluiter, Herman van der Wilt, Elise van Sliedregt, Tomas Weigend y Gerard Werle. Además, esta línea de actuación se encontraría plenamente en conformidad con el estándar de gravedad exigido por el Estatuto de la CPI y con la política de Luis Moreno Ocampo de centrar su actividad en “las personas más responsables”.

En tanto en cuanto una comunicación individual o una carta de remisión de un Estado Parte o del Consejo de Seguridad contiene indicios tangibles de instigación o de tentativa de delitos atroces, el Fiscal de la CPI tiene la obligación de abrir un examen preliminar, a través del cual se pretende distinguir entre aquellas situaciones que requieren la apertura formal de una investigación y aquellas otras situaciones que requieren otro tipo de tratamiento.

A los efectos de tomar esta decisión, no es suficiente con la obtención y análisis de información relativa a las alegaciones de instigación o tentativa. Por el contrario, es también necesario revisar la información disponible sobre inter alia:

i. la admisibilidad de la situación de que se trata, debido a la inacción, falta de disposición o falta de capacidad de las autoridades nacionales del Estado afectado y a la gravedad de la violencia; y

ii. la posible existencia de razones sustanciales para creer que la apertura de una investigación no redundaría en interés de la justicia.

Como consecuencia, como Antonio Cassese y David Scheffer han señalado, el Fiscal puede responder adecuadamente por razones de admisibilidad o intereses de la justicia cuando las autoridades nacionales de los Estados afectados adopten medidas significativas para prevenir la comisión de delitos atroces.

Además, según el artículo 25 del Estatuto de la CPI, quienes dan un paso importante para la ejecución de delitos atroces no serán penalmente responsables si desisten de sus esfuerzos para cometerlos o, de otra forma, impiden su consumación. Por lo tanto, el Fiscal puede cerrar un examen preliminar relativo a alegaciones de instigación o tentativa si su intervención oportuna ha contribuido a eliminar la amenaza de que delitos atroces puedan ser cometidos en un futuro cercano.

Si bien, durante sus exámenes preliminares, el Fiscal no puede adoptar medidas de carácter coercitivo ni puede solicitar a los Estados Partes varias de las formas de cooperación recogidas en el Estatuto de la CPI. El potencial que tienen dichos exámenes preliminares para incentivar a las autoridades nacionales de los Estados afectados no debería ser infravalorado.

Como lo demuestran varios exámenes preliminares, incluidos aquellos relativos a las situaciones en Georgia, Guinea y Palestina, el Fiscal, además de recibir testimonio y buscar información de diversos tipos de fuentes, puede: (i) enviar misiones a los Estados afectados; (ii) recibir en su oficina de La Haya a delegaciones de gobiernos nacionales, representantes del poder judicial, líderes de la oposición y ONGs; (iii) recomendar aquellas medidas que deberían ser tomadas a nivel nacional para eliminar la amenaza de delitos atroces; (iv) discutir una estrategia de prevención con las Naciones Unidas, así como con otras organizaciones y Estados interesados; (v) intercambiar información con actores nacionales e internacionales; y (vi) abordar, en los medios de comunicación, la evolución de los acontecimientos en los Estados afectados y el grado de cooperación de las autoridades nacionales.

La utilización de canales diplomáticos y medios de comunicación para llamar la atención del mundo sobre los planes de cometer delitos atroces de las autoridades nacionales de los Estados afectados, al tiempo que se subraya la posibilidad de que puedan evitar su enjuiciamiento ante la CPI si desisten de dichos planes y toman las medidas preventivas necesarias, puede ser un mecanismo particularmente efectivo.

Además, desde la perspectiva de asegurar una intervención oportuna frente a la existencia de amenazas concretas de delitos atroces, el Estatuto de la CPI ofrece posibilidades únicas. Así, mientras otros órganos de la comunidad internacional, como el Consejo de Seguridad o la Asamblea General de las Naciones Unidas, requieren normalmente de arduas negociaciones para tomar la decisión de intervenir en una determinada situación, el Fiscal de la CPI no necesita consultar con otras entidades interesadas antes de proceder a la apertura de un examen preliminar.

A pesar de la ausencia de pruebas concluyentes, existen indicios de que el examen preliminar en Afganistán contribuyó a que la OTAN, y en particular los Estados Unidos, definiesen, de manera más estricta, las condiciones para el lanzamiento de bombardeos aéreos. Los Estados Unidos también parecen haber reafirmado su compromiso de recurrir a sus propios mecanismos de investigación y enjuiciamiento internos, lo que parece haber provocado la apertura, en abril de 2010, de una investigación de alto nivel con respecto a las muertes de civiles presuntamente provocadas por fuerzas especiales norteamericanas.

Por su parte, el examen preliminar en Iraq, que comenzó a raíz de las numerosas comunicaciones individuales recibidas por el Fiscal desde el año 2003, fue cerrado debido a las actuaciones iniciadas por el Reino Unido con respecto a todas y cada una de las instancias en las que nacionales británicos pudieron verse involucrados en la comisión de crímenes de guerra.

Así mismo, el examen preliminar en Kenia parece haber fortalecido el mensaje enviado por el ex Secretario General de las Naciones Unidas, Kofi Annan, en el sentido de que no habría impunidad para quienes incurriesen en la comisión de delitos atroces.

Cuando no es posible incentivar a las autoridades nacionales de los Estados afectados a través de un examen preliminar, la fase de investigación de una situación, en la que el Fiscal puede recurrir a medidas coercitivas, así como a todas las formas de cooperación de los Estados Partes, puede constituir también un mecanismo eficaz para el cumplimiento del mandato preventivo de la CPI.

Así, el artículo 53 del Estatuto de la CPI atribuye al Fiscal la potestad de cerrar una investigación cuando “no hay fundamento suficiente para el enjuiciamiento”. Para adoptar esta decisión, es necesario analizar criterios semejantes a los aplicables durante la fase de examen preliminar. De esta manera, el Fiscal puede decidir el cierre de una investigación si la misma ha servido para hacer que autoridades nacionales renuentes adopten pasos significativos dirigidos a prevenir realmente la comisión de delitos atroces.

IV. La intervención oportuna de la Corte Penal Internacional cuando delitos atroces ya se están cometiendo

La intervención oportuna de la CPI puede tener lugar también en situaciones en las que ya se estén cometiendo delitos atroces. En estas situaciones, dicha intervención irá principalmente dirigida a poner fin a la comisión de dichos delitos. Además, el desistimiento de futuros delitos no excluirá la responsabilidad penal surgida por aquellos que ya hayan sido cometidos. Por lo tanto, en estos supuestos, el Fiscal sólo podrá decretar el cierre de sus exámenes preliminares e investigaciones por razones relativas a la admisibilidad o a los intereses de la justicia.

En este contexto, todo incentivo a las autoridades nacionales para poner fin a la comisión de delitos atroces debe ir acompañado de:

i. la asistencia a dichas autoridades nacionales para que puedan cumplir con su deber de investigar y enjuiciar los delitos ya cometidos (“complementariedad positiva”); y

ii. el reparto con la CPI, sobretodo cuando haya problemas serios de falta de capacidad, de la carga de investigar y enjuiciar dichos delitos (“complementariedad cooperativa”).

En consecuencia, el apoyo a los Estados afectados receptivos, para que fortalezcan sus sistemas nacionales de justicia y lleven a cabo sus propias actuaciones, constituye un elemento esencial de la intervención oportuna de la CPI, en cuanto que pilar básico de su mandato preventivo.

Como han afirmado William Burke-White y Christopher Hall, el Fiscal puede recurrir al tipo de medidas previstas en la sección anterior para cumplir con este mandato a través de sus exámenes preliminares e investigaciones. En particular, el Fiscal puede entrenar a los actores jurídicos nacionales en la investigación y el enjuiciamiento de delitos atroces y asistirles en el establecimiento de programas de diversa índole, incluyendo programas de protección de víctimas y testigos y administración y gestión de la información. Así mismo, puede monitorear el desarrollo de las actuaciones nacionales y dar su parecer al respecto, así como trabajar en coordinación con los otros órganos de la CPI para incrementar la eficacia de las medidas preventivas adoptadas.

En este sentido, es importante subrayar que, a pesar de la cooperación internacional de terceros Estados y organizaciones, las autoridades nacionales de los Estados afectados receptivos parecen tener una clara preferencia por recibir directrices de actuación directamente de funcionarios de la CPI. Debido a que las propias autoridades nacionales son conscientes de que sus esfuerzos por investigar y enjuiciar delitos atroces serán revisados en última instancia por la CPI, la recepción de criterios claros de actuación emitidos por la CPI es considerada por aquéllas como imprescindible para el éxito de dichos esfuerzos.

En consecuencia, el potencial de la CPI para contribuir a través de su intervención oportuna al fortalecimiento del Estado de Derecho y a la buena gobernabilidad en los Estados afectados receptivos es muy importante. El examen preliminar en Colombia ofrece ya a día de hoy indicios de este potencial.

Las investigaciones sobre los paramilitares, desmovilizados en Colombia a partir del año 2003, no comenzaron hasta que la Corte Constitucional colombiana se pronunció, en mayo de 2006, sobre la constitucionalidad de la ley de Justicia y Paz, pieza clave del proceso de desmovilización. Poco después, el Fiscal de la CPI hizo público su examen preliminar y, en octubre de 2007 y agosto de 2008, realizó sendas visitas a Colombia.

Desde entonces, la Sala de Casación Penal de la Corte Suprema de Colombia ha subrayado la importancia de centrar las investigaciones desarrolladas conforme a la ley de Justicia y Paz en: (i) el patrón de delitos atroces a que se vio sometida la población civil; y (ii) la estructura, composición y apoyo externo recibido por los grupos paramilitares que cometieron estos delitos. Este énfasis se ha visto reflejado en el Protocolo para la Presentación de Medios de Prueba adoptado el 23 de agosto de 2010 por la Sala de Enjuiciamiento de Justicia y Paz de Bogotá.

Así mismo, desde finales de 2007, la Sala de Casación Penal de la Corte Suprema colombiana ha venido desarrollando investigaciones y enjuiciamientos por presuntos vínculos con el paramilitarismo contra una tercera parte de los miembros del Parlamento Colombiano, así como contra diecinueve gobernadores. Estas actuaciones, basadas en las confesiones de los líderes paramilitares desmovilizados, han propiciado dieciocho condenas hasta el momento, la mayoría de las cuales se han dictado contra miembros de partidos políticos que apoyaban al gobierno colombiano en el año 2007.

Las confesiones de los líderes paramilitares desmovilizados han provocado también la apertura en instancias inferiores de la jurisdicción ordinaria de investigaciones contra cientos de funcionarios públicos, políticos locales y miembros de las fuerzas armadas y la policía.

Es indiscutible que sólo un puñado de altos cargos militares y policiales se encuentra en este momento sometido a investigación, y que la aplicación de la ley de Justicia y Paz se enfrenta a desafíos notables como: (i) la falta de publicidad de los criterios utilizados para la selección de los paramilitares desmovilizados sometidos a investigación conforme a la dicha ley; (ii) las escasas condenas dictadas hasta el momento; (iii) la extradición de catorce líderes paramilitares claves a los Estados Unidos por delitos de narcotráfico; (iv) la falta de desmovilización de miembros de las guerrillas; y (v) el reciente incremento en los niveles de violencia como consecuencia, en gran medida, del accionar de las llamadas “bandas criminales emergentes” compuestas por antiguos paramilitares.

Sin embargo, a la hora de valorar si las actuaciones por delitos atroces desarrolladas en Colombia desde el 2007 están contribuyendo al fortalecimiento del Estado de Derecho y a la buena gobernabilidad del país, es importante recordar las décadas de violencia a gran escala en las que los grupos paramilitares y quienes les apoyaron disfrutaron, en Colombia, de completa impunidad.

Tal y como lo demuestran las visitas a la CPI, durante el año 2010, del Fiscal General del Estado y de una amplia representación de la Sala de Casación Penal de la Corte Suprema de Colombia, el examen preliminar del Fiscal es uno de los factores que parece haber contribuido a la nueva situación en Colombia. Sin embargo, es difícil medir su impacto en las autoridades nacionales colombianas, puesto que existen otros factores que también han contribuido a la misma, como por ejemplo: (i) las condiciones impuestas por el Congreso de los Estados Unidos para la aprobación de ayuda militar y condiciones de comercio favorables para Colombia; y (ii) las decisiones de la Corte Interamericana de Derechos Humanos contra Colombia por violencia paramilitar.

En este contexto, cabe afirmar que una mayor coordinación entre la intervención oportuna de la CPI y estos otros factores contribuiría a incrementar notablemente la eficacia, en Colombia, de las medidas adoptadas por la comunidad internacional en aplicación del concepto de responsabilidad para proteger. En este sentido, es importante subrayar la imperiosa necesidad de una mayor coordinación entre las Naciones Unidas y la CPI, sobretodo a la luz de su reconocimiento y compromiso mutuo de cooperación, y de las salvaguardias existentes para evitar la interferencia de la CPI con las funciones del Consejo de Seguridad.

V. Conclusión

La función preventiva de la CPI es un medio importante para el cumplimiento de la responsabilidad que corresponde a la comunidad internacional según el concepto de responsabilidad para proteger. Hasta el momento, se ha puesto el énfasis en los esfuerzos preventivos generales de la CPI a través de aquellas actividades que se dirigen a poner fin a la impunidad por delitos atroces ya cometidos. Sin embargo, la contribución que la CPI puede realizar a la prevención de futuros delitos atroces, mediante su intervención oportuna, puede ser, incluso, superior.

La realización de este potencial requiere que los distintos órganos de la CPI reconozcan que el mecanismo de la intervención oportuna constituye un medio básico para el cumplimiento de la función preventiva de la CPI. Así mismo, requiere un reconocimiento similar por los Estados Partes para que provean los recursos necesarios para su desarrollo eficaz y extiendan a todos los delitos atroces la responsabilidad penal por los actos de planeamiento y preparación de la ejecución. Sobre esta base, una mayor coordinación entre la CPI, las Naciones Unidas y otras organizaciones y Estados interesados permitiría incrementar significativamente el efecto preventivo de su intervención oportuna sobre los Estados afectados.

En última instancia, lo que realmente está en juego es si la CPI se limita a ser uno de los varios mecanismos existentes para dirimir la responsabilidad penal individual, surgida de la comisión de delitos atroces, o si, por el contrario, más allá de cumplir con su mandato preventivo general, es capaz de desarrollar plenamente su enorme potencial para el fortalecimiento del Estado de Derecho y la buena gobernabilidad de los Estados afectados a través de su intervención oportuna.

Héctor Olásolo Alonso

LLM Universidad de Columbia; Doctor en derecho por la Universidad de Salamanca; Catedrático de Derecho Penal Internacional y de Derecho Procesal Internacional del Instituto Willem Pompe de Derecho Penal y Criminología de la Universidad de Utrecht; Director del Programa Clínico sobre Conflicto Armado, Derechos Humanos y Justicia Internacional de la Universidad de Utrecht; Letrado de las Salas de la Corte Penal Internacional (2004-2009); Miembro de la Asesoría Jurídica y de la Sección de Apelaciones de la Fiscalía del Tribunal Penal Internacional para la ex Yugoslavia (2002-2004); Miembro de la Delegación española en la Comisión preparatoria de la Corte Penal Internacional reunida en la Sede de las Naciones Unidas en Nueva York entre 1999 y 2002.

(1) Lección Inaugural de la Cátedra de Derecho Penal Internacional y Derecho Procesal Internacional de la Universidad de Utrecht, dictada en el Aula Magna de dicha Universidad en el 18 de Octubre de 2010.
ARTIGO
O PERFIL DO PEDÓFILO: UMA ABORDAGEM DA REALIDADE BRASILEIRA
Data: 24/11/2020
Autores: Joelíria Vey de Castro e Cláudio Maldaner Bulawski

Sumário:

1. Noções Introdutórias; 2. Pedofilia: Doença ou Desvio de Conduta?; 3. A Disciplina Legislativa sobre o Tema; 3.1. Constituição Federal de 1988; 3.2. Estatuto da Criança e do Adolescente; 4. O Pedófilo como Indivíduo (In)Imputável; 5. Considerações Finais; Bibliografia.

Resumo:

A pedofilia, apesar de afligir a humanidade há muitos anos, só recentemente é que vem sendo objeto de estudo no seio das ciências jurídicas e da psicologia. A grande atenção dessas pesquisas se dá em decorrência dos assustadores índices de agressões sexuais de adultos contra crianças e adolescentes. Baseada nessa questão, o presente artigo teve como fim a abordagem relativa ao aspecto psicológico, normativo e jurídico da pedofilia. Fez-se necessária uma análise da existência e eficácia das legislações a respeito do tema, desde uma leitura do Direito Constitucional até o estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente, que se buscou adaptar à nova realidade social no Brasil. Realizou-se, ainda, um exame quanto à formação mental do agente pedofílico, no sentido de averiguar se eles são indivíduos inimputáveis, isto é, se em face disso deveriam ser tratados com medida de segurança, ou, então, são considerados como imputáveis e, portanto, mereceriam uma reprimenda penal com pena privativa de liberdade. O estudo utilizou-se do método de abordagem dedutivo, ou seja, valeu-se de levantamentos e estudos, bem como de dados e informações que visem compreender as características da pessoa taxada como pedófila.

Palavras-chave:

Pedofilia; (in)imputabilidade; abusador; penalização.

1. Noções Introdutórias

A pedofilia, assunto proposto para exposição, interessa a toda a sociedade atual. De uma questão pouco enfrentada em tempos passados, transformou-se em um problema que, na última década do século XX, emergiu em grandes proporções. Tende-se a atribuir o crescimento do problema à facilidade de acesso aos meios de comunicação, dentre eles a utilização da internet como um dos principais veículos de propagação das condutas pedofílicas e de pornografia infantil.

A partir da exposição pública de casos de pedofilia envolvendo pessoas das mais diversas condições sociais e profissionais, que estariam “acima de qualquer suspeita”, voltaram-se os cientistas comportamentais, dentre eles os juristas, para a pesquisa dessa prática, cujas vítimas são crianças de tenra idade e que, em significativa parcela das vezes, estão inseridas no mesmo seio familiar do seu agressor.

A participação efetiva do Estado, através de seus órgãos especializados em tal questão, conjuntamente com a intensa participação dos grupos e organizações não governamentais de proteção do jovem, apontam a pedofilia como um dos aspectos geradores de desequilíbrio social, no qual se envolvem sexualidade, educação, ética, costumes, religião, tudo coroado pela repressão do ente estatal por meio da justiça penal.

É nesse campo minado de preconceitos e distorcidas visões de mundo que os juristas debruçam-se na tentativa de sistematizar o tema e aplicar a repressão adequada e efetiva para impedir as agressões ao corpo e à alma de quem sequer iniciou a desenvolver o senso de o que é certo ou errado em uma sociedade na qual se vive.

Com o objetivo de abordar parte das questões que envolvem tal tema, o presente trabalho foi elaborado em três tópicos.

O primeiro dos tópicos busca demonstrar o que vem a ser a pedofilia, tanto de um ponto de vista médico como, também, sob o entendimento da psicanálise, culminando com a representação conceitual tecida pela Organização Mundial da Saúde.

Num segundo momento, por sua vez, discorre-se sobre a legislação brasileira que trata a respeito do tema em comento. Faz-se, também, uma breve análise a respeito da abordagem constitucional sobre a questão das crianças e adolescentes, que acabou dando origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente.[1] Este, o qual tem sofrido significativas mudanças nos últimos anos, principalmente no que tange à parte que cuida da repressão criminal de condutas ali abrangidas, merecerá análise mais incisiva, relatando-se as modificações que acabaram ocorrendo em seu corpo desde sua edição. Faz-se, ainda, uma breve análise do tema pela jurisprudência e mídia no território brasileiro.

Por fim, no terceiro e último tópico examina-se a questão da imputabilidade, ou não, do do pedófilo, ou seja, se seria ele um ser passível de merecer uma reprimenda penal de privação de liberdade, ou então seria beneficiário de uma medida de segurança.

 2. Pedofilia: Doença ou Desvio de Conduta?

Matilde Carone Slaibi Conti, citando os ensinamentos de Freud, refere que a “necessidade sexual do homem e do animal é de cunho biológico tão forte que pode ser comparada à necessidade básica de alimentação. Entretanto, algumas pessoas estabelecem formas particulares e até mesmo doentias de satisfação dessa necessidade.”[2] Uma dessas formas doentias de satisfação sexual é a pedofilia.

O termo pedofilia é também tratado como paedophilia erotica ou pedossexualidade. É um termo que, apesar de ter origem muito antiga, foi incluído há pouco tempo nos dicionários de língua portuguesa.

Com o fim de desvendar e interpretar devidamente o sentido e significado do vocábulo, necessária é a averiguação de sua etimologia. A grifada palavra deriva do grego, “ped(o)”, “paidós” – que remete à ideia de criança – e “phílos” – que traduz o conceito de amigo, querido, segundo conceituação do dicionário Houaiss.[3] Segundo este, pedofilia trata-se de uma “perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças; prática efetiva de atos sexuais com crianças”.[4] Deve-se ressaltar que o termo perversão foi inicialmente trabalhado por Sigmund Freud a partir de 1896, a qual se atribuiu o sentido de desvio sexual em relação a uma norma.

Contudo, de um modo menos frequente, a literatura também faz uso da expressão efebolia como sinonímia de pedofilia, em que “efebo” significa jovem, rapaz, moço, púbere.

O citado fenômeno social constitui-se, para a psicanálise, em uma parafilia, na qual a atração sexual de um ente adulto está voltada primordialmente em relação a crianças pré-púberes ou não.[5] Diz-se primariamente porque, antes de sentir-se atraído por alguém do sexo oposto e com idade similar, o agente vê-se compulsivo por jovens de tenra idade.

De um ponto de vista psicanalítico, lançado por Fani Hisgail, a pedofilia representa uma perversão sexual que envolve fantasias sexuais da primeira infância abrigadas no complexo de Édipo, período de intensa ambivalência das crianças com os pais. O ato pedófilo caracteriza-se pela atitude de desafiar a lei simbólica da interdição do incesto. O adulto seduz e impõe um tipo de ligação, na tentativa de mascarar o abuso sexual. (...) Sem defesa, a criança reage até onde podemas, uma vez submetida ao gozo do pedófilo, cumpre a fantasia inconsciente da cena primária, isto é, da participação sexual da criança na relação dos pais.[6]

A partir das ideias tecidas por Hisgail, compreende-se que, no contato do pedófilo com a criança, esta acaba sendo levada a praticar os atos com aquele devido a uma correlação direta entre a conduta ali praticada e sua analogia à cena primária. Nesta, o jovem de tenra idade age sob os efeitos do complexo de Édipo, pensando estar imiscuído na relação sexual entre seus pais.[7] Em razão disso, não entendendo corretamente os efeitos daqueles atos, até mesmo porque sua mentalidade não está completamente desenvolvida, entende como normal a conduta realizada.

Sobre o assunto, Moore e Fine, em vocabulário referenciado pela Associação Americana de Psicanálise, conceituam a perversão como “comportamento sexual fixo e urgente considerado patológico porque se afasta na escolha objetal e/ou no objetivo da norma adulta aceita de relação genital heterossexual”.[8]

Aliás, outro não é o entendimento empossado por Sandro D´amato Nogueira, que, quanto à classificação, refere ser a pedofilia um “distúrbio de conduta sexual, onde o indivíduo adulto sente desejos compulsivos, de caráter homossexual (quando envolve meninos) ou heterossexual (quando envolve meninas), por crianças ou pré-adolescentes”.[9]

Já, do ponto de vista médico, de acordo com Jim Hopper, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston, a “pedofilia é um conceito de doença que abarca uma variedade de abuso sexual de menores, desde homossexuais que procuram meninos na rua, até parentes que mantêm relações sexuais com menores dentro de seus lares.”[10]

Apesar da citada divergência conceitual entre médicos e psicanalistas, tendo-se como base a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial da Saúde (OMS), no item F65.4, a pedofilia é definida como "preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou do outro sexo, geralmente pré-púberes ou não".[11]

Por sua vez, Alfredo Neto, Gabriel Gauer e Nina Furtado rotularam quais são os elementos necessários para que uma pessoa possa ser enquadrada no ato do agir pedofílico:

a) Ocorrência por no mínimo seis meses de fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos sexuais excitantes, recorrentes e intensos envolvendo atividade sexual com uma ou mais de uma criança pré-púbere (geralmente com 13 anos ou menos).

b) As fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos sexuais excitantes causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

c) O indivíduo tem no mínimo 16 anos e é pelo menos 5 anos mais velho que a(s) criança(s) com o qual mantém relação. Aqui não cabe incluir um indivíduo no final da adolescência envolvido num relacionamento sexual contínuo com uma criança com 12 ou 13 anos de idade.

Especificar-se:

1) Atração sexual por homens

2) Atração sexual por mulheres

3) Atração sexual por ambos os sexos

Especificar-se:

1) Limitada ao incesto

2) Com crianças desconhecidas

Especificar-se:

1) Tipo Exclusivo: Atração apenas por crianças

2) Tipo Não-Exclusivo: atração tanto por crianças quanto por adultos.[12]

Por outro lado, segundo os mesmos autores, “quando o distúrbio ocorre em indivíduos no final da adolescência, não se especifica uma diferença etária precisa, cabendo um julgamento clínico a partir da maturidade sexual da criança e da diferença de idade.”[13]

Sobre o tema, grifa Matilde Conti, citando Paulo Cunha Pereira, que “Freud classificou a pedofilia como sendo a perversão dos indivíduos fracos e impotentes”.[14] Por se tratar de uma pessoa sexualmente inibida, o agente tende a escolher como parceiro uma pessoa vulnerável, possuindo sobre ela uma ilusão de potência.

Pelo que foi exposto, vislumbra-se que a pedofilia não é um termo jurídico, e sim um termo médico que se refere a um distúrbio de comportamento a ser diagnosticado no caso concreto. Ora vem a ser considerada como doença, espécie do gênero parafilia, ora definida como perversão, sendo classificada pela psicanálise como transtornos de uma estrutura psicopatológica caracterizada pelos desvios de objeto e finalidade sexuais.

Deve-se notar que não há necessidade da presença do ato sexual entre pedófilo e criança, eis que uma pessoa poderá, perfeitamente, ser considerada clinicamente como pedófila apenas pela presença de fantasias ou desejos sexuais em sua mente, desde que preenchidos os critérios acima referidos.

Pelo que se pode extrair dos conceitos tecidos acima, busca-se organizar alguns critérios para o fim de que, assim, se possa amoldar determinado agente produtor de uma conduta ao conceito de pedófilo. Todavia, tal tarefa não é nada simples, haja vista que a pessoa portadora dessa perturbação sexual, frequentemente, não admite que seu comportamento fica alheio aos padrões normais da sociedade. Em grande parte das vezes, os sujeitos taxados como portadores de tal perversão negam veementemente este rótulo, relatam não estarem cometendo qualquer ilícito e alegam que, se praticaram algum ato, foi por motivação advinda da criança.

Deve ficar claro, entretanto, que não é qualquer atração por criança que vem a enquadrar uma pessoa como pedófila, mas somente se a mesma se adapta aos elementos expostos anteriormente, como por exemplo, possuir desejos sexuais intensos por um jovem em tenra idade por período não inferior a seis meses.

Ademais, deve-se diferenciar a pedofilia do uso não patológico de fantasias sexuais, comportamentos ou objetos utilizados como estímulos para a excitação sexual, em indivíduos sem parafilia. Seguindo os pensamentos de Matilde Conti fantasias, comportamentos ou objetos são parafílicos apenas quando levam o sofrimento ou o prejuízo clinicamente significativos, exigindo a participação de indivíduos sem seu consentimento, trazendo complicações legais e interferindo nos relacionamentos sociais.[15]

Diversas pessoas nessa situação relatam que o comportamento não lhes causa sofrimento, sendo que seu único problema é a disfunção sexual das outras pessoas em relação às suas atitudes. Contudo, outros se descrevem culpados, com vergonha e depressão, pela necessidade de se envolverem em uma situação de índole sexual incomum, considerada, por eles mesmos, como imoral.

Dessa maneira, apesar do crescente número de denúncias da prática da pornografia infantil e das recentes descobertas de redes de pedofilia, grande parte das pessoas ainda permanece desinformada diante das vicissitudes do problema. Tais fatos são possivelmente decorrentes do incesto e vergonha da sociedade, que acabam dificultando a investigação, assim como pela dificuldade dos genitores ou educadores de gerirem as manifestações da sexualidade infantil.

Neste ponto do estudo, é salutar a realização de uma indagação: existe alguma diferença entre pedofilia e pornografia infantil, ou são termos sinônimos?

Ao contrário do que se vê diuturnamente na mídia, são termos distintos e como tais devem ser tratados, ainda que entre eles exista algum elo de semelhança, tal como a consequência para as vítimas de ambos os atos. Enquanto a pedofilia é tratada como uma psicopatologia, um desvio no desenvolvimento da sexualidade, caracterizado pela atração sexual de forma compulsiva e obsessiva por crianças e adolescentes, a pornografia infantil é tipificada em alguns artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente pela simples exposição de cenas de nudez que envolva crianças ou adolescentes, desde que contenham conotação pornográfica.

A pornografia infantil, nesse último aspecto, para se caracterizar não depende de uma reiteração de atos, bastando uma única exposição de cena de nudez de uma criança ou adolescente para qualificar o delito punido pelo ECA.[16] Já a pedofilia, por não se tratar de um tipo penal, e sim de caracteres pessoais do agente abusador, exige reiteração de atos, podendo também ser manifestada pela exposição pornográfica infantil. Um exemplo disso se encontra nas chamadas “redes de pedofilia” pela internet, na qual se inserem adoradores de crianças, devido à comodidade com que lidam em tal meio.

A partir dos elementos lançados, salienta-se que, ainda que a pedofilia nasça dentro de um ambiente privado, o agir pedofílico transpassa os limites do particular, invadindo ambientes sociais, colocando-se do lado oposto ao interesse da coletividade e ao bem coletivo. Com sua atitude, o agente pedófilo acaba por agredir toda a comunidade, tendo em vista que sua vítima é sempre um sujeito despido de atos de anuências. Diante de tais fatos, torna-se imperativa uma resposta social e jurídica, eis que o que inicialmente era apenas interno e psicológico passa a ser, ao mesmo tempo, externo e jurídico.

3. A Disciplina Legislativa sobre o Tema

A disciplina do direito criminal engloba uma diversidade conceitual, abrangendo a sociologia, a antropologia, a medicina, a psicologia, além do tripé Direito Penal, Processual e Penitenciário. No que se refere a esses três elementos, grifa-se serem regidos pelo que se chama de Política Penal. Esta tem como objetivo oferecer uma resposta eficaz aos delitos praticados, tanto do ponto de vista punitivo como também do preventivo. Assim, ainda que as legislações penais na nossa história não estivessem muito comprometidas com os princípios éticos, com o passar dos tempos, as mesmas foram evoluindo e modificando-se para atender as expectativas e os anseios populares.

Tais fatores foram certamente acolhidos pela legislação brasileira que trata a respeito dos direitos, garantias e deveres das crianças e adolescentes, desde o que vem disposto na Carta Magna até a edição de leis específicas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente.

3.1. Constituição Federal de 1988

A Constituição de 1988, estruturada dentro de um pensamento modernista, deixou de ser um diploma político para ser um pacto de cidadania, até de certo modo prolixo, preocupando-se com os direitos humanos em todas as dimensões.[17]

A ordem constitucional de 1988 veio a consagrar os direitos da criança e do adolescente como direitos fundamentais, consoante refere o art. 227, abaixo transcrito:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[18]

Como forma de regulamentar especificamente a matéria, o Estado, através do seu poder de legislar, introduziu no ordenamento jurídico o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que trouxe normas de conteúdo material e processual, de natureza civil e penal, abrigando toda a legislação que reconhece os menores como sujeitos de direito.[19]

Sempre que uma criança for vítima de um abuso sexual, qualquer que seja sua forma, se para fins de satisfação de libido individual ou mesmo de redes organizadas para produção de material pornográfico, há, antes de tudo, uma ofensa aos seus direitos fundamentais da liberdade sexual e da dignidade da pessoa humana. Além disso, há violação também de direitos derivados do desenvolvimento e da formação psíquica, da intimidade e da moral sexual social.

Fala-se em violação da liberdade sexual quando há abuso contra a criança em razão da total ausência de eleição sexual por sua parte, mesmo que a prática se dê sem violência ou grave ameaça. É por assim entender que o nosso legislador constituinte inseriu o art. 227, § 4º, o qual descreve que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente, papel que coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

3.2. Estatuto da Criança e do Adolescente

Conforme o entendimento de Ana Carolina Teixeira e Maria de Fátima de Sá, o Estatuto da Criança e do Adolescente rege-se pelos princípios do melhor interesse, paternidade responsável e proteção integral, visando a conduzir o menor à maioridade de forma responsável.[20] Seguindo-se tal parâmetro, o desenvolvimento do menor se dá como sujeito da própria vida para que possa gozar de forma plena dos seus direitos fundamentais.[21]

Partindo desse pressuposto é que o legislador objetivou punir o crime de pornografia infantil na internet, tendo em vista que este é um dos meios mais interessantes para os agentes praticarem condutas pedofílicas, primordialmente pela questão do anominato que impera nesse meio de comunicação. Assim, com a edição da Lei nº 10.764/03 é que foi introduzido no ECA o art. 241, abaixo referido: Esta lei introduziu uma modificação no texto normativo do art. 241, a seguir mencionado:

Art. 241. Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente:

§ 1o Incorre na mesma pena quem:

I - agencia, autoriza, facilita ou, de qualquer modo, intermedeia a participação de criança ou adolescente em produção referida neste artigo;

II - assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo;

III - assegura, por qualquer meio, o acesso, na rede mundial de computadores ou internet, das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo.

§ 2o A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos:

I - se o agente comete o crime prevalecendo-se do exercício de cargo ou função;

II - se o agente comete o crime com o fim de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial.[22]

Assim sendo, como a lei, apesar de modificada, ainda não vinha considerando crime a posse e o armazenamento de fotos de pornografia infantil, não poderia ser dada voz de prisão aos delinquentes. Tal fato, contudo, somente seria possível na hipótese de a pessoa estar praticando o crime em flagrante delito ou, então, no caso de ficar constatado que o envio de dados se deu pelo computador de determinada origem.

Por sua vez, com a edição da Lei 11.829/08, que modificou o aludido Estatuto, este passou a incriminar uma pessoa que, até então, não vinha sendo punida, qual seja, o consumidor do material pornográfico.[23] Na prática, o artigo introduzido por tal lei veio a punir algo que deveria assim ter sido desde o início, tal qual o usuário de droga ou um receptor de material oriundo de furto.

Com a edição da citada lei, veio a ser reprimido o financiador da cadeia, que é o consumidor. A despeito disso, Ricardo Breier ressalta que alguns doutrinadores não são muito adeptos da punição do consumidor dos produtos da pornografia infantil. Conforme preleciona, os argumentos destes que defendem a prática consumerista baseiam-se no entendimento de que muitos usuários da internet não possuem traços pedófilos e, com isto, não poderiam ser incriminados pela simples posse ou pelo desejo sexual; estes casos representam uma mera tendência sexual (...). Punir o mero consumidor, dentro desta posição, não resolveria o problema, já que a cadeia da rede organizada pedófila é que deveria ser o alvo direto das instituições. Como um argumento psíquico, a posse do material pornográfico infantil, pelo pedófilo, viria a inibir, em parte, o seu desejo sexual, um freio aos seus instintos, o que evitaria uma ação real de abuso sexual.[24]

Ora, o argumento a favor da possibilidade de armazenamento de material pornográfico infantil torna-se bastante questionável. O consumidor deveria ser punido da mesma forma assim como o é o produtor dos materiais. Se assim não fosse, tende a sempre haver indústria para recebimento dos produtos de um modo geral, que, por sinal, geram um lucro astronômico. Razoável que sejam punidos os fabricantes e os consumidores.

Do mesmo modo, é inconsistente o argumento de que o pedófilo, somente vislumbrando as imagens das crianças, diminuiria a libido. Ora, tal atitude apresentaria um risco muito maior de estimular ainda mais os desejos de índole sexual do agente. Não bastasse isso, deve-se haver ainda uma ponderação entre o prazer do indivíduo, evitando o posterior mal, e os direitos fundamentais inerentes ao menor, que certamente devem prevalecer.

De tal modo, diante das reformas trazidas ao ECA, com as edições das leis antes referidas, há uma série de novos verbos em seus tipos punitivos, alargando significativamente as condutas puníveis, em comparação com sua redação original.[25] Entretanto, com a edição da Lei n° 11.829/08, que trouxe significativas modificações no diploma protetivo dos menores, frequentemente se via na mídia que, a partir de tal norma jurídica, passou-se a punir criminalmente a pedofilia.[26] Trata-se de um grande erro. Pedofilia é um termo clínico, não jurídico. É distúrbio de índole sexual do grupo das parafilias.

Com a novel legislação, passou-se a punir criminalmente algumas condutas que não haviam sido previstas pelo legislador na redação original do Estatuto, grifando-se, principalmente, as ações de armazenamento e posse de imagens pornográficas infantis, bem como a de instigação de criança, por qualquer meio, para que com ela se pratique ato libidinoso. Entretanto, não se deve falar em punição à pedofilia, pois esta, como se viu, é uma parafilia, uma psicopatologia. Dessa forma, a pergunta cabível é como ir-se-ía punir uma patologia? A pedofilia, como doença, não deve ser punida, assim como não o é a simples condição de uma pessoa ser considerada psicopata.

E a justificativa para a não punição do pedófilo, ou mesmo do exemplo citado do psicopata, pode ser encontrada em uma das funções do Princípio da Lesividade, quando busca impedir que o agente seja punido por aquilo que ele é, e não pelo que ele fez. Tal entendimento visa impedir o que se chama de direito penal do autor.[27]

Assim, o agente pode ser pedófilo e nunca ter manifestado externamente seu pensamento, chegando, ao máximo, a presentear com meros brinquedos uma criança que admira, sem manter com ela qualquer relação sexual. O que se pune, na verdade, são as condutas praticadas pelos agentes, aplicando-se ao caso o direito penal do fato, e não a mera condição pessoal, como parecem querer incutir alguns políticos em seus discursos nos meios de comunicação.[28] Há um grande erro terminológico empregado no Brasil nos dias de hoje quando se aborda o tema em comento.

O que recentemente veio a ser aprimorado no ECA foi a questão de sua abrangência no que tange as condutas que poderiam vir a ser cometidas pelos pedófilos.[29] Contudo, é aqui que claudica a mídia, pois os atos que estão sendo criminalizados punem não só aquela pessoa taxada como pedófila, mas também outros indivíduos que venham a cometer os atos infracionais ali descritos, que não necessariamente possuam tais transtornos psicológicos.

Em tempos passados, quando alguém cometia um delito em face de uma criança, não havia qualquer elucidação ao termo “pedofilia”. Simplesmente frisava-se o cometimento, por exemplo, do crime de estupro presumido (hoje considerável estupro de vulnerável), quando praticado em menores de quatorze anos. Nos dias de hoje, no entanto, vê-se tal fato como sendo necessariamente um ato pedofílico, sem se atentar às reais condições psicológicas do agente que venha a caracterizar ou não o transtorno de índole sexual. Há, portanto, sobretudo pelos meios de comunicação, uma maciça utilização do termo “pedofilia” em atenção à demanda popular pelo assunto, caracterizando até mesmo atos isolados de abuso sexual como atos pedofílicos.

Pune-se pela nova lei quem tira proveito com a exploração sexual infantil, seja por meio de fotos, vídeos ou aliciamento de menores. Porém, este que vem a concretizar tais condutas, na maioria das vezes, não é um pedófilo. Diversas vezes o agente acaba investindo nesse ramo frente à possibilidade de aferição de muito lucro, tendo em vista que o mercado da pornografia, seja ela infantil, ou não, movimenta milhões de dólares em todo o mundo no decorrer dos anos.

Isso só vem a ratificar o que foi exposto linhas acima, pois a lei pune tanto aqueles que praticam alguma das condutas, devido a uma situação momentânea de conturbação em sua vida, bem como aqueles que auferem algum tipo de lucro com isso, ou mesmo os que são agentes pedofílicos durante anos e assim não negam.

Dessa forma, ainda que haja uma má utilização do termo “pedofilia” pela mídia, deve-se grifar a correta aplicação do termo em julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

EMENTA: APELAÇÃO CRIME. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. RÉU SEMI-IMPUTÁVEL. 1. SUBSTITUIÇÃO DA PENA RECLUSIVA POR MEDIDA DE SEGURANÇA. ACOLHIDO. Réu submetido à avaliação psiquiátrica cujo laudo diagnosticou tratar-se de indivíduo portador de pedofilia, reconhecendo o nexo de causalidade entre a referida patologia mental e a conduta criminosa praticada pelo réu. Avaliação pericial que recomenda aplicação de medida de segurança para o tratamento da patologia apresentada. Sentença que desconsiderou a recomendação dos expertos e aplicou pena reclusiva em regime aberto, mesmo tratando-se de crime hediondo praticado contra criança de oito anos, mediante violência real. Patologia mental diagnosticada que conduz o réu a impulsos sexuais desviados, sendo forte a probabilidade de siga praticando abusos sexuais em crianças se não for submetido a um rigoroso tratamento médico. Possibilidade de cura para a patologia reconhecida pelos expertos. Substituição da pena reclusiva por medida de segurança que se mostra recomendável, nos termos do art. 98 do Código Penal. Determinada a internação do réu no Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso (IPF), pelo período mínimo de dois anos. APELO PROVIDO.[30]

No julgado referido, há um correto uso da palavra pedofilia, eis que o réu foi submetido à análise para averiguação de possível patologia mental, que no caso tratava-se de pedofilia. O caso em concreto retrata a prática do crime de atentado violento ao pudor (hoje abrangido pelo tipo penal “estupro”), no entanto, cometido por indivíduo portador de transtorno patológico. Fica claro no acórdão citado a diferença proposta anteriormente de que a pedofilia em si trata-se de uma doença, e não de um tipo penal. A conduta praticada pelo agente portador de tal distúrbio é que deverá, sim, ser amoldada a algum tipo penal da legislação brasileira.

É aqui, entretanto, que se encontra um dos graves entraves ao entendimento do fenômeno, ou seja, a distinção entre o pedófilo e o autor de crime sexual praticado contra menor. Diante da análise clínica do termo, consegue-se perceber que grande parte das pessoas que abusaram sexualmente de uma criança de baixa idade não é considerada pedófila, mas mero criminoso que veio a aproveitar uma situação casual de alguma criança. Há nesta situação uma ilicitude eventual, motivada por determinada circunstância, que diz respeito à determinação do agente por atração de pessoas de tenra idade.

De tal modo, ainda que comumente uma pessoa que pratica ato sexual com uma criança seja taxada como pedófila, há, contudo, outras razões que podem levar a tal ato. Alguns dos exemplos citados por estudiosos do assunto dão conta de que “o estresse, problemas no casamento, ou a falta de um parceiro adulto, tal como o estupro de pessoas adultas pode ter razões não-sexuais.”[31] Relata-se que a maioria dos abusadores não possui um interesse sexual voltado primariamente para crianças, razão pela qual não se emoldariam ao termo clínico de pedofilia.

No que tange a tal aspecto, vige uma grande curiosidade por parte das autoridades em descobrir onde se localizam as pessoas taxadas como pedófilas. Seguidamente, no início do ano de 2009, foram aflorando inúmeras denúncias de atividades pedofílicas, tanto em circunstâncias nas quais ficou caracterizada uma “rede de pedofilia”, como em Catanduva, no interior paulista, bem como em casos individuais. Nestes, vêm chamando atenção as atividades que envolvem parentes do abusador ou mesmo seus filhos ou os de sua parceira.

Tendo-se como exemplo o que ocorreu em Catanduva, no interior paulista, no início do ano de 2009, e o que vem ocorrendo no decorrer deste ano com os casos envolvendo a Igreja Católica, verifica-se que o agir pedofílico não é exclusivo de determinada classe social. Em operação da Polícia Federal concretizada na referida cidade, foram denunciadas pessoas das mais diversas camadas sociais pela prática de atos de pedofilia, em que foram indicados como participantes de uma rede de pedofilia desde médicos até mesmo um borracheiro, sendo este acusado de aliciar as crianças.

Assim como ocorreu no transcorrer do ano que passou, o fenômeno da pedofilia recebeu, novamente, um espaço significativo no jornalismo no início do corrente ano, porém, desta vez, envolvendo uma instituição milenar, qual seja a Igreja Católica. Segundo informações lançadas pela imprensa de todo mundo, a Igreja Católica vem sofrendo desgastes internos em decorrência das acusações de práticas pedofílicas por parte de seus integrantes, fato que tomou espaço inclusive em discursos recentes do chefe maior da referida instituição.

Em face de tais situações, o Papa, recentemente, desculpou-se publicamente pelos escândalos sexuais que estariam sendo praticado por integrantes da igreja que coordena. Contudo, uma questão importante volta a ser questionada aqui: seriam esses indivíduos realmente pedófilos, de acordo com as classificações técnicas, ou novamente estaria a mídia claudicando a respeito de tais informações? Este é um questionamento que fica em aberto, tendo em vista que as notícias de abusos são extremamente recentes, ficando impossibilitada, pelo menos por ora, uma análise mais atenta aos casos que envolvem os sacerdotes.

Desse modo, apesar da evolução legislativa acima referida, consegue-se perceber, tanto por parte da mídia como por parte dos membros do legislativo e do judiciário, a dificuldade técnica para enfrentamento do problema, que apesar de não ser novo, vem atingindo mais gravemente a sociedade a partir da última década.

4. O Pedófilo como Indivíduo (In)Imputável

Em grande parte dos debates que envolvem o assunto pedofilia, raramente há uma certeza plena sobre as afirmações que são lançadas, por ainda se tratar de um tema relativamente novo que instiga a novos estudos. Outra não podia ser a posição quando o objeto da discussão traz à tona a condição de imputabilidade, ou não, do indivíduo portador desse transtorno parafílico.

O Código Penal, em seu artigo 26, descreve as situações que devem ser verificadas para que um indivíduo seja “beneficiado” pela declaração de inimputabilidade ou mesmo semi-imputabilidade. O citado texto legal assim dispõe:

Inimputáveis

Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Redução de pena

Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.[32]

De acordo com um relatório elaborado pela Polícia Federal, a maioria dos pedófilos presos pela prática de atos sexuais em face de crianças detinha conhecimento do que estavam praticando, sendo, portanto, imputáveis. Segundo a PF, a porcentagem dos delinquentes cientes dos atos que praticavam varia entre 80% e 90%.[33]

Já, segundo afirmações tecidas pela doutrina de Matilde Conti, estudos realizados demonstram que 70% (setenta por cento) dos contraventores sexuais não apresentam nenhum sinal de alienação mental, sendo, portanto, imputáveis penalmente. Em 30% (trinta por cento) estariam as pessoas com evidentes transtornos da personalidade, com ou sem perturbações sexuais manifestas – aqui se incluem os psicopatas, sociopatas, boderlines, anti-sociais, além de que um grupo minoritário de 10% (dez por cento) é composto por indivíduos com graves problemas psicopatológicos e de características psicóticas alienantes, os quais em sua grande maioria, seriam juridicamente inimputáveis.[34]

De acordo com entendimento da psiquiatra Talvane de Moraes, o pedófilo mantém o juízo e, portanto, deve ser punido. Apesar de possuir um distúrbio, tem consciência do que faz, assim, não pode ser considerado um incapaz no tribunal, como acontece com os esquizofrênicos e outros portadores de distúrbios mentais, que, por não terem consciência de seus atos, terminam com a pena aliviada.[35]

Ressaltando a existência da citada discussão, Jorge Trindade salienta que, a despeito de a pedofilia estar elencada nos sistemas classificatórios vigentes (CID-10 e DSM-IV), tem sido considerada uma entidade atípica.[36] De acordo com o estudioso, seria ela melhor descrita como uma desordem moral, não encerrando “a condição plena de doença ou perturbação mental como qualificativos restritos do sujeito-corpo”.[37]

Afirma ainda Trindade que como doença mental, a pedofilia colocaria o sujeito no registro dos inimputáveis; como perturbação mental, no quadro daqueles considerados de responsabilidade penal diminuída. Em qualquer das hipóteses, com limitada possibilidade de um tratamento curativo definitivo. Todavia, como doença moral, a pedofilia não retiraria a responsabilidade do agente, e o pedófilo seria inteiramente responsável por seus atos. Portanto, do ponto de vista jurídico, plenamente capaz.[38]

Diante de tais lucubrações, há a clara percepção que grande parte dos portadores dos sintomas da pedofilia possui a capacidade de determinar-se. Contudo, admite-se a possibilidade de existência de desequilíbrio entre o instrumental psicológico de autocontrole e a intensidade dos impulsos. Com o fim de analisar esta situação, deve ser apreciada pelos peritos uma série de itens que, se presentes, demonstram uma diminuição na capacidade de contenção dos estímulos.

1. Ausência de premeditação ou planejamento, caracterizando o ato como impulsivo. No período de planejamento, o indivíduo fantasia o ato delituoso sem estar submetido a um impulso incoercível, enquanto ainda pode avaliar suas conseqüências e tem tempo de providenciar solução lícita para o desejo - tratamento ou medidas preventivas, como evitar situações propícias.

2. Traços da personalidade com baixa tolerância à frustração, especialmente os imaturos e explosivos.

3. Presença de inteligência limítrofe (retardo mental subclínico).

4. Intenção de não praticá-Io, caráter de luta interna entre o impulso e os escrúpulos, o respeito à lei e ao sofrimento do outro.

5. Tentativas de lidar com o impulso patológico de maneira adequada, evidenciadas por tentativas de tratamento ou providências para evitar o surgimento de situações propícias à conduta criminosa.

6. Caráter de ato isolado ou infreqüente.

7. Extraordinária intensidade do impulso, habitualmente revelada pelo sofrimento inerente ao seu controle.

8. Existência de arrependimento e preocupação com o sofrimento da vítima.[39]

Ainda assim, há entendimento de que a caracterização da total inimputabilidade do agente pedofílico, ou seja, de ser “inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com esse entendimento”, deve ser vista com certa reserva, tendo em vista que as presenças desses casos, em comparação com os demais, beiram à raridade. Entretanto, deixa-se claro que a noção de inimputabilidade aqui tratada decorre unicamente da pedofilia, não se levando em conta condutas que são praticadas em face de outros distúrbios mentais que eventualmente o indivíduo venha a possuir.

A despeito do debate acima referido, citam-se, abaixo, trechos de decisões proferidas pelo Poder Judiciário, em julgamentos em que houve a alegação de que o réu era portador do transtorno pedofílico: Discussão diagnóstica: O exame psiquiátrico do examinado, a história coletada, não indicam a presença de uma doença mental, na acepção do artigo 26 do Código Penal Brasileiro, em seu caput. Não há a presença de alterações orgânicas, sintomas psicóticos, alterações cognitivas, ou problemas significativos nem dependência química o que corrobora a afirmação acima, quanto a ausência de doença mental.

O problema relatado nos autos do processo diz respeito a uma alteração do comportamento. A pedofilia refere-se a comportamento envolvendo atividade sexual com uma (ou mais de uma) criança pré-púbere (geralmente com menos de 13 anos de idade). O comportamento sexual em questão causa prejuízo no funcionamento social e familiar. Muitas vezes, o indivíduo pedofílico ameaça a criança para evitar a revelação dos seus atos. É comum que sintam o seu comportamento como ego-sintônico, ou seja, não havendo um estranhamento em relação à sua conduta. Freqüentemente procuram ocultar o seu comportamento, sua conduta, omitindo-os, uma vez que tem a noção de que o seu comportamento não é sancionado socialmente e legalmente.

Pelo que foi exposto, vemos que o diagnóstico da pedofilia implica a presença de um comportamento envolvendo atividade sexual com crianças. O comportamento não é observado pelo psiquiatra, assim como o é um sintoma, ou um sinal clínico, mas é referido a partir de uma variedade de fontes e contextos: a história coletada, os autos do processo que descrevem um comportamento, a confissão da criança a um médico ou a familiares, entre outros. Nem sempre se dispõe de todas essas fontes, haja vista que há com freqüência a tentativa de ocultar o ato perverso.

Desta forma, como o examinando nega a presença de fantasias sexuais com a menor, que seriam a motivação do seu comportamento, resta a evidência do próprio comportamento, evidência esta que, embora não seja fornecida pelo examinado, é descrita em várias outras fontes, em diferentes contextos: a denúncia, os depoimentos da mãe, da vítima e o parecer da equipe do Serviço de Psiquiatria da infância e adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Diagnóstico positivo: Pedofilia.

Comentários médico legais: Consideramos o examinado portador de Pedofilia, o que corresponde ao conceito jurídico de perturbação de saúde mental de que fala o parágrafo único do artigo 26 do Código Penal Brasileiro, correspondendo a semi-imputabilidade. O nexo causal se estabelece por uma redução na capacidade de determinação, haja vista que a perversão tem um caráter compulsivo e impulsivo.[40]

Por outro lado, o laudo pericial concluiu que o apelante era capaz de entender o caráter criminoso, mas sua determinação é marcada pela compulsão doentia de atividade sexual com crianças, ou seja, a pedofilia. Ocorre que isso não o beneficia, nos termos do art. 26 do Código Penal. Tentou dissimular a sua conduta perante o Juízo, mas contou com detalhes no inquérito (fls. 23, do segundo apenso). Em razão disso, a absolvição pretendida, com medida de segurança, não merece acolhimento.[41]

Conforme se pôde perceber dos julgamentos supra transcritos, há divergências de aplicações dentre os casos concretos. O primeiro dos casos, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reconhece a semi-imputabilidade do acusado após a realização de extenso laudo pericial que concluiu que o réu não possuía doença mental, que o considerasse inimputável penalmente. Na circunstância, entretanto, entendeu-se ser ele portador do transtorno de comportamento pedofílico.

Por sua vez, no que tange ao segundo caso posto em exame, percebe-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sequer considerou o transtorno pedofílico alegado no feito passível da benesse de diminuição de pena, mantendo a condenação inicial ao acusado.

Cabe por fim, analisar ainda neste ponto, o que acima foi mencionado quando da citação de autoria de Trindade, qual seja, a dificuldade de tratamento curativo do pedófilo. Mesmo que se busque em casos concretos a declaração de inimputabilidade do agente pedofílico devido aos transtornos que o afetam, é interessante destacar a dificuldade encontrada pelos profissionais que buscam a melhora clínica de tais pessoas.

Em geral, pedófilos não sentem remorso nem culpa pela prática de seus atos, imputando, inclusive, a autoria destes à sedução desenvolvida pela criança. Aliás, segundo Jorge Trindade, por não sentir qualquer perturbação emocional no seu agir, o agente pedofílico, como os parafílicos de um modo geral, não possui qualquer espécie de motivação para mudar seu comportamento, “muito menos para aquelas propostas por um tratamento psicológico, a não ser quando seu comportamento traz problemas para o casal, para a família ou para a sociedade.”[42]

Segundo o referido autor, os pedófilos somente procuram algum tipo de tratamento quando se vêem premidos por dificuldades perante a lei – problemas com a Polícia, Justiça ou Ministério Público-, o que significa mais uma tentativa de auto-proteção do que um verdadeiro interesse em receber ajuda ou tratamento. Entretanto, mascarados pela busca de ajuda ou de tratamento, o que realmente desejam é evitar a ação da justiça e alcançar benefícios secundários para prosseguirem na trajetória do abuso sem serem incomodados.[43]

A partir de tais dados, encontram-se fortes discussões na área da medicina forense quanto a real condição do pedófilo em apresentar relativa melhora com tratamento concedido pela medida de segurança, até mesmo diante da percepção de alguns estudiosos quanto à inexistência de cura para tal distúrbio. Isso, de acordo com tal posicionamento, levaria o portador a ser observado por toda a sua vida, o que acabaria criando um custo social e de reincidência consideravelmente elevado.

Em vista das dificuldades existentes para o tratamento da pessoa portadora do transtorno pedofílico, alguns países já recorreram a algumas atitudes mais severas do ponto de vista clínico. Há países em que, em casos extremos, tem-se aplicado a denominada castração química, situação que hoje também vem sendo discutida pelo Congresso Brasileiro. Trata-se da utilização de fármacos inibidores da libido, que são drogas que bloqueiam os hormônios sexuais produzidos pelos testículos. Em outros, todavia, tem sido utilizada a chamada castração física, na qual são removidos os testículos. Porém, esta, diante dos princípios constitucionais da inviolabilidade física e da integridade corporal, não poderia ser sequer cogitada no território brasileiro.

Face a essas controvertidas situações, salienta-se que o tema deve ser mais profundamente estudado pelo legislador brasileiro antes da edição de qualquer lei mais específica do assunto, como vem se pretendendo com o projeto de lei que busca implantar a castração química no território nacional para os indivíduos considerados pedófilos. Ressalta-se tal posição, principalmente, diante da posição de inúmeros pesquisadores da área que afirmam que o pedófilo é irrecuperável. Com isso, caso viesse a receber tratamento medicamentoso por parte dos profissionais habilitados para tanto, surgiriam algumas indagações, tais como: quem iria controlar o uso do medicamento pelo pedófilo durante o tratamento? O País teria uma estrutura de pessoal condizente com esta finalidade? E se o pedófilo não tomasse tais fármacos, haveria alguma outra sanção?

Em razão de tais posições e questionamentos, resta ao legislador ser mais racional, estudando melhor a questão, a tomar uma decisão com base no clamor social, sendo induzido emocionalmente a uma posição que pode logo ali adiante constatar-se não ser a mais adequada.

5. Considerações Finais

O abuso e a exploração sexual de crianças são uma realidade, assim como as redes organizadas de pedofilia. E, sobre estes assuntos, o Brasil e o Mundo já começaram a tomar uma série de medidas, sendo que uma delas é a de levar informações à população a respeito da gravidade do problema e identificar sinalizadores da existência de condutas pedofílicas.

A partir dos elementos apresentados no corpo do trabalho, destaca-se a diferença existente entre um simples abusador ocasional e o pedófilo, em que este não se satisfaz com um só ato, não só em razão das circunstâncias externas que os cerca, mas primordialmente pelos desvios comportamentais que o perturbam mental e sexualmente. Em decorrência desse fato, fez-se a construção de uma crítica no cerne do presente estudo, no que diz respeito à criminalização do “delito de pedofilia”. De acordo com os ideais do legislador brasileiro, estar-se-ia por punir o indivíduo pelo que ele é e não pelo que fez, em clara aplicação do direito penal do autor, ao invés do emprego do direito penal dos fatos, defendido maciçamente pelos penalistas nacionais.

Fica por demais cristalino que pedofilia não é um tipo penal, e, por isso, não é da alçada jurídica. Trata-se de um termo médico, uma doença catalogada na Organização Mundial de Saúde, ou seja, uma parafilia. A atração sexual de um adulto por crianças não pode ser apenada, se esta não passa da fase de cogitação. Isto é, somente é passível de punição o pedófilo quando adentra na fase da execução. E, nesse caso, não pelo “crime de pedofilia”, mas por incorrer em algum dos delitos previstos no Código Penal, no Estatuto da Criança e do Adolescente ou em alguma outra legislação penal extravagante.

É, entretanto, louvável o pensamento advindo do legislador no que se refere à punição das condutas praticadas por abusadores sexuais de crianças de tenra idade, que não apresentam sequer uma mentalidade suficientemente desenvolvida para entender o caráter ilícito do fato. Contudo, a utilização do termo que deu origem a este estudo tem de ser empregado corretamente, e não como vem sendo citado nas reportagens jornalísticas, ou, até mesmo, por aplicadores do Direto no Brasil. A norma criada pela legislação protetiva do menor buscou, realmente, protegê-los dos atos praticados pelos pedófilos, mas não só por estes. Grifa-se que a norma pune a conduta e não o autor especificamente, como ficou demonstrado linhas acima. A lei atinge aquele que praticou o delito uma única vez, por questões externas à sua pessoa, mas também aquele que apresenta sérios distúrbios sexuais e que pratica tal ato contumazmente. Este último é quem realmente deve ser taxado como pedófilo, face as suas atrações intensas por crianças em um período de tempo considerável. Por isso, considera-se por temerário taxar o delito sexual com crianças como “crime de pedofilia”.

A dificuldade na punição dos pedófilos, localiza-se, primordialmente, na variabilidade de comportamentos que são inerentes ao seres humanos. Fica constatado pela maioria dos pesquisadores, entretanto, que os pedófilos em geral não devem ser considerados como seres inimputáveis, exceto quando afetados por algum outro transtorno de índole mental.

O presente trabalho é apresentado como uma instigação inicial a um estudo mais aprofundado sobre o tema, não havendo quaisquer pretensões no que tange ao esgotamento da questão, tendo-se em vista que conclusões terminativas sobre ele são difíceis. Todavia, parece não haver dúvida de que os agentes pedofílicos constituem uma grande ameaça para a criança, sua família, para a sociedade e mesmo para o Estado. Diante dessa circunstância, os estudiosos tanto da ciência jurídica como da psicologia necessitam urgentemente se unir para buscar soluções para uma questão tão complexa como esta.

Bibliografia

ALBERTON, Mariza Silveira. Violação da infância Crimes Abomináveis. Humilham, machucam, torturam e matam! Porto Alegre: Editora Age , 2005.

ALMEIDA, Raquel. Conheça o pedófilo. In: Infonet. Aracajú, 11 out. 2008. Disponível em: <http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=78649&titulo=especial>. Acesso em: 16 abr. 2009.

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de Azevedo (Org). Infância e violência doméstica. São Paulo: Roca, 1998.

BRASIL. Código Penal. Lei n.º 2.848/40, de 07 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1940. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2009.

BRASIL. (Constituição 1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional n.º 57, de 18-12-2008. Diário Oficial da União, Brasília, 18 dez. 2008. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 14 abr. 2009.

BRASIL. Decreto Legislativo n. 28, de 26 de janeiro de 1990. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos da Criança. Senado Federal, Brasília, 14. set. 1990. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2009.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

BRASIL. Lei n.° 8.072/90, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm>. Acesso em: 15 abr. 2009.

BRASIL. Lei n.º 10.764/03, de 12 de novembro de 2003. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, 13 nov. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.764.htm#art2>. Acesso em 31 mar. 2009.

BRASIL. Lei n.º 11.829/08, de 25 de novembro de 2008. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, 26 nov. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11829.htm#art1>. Acesso em 31 mar. 2009.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70011372471, Oitava Câmara Criminal. Relator: Des. Lúcia de Fátima Cerveira. Acórdão de 09 jul. 2007. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2009.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Criminal n° 70010540284, Sexta Câmara Criminal. Relator: Des. João Batista Marques Tovo. Acórdão de 01 dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2009.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal n° 481635.3/8-0000-000, Nona Câmara Criminal. Relator: Des. Roberto Midolla. Acórdão de 08 de março de 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2009.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. HC 2008.05.00.001813-3 – 2ª T. – CE. Relator: Des. Fed. Conv. Marco Bruno Miranda Clementino. Acórdão de 18 de fevereiro de 2008. Disponível em: <http://www.trf5.jus.br/InteiroTeor/inteiroTeor.jsp?numproc=200805000018133>. Acesso em: 11 abr. 2009.

CARTA, Gianni. Mercado brutal. Carta Capital. São Paulo, edição 156, p. 14-19, 12 set. 2001.

CARVALHO, Olavo de. Cem anos de pedofilia. O Globo, São Paulo, 27 abr. 2002. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2009

CID-10, F65.4 – português.

CONTI, Matilde Carone Slaibi. Da pedofilia: aspectos psicanalíticos, jurídicos e sociais do perverso sexual. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2007.

DINIZ, Laura; COUTINHO, Leonardo. Violadas e feridas. Dentro de casa. Revista Veja, 2105 ed., ano 42 – n° 12, 25 mar. 2009.

HISGAIL, Fani. Pedofilia: Um Estudo Psicanalítico. Iluminiuras: São Paulo, 2007.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2004.

NETO, Alfredo Cataldo; GAUER, Gabriel José Chittó; FURTADO, Nina Rosa. Psiquiatria para estudantes de medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

NOBRE, Noéli e NEVES, Maria. Aumentam denúncias de abuso e exploração sexual infantil no Brasil. In: Agência Câmara. Brasília, 06 nov. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2009.

NOGUEIRA, Paulo. Pedofilia um mal que cresce e tem que ser combatido pela internet. In: Dourados Agora. Uberaba, 10 ago. 2008. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/agosto-1/pedofilia-um-mal-que-cresce-e-tem-que-ser-combatido>. Acesso em: 15 abr. 2009.

NOGUEIRA, Sandro D´amato. Pedofilia pela internet – o lado negro da Web. DireitoNet, [S.l], 20 jun. 2003. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1134/Pedofilia-pela-Internet-O-lado-negro-da-Web>. Acesso em: 12 mar. 2009.

SARMATZ, Leandro. Pedofilia: Inocência roubada. Super Interessante, 117ª ed., São Paulo, p. 40-44, maio 2002.

TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia – aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

TRIPICCHIO, Adalberto. Sexologia Forense. Psicologia – RedePsi, [S.l.], 13 jun. 2007. Disponível em:http://www.redepsi.com.br/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=515&keywords=sexologia+forense>. Acesso em: 16 abr. 2009.

Joelíria Vey de Castro

Professora de Direito Penal na Universidade Federal de Santa Maria; mestre em Integração Latino-Americana (MILA-UFSM); autora do livro: Extradição: Brasil & Mercosul. Curitiba: Juruá.

Cláudio Maldaner Bulawski

Advogado; bacharel em Direito pela UFSM; pós-graduando em Direito Civil pela UFRGS.

[1] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

[2] CONTI, Matilde Carone Slaibi. Da pedofilia: aspectos psicanalíticos, jurídicos e sociais do perverso sexual. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 28.

[3] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2004, p. 1342 e p. 2164.

[4] HOUAISS; VILLAR; FRANCO, op. cit., p. 2164.

[5] Distúrbio psíquico que se caracteriza pela preferência ou obsessão por práticas sexuais sociamente não aceitas, tais como a pedofilia, o sadomasoquismo, o exibicionismo, etc. Do grego παρά, para, "fora de", e φιλία, filía, "amor" é um padrão de comportamento sexual no qual a fonte predominante de prazer não se encontra na cópula, mas em alguma outra atividade. São normalmente caracterizadas por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos, que envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e causam interferências tanto na vida social como na ocupacional do indivíduo.

[6] HISGAIL, Fani. Pedofilia: Um Estudo Psicanalítico. Iluminiuras: São Paulo, 2007, p. 17-18.

[7] Complexo de Édipo: desenvolvido por Freud, é fase em que os meninos focalizam o seu desejo e prazer na mãe e as meninas no pai. É nessa fase também que a criança distingue a diferença dos sexos masculino e feminino e determina sua fixação pela pessoa mais próxima do sexo oposto. Tal complexo surge em meninos através de desejo sexual pela mãe,a criançavê o pai como ameaça e deseja se livrar dele, buscando, ainda, se identificar com o mesmo. Em meninas, o complexo surge com o desejo de ganhar um bebê do pai e como não consegue, tende a se desiludir.

[8] MOORE, B.E.; FINE, B.D. Termo e Conceitos Psicanalíticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992 apud TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia – aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 32.

[9] NOGUEIRA, Sandro D´amato. Pedofilia pela internet – o lado negro da Web. DireitoNet, [S.l], 20 jun. 2003. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1134/Pedofilia-pela-Internet-O-lado-negro-da-Web>. Acesso em: 12 mar. 2009.

[10] SARMATZ, loc. cit.

[11] CID-10, F65.4 – português.

[12] NETO, Alfredo Cataldo; GAUER, Gabriel José Chittó; FURTADO, Nina Rosa. Psiquiatria para estudantes de medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 492.

[13] NETO, Alfredo Cataldo; GAUER, Gabriel José Chittó e FURTADO, Nina Rosa. Psiquiatria para estudantes de medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 493.

[14] PEREIRA, Paulo Cunha. Sexologia aplicada à psicanálise. 3ª ed. Rio de Janeiro: SOPB, 2001, p. 151 apud CONTI, Matilde Carone Slaibi. Da pedofilia: aspectos psicanalíticos, jurídicos e sociais do perverso sexual. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 38.

[15] CONTI, Matilde Carone Slaibi. Da pedofilia: aspectos psicanalíticos, jurídicos e sociais do perverso sexual. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 28.

[16] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

[17] BRASIL. (Constituição 1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional n. 57, de 18-12-2008. Diário Oficial da União, Brasília, 18 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2009.

[18] BRASIL. (Constituição 1988). Constituição da República Federativa do Brasil, loc. cit.

[19] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

[20] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, loc. cit.

[21] TEIXEIRA, Ana Carolina B.; SÁ, Maria de Fátima F. de. Fundamentos principiológicos do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 26, p. 26, out-nov. 2004 apud DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 65.

[22] BRASIL. Lei n.º 10.764/03, de 12 de novembro de 2003. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, 13 nov. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.764.htm#art2>. Acesso em 31 mar. 2009.

[23] BRASIL. Lei n.º 11.829/08, de 25 de novembro de 2008. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, 26 nov. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11829.htm#art1>. Acesso em 31 mar. 2009.

[24] TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia – aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 115.

[25] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

[26] BRASIL. Lei n.º 11.829/08, de 25 de novembro de 2008. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, 26 nov. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11829.htm#art1>. Acesso em 31 mar. 2009.

[27] O direito penal do autor consiste na norma penal que se preocupa com quem o agente é, levando em conta fatores da personalidade do agente, e não com o fato por ele praticado.

[28] No direito penal dos fatos, ao contrário do direito penal do autor, o direito repressivo se preocupa tão somente com os fatos delituosos praticados pelo agente, e não com a pessoa do acusado.

[29] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.º 8.069/90, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2009.

[30] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70011372471, Oitava Câmara Criminal. Relator: Des. Lúcia de Fátima Cerveira. Acórdão de 09 julho de 2007. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2009.

[31] NOGUEIRA, Paulo. Pedofilia um mal que cresce e tem que ser combatido pela internet. In: Dourados Agora. Uberaba, 10 ago. 2008. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/clipping/agosto-1/pedofilia-um-mal-que-cresce-e-tem-que-ser-combatido>. Acesso em: 15 abr. 2009.

[32] BRASIL. Código Penal. Lei n.º 2.848/40, de 07 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1940. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2009.

[33] ALMEIDA, Raquel. Conheça o pedófilo. In: Infonet. Aracajú, 11 out. 2008. Disponível em: <http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=78649&titulo=especial>. Acesso em: 16 abr. 2009.

[34] CONTI, Matilde Carone Slaibi. Da pedofilia: aspectos psicanalíticos, jurídicos e sociais do perverso sexual. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 60-61.

[35] NOGUEIRA, Daniele apud Talvane de Morais. “Desejo do mal”. Jornal do Brasil, “Revista de Domingo”, Rio de Janeiro, p. 25, 12 maio 2002 apud CONTI, Ibid., p. 39.

[36] DSM-IV: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.

[37] TRINDADE, Jorge e BREIER, Ricardo. Pedofilia – aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 82.

[38] Ibid., p. 82-83.

[39] TRIPICCHIO, Adalberto. Sexologia Forense. Psicologia – RedePsi, [S.l.], 13 jun. 2007. Disponível em: <http://www.redepsi.com.br/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=515&keywords=sexologia+forense>. Acesso em: 16 abr. 2009.

[40] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Criminal n° 70010540284, Sexta Câmara Criminal. Relator: Des. João Batista Marques Tovo. Acórdão de 01 de dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2009.

[41] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal n° 481635.3/8-0000-000, Nona Câmara Criminal. Relator: Des. Roberto Midolla. Acórdão de 08 de março de 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2009.

[42] TRINDADE, Jorge e BREIER, Ricardo. Pedofilia – aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 43.

[43] TRINDADE, Jorge e BREIER, Ricardo. Pedofilia – aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 44.

ARTIGO
TERRORISMO: O PERSISTENTE DILEMA DA LEGITIMIDADE
Data: 24/11/2020
Autores: M. Cherif Bassiouni

Sinto-me honrado por estar junto a um grupo de distintos especialistas para discutir um assunto de alta relevância contemporânea. Minha gratidão ao Professor Michael Scharf, do Frederick Cox Center,[2] por realizar esta conferência e por me convidar para apresentar este discurso introdutório.

Precisamente porque muitos especialistas estão presentes nesta conferência, gostaria de limitar-me a algumas questões ecléticas e provocativas como forma de contribuir para o debate.

Em uma conferência internacional promovida pelo Instituto Internacional de Altos Estudos em Ciências Criminais (ISISC), em Siracusa, Itália, no ano de 1973, cunhei a frase “o que é terrorismo para alguns é heroísmo para outros”.[3] Por mais que a máxima possa parecer banal, ela representa os pontos de vista contrastantes sobre o fundamento de legitimidade daqueles que recorrem à violência como meio de atingir um resultado de poder.

A questão da legitimidade do uso da força persiste desde a existência das primeiras sociedades organizadas. Para alguns, está na obra de Maquiavel, para quem os fins justificam os meios, e a violência é apenas um desses meios. Para outros, certamente desde o surgimento daquilo que constituía o justo ou injusto no recurso à violência, em civilizações como as da Grécia e de Roma, há uma dimensão moral que limita tanto o jus ad bellum quanto o jus in bello.[4] Desde o século XIX, os realistas políticos veem a legitimidade como reflexo da assimetria de poder entre grupos rivais que pretendem justificar os seus métodos com foco nas finalidades. Não interessa sobre o que seja o embate, serão sempre aqueles com poder dominante que controlarão a caracterização da violência de seus oponentes. É isso o que determina Mao Tse Tung, em seu Livro Vermelho, que “o poder político transborda do cilindro de uma arma”.[5]

Durante séculos, a comunidade internacional procurou desenvolver regras neutras em tempos de guerra, as quais impediam o uso de certas formas de violência e determinadas armas, para o estabelecimento de limites designados para a proteção de certas pessoas e determinados alvos.[6] Entretanto, a neutralidade dessas regras historicamente também favoreceu o mais poderoso, deixando àqueles com menos poder poucas alternativas sobre sua violação. Isso explica porque, desde a II Guerra Mundial, as maiores quantidades de vítimas ocorreram durante conflitos de caráter não internacional.

Considerem também que a falha do direito internacional em providenciar mecanismos efetivos para a resolução pacífica de conflitos tem deixado, frequentemente, diversos protagonistas sem qualquer opção que não seja o apelo à violência e, por causa da assimetria de poder, à transgressão das regras nos limites da violência. O Presidente Kennedy, em um encontro de líderes de Estados das Américas, em 1961, descreveu eloquentemente a questão como “aqueles que fazem a revolução pacífica impossível tornam a revolução violenta inevitável”. Por isso, sem mecanismos efetivos de resolução pacífica de conflitos, e sem uma regra jurídica igualmente aplicada a todos os protagonistas, a alternativa é a violência – e, mais frequentemente, violência em forma de violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos, entre as quais se inclui o significado de terrorismo.

Para os Estados Unidos, sempre foi mais fácil advogar a autodefesa e a legitimidade, enquanto para os grupos prejudicados as mesmas pretensões são mais difíceis de conseguir. Um bom exemplo é o conflito Israel-Palestina, no qual não importa o quão violento seja o ato de ataque: quando executado por Israel é legítimo, embora se admita eventual uso de força excessiva em casos isolados; por outro lado, quando a performance vem da Palestina, isso é quase sempre terrorismo.

O recurso a formas de violência que instilam terror em uma determinada população vem sendo uma característica constante da história. A retórica dos estadistas contemporâneos - o terrorismo, como a chamaremos a partir de agora - não é nova nem apresenta respostas. Regimes tirânicos ao longo da história recorreram ao terror-violência, de Ghengis Khan, na Idade Média, aos regimes nazista e stalinista, em tempos mais recentes. A maioria das revoluções também vem acompanhada por um reinado de terror, tais como as revoluções francesa, leninista e maoísta, para citar apenas algumas. Como caracterizaríamos a inquisição espanhola? Estados, grupos, religião organizada, revolucionários, fanáticos e indivíduos com todos os tipos de causas recorreram ao terror-violência, com todos os tipos de justificação.[7] Temos, ainda, a impressão de que periodicamente redescobrimos o fenômeno e reinventamos respostas a isso. O que permanece constante são as recorrentes reivindicações de legitimidade, mesmo quando as ações de seus reivindicantes são do mesmo tipo daquelas consideradas “terroristas”.

Em tempos mais recentes, conflitos étnicos, religiosos e políticos trouxeram sua porção de terror-violência a diferentes sociedades em todo o mundo. Desde o fim da II Guerra Mundial, em quase todas as regiões do planeta, há conflitos caracterizados pelo terror-violência. É como um “déjà vu”, mesmo quando os meios e as consequências não foram ainda presenciados.

O que distingue essas diferentes experiências é a habilidade de certas sociedades em resistir, por si mesmas, com medidas contraterroristas e evitar o apelo às mesmas táticas daqueles que as atacam.[8] Nos últimos quarenta anos, a Europa, em particular, passou por essas experiências com as Brigadas Vermelhas, na Itália, o grupo Baader-Meinhof, na Alemanha, o movimento separatista basco, na Espanha, e o IRA, na Irlanda, para citar apenas alguns. Em todos esses casos, os governos em questão têm evitado recorrer ao terror-violência como meio de dominar o terrorismo imposto a essas sociedades pelos grupos rebeldes, desconsiderando a validade de suas reivindicações. O mais importante, esses governos procuraram restringir as respostas violentas no exercício de seus direitos legítimos de defenderem suas comunidades, considerando que os custos da liberdade e da democracia não poderiam ser tão altos a ponto de ceder aos grupos rebeldes a vitória sobre a legitimidade governamental.

As civilizações mais antigas parecem ter melhor memória histórica e melhor apreciação do valor das liberdades civis conquistadas com dificuldades. As sociedades mais novas tendem a focar mais na segurança sobre a liberdade e no curto prazo sobre o longo prazo. Neste contexto, é relevante lembrar das palavras de Benjamin Franklin durante a Guerra da Independência dos EUA: “aqueles que desistem da liberdade fundamental para obter um pouco de segurança temporária não merecem a liberdade nem a segurança”.

A percepção do perigo terrorista em todas as sociedades depende de uma variedade de fatores, um dos quais é o contexto e o outro é a forma pela qual os governos projetam as ameaças e sua importância para a população. Quando os governos intensificam as ameaças, há uma predisposição das sociedades para um medo maior, e de fato as condicionam a aceitar medidas que contradizem os valores sociais fundamentais, corroem liberdades civis e restringem direitos humanos. Quando isso ocorre, a perda para a sociedade é muitas vezes maior que as ameaças das quais estão diante. Nesses casos, os “terroristas” obtêm uma vitória moral somente porque esses governos perderam a mais alta razão moral.

Algumas sociedades podem ter um baixo limiar de vulnerabilidade para o impacto sociopsicológico do terror-violência porque carregam uma bagagem histórica que aumenta o medo coletivo e, de fato, amplia essa percepção social de fragilidade. Nessas situações, atos individuais de terrorismo operam como um mecanismo de alavanca psicológica que traz ao presente as dores sofridas por essa sociedade no passado.  Por exemplo, o suicida-bomba palestino, em Israel, possui um impacto sociopsicológico muito maior que no Iraque por causa da história de vulnerabilidade do povo judeu ao longo de seus 2000 anos.

O significado psicológico de terrorismo também depende amplamente da percepção de vulnerabilidade da sociedade, assim como da forma pela qual um determinado governo alimenta essa sensação. Nesses casos, análises quantitativas e comparativas da lesão perdem seu significado. O 11 de Setembro é um caso. Ocorreram aproximadamente 3.600 mortes. Entretanto, nos Estados Unidos, há aproximadamente 25.000 pessoas mortas todos os anos como resultado de embriaguez ao volante e 20.000 mortes anuais causadas por homicídios violentos. Não obstante a extraordinária quantidade de perdas produzidas todos os anos nesse país por atividades criminosas, para estas o senso de vulnerabilidade na sociedade norte-americana não é tão intenso quanto o que diz respeito à perspectiva de atos terroristas.

Interessantemente, poucas mudanças institucionais ocorreram neste país durante estes anos para prevenir homicídios violentos e mortes no trânsito por embriaguez, ainda que maiores mudanças institucionais aconteceram como resultado de um único incidente do qual resultaram 3.600 pessoas mortas. Alguns podem entender como causa do fenômeno a repetição anual de algumas 45.000 baixas, com as quais acabamos por nos acostumar, enquanto não podemos aceitar a vulnerabilidade de sermos expostos a ataques terroristas inesperados provenientes do estrangeiro. Outros a enxergarão como reação do orgulho nacional. Não se considera tanto o prejuízo quanto a ofensividade. O ponto é que o quantum de lesão provocada pelo comportamento criminal não é o que dá forma às percepções de ameaça e às reações para sua ocorrência. É o que nós fazemos disso, ou mais propriamente, o que os políticos e a disseminação da mídia produzem numa determinada sociedade, num determinado momento. Objetividade não tem nada a ver com percepção, e isso é uma das questões mais intratáveis quando se referem ao terrorismo.

A aleatoriedade do terrorismo aumenta o senso e a percepção do risco. A inabilidade para controlar a origem da violência eleva a avaliação do risco. Consequentemente, isso não se torna apenas uma questão de números, isso se mostra uma questão intangível. Incluem-se o impacto psicológico da vulnerabilidade, de um lado, e a imprevisibilidade de um dano futuro, do outro. Na esfera dos crimes comuns, as respostas são mais simples: alguém deixa de ir a certas vizinhanças; alguém deixa de frequentar certos locais em determinados horários; é possível tomar precauções. Com efeito, o que a pessoa faz pode minimizar os riscos e, por essa razão, o risco torna-se avaliável. No entanto, não há como um indivíduo fazer a mesma avaliação quando entra num avião e se expõe a um sequestro. Por isso, a vulnerabilidade aumenta porque a avaliação do risco não é considerável. A necessidade de responder a isso, num caso particular, surge diferentemente da necessidade de responder aos crimes mais previsíveis. Todavia, a questão essencial é: qual a regra política para afirmar a certeza de que se tem a medida apropriada pelo balanço entre o risco e a resposta?

Algumas lições que consideram as respostas ao terrorismo podem ser aprendidas da experiência da Europa durante os anos 60 e 70. Uma delas é que os líderes nunca devem aumentar o medo da sociedade e as expectativas por um ataque. Isso não significa renunciar a quaisquer medidas de prevenção e controle, no entanto, quando um líder eleva o nível de medo na sociedade, ele joga de acordo com o terrorista, pois admite a alta vulnerabilidade social e também acentua a reputação do grupo terrorista em nível proporcional. Foi assim que Osama Bin Laden e a al-Qaeda tornaram-se inimigos em evidência da América. É o reconhecimento extraordinário do status de tais pessoas e de tais grupos cujo único mérito é patrocinar a violência e, ocasionalmente, levá-la adiante com sucesso. Esse status concede à pessoa ou ao grupo o tipo de reconhecimento e sucesso que tanto desejam. Pior ainda, isso é um incentivo para grupos semelhantes tentarem igualá-los, como no caso de Abu Musab Al-Zarqawi, no Iraque, que, antes de se tornar o braço direito de Bin Laden, fazia parte de uma categoria dissidente.

A última coisa que um grupo terrorista quer é uma reação governamental que reduza sua importância, pois a exata proposta dos ataques de terror-violência é criar um desequilíbrio na sociedade que demonstre sua vulnerabilidade e crie uma ruptura na normalidade. A realização dessas propostas dá status ao grupo terrorista, habilidade de negociação e aumenta a possibilidade de obter certos resultados desejados. Quando há uma reação exagerada, que aumente os níveis de medo, reduza os direitos civis e, muitas vezes, permita abusos, os governos perdem sua reputação moral no conflito e tornam menor sua destreza para atingir uma prevenção efetiva e o controle da situação e, ultimamente, o combate legítimo da atividade terrorista.

Outra lição política ou operacional a ser aprendida é que, ao responder aos eventos terroristas, os governos nunca devem engajar-se em nível máximo. Em outras palavras, quando ocorre um ato terrorista, isso deve ser encarado como um problema criminal qualquer, e não como a declaração de uma guerra, como é usual, contra um pequeno grupo ou, no caso da al-Qaeda, uma organização amorfa ou rede de grupos ou indivíduos. Quando os altos escalões do governo estão envolvidos, introduz-se uma dimensão política que dificilmente pode ser contida, e tal retórica política ultrapassa os níveis da repressão criminal efetiva dentro da legalidade. Isso não pode ser interpretado, de nenhuma maneira, como uma restrição ao uso de todos os meios disponíveis permitidos em lei para proteger, prevenir, controlar e suprimir o terrorismo. Nem se deve entender que, no que se refere à atividade de confronto criminal, não haja lugar para regras militares e estratégias de inteligência. Todas as forças da sociedade devem ser reunidas para assegurar os objetivos de proteção e prevenção. Entretanto, reações contemporâneas ao terrorismo internacional demonstram que os líderes perderam de vista essas lições, gerando graves consequências inimagináveis para a paz e a segurança. É suficiente lembrar que o episódio de 11 de Setembro deu origem às guerras no Afeganistão e no Iraque, e estas levaram a Guantamamo e Abu Ghraib.[9]

Considerando o julgamento do caso Pan Am 103,[10] a ser discutido nesta conferência, o professor Scharf[11] alega que este julgamento foi uma grande experiência que demonstra como o direito penal internacional pode ser construtivo e resolver problemas políticos com espírito inventivo. Eu concordo com isso. A solução ao impasse internacional mostra quanto o direito penal internacional pode ser construtivo, deslocando-se a competência para a persecução ou a extradição para mudar o local de julgamento. As Convenções Européias sobre Deslocamento de Competência Criminal e sobre a Transferência de Prisioneiros oferecem tais soluções. Existem algumas modalidades no direito penal internacional que permitem a troca de competência para a persecução para promover a condenação e evitar a impunidade. Nesse sentido, o julgamento do caso Pan Am 103, realizado na Holanda, foi um sucesso. Entretanto, pergunta-se: a finalidade do julgamento era ficar marcado na história ou a história não é para ficar gravada? Uma hipótese é que o julgamento foi traçado para assegurar que a história não ficaria gravada porque os interesses políticos de certos estados estariam em jogo.

Julgamentos não podem sempre estabelecer a verdade ou a memória completa dos eventos históricos.[12] Algumas vezes podem até alterar a verdade e distorcer a história. O caso Eichmann,[13] em Jerusalém, foi conduzido para deixar um marco na história e obteve êxito.[14] O Primeiro-Ministro de Israel, Bem Gurion, solicitou ao chefe do Ministério Público, Gideon Hausner, que marcasse a memória do holocausto na Corte de Justiça porque este não teria sido completamente exposto durante os julgamentos em Nuremberg.  A dificuldade para se obter isso é que o julgamento está direcionado a um indivíduo – está focado em um caso apenas. O caso individual é como uma árvore na floresta, e se você foca a árvore, não consegue ver a floresta. No caso Eichmann, a acusação fez o maior esforço para estabelecer a inteira memória da história referente a tudo que se passou durante o holocausto. Tal esforço obteve sucesso, pois o foco do julgamento não estava limitado a olhar somente a árvore individual. De fato, ficou estabelecida uma memória histórica válida.

Por outro lado, Nuremberg foi uma extraordinária oportunidade para a União Soviética mudar a memória, e até mesmo distorcê-la. A União Soviética pretendia que o mundo esquecesse o Pacto Molotov-Rippentrop de Não Agressão, o acordo entre a Alemanha nazista e a Rússia stalinista para cindir a Polônia em duas partes e reparti-las entre si. Mais especificamente, a União Soviética queria assegurar que os alemães fossem culpados pelos 12.000 oficiais poloneses mortos no Massacre da Floresta Katyn.[15] Assim, a União Soviética distorceu a memória em Nuremberg com a condenação do exército alemão pela morte de 12.000 oficiais poloneses que foram executados pelos soviéticos. Nada, até agora, foi feito para corrigir essa memória histórica.

O que o caso Pan Am 103 adicionou à recordação da história do combate ao terrorismo? Eu entendo que pouca coisa.

Os especialistas que participam da conferência de hoje sabem muito mais do caso Pan Am 103 do que eu; mas por que houve um impasse de dez anos nesse julgamento? Essa paralisação veio do fato de que os Estados Unidos e o Reino Unido queriam que a Líbia extraditasse os dois operantes acusados, enquanto a Líbia invocou seu direito de processá-los sob a Convenção para a Eliminação de Atos Ilegais contra a Aviação Civil, de 1971. Por mais de 30 anos, as maiores potências do mundo nunca procuraram resolver, como prioridade das obrigações que lhe competem, se o que vem antes é a persecução ou a extradição.

A linguagem da Convenção de Montreal de 1971 é silente quanto à prioridade da persecução sobre a extradição ou se a extradição é prioritária sobre a persecução. A ambiguidade também está evidenciada pela ausência de duas premissas inarticuladas, a saber, que a persecução deve ser efetiva, não meramente um fingimento, e que a mesma deve ser também justa. Qualquer extradição deve ser efetiva, não mera demonstração vazia. Desse modo, efetividade e justiça são duas premissas ou condições inarticuladas, tanto na persecução quanto na extradição, que estão ausentes no texto da Convenção. Entretanto, nenhum tratado dirige-se à efetividade e à justiça porque os diplomatas geralmente abstêm-se dessas questões complicadas. Como resultado, a estrutura normativa para buscar-se justiça aos atos de terrorismo internacional possui uma ambiguidade inerente. Tal ambiguidade resultou na alegação dos Estados Unidos e do Reino Unido de que a Líbia seria ineficaz na persecução do acusado, por isso justificava-se a extradição aos países respectivos para um processo realmente efetivo. A Líbia argumentou a falta de confiança na imparcialidade da persecução nos Estados requerentes e recusou o pedido, utilizando-se do teor da Convenção para processar primeiro. Como resultado, seguiu-se um embaraço de dez anos, mais tarde resolvido por negociações adicionais que terminaram no julgamento do caso Pan Am 103.[16] Mesmo depois do caso citado, os problemas ainda persistem.

É interessante notar que “terrorismo” nunca foi definido.[17] Por mais de trinta anos o governo dos Estados Unidos se opôs à adoção de um conceito compreensivo de terrorismo. As políticas de diversas administrações vêm definindo terrorismo num sentido mais amplo. Os Estados Unidos optaram por uma solução fragmentada, incluindo convenções separadas sobre sequestros de aviões, raptos, sequestros de diplomatas, uso de explosivos, financiamento de terrorismo e terrorismo nuclear. Como resultado, desde a adoção da Convenção de Tóquio, de 1969, existem doze convenções internacionais a respeito do tema, mas com diferentes aspectos. Adicionalmente, há outras três convenções desconexas que tratam do assunto terrorismo, incluindo a Convenção de Genebra sobre Direito Marítimo e a Convenção da Organização Marítima Internacional,[18] que resultaram do sequestro do navio Achille Lauro e o assassinato de Klinghoffer.[19] Existe, portanto, um total de quinze convenções a respeito do terrorismo com diversos Estados signatários. A linguagem desses tratados é arcaica e frequentemente ambígua, mas os diplomatas continuam a seguir a mesma fórmula de persecução e extradição desde a Convenção de Montreal de 1971. O resultado é uma ineficaz coerção internacional. Além disso, o quadro atual do direito internacional falha na integração das diversas modalidades de cooperação entre Estados nas questões penais para realizar um sistema de obrigação mais efetivo. Não há políticas adequadas de coordenação em nível internacional. Mais de sessenta organizações de agências internacionais tratam do terrorismo e o confrontam em modelos remendados. O Conselho de Segurança do Comitê Contra o Terrorismo[20] não vem sendo capaz de coordenar todos esses esforços. Como resultado, em vez de desenvolver um quadro de cooperação multilateral, o atual caminho prioriza os esforços bilaterais.

Enquanto isso favorece os Estados Unidos, que podem exercer o domínio sobre o “grande clube” contra os outros países, há um ponto de retrocesso, e eventuais ressentimentos contra os norte-americanos surgem como impedimento para a cooperação. Claramente, quando os Estados Unidos recorrem à prisão de suspeitos de atos terroristas para torturá-los ou enviá-los a outros países para serem torturados, perde-se a legitimidade da luta contra o terrorismo. Isso porque “o que é terrorismo para alguns é heroísmo para outros”. Como disse uma vez George Santayana, “aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.[21] E parece que estamos repetindo nosso passado quando lidamos com o “terrorismo”.

M. Cherif Bassiouni

Professor e Pesquisador Emérito da Faculdade de Direito da DePaul University (Chicago, EUA). Presidente do Instituto Internacional de Direitos Humanos da DePaul University. Presidente do Instituto Internacional de Altos Estudos em Ciências Criminais (ISISC, Siracusa, Itália). Presidente de Honra da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Consultor junto ao Departamento de Estado e Justiça dos EUA. Foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em 1999

[1] Tradução de João Paulo Orsini Martinelli, com autorização do autor, de conferência publicada em Case Western Reserve Jou rnal of International Law, vol. 36, 2004, pp. 299-306.

[2] (N. do T.) Frederick K. Cox International Law Center, da Faculdade de Direito da Case Western Reserve University, localizada em Cleveland, Ohio, EUA.

[3] Sobre a ata da conferência, conferir M. Cherif Bassiouni, International Terrorism and Political Crimes (1975).

[4] (N. do T.) Segundo Francisco Resek, o jus ad bellum é o conjunto de normas costumeiras e convencionais que regulam o direito à guerra quando esta era aceita como meio de resolução de conflitos; o jus in bello era o próprio direito a realizar uma guerra quando esta parecesse justa (Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2005. pp. 368 e ss.).

[5] Mao Tse Tung, Problems of War and Strategy. 2 Mao Tse Tung, Selected Works 224 (1938).

[6] Conferir A Manual on International Humanitarian Law and Arms Control Agreements (coord. M. Cherif Bassiouni, 2000).

[7] Conferir International Terrorism: Multilateral Conventions (1937-2001) (coord. M. Cherif Bassiouni, 2001); International Terrorism: A Compilation of U. N. Documents (1972-2001) (coord. M. Cherif Bassiouni, 2002).

[8] Conferir International Terrorism: Legal Challenges and Responses (International Bar Association Task Force on International Terrorism, 2003).

[9] (N. do T.) Guantanamo e Abu Ghraib são cidades localizadas, respectivamente, em Cuba e no Iraque, famosas por suas prisões utilizadas para deter prisioneiros de guerra e pelas torturas praticadas contra eles.

[10] (N. do T.) O atentado ao vôo 103 da Pan Am ocorreu em 21 de dezembro de 1988, com a explosão de um avião que faria viagem de Londres a Nova Iorque. Morreram 270 pessoas, sendo 259 que estavam no avião e outras 11 na cidade de Lockerbie, na Escócia, a qual sobrevoava.

[11] (N. do T.) Michael P. Scharf, Professor da Faculdade de Direito e Diretor do Centro de Política e Direito Internacional da New England School of Law.

[12] Conferir: Stephan Landsman, Crimes of the Holocaust: The Law Confronts Hard Cases (2005).

[13] (N. do T.) O alemão Karl Adolph Eichmann foi um dos principais executores do Holocausto durante a II Guerra Mundial. Foi responsabilizado pela morte de inúmeros judeus nos campos de concentração. Após a Guerra, foi capturado pelo serviço secreto judeu, na Argentina, onde morava com uso de documentos falsos. Em 1961, deu-se início a seu julgamento em Israel. Ao final, em 1962, Eichmann foi condenado à morte e, posteriormente, executado.

[14] Procurador-Geral de Israel versus Eichmann, 1962 (Suprema Corte de Israel).

[15] O Massacre da Floresta Katyn ocorreu em 1940, por uma ação ordenada por Stalin, no qual aproximadamente 12.000 poloneses tomados como prisioneiros na invasão à Polônia, em 1939, foram executados e enterrados pela NKVD (a polícia secreta do partido comunista russo). Em 1989, Gorbachev reconheceu publicamente o Massacre da Floresta Katyn.

[16] (N. do T.) O julgamento do caso Pan Am 103 foi realizado na Holanda, mediante as leis escocesas, pois o atentado ocorreu enquanto o avião sobrevoava a Escócia, iniciou-se em 03 de maio de 2000, mais de 11 anos após o incidente, e teve duração de 36 semanas.

[17] Ver A More Secured World: Our Shared Responsibility. Report of the Secretary-General’s High-Level Panel on Threats, Challenges and Change. U. N. Doc. A/59/565 (02 de dezembro de 2004).

[18] (N. do T.) IMO Convention, em vigência desde 1958.

[19] (N. do T.) O navio Achille Lauro foi sequestrado em 1985 por ativistas da Frente de Libertação Palestina, e Leon Klinghoffer, passageiro, deficiente físico que movia-se por cadeira de rodas, foi executado com um tiro na cabeça após o governo da Síria recusar permissão para atracar em seu território.

[20] (N. do T.) Informações sobre o Comitê Contra o Terrorismo da ONU: <http://www.un.org/en/sc/ctc/>.

[21] George Santayana, Life of Reason (1905).

BATE-BOLA
Regina Cirino Alves Ferreira entrevista ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO
Data: 24/11/2020
Autores:

A Revista Liberdades teve a imensa honra de estar com o Mestre, Doutor e Professor Doutor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO, o qual além de se dedicar às atividades acadêmicas, exerce com maestria a profissão de advogado criminal. Autor das obras Tipicidade penal e sociedade do risco e Finalidades da pena e co-autor de Comentários à lei de crimes ambientais e Comentários à lei das contravenções penais, todas da Ed. Quartier Latin, além de diversos artigos publicados, nosso entrevistado do Bate-Bola dessa edição fala um pouco de como surgiu o seu interesse pelo direito e, conseqüentemente, pelo direito penal, além de esclarecer, com muita didática, própria de um professor, questões atuais da dogmática penal. A entrevista foi concedida à advogada REGINA CIRINO ALVES FERREIRA, Coordenadora-adjunta do Departamento de Internet do IBCCRIM.

1 - Professor, inicialmente gostaríamos de saber os motivos que o levaram a estudar Direito e como surgiu o interesse pela área penal?

Desde muito cedo sempre tive vontade de ser advogado. Na verdade, confesso que jamais tive dúvidas em relação à profissão. Lembro-me que na época do colegial, nunca fiz testes vocacionais ou aconselhamentos para a escolha da carreira a ser seguida. Penso que meu pai possuiu uma forte influência nisso. Mesmo não sendo criminalista, sempre o via falar de Direito, preparar petições, contar casos que chegavam ao seu escritório até hoje sediado em Ribeirão Preto-SP. Isso certamente me influenciou muito. Um dia, já com mais ou menos 16 anos, ele me levou a São Paulo para conhecer pessoalmente a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Aquele lugar me tocou, era diferente de qualquer instituição de ensino que tinha visto. Se havia ainda alguma pequena dúvida, esta foi definitivamente dirimida. Queria fazer Direito. E mais, teria que ser na Universidade de São Paulo. Já o interesse pelo Direito penal eu imagino que foi aquele que se manifesta em quase todos os estudantes no início do curso. A diferença é que este interesse, em boa parte dos estudantes, pelas mais diversas razões, vai arrefecendo ao longo da graduação e naturalmente cedendo espaço para as outras disciplinas. No meu caso o interesse permaneceu. Um motivo para isso foram os professores. Recordo-me das aulas do Professor Sérgio Salomão Shecaira, o qual, ao final do 5º ano, foi homenageado da minha turma. Quando estava no 3º ano, conheci o Professor Antonio Luis Chaves Camargo, e ele foi o responsável por praticamente toda a minha carreira acadêmica. Conduziu-me ao mestrado e ao doutorado, falecendo infelizmente no ano de 2007. Como docente, tenho no Professor Chaves a maior inspiração.

2 - O senhor foi aprovado em difícil concurso para Professor Doutor da tradicional Academia do Largo de São Francisco. Como está sendo conciliar a vida acadêmica com o exercício da Advocacia?

Particularmente acredito que as carreiras podem ser totalmente compatíveis. O próprio Departamento de Direito Penal da USP é um exemplo disso, na medida em que muitos professores também atuam como advogados. Trata-se de uma relação entre teoria e prática. Quanto mais o estudo do Direito penal é aprofundado, mais se percebe a desigualdade que ele reproduz. O instrumento penal é sem dúvida aquele que mais submete o cidadão ao império do Estado. A compreensão deste fenômeno, a meu ver, é essencial também ao advogado. Isso nos traz combatividade e nos faz perceber com maior clarividência as injustiças e, ao mesmo tempo, lutar contra elas. Nesse sentido, o advogado e o professor se complementam na mesma missão. Ao primeiro, compete a defesa dos indivíduos. Ao segundo, cabe o esclarecimento da necessidade de se enxergar o Direito penal com responsabilidade e prudência, percebendo as diferencias entre seus discursos oficiais e as mazelas sociais que de fato produz. A academia e a ciência, por isso, são o contraponto necessário ao senso-comum.

3 - Aproveitando seus estudos realizados quando da elaboração de sua tese de doutoramento, que posteriormente originou o livro Finalidades da Pena: conceito material de delito e sistema penal integral, em sua opinião, qual a precípua finalidade da pena na sociedade pós-moderna?

Essa pergunta dialoga com a questão dos discursos oficiais e a realidade social. Historicamente muitas funções foram atribuídas è pena. Grande parte delas não se mostrou verdadeira ou serviu apenas como um mecanismo ideológico de ocultar a sua real finalidade. Parece-me inegável que o Direito penal é um instrumento, bastante rígido, de controle, e com isso o seu instrumento principal, a pena, não foge a esta realidade. A punição é, antes de qualquer coisa, violência. O cárcere brasileiro é um típico exemplo desta seletiva violência, em razão dos dados sócio-econômicos dos presos, bem como dos delitos cometidos pelos que ali estão. Percebe-se que a real função da pena é neutralizar indivíduos tidos como inaptos ao convívio social. O problema é que esta inaptidão decorre de causas profundas, as quais não são problematizadas pelo Direito penal. O discurso da igualdade, representada pelo ideal do sujeito de direito, esconde a desigualdade social subjacente. No Brasil e em qualquer país do mundo a população carcerária é sempre o espelho da faceta menos favorecida da sociedade.

4 - Em inspeção carcerária realizada pelo CNJ no mês de outubro de 2010 constatou-se, uma vez mais, que presos estavam cumprindo pena no interior de contêineres em condições subumanas. Qual sua avaliação sobre o sistema penitenciário nacional? O senhor acredita que a privatização de presídios seria uma solução adequada para o problema prisional?

Sou completamente contra a privatização de presídios por diversas razões. Primeiro porque o tratamento prisional não pode ser administrado como um mercado. Aceitar isso é institucionalizar a coisificação do preso, é chamá-lo definitivamente de mercadoria, sujeito ao oferecimento de sua custódia aos agentes privados. Em segundo lugar, o Estado precisa assumir sua responsabilidade. Ele é o responsável pela edição das leis, pelos julgamentos, pela reprodução da desigualdade. Por que na hora de executar um plano de reintegração social, como diz a Lei de Execução Penal, resolve sair de cena? Isso é um puro comodismo. Além disso, é necessário desmistificar essa idéia de que o estatal é ineficiente sempre e, ao mesmo tempo, a administração privada é mais capacitada. Isso é pura ideologia. Foi exatamente esse mesmo discurso que justificou a venda de diversas estatais nos anos 90. No caso dos presos, apenas o Estado poderá ser capaz de articular estratégias diversas para reinserção social destas pessoas. Os particulares podem até auxiliar nesse processo, mas jamais assumir o protagonismo da execução penal.

5 - Professor, qual seu posicionamento a respeito das diversas leis penais que estão sendo criadas nos últimos anos sob o fundamento de coibir a criminalidade? Tal argumento é falacioso? O senhor acredita que a solução está no direito penal?

Recentemente tenho me dedicado ao estudo de alguns autores italianos contemporâneos. Acredito que o Direito penal italiano, menos apegado ao normativismo germânico excessivo, possa trazer algumas contribuições para nossas indagações. A sua pergunta, na verdade, diz respeito ao tema da efetividade do ordenamento jurídico como um todo e, mais ainda, à eficácia das normas singulares. Os italianos argumentam que a questão da efetividade deveria ser vista sob uma dinâmica externa ao direito, pois apenas assim poderíamos descobrir se a promessa penal é de fato cumprida. Quando afirmamos que o Direito penal deveria coibir a criminalidade estamos no campo da missão deste ramo jurídico, ou seja, daquilo que ele deveria ser. Não estamos necessariamente no campo de sua função, aquilo que ele é. Essa diferença é importante, pois muitas vezes toma-se a primeira pela segunda, de tal sorte a ocultarmos a função com o discurso da missão. O argumento da política, hoje em dia, tem essa característica de não problematizar as verdadeiras razões da criminalidade e, por isso mesmo, atribui ao Direito penal uma promessa que ele não pode cumprir. A solução para a criminalidade não está no Direito penal, mas acredito que esta afirmativa poderia ser incrementada por pesquisas que enfrentassem a questão da efetividade jurídica e suas limitações. Do contrário, continuaremos a inserir no ordenamento leis ineficazes. Isso é problemático, pois quanto mais ineficaz é a lei, mais ainda ela é seletiva.

6 - Qual a importância do pensamento de Ulrich Beck para compreendermos a sociedade global e as transformações hoje atravessadas pelo direito penal?

Tive a oportunidade de estudar o pensamento de BECK quando desenvolvi minha dissertação de mestrado. Naquela época tinha a pretensão de explicar, por meio da leitura deste sociólogo e de suas categorias, as alterações que o tipo penal estava sofrendo, principalmente sua constante abertura, isto é, o incremento de elementos normativos em sentido amplo. Acredito que seu conceito de sociedade de risco, exposto originalmente em livro datado de 1986, permite perceber a quais são os novos objetos de preocupação do homem, além da dificuldade de diagnosticar os limites precisos desta mesma preocupação. Isso é curioso. Nosso modelo de sociedade, para além de gerar riscos, dificulta a sua exata compreensão. Esse limite de tolerância acaba refletido na criminalização. Quando analisamos os crimes ambientais ou relacionados ao consumo, percebemos algumas figuras que não mereceriam ser consideradas delitivas, já que retratam comportamentos pouco agressivos ou simples violações a regras administrativas. Esses tipos penais, de fato, demonstram um problema de diagnóstico concreto do limite dos riscos, ou seja, espelha na decisão legislativa certa ignorância a respeito da realidade.

7 - Professor, o senhor acredita que com a denominada sociedade do risco estão sendo criados novos tipos penais de maneira ocasional e descontrolada?

Esta indagação relaciona-se com as duas últimas perguntas. Para se dizer ou não que a criação de tipos penais é ocasional e descontrolada é necessário assumir premissas. Digo isso porque se chegássemos à conclusão que o Direito penal é o instrumento adequado para a contenção da criminalidade, ou dos riscos produzidos pelo homem, não poderíamos dizer que a atual criminalização é ocasional, descontrolada ou excessiva. O problema é que a atual legislação está pautada nesta premissa que é falsa. O Direito penal é apenas um fator, entre muitos outros mais importantes, no controle da criminalidade. O que se verifica hoje é uma espécie de crença exagerada na capacidade do Direito em afetar a realidade. Essa crença equivocada não decorre sempre e necessariamente de má-fé, mas sim da falta de percepção da realidade e de suas estruturas valorativa e de funcionamento.

8 - Qual seria a relação entre o tipo penal a sociedade do risco e imputação objetiva?

Essa é uma pergunta muito complexa, mesmo porque há incontáveis divergências acerca da caracterização da imputação objetiva e seus institutos. Em termos muito gerais, pode-se dizer que a imputação objetiva está, de modo relativo, assumiu maior importância dogmática com a já mencionada abertura dos tipos penais. Essa elasticidade semântica típica passa a exigir ferramentas de contenção, racionalidade e certeza jurídica. Parece-me que é neste espaço que a imputação objetiva ganha maior relevância, como elemento normativo complementar. É importante perceber que a imputação objetiva não se destina, por exemplo, a substituir o nexo de causalidade, mas sim a estabelecer mecanismos destinados a identificar a efetiva violação da norma e sua relevância na produção do resultado.

9 - Quais os assuntos jurídicos que são de seu interesse atualmente?

Essa pergunta para o penalista é sempre complicada, principalmente porque o Direito, pela sua amplitude, a toda hora exige reflexões e aprofundamentos sobre os mais diversos temas. Posso dizer, todavia, que tenho especial afeição aos temas que explicitam a relação entre Direito penal e violência. Seria, assim, a faceta mais cruel da realidade jurídica. Talvez por isso eu sempre me dediquei à problemática da pena e verifico, em meus estudos atuais, uma inclinação cada vez maior ao chamado Direito penal das classes baixas.

10- Agradecemos a participação nesse Bate-Bola da Revista Liberdades e gostaríamos que o senhor deixasse uma mensagem final para os nossos leitores e associados do IBCCRIM.

Gostaria em primeiro lugar de agradecer ao IBCCRIM o privilégio em participar desta inovadora revista eletrônica. Acredito que minha mensagem está em conformidade com o próprio espírito norteador deste instituto, ou seja, é preciso que o estudo do Direito penal seja feito de modo crítico, não meramente contemplativo. O jurista, para além de conhecer os complexos esquemas dogmáticos, necessita se preocupar com as conseqüências concretas de seu discurso. Isso é ainda mais problemático quando estamos falando de Direito penal, sinônimo de violência institucionalizada. É importante que as pessoas questionam, duvidem, apontem o dedo para soluções sociais fáceis e quase milagrosas. O IBCCRIM desenvolve esse papel há 18 anos. Espero que cada vez mais pessoas estejam dispostas a ajudá-lo.

***

RESENHA
O INCLUSIVO, O EXCLUDENTE E O DIALÓGICO
Data: 24/11/2020
Autores: Bruno Amabile Bracco

Obra: A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na sociedade recente, de Jock Young (Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002).

“É quando as matérias escapam à qualificação de verdadeiro ou de falso, porque não se reportam a uma ciência unitária, mas ao pluralismo filosófico, que se justifica uma atitude de tolerância e que um diálogo, permitindo ampliar as perspectivas, é não só útil, mas até indispensável. Assim como o juiz, antes de tomar uma decisão, tem de ouvir as duas partes – audiatur et altera pars – um posicionamento filosófico, sob pena de carecer de racionalidade, tem de levar em conta pontos de vista opostos na matéria.”

Chaim Perelman [1]

I. Considerações primeiras

De pronto, deve-se pontuar que A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na sociedade recente não é uma obra jurídica, mas sim sociológica e criminológica. E seu autor, Jock Young, embora comumente considerado realista de esquerda – categoria que, juntamente com John Lea e Roger Mattheus, principiou a sedimentar –, foge em boa medida, na obra aqui analisada, a qualquer tendência de atribuir à desigualdade social a causa de todos os crimes. Com efeito, em A Sociedade Excludente, Young abre-se a vozes diversas, sejam acadêmicas, jornalísticas, ativistas, ou quaisquer outras. Seu intento é, portanto, o de analisar o desvio em suas múltiplas facetas: desde o desvio que mais apela ao senso comum até aqueles menos comentados, mas similarmente gravosos – e, como bons exemplos destes, o autor cita frequentemente os casos de violência doméstica e de colarinho branco.

É oportuno salientar, ainda, que a obra tem, como base de suas conclusões, a realidade dos Estados Unidos e da Europa ocidental, especialmente a da Inglaterra do último século. Neste sentido, observamos que o autor contrasta, logo no primeiro capítulo, o sonho europeu e o sonho americano: estes são seus territórios de estudo e análise. É evidente que as semelhanças entre a investigação levada a efeito por Young e a realidade social brasileira são imensas e saltam aos olhos. De qualquer maneira, a leitura há que ser atenta e muitas das idéias expostas na obra não devem servir a iluminar nosso olhar sobre a sociedade periférica sem as devidas adaptações.

Feitas estas breves considerações, iniciemos a análise da obra, propriamente.

II. Um livro sobre “dificuldade e diferença”

Jock Young aponta, já de início, que estamos diante de uma obra sobre “dificuldade e diferença”.[2]

sociedade_excludente.jpgA diferença emana, mais que tudo, dos tempos atuais: a cantada pós-modernidade, que o autor prefere chamar de modernidade recente – e diga-se, a este respeito, que pós-modernidade parece ter sido o termo que mais agradou ao gosto popular, mas modernidade tardia era o preferido de Giddens, supermodernidade, o deGeorges Balandier, e por aí poderíamos ir.[3] O que se observa, porém, é que este exato debate denuncia, curiosamente em meio ao dissenso, uma fagulha de consenso, no sentido de que há, sem dúvida, mudanças atualmente em curso. De todo modo, parece-nos de importância secundária a discussão sobre tais mudanças levarem à exacerbação da modernidade ou à superação dos parâmetros modernos. Adotaremos, neste trabalho, de qualquer forma, a terminologia preferida por Jock Young, mas é importante saber que, quando falarmos em modernidade recente, estamos referindo-nos, tão somente, aos tempos presentes.

De fato, a diferença é a mais essencial característica da modernidade recente. Diferença e crise. Para Marilena Chauí, que opta pelo termo pós-modernismo, este

faz a opção pela contingência. E, com ela, opta pelo fragmentado, efêmero, volátil, fugaz, pelo acidental e descentrado, pelo presente sem passado e sem futuro, pelos micropoderes, microdesejos, microtextos, pelos signos sem significados, pelas imagens sem referentes, numa palavra, pela indeterminação, que se torna, assim, a definição e o modo da liberdade. Esta deixa de ser a conquista da autonomia no seio da necessidade e contra a adversidade para se tornar jogo, figura mais alta e sublime da contingência. Mas essa definição de liberdade ainda não nos foi oferecida pelo pós-modernismo; está apenas sugerida por ele, pois definir seria cair nas armadilhas da razão, do universal, do logocentrismo falocrático ou de qualquer outro monstro que esteja em voga. Donde o sentimento de que vivemos uma “crise” dos valores morais (e políticos).[4]

Falar em diferença é, assim, falar em mudanças, em ascensão do individualismo – que irrompe, em múltiplos pontos, da trama outrora aparentemente homogênea da modernidade –, em igualdade política caminhando lado a lado com desigualdade social, em desejo de ascensão e de status, em inclusão do que é diverso, em necessidade de diálogo. Tudo em tempos de absoluto e disseminado questionamento.

E a dificuldade decorre, evidentemente, da diversidade. Afinal, a análise sociocriminológica de Young não pode, agora, deixar de tomar em conta as diferentes vozes que parecem ter algo de substancial a ser dito; e vozes que ora bem dialogam, ora divergem, ora trazem ao cenário elementos antes absolutamente desconhecidos. Qualquer investigação criminal, em tempos de modernidade recente, não pode pretender ser fácil.

Da “sociedade inclusiva” à “sociedade excludente”: a necessidade de diálogo

Young conta-nos sobre os anos dourados de meados do século XX: aqueles tempos de inclusão, afluência e conformidade, em que o projeto moderno era visto como bem-sucedido. A questão da cidadania parecia resolvida, o emprego – ainda que quase exclusivamente masculino – era pleno e o Estado colocava seus dedos no andamento da economia com vistas à justiça social. E o mais importante: os valores ocidentais eram vistos como o apogeu do progresso humano. A sofisticada civilização que desfilava pelas portentosas ruas da América do Norte ou da Europa via-se a si mesma como o ponto máximo a que o ser humano, socialmente, poderia almejar chegar.

Na Criminologia, tal concepção trazia consigo um olhar eminentemente etiológico sobre o crime: o desviante era encarado como aquele que, por infortúnio de uma família desestruturada ou qualquer espécie de má-formação, pisou fora do (correto) caminho pavimentado pelas mãos sociais. Afinal, numa sociedade intocável, era reconfortante pensar que o desvio decorria de causas bem específicas, realmente excepcionais, ligadas à microesfera familiar do sujeito ou a suas estruturas biológicas. E, assim sendo, arrogava-se a sociedade o direito – e, pode-se dizer, impunha-se a si mesma o dever – de readaptar aquele infeliz desviante às inquestionáveis normas aceitas coletivamente. Queria-se a cura, o tratamento. Queria-se a ressocialização, tal qual explanada por Baratta:

“Tratamento” e “ressocialização” pressupõem uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como “boa” e aquele como “mau”.[5]

Na sociedade moderna, portanto, o olhar é um tanto autocentrado: os circuitos próprios da sociedade são vistos como inquestionáveis; há um fechamento em torno de si mesma, tal como o autoerótico Narciso que, ao mirar seu rosto refletido nas plácidas águas próximas à gruta de Eco, fascina-se “com a beleza daquele semblante inigualavelmente belo”.[6] O outro – aquele que ousa discordar e desviar-se – é encarado como imaturo ou insensível: ele é estranho, e sua falta apenas leva à constatação de sua estranheza. E jamais sugere, em qualquer medida, que os valores sociais podem, eventualmente, ser questionados. Eis a sociedade inclusiva de Young: aquela sociedade que, aos regozijos consigo mesma, pretende abrigar em seu seio tanto quanto é diverso só para transformá-lo.

Na modernidade recente, porém, o mundo perde seu esteio e entra gradualmente em crise. Agora, em vez de incorporar, a sociedade separa e exclui, fazendo opção pelo contingente em vez de pretender erigir qualquer modo e viga universal. As transformações repercutem, especialmente, na forma do já citado individualismo, assim como no mercado de trabalho. Afinal, a economia, próspera nos anos dourados, agora passa por recessão ou downsizing. O pleno emprego, conquista da modernidade, agora é sombra num horizonte longínquo, e o trabalho seguro, qualificado e com salários estáveis, passa a ser privilégio de alguns poucos participantes do mercado primário. No mercado secundário, a instabilidade reina e as recompensas são consideravelmente menores: há ali, sim, incluídos, mas sua inclusão é precária. E o cenário é ainda mais calamitoso pela presença dos meros espectadores, “testemunhas perpétuas dos prêmios resplandecentes em oferta”.[7]

Para o autor, este mercado de trabalho que ora exclui, ora inclui de maneira precária, é a fonte da qual derivam tanto boa parte da criminalidade quanto o anseio punitivo da sociedade. Afinal, por um lado, o excluído quer ter acesso aos bens de consumo tão propagandeados pelo mundo; por outro lado, o incluído precariamente teme a exclusão iminente, vê a classe alta como favorecida, vê a classe baixa como preguiçosa – pois “vive de assistência pública sem competir”[8] – e, por estar às vizinhanças desta e não contar com a segurança própria àquela, é muito mais vítima dos excluídos e das condutas desviadas. O descontentamento se espalha.

A cidade pode ser vista como metáfora da modernidade recente. É, afinal e a um só tempo, um mosaico de possibilidades entrecruzadas, um teatro de incontáveis papéis, uma promessa de satisfação dos mais variados desejos: eis sua atratividade. Pessoas, em seu anseio hedonista e imediatista por autorrealização neste cenário de múltiplas ofertas, criam uma séria de subculturas, cada uma com seu estilo tão próprio, tão à parte. O desejo de status é realimentado num mundo em que o sonho moderno não é mais factível; e, neste panorama, a privação relativa, oriunda de uma infeliz combinação de desejos fomentados pela propaganda e impossibilidade material de realizá-los, leva a uma frustração que, não raro, desemboca em condutas desviadas.

As subculturas, que surgem naturalmente nestes tempos de múltiplos vetores chocando-se de forma incessante, entram frequentemente em rota de colisão. O autor traz como exemplo aquele ideal machista estereotipado, agressivo, patriarca ordinário, tão mitigado pelas formas contemporâneas de trabalho. Tamanha energia, agressiva e potencialmente destrutiva, é redirecionada para gangues locais: eis a nova forma de readquirir respeito. Assim é que os excluídos, em resposta à exclusão e à violência que sofrem, excluem e violentam, e este indesejável ciclo é chamado por Young de dialética da exclusão. À falta de absolutismo ético, num terreno em que grupos diversos clamam pela voz que lhes permitirá externar suas normas internas próprias, todos são potencialmente desviantes.

Um dado importante trazido por Young refere-se ao âmbito doméstico: de toda a violência observada num determinado bairro londrino em meados do século XX, quarenta a cinquenta por cento eram casos de violência doméstica. Com efeito, o anseio da mulher por inclusão no mercado de trabalho é combatido por preconceitos masculinos arraigados, reagindo o homem com sua última cartada: a brutalidade física. E, ao mesmo tempo em que cresce o número de conflitos, a mulher, em seu fortalecimento egóico, redesenha sua própria noção de dignidade e agora não mais tolera, como já havia tolerado, a violência de gênero.

Conclui-se, portanto, que há duas formas precípuas de violência. De um lado, aquela violência que resulta da exclusão no trabalho, potencializada pela situação de inclusão precária, num cenário em que a temeridade reina. De outro lado, há a violência como resultado natural do choque entre reivindicações de um dado grupo contra a resistência de outros – como é o caso da violência doméstica, em que os impulsos progressistas da mulher são refreados, às vezes violentamente e no lar, pela resistência masculina.

A reação diante deste cenário caótico, de violência espalhada, seja nas ruas de uma cidade já insegura ou nas dependências da própria casa, evidentemente varia de tom. É comum, porém, observar-se um forte apelo pelo retorno ao ideal moderno de valores absolutos – um retorno aos anos dourados ainda vivos na memória, mesmo que, ao abrirem-se os olhos, se observe um mundo contemporâneo já sobremaneira diverso daquele. Evidentemente, o conservadorismo, desejoso que é de fazer reviver o absolutismo de valores pretéritos, não pode deixar de trazer consigo boa dose de inflexibilidade e intolerância.

O medo torna-se público, generalizado, e a ideologia de evitação passa a nortear os passos de muitos: alguns lugares tornam-se ameaçadores, algumas situações passam a ser evitadas. Não se vai a bairros periféricos, nem se anda pelas regiões centrais na madrugada. As cidades formam barreiras que excluem e filtram. Aumenta-se o policiamento. Criam-se oásis de paz e segurança – são ruas lotadas de seguranças privados e lojas de grife, shoppings e clubes. E, por todos os lados, câmeras de vigilância acompanham nossos passos, concretizando, hoje, profecias orwellianas que em outros tempos eram a temática de romances futuristas. Neste sentido,

Foucault assinala que esses micropoderes não estão localizados em nenhum lugar específico da estrutura social; eles se encontram nessa rede de dispositivos de que ninguém escapa. Por isso ele afirma que o poder não é algo que alguém detém como uma propriedade; o poder se exerce. Portanto, não existe O Poder, mas práticas ou relações de poder.[9]

Se, deste lado, criam-se oásis vigiados e evitam-se periferias escuras, em terrenos de vigilância e medo tão bem descritos por Foucault, do lado de lá a população encarcerada só faz aumentar. Há movimentos incisivos no sentido de incrementar a quantidade de punição: punem-se os quebradores de janela, sob a justificativa de que nestas pequenas infrações está a semente do enorme crime do porvir; instaura-se a lei e a ordem; e a tolerância em relação às condutas desviantes é drasticamente diminuída. A tolerância é zero.

Mas, pergunta Young, “pode uma parte da sala ficar quentinha para sempre enquanto a outra fica perpetuamente isolada e fria”? De um lado, uma classe nuclear, que vai para o “terceiro mundo” em suas férias, e, no dia a dia, circula em seus carros blindados por ruas limpas e bem cuidadas. Ao centro, um cordão sanitário é criado: o policiamento é ostensivo, as construções se impõem e intimidam, a vigilância é incessante. Do lado oposto, caminham mães solteiras e pais irresponsáveis, vendem-se drogas ilícitas, depara-se com prostituição e comério de produtos de crime: eis as “impurezas sociais do mundo moderno recente”,[10] que precisam ser mantidas à margem, excluídas.

Neste ponto e para ilustrar a divisão entre o higiênico e o obsceno descrita por Young, é oportuno transcrever trecho do romance Demian, do premiado Hermann Hesse. Aqui também se divide a existência em “dois mundos”:

... um se reduzia à casa paterna, e nem mesmo a abarcava toda; na verdade, compreendia apenas as pessoas de meus pais. Esse mundo era-me perfeitamente conhecido em sua maior parte; suas principais palavras eram papai e mamãe, amor e severidade, exemplo e educação. Seus atributos eram a luz, a claridade, a limpeza. As palavras carinhosas, as mãos lavadas, as roupas limpas e os bons costumes nele tinham centro. (...)

O outro mundo começava – curioso – em meio à nossa própria casa, mas era completamente diferente: tinha outro odor, falava de maneira diversa, prometia e exigia outras coisas. Nesse segundo universo havia criadas e aprendizes, histórias de fantasmas e rumores de escândalo; havia uma onda multiforme de coisas monstruosas, atraentes, terríveis e enigmáticas, coisas como matadouro e a prisão, homens embriagados e mulheres escandalosas, vacas que pariam e cavalos que tombavam ao solo; histórias de roubos, assassinatos e suicídios... [11]

Os cordões sanitários são existentes – e muito concretos – no labirinto psíquico de cada um. A criança do romance de Hesse já via um mundo luminoso e outro sombrio. Está-se referindo, porém, seja no lar infantil ou numa sociedade complexa, a dois mundos representantes de facetas distintas, porém igualmente importantes, da existência. E, por mais que cordões sanitários se tentem construir, nenhuma divisão poderá, jamais, excluir quaisquer dos polos.

Jock Young vai além. Em seu entender, no mundo heterogêneo em que vivemos, de cidades apresentando-se como um mosaico de escolhas, faltam razões para o estabelecimento de qualquer espécie de cordão sanitário. Sua abordagem alinha-se, aqui, ao modelo europeu, pelo qual o fracasso é visto muito mais como falha sistêmica; e se distancia sobremaneira do modelo norte-americano, que insiste em relegar a “culpa” aos desviados, aos criminosos, aos “perdedores” por toda parte. Tal expiação norte-americana, adverte Young, não é mais possível, pois a criminalidade já é tão disseminada que não se pode imputá-la a apenas um grupo: vejam-se os casos do colarinho branco ou da violência doméstica, em que o ofensor está, frequentemente, longe de causar a ojeriza estética aos olhos cotidianos, e, muitas vezes, não pertence a um grupo marginalizado específico, residindo, antes, no seio da própria sociedade tradicional.

A sociedade narcisista que ocupava o solo da modernidade, identificando-se com a luz e tentando excluir a sombra por meio de um sem-número de cordões sanitários e higiênicos, parece passar, agora, por uma transformação. É com temor que, enfim, sente a necessidade de olhar-se no espelho sem impulsos autofágicos de regozijo absoluto com a própria imagem, mas, antes, com uma sinceridade semelhante àquela bem narrada por Guimarães Rosa:

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo![12]

A autocrítica deve ser contundente. A ciência das próprias mazelas é incômoda, mas incomparavelmente mais prejudicial é sua ocultação sob os terreiros inconscientes da ignorância.

Assim é que deve a criminalidade ser encarada como tão problemática quanto o excesso de encarceramento, os cordões sanitários, as estigmatizações. Ao mesmo tempo, a volta à modernidade tradicional e narcísica, panacéia cantada pelas gerações mais antigas, não é mais opção, porque contraditada pela alma da contemporaneidade. A alternativa única parece ser, portanto, a tentativa de romper os cordões, incluir a diversidade, reconhecer a própria inteireza, dar voz a todos e fomentar o diálogo.

Neste contexto, trazer Habermas à exposição ganha um significado ímpar. Afinal, seu anseio por diálogo num mundo em que cada argumento possa ser ouvido e discutido enquadra-se, perfeitamente, na moldura esboçada por Young. Com efeito, o filósofo alemão propõe a política democrática deliberativa, a ganhar relevância quando se faz

jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constituiu uma vontade comum, não apenas no auto-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada para um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral.[13]

Em nosso entender, o equilíbrio entre interesses divergentes tão próprios à modernidade recente só será possível caso cada interesse possa ser consubstanciado numa voz; e, sendo cada voz tolerada, ouvida e compreendida – numa postura diametralmente oposta à intolerância que tem levado, inapelavelmente, a expiações e estigmatizações –, o verdadeiro diálogo faz-se plenamente possível.

IV. Considerações finais

Era “só nos pequenos círculos comunitários, no contato de homem a homem, em pianíssimo”, que Weber podia ver o espírito que abrasava as comunidades antigas e as mantinha solidárias.[14] As últimas décadas, porém, têm sido marcadas por declínio, desordem, desintegração familiar, ausência de respeito, nostalgia, individualismo em seu pior aspecto, aumento da criminalidade; enfim, pela“ruptura dos fios que antes entrelaçavam os seres humanos nas estruturas sociais”.[15] Como consequência da ausência de laços solidários e da disseminação da insegurança, os apelos por lei e ordem passam a ressoar com força ímpar, influenciando os passos estatais e fomentando ideias atuarias[16] .

Mas, apesar de todas as críticas tecidas, Young entende que mesmo este apelo punitivista tem sua face positiva. Neste sentido, aduz como exemplo a inclusão gradativa da mulher no mercado de trabalho e na vida social, situação que a tem tornado mais e mais consciente dos próprios direitos e da própria dignidade. Por consequência de tal reexame da autoidentificação, tolera-se menos a violência contra si, aumenta-se a reivindicação. E aí está a faceta positiva do apelo punitivista, a refletir um individualismo que se confunde com o incremento da noção da própria dignidade.

Respeitar a dignidade humana é respeitar a vida. É respeitar a possibilidade de qualquer pessoa emitir seu discurso tão próprio, expressão de seu ser único. Neste cenário, valem as palavras de Axel Honneth, pois ali

o sujeito é capaz de se considerar, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros da coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da vontade; e a possibilidade de se referir positivamente a si mesmo desse modo é o que podemos chamar de “auto-respeito”. [17]

Para Young, a solução, se existente, parece estar no ideal de incorporação, respeito à diversidade e abertura ao diálogo: “O individualismo que nos pede para tratar o outro como mercadoria pode ser o individualismo que se recusa a ser tratado como mercadoria”, diz.[18] Assim, a intolerância em relação às mais diversas manifestações de violência pode ter, sim, seu lugar, desde que não levada a extremos.

Em última análise, a questão gira em torno, justamente, dos limites que devem ser impostos a esta intolerância, bem como dos momentos em que uma postura intolerante pode-se fazer necessária. Deve-se saber de antemão, porém, que o encarceramento desenfreado, os cordões sanitários e o policiamento ostensivo – ou, como gosta de chamar, as “fronteiras azuis” – não trarão resultados satisfatórios, nem as estigmatizações e as ideias atuariais de mera diminuição pontual e arbitrária dos riscos. A abordagem deve ser outra.

Em nossa leitura, concluímos ser necessário perceber que, no mundo contemporâneo, diferentes anseios surgem em diferentes vozes, e dar espaço a todas é o que se pode esperar – e, aqui, volta à cena o ideal democrático de Habermas. Cada voz, portanto e a princípio, há que poder manifestar-se. No entanto, a partir do momento em que as vozes são extremadas e apontam ao desrespeito e à intolerância, a resposta igualmente intolerante pode ter, também, seu lugar.

O cotejo destes dois anseios – o que aponta a liberdade de voz, de um lado, e o que aponta a punição, de outro – deve servir a garantir, tanto quanto possível, a dignidade humana. Afinal, a vida de cada um há que ser preservada, e nenhuma voz pode ser inadvertida e irreversivelmente suprimida por outra voz singular qualquer. E, neste particular, é oportuno recorrer a Kant, para quem

a dignidade humana se inscreve nessa tradição cristã, que atribui a cada ser humano um valor primordial, independentemente de seu mérito individual e de sua posição social.[19]

Parece correto concluir, portanto, que as medidas interventivas e punitivistas serão tanto mais próximas ao desejável quanto maior sua capacidade de, diante do cenário multifacetado dos nossos tempos, fomentar o verdadeiro diálogo. Ao possibilitar-se que cada voz se exprima sem que, em sua expressão, faça calar o verbo a seu redor, o cenário torna harmônica a convivência de som e silêncio. Fala-se e escuta-se. Dialoga-se.

Referências

Baratta, Alessandro. Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da reintegração social do sentenciado. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2010.

Bittar, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. São Paulo: Forense Universitária, 2005.

Canto-Sperber, Monique (org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Trad. Ana Maria Ribeiro-Alghoff, Magda França Lopes, Maria Vitória Kessler de Sá Brito, Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

Chauí, Marilena de Souza. “Público, privado e despotismo”. In: Novaes, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Fanchini, A. S.; Seganfredo, Carmen. As cem melhores histórias da Mitologia. Porto Alegre: L&PM, 2003.

Guimarães Rosa, João. “O espelho”. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 15.ª ed., 2001.

Habermas, Jurgem. A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2004.

Hesse, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Honneth, Axel. Luta por Reconhecimento: A Gramática Moral dos Conflitos Sociais.Trad. Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003.

Perelman, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Vilas Boas, Crisoston Terto. Para ler Michel Foucault. São Paulo: Imprensa Universitária – UFOP, 1993.

Weber, Max. Ciência e Política – Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 2004.

Young, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na sociedade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

Bruno Amabile Bracco

Advogado. Mestrando em Criminologia pela USP

[1] Perelman, Chaïm. Ética e direito, São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 384-385.

[2] Young, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na sociedade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 11.

[3] Cf. Bittar, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. São Paulo: Forense Universitária, 2005.

[4] Chauí, Marilena de Souza. “Público, privado e despotismo”, in: Novaes, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 356.

[5] Baratta, Alessandro. Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da reintegração social do sentenciado. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2010. Neste sentido e na mesma obra, Baratta entende que a ressocialização difere da reintegração social, pois esta“requer a abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão”.

[6] Fanchini, A. S.; Seganfredo, Carmen. As cem melhores histórias da Mitologia. Porto Alegre: L&PM, 2003, p. 112.

[7] Young, Jock. Op. cit., p. 25.

[8] Young, Jock. Op. cit., p. 26.

[9] Vilas Boas, Crisoston Terto. Para ler Michel Foucault. São Paulo: Imprensa Universitária – UFOP, 1993, p. 79.

[10] Young, Jock. Op. cit., p. 40.

[11] Hesse, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record, 2009, pp. 19-20.

[12] Guimarães Rosa, João. “O espelho”, in Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 15.ª ed., 2001, p. 119.

[13] Habermas, Jurgem. A inclusão do outro. São Paulo: Loyola, 2004, p. 277.

[14] Weber, Max. Ciência e Política – Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 51.

[15] Hobsbawm, Eric. Apud Young, Jock. Op. cit., p. 80.

[16] O pensamento atuarial, segundo Jock Young, é aquele que se volta menos à resolução efetiva das questões e mais à higiene superficial; menos à justiça e mais ao mero saneamento pontual. Assim, atua-se sobre determinadas manifestações indesejáveis (porque "sujas") de injustiça social: guardas particulares impedem o acesso de certas pessoas aos shoppings, rampas são feitas para que mendigos não durmam às proximidades de pontos nobres da cidade etc. Os exemplos são infindáveis. Como resultado, o cordão sanitário é realçado, marcando ainda mais a divisão entre o "bem" e o "mal"

[17] Honneth, Axel. Luta por Reconhecimento: A Gramática Moral dos Conflitos Sociais,trad. Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 197.

[18] Young, Jock. Op. cit., p. 90.

[19] Canto-Sperber, Monique (org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral, trad. Ana Maria Ribeiro-Alghoff, Magda França Lopes, Maria Vitória Kessler de Sá Brito, Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 440. Verbete Dignidade.

RESENHA
TORTURA: PASSADO. PRESENTE. FUTURO? PIETRO VERRI E A ATUALIDADE DA REFLEXÃO SOBRE A TORTURA
Data: 24/11/2020
Autores: Érica Akie Hashimoto

Observações sobre a tortura, de Pietro Verri

(São Paulo, Martins Fontes, 2000, 130 p.)

Que a tortura configura um ato desumano, caracterizado por extrema crueldade, barbárie e covardia, é inegável. Por essa razão, a prática torna-se inadmissível, principalmente se considerarmos o estágio de desenvolvimento alcançado pela racionalidade e pela sensibilidade humanas, as quais possibilitaram a organização da vida em sociedade, pautada em valores fundamentais como a proteção da dignidade da pessoa humana, o direito de livre expressão, o respeito à diversidade, a solução de conflitos de maneira justa e, sempre que possível, diplomática, entre tantos outros. Muito foi conquistado no sentido de consolidar a importância da defesa e preservação dos direitos humanos e assegurar que a razão e o diálogo predominem sobre a violência nas relações humanas.

Contudo, nossa realidade não é tão satisfatória quanto poderia. Sabe-se que a tortura sobreviveu através dos tempos e ainda é utilizada, principalmente atrás das paredes que guardam o cárcere, longe dos olhos e ouvidos da humanidade. Temos conhecimento de que chegou a tornar-se rotina, mesmo no século XX, em tempos de guerra e em períodos em que governos ditatoriais e autoritários imperavam. Recentemente tivemos notícia de que a tortura tem-se feito presente em prisões mundo afora e, em âmbito nacional, foi e ainda é procedimento de praxe em certas ações da polícia, que foram escancaradas em produções cinematográficas. Triste reconhecer, mas estes são apenas alguns exemplos.

Muitos já escreveram e escrevem sobre a atroz prática da tortura. Mas um dos autores de maior destaque nesse incômodo assunto é o italiano Pietro Verri, o qual, aterrorizado com a persistência da tortura já na Idade Moderna, escreveu a monumental obra de que tratará esta resenha.

“Observações sobre a tortura” foi escrita por Verri entre 1770 e 1777. Nesta chocante e comovente obra, o autor reconstrói e comenta um processo criminal realizado na cidade de Milão, em 1630, conhecido por “processo dos untores”, visto que os réus foram acusados de passar uma poção venenosa nos muros das casas para disseminar a peste.

Pietro Verri foi um dos principais expoentes do pensamento iluminista italiano do século XVIII. Ele escreveu este livro-denúncia partindo do horror e da indignação de ver que a tortura ainda era um instrumento legal no ducado de Lombardia cuja capital era Milão, cidade que, 140 anos antes, havia sido palco do lamentável processo citado, uma verdadeira tragédia de erros.

Naquela época, 1630, corria a notícia de que uma epidemia de peste se alastrava pela Europa intencionalmente. A peste de fato existiu e, segundo as palavras do autor, foi uma das piores, das “mais impiedosas de que há lembrança na história”. Talvez tenha sido, posto que, depois que “pisou” as terras milanesas, dizimou dois terços dos habitantes daquela cidade. Mas o que chama a atenção no caso foi o boato de que a doença atravessou fronteiras por meio de portadores de unguentos venenosos, os quais levavam o contágio da doença para as pessoas.

Verri destaca que eram tempos de extrema ignorância, fator este que, somado ao desespero, corroborava para a cega e impensada crença em qualquer coisa, inclusive na absurda tese de que uma moléstia tão letal quanto a que assolara a cidade pudesse ser transportada em recipientes, sem considerar a probabilidade primeira de ela contaminar seus portadores ou qualquer pessoa que supostamente espalhasse a poção e estes serem os primeiros a perecer.

Não bastasse a ampla adesão popular à tese dos unguentos pestilentos, a característica insalubridade urbana da época e a falta de cuidados mínimos com a higiene pessoal, previsível e naturalmente, fizeram com que a enfermidade se alastrasse rapidamente. Assim, o desespero tomou conta de Milão e começaram a despontar excessos de loucura e um latente desejo de vingança contra os que supostamente trouxeram e disseminaram a peste.

A ignorância dessa população incomoda os leitores mais instruídos deste século e do século passado. Imagine, então, a pontada de indignação sentida quando se descobre que o “processo dos untores” foi iniciado com base em “fofocas”.

Naquela época, as comadres, que ainda não dispunham do entretenimento proporcionado pelos programas televisivos vespertinos sensacionalistas, ficavam à espreita nas janelas de suas casas. Certo dia duas delas, alegando ter testemunhado comportamento suspeito do comissário do serviço sanitário, Guglielmo Piazza, espalharam para a vizinhança “notícia” de que seria ele o responsável pela disseminação da peste. Logo, autoridades locais tomaram conhecimento: o comissário foi preso e teve sua casa revistada, mas nada que o incriminasse (vasos, ampolas, unguentos) foi encontrado.

O governo, de certa forma, colaborou para que a denúncia ocorresse, visto que ofereceu um prêmio em troca de delações. Quer pela pressão popular em encontrar e punir os disseminadores da peste, quer pela conveniência de exonerar-se das suas responsabilidades, encontrou em Piazza seu bode expiatório e o anunciou como o criminoso que todos procuravam. Desse modo, “matavam-se dois coelhos”: o governo mostrava serviço e todos ficavam mais tranquilos e satisfeitos.

Por mais revoltante que seja tanto a delação quanto a displicência governamental na apuração dos fatos, sabemos que esse tipo de atitude não se atém àquela época de trevas. Trata-se de um sentimento relativamente atemporal: tamanha é a irracionalidade nascida do medo e do desespero que, de repente, qualquer ação pode ser considerada suspeita e qualquer pessoa pode ser apontada como culpada.

Conduzido ao cárcere, Piazza foi interrogado na presença de um juiz.  Respondeu negativamente a duas perguntas e tão logo foi submetido a terríveis torturas, uma vez que suas alegações iniciais foram pré-julgadas como “mentiras e inverossimilhanças”. Percebe-se facilmente que a autoria do crime já era dada como sua. Torturado duas vezes, Piazza se convenceu de que enquanto persistisse negando, “a dor recomeçaria diariamente e não lhe restava outra escolha senão admitir o crime e apontar cúmplices”. Iniciou-se, a partir de então, uma rede de mentiras que culminaria em uma série de injustiças e atrocidades.

Piazza decidiu contar a “verdade”. Criou uma história e apontou como cúmplice o barbeiro Gian Giacomo Mora, que foi igualmente preso e teve sua residência invadida. Diferentemente do caso do comissário, no quintal de sua casa foi encontrado um caldeirão contendo uma água turva em cujo fundo havia uma matéria viscosa. Foi o suficiente para acreditarem ter encontrado o corpo de delito.

Verri chama atenção para a falta de escrúpulos em considerar que os criminosos seriam tão descuidados a ponto de deixar um veneno tão poderoso às vistas de todos e correndo o risco de contaminar a própria família. Se Mora fosse de fato cúmplice, não teria deixado provas tão importantes em sua casa sabendo da possibilidade de ser visitado por autoridades policiais.

O líquido encontrado, segundo Mora, era cenrada, que a esposa utilizava para limpar a casa. Ele foi avaliado, mas, para maior angústia do leitor, os peritos eram lavadeiras, que “inventaram novas propriedades” para o que viam (a cenrada), sem o menor sinal de sensibilidade ou culpa por contribuir com a condenação de um inocente à morte.

Depois do que foi exposto acima, não é muito difícil prever que Mora também foi duramente torturado. Verri descreve as sessões de suplícios, o modo como o comissário e o barbeiro foram cruelmente tratados. A partir dos relatos, nos causa inevitável aflição imaginar cenas de tamanha barbárie, como o procedimento em que os ossos das vítimas eram deslocados.

Diante de tanta dor e sofrimento, Mora, assim como Piazza, não viu outra solução que não fosse confessar o crime e tentar convencer o juiz com sua versão.

E assim, de tortura em tortura, nomes foram surgindo e a tal história dos unguentos pestilentos foi sendo toscamente construída. Com os depoimentos extraídos mediante dores insuportáveis e provas obtidas de forma claramente arbitrária, foi tecida uma verdadeira colcha de retalhos em que os pedaços não tinham como se encaixar, a história carecia de elementos mínimos de coerência e coesão. E mesmo com tantas incongruências, a “narração-frankenstein” foi suficiente para levar Piazza e Mora à morte.

Verri também transcreve um interrogatório que consiste, segundo ele mesmo, em um “episódio secundário, mas que não deixa de ilustrar a loucura, a superstição e o delírio do processo penal”. A riqueza de detalhes é chocante. Não raras vezes, entre os gritos de agonia e dor, os martirizados diziam que preferiam a morte à violência a eles imposta, tamanha a brutalidade do procedimento.

Terminada a história do “processo dos untores”, o autor debruça-se na análise da tortura como prática, se ela pode ser um meio de prova e se possibilita a descoberta da verdade. O autor também realiza um estudo sobre as origens da atroz prática e quais povos antigos faziam uso dela.

A ideia de que “o mal de um indivíduo é largamente compensado pela tranquilidade de mil outros” não se sustenta, pois dificilmente se alcançará a verdade por meio da dor. Note-se que um homem, que de fato é criminoso, pode ser determinado o suficiente para suportar as dores infligidas e nada dizer; um civil, mais sensível, vai preferir confessar-se culpado sendo este o único meio de acelerar o término do sofrimento. Os suplícios invariavelmente resultam em nada ou terminam em mentiras.

Ademais, o emprego de longuíssimos e crudelíssimos martírios mais confunde do que aclara a percepção da verdade: entre as convulsões da tortura, inocente e culpado provavelmente se comportarão da mesma forma – gritarão, pedirão por clemência, chorarão. Delicadas diferenças, que qualquer homem um pouco mais observador poderia identificar e, então, encontrar a tão almejada verdade, evanescem.

Em nenhum ordenamento há autorização explícita para fazer uso de tão cruel meio. Mas, ainda que fosse um método legalmente previsto, não deixaria de ser injusto. Verri argumenta que existe o crime certo ou apenas provável: se é certo, a tortura é inútil, só fará o réu padecer desnecessariamente, uma vez que será condenado; se há dúvidas sobre a culpabilidade, é igualmente injusto pelo risco de fazer sofrer um inocente.

Todavia, os juízes e algozes não pensavam dessa maneira – e se lembrarmos que a presunção de inocência capenga até os dias atuais, que dirá em tempos em que se vivia nas trevas da ignorância, em que predominava um fanatismo religioso e o domínio de um governo reacionário (o qual temia qualquer mudança e respondia, pura e simplesmente, com a violência).

Aliás, ao condenar os governantes de 1630, o autor estendeu a crítica aos de seu tempo, incluindo seu pai, Gabriele Verri, ferrenho defensor da manutenção da tortura legal no ducado. Foram, provavelmente, as divergências com o pai, bem como os problemas que teria ao entrar em conflito com as famílias poderosas de Lombardia, que adiaram a publicação de “Observações sobre a tortura” para o ano de 1804.

A obra tem mais de duzentos anos, contudo permanece extremamente atual e suscita reflexões relevantes acerca de questões relacionadas à moral, à cultura e ao direito. Em 130 páginas, cuja leitura se esgota em um piscar de olhos, Verri demonstra a degradação humana em cenas horripilantes de desenfreada barbárie, com a esperança de que, lido seu livro-denúncia, a tortura fosse extirpada definitivamente. Na conclusão, ele desabafa: “parece-me impossível que o costume de torturar privadamente no cárcere para obter a verdade possa ainda se sustentar por muito tempo”. É com pesar que admitimos que a aspiração de Verri ainda não foi concretizada.

A humanidade evoluiu muito e rapidamente, principalmente no último século. Entretanto a tortura persistiu. Ela não só sobreviveu como usou das inovações tecnológicas para se aperfeiçoar em crueldade. Em face da terrível realidade, a ONU (Organização das Nações Unidas) criou a “Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos degradantes ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes” em 1984, a que o Brasil aderiu no ano de 1991. A Organização ampliou a conceituação da tortura, passando esta a designar “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”.

Há quase uma unanimidade planetária em relação ao horror que a tortura representa e à necessidade de seu desaparecimento. Tem-se lutado arduamente para sua extinção. E, assim como Verri, esperamos que este mal não se sustente por muito mais tempo.

Érica Akie Hashimoto

Acadêmica de Direito da Faculdade Direito do Largo de São Franscisco, Universidade de São Paulo - USP.

FILME
“O ÓDIO” COMO MANIFESTAÇÃO LEGÍTIMA DA JUVENTUDE
Data: 24/11/2020
Autores: Yasmin Oliveira Mercadante Pestana

O ódio (“La Haine” - 1995)[1]

O filme “O ódio”, do diretor Mathieu Kassovitz, que ficou mais conhecido pelo filme “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, ao mesmo tempo em que retrata a vida violenta de três jovens descendentes de imigrantes na periferia de Paris, registra um momento histórico recente: os levantes urbanos na França de 1991.

“O ódio” é um filme da década de 90, momento em que se inicia um surto de filmes sobre a realidade urbana[2] . Pode parecer mais um entre vários que discutem a violência nas periferias das cidades, mas ele enuncia a crise do Estado de Bem-Estar Social francês.

Levantes urbanos na França

Três jovens, Said (de ascendência árabe), Vinz (origem judia) e Hubert (de ascendência africana) são os protagonistas do filme. Vivem em um bairro planejado para os setores marginalizados, pobres, imigrantes, negros e trabalhadores de emprego informal (maioria mulheres), distante do grande centro.

Robert Castel[3] , sociólogo francês, discutindo as políticas públicas, diferencia políticas de integração, de vocação universal e homogenizadora, e políticas de inserção, destinadas a setores considerados “inintegravéis”. As políticas de inserção são políticas territorializadas, destinadas a determinadas áreas e setores sociais, perdendo de vista a totalidade da sociedade. O autor aponta que a escolha por uma política de inserção aumentou, tornando a forma prioritária. Apesar de serem divulgadas como redutoras de desigualdades, acabaram reforçando a marginalização social. Elas conseguem garantir escolas, moradia e vestimentas precarizadas, mas não garantem emprego aos jovens desses “guetos” nem qualquer perspectiva de vida. E quando os jovens se revoltam, a resposta que essas mesmas políticas oferecem são: “Comitês de Prevenção da Delinquência”[4] . A resposta é mais uma vez segmentadora e estigmatizante.

São nesses bairros periféricos, com políticas específicas que tentam um reequilíbrio forçado, que os três jovens vivem. Como não é de se estranhar, a polícia não é nada amistosa nesses bairros e, mesmo possuindo policiais comunitários, provoca uma permanente tensão entre os adolescentes e os policiais. No início do filme, é retratada a morte de um jovem imigrante chamado Abdel, este é um dos fatos decisivos do filme e dos levantes urbanos franceses em 1991 e nos anos seguintes. Os jovens se rebelam porque não queriam presenciar a morte de outros jovens.

Foram levantes reativos e explosivos: os adolescentes saiam nas ruas destruindo os carros, escolas, centros de convivência, casas e entrando em confrontos com os policiais. As primeiras imagens do filme documentam um desses levantes. Diziam os jornais que essas agitações eram decorrentes do preconceito aos imigrantes, do fracasso escolar e da exclusão racial; para outros, representavam atos de vandalismo.

Se, para alguns, a série de levantes urbanos, encadeados na década de 90 por jovens, não fazia nenhum sentido pela irracionalidade e pela emoção que tomavam conta, para outros simbolizavam um levante contra a morte:

“Duas pesquisas sobre o tema realizadas para o Instituto de Altos Estudos da Segurança Interna, IHESI, permitiram-me recensear 24 incidentes do mesmo tipo entre outubro de 1990 e julho de 1995 em diferentes cidades da França. Esses dados levaram-me a designar essas manifestações como ‘os levantes da morte”. Em outras palavras, o fenômeno, tal como se repete na França desde outubro de 1990 (e tal como se configurou em novembro de 2005, último levante importante registrado), pode ser definido como um protesto violento engajado por jovens habitantes das periferias urbanas em resposta à morte violenta de um deles. Em mais de um terço dos casos estudados, a polícia esteve direta ou indiretamente envolvida na morte que desencadeou o protesto”[5] .

Segundo Angelina Peralva[6] , autora da citação anterior, os levantes tinham um sentido e uma forma já conhecida na história francesa: “émeute”[7] . Esta expressão não possui um equivalente em português, ela é utilizada para denominar protestos urbanos violentos, que se caracterizam por grandes agitações/mobilizações e um expressivo impulso emotivo.

“Há nela a idéia de movimento, mas há também o atributo da ‘irracionalidade’ que seria própria a uma manifestação de tipo emocional. Tal atributo nada tem a ver em si com a violência – nem todo protesto violento é qualificado de émeute. Quando camponeses franceses atacam caminhões espanhóis ou italianos para destruir mercadorias (frutas, legumes, vinho) que supostamente impõem a seus próprios produtos uma concorrência desleal, não se fala de émeute. Enquadradas por sindicatos rurais, essas manifestações inscrevem-se nos quadros de inteligibilidade característicos dos ‘movimentos sociais’”[8] .

Na história da Europa, essas agitações populares estão muito presentes em um período pré-democrático. A democracia, supostamente, cria espaços de discussões legítimos para as reivindicações. No entanto, nos levantes de Paris em 1991 ressurge essa prática. A “émeute” possui uma violência canalizada e autolimitada; não é organizada, embora crie entre os jovens um espectro de coletividade; e da mesma forma que a “onda” dessas agitações cresce rápido, ela se desfaz muito rápido. Para a autora citada, a “émeute” dos jovens da periferia francesa, mais do que consequência da exclusão social, foi impulsionada pelas mortes de jovens por policiais. Nas palavras do personagem Vinz: “era nossa guerra com a polícia”.

Vinz, que aparenta ser o mais violento dos três protagonistas, após saber do assassinato de Abdel e participar de um desses levantes, encontra uma arma de algum policial. O porte dessa arma deixa Vinz mais agressivo e destemido. Mais ainda, cria uma fixação: o equilíbrio da balança, um policial morto, por um jovem morto. Durante o único dia retratado no filme, Hubert e Vinz brigam constantemente, porque Hubert tenta mostrar a Vinz que não haverá qualquer mudança em suas vidas se um policial for morto.

Apesar de mais moderado, Hubert também sente o sofrimento da morte de Abdel. A morte dos jovens é a expressão maior de desvalorização da vida desses adolescentes. Eles percebem sua marginalização e o ponto máximo dela é a banalização de suas vidas. A morte de seus companheiros é a faísca necessária para liberar o sofrimento e o ódio desses adolescentes. Sobre esse aspecto, Angelina Peralva reproduz as falas de alguns jovens que participaram de um levante, em 1994:

“– As émeutes acontecem quando um sujeito morre. Por exemplo, um ‘tira’ derruba um cara numa moto. Fazem uma émeute para ele porque ninguém gosta da polícia.

– As émeutes, é por causa da morte dos jovens em alguns bairros, para vingá-los.

– As émeutes, é por causa de um crime... Você conhece uma pessoa, ela morreu sem razão nenhuma, você sente ódio...”[9] .

Vinz tem essa necessidade de vingança. Em um diálogo, em que defende matar um policial, Hubert tenta convencê-lo, dizendo o lugar-comum: “ódio só traz mais ódio”. Contudo, para Vinz, a única saída seria reagir com violência, quebrar tudo e desmoralizar esta sociedade. Essa também era a motivação dos demais jovens que participaram dos levantes. É nesse contexto que é retratado um dia decisivo para os três protagonistas.

A vivência desse confronto: policiais X jovens da periferia

Se, por um lado, o cotidiano de Vinz, Hubert e Said é repleto de violência, por outro, vivem um marasmo, uma vida sem perspectiva, dentro dos padrões estabelecidos. Criam, com as condições objetivas que possuem, meios e uma “cultura própria” para conviver com as relações violentas e de exclusão.

Trata-se do conceito de “subcultura deliquente”, desenvolvido pelo estudioso Albert Cohen. Para compreender tal conceito, Alessandro Baratta, explica:

“Esta [subcultura deliquente] é descrita como um sistema de crenças e valores, cuja origem é extraída de um processo de interação entre rapazes que, no interior da estrutura social, ocupam posições semelhantes. Esta subcultura representa a solução de problemas de adaptação, para os quais a cultura dominante não oferece soluções satisfatórias”[10] .

Essa concepção de subcultura deliquente está presente durante todo o filme de forma muito exemplificativa. De um ponto de vista subjetivo, Vinz, com uma ânsia de se afirmar para o seu grupo, sempre conta casos de brigas em que foi vencedor, valorizando suas idas à “prisão” e mostrando não ter medo dos policiais. Fica olhando para o espelho “fazendo caras” de “machão”, se “encarando”, dizendo, para si mesmo, frases como essa: “você está mexendo comigo?”. Nesses exemplos, Vinz representa dois aspectos presentes nas subculturas: a violência que nega o poder da autoridade e o ethos da masculinidade.

Além desses exemplos, os três participam do tráfico de drogas. Nesse ponto, Said é o mais ativo, o responsável pelos contatos. Essa atividade é muito importante economicamente para eles. Passam, praticamente, o dia inteiro esperando os traficantes e clientes. Na espera de um desses “comerciantes”, o marasmo da vida daqueles jovens é bem retratado. Ficam esperando horas, falando besteiras (relatando casos de confronto com a polícia ou com outros jovens e contando piadas). Aos poucos, já perdem a atenção e ficam em silêncio, somente aguardando. É uma relação diferente com o tempo, com as rotinas nos grandes centros urbanos. Essa relação diferenciada com o tempo não é por falta de necessidades ou pela presença de tranquilidade em suas vidas, mas por uma falta de sentido, por uma vida sem planos. A tensão constante entre os policiais e os jovens reforça/reformula um pensamento imediatista - “o jovem que não sabe se vai estar vivo amanhã, vive o hoje”.

Há exemplos de diversão também. Com o som alto para a “galera” dançar na rua, o hip-hop marca muitas passagens do filme. Os jovens marginalizados se reúnem para criar sua própria estética musical e seus próprios movimentos de dança, que representam a “cultura das ruas”. O filme faz um contraponto interessante quando os três protagonistas, perdidos nas ruas de Paris, entram em uma galeria de arte. Os três não entendem nada do que significa aquela arte (propositadamente, foram escolhidos quadros sem qualquer sentido). São expulsos da galeria, gritando: “vocês são feios”. Eles negam aqueles standards da cultura oficial, a qual nunca irão se adaptar, e criam suas próprias tendências. Nas periferias brasileiras, também há expressões desse tipo, como por exemplo, o “funk”.

Existem três aspectos que caracterizam a subcultura deliquente: “não utilitarismo”, “malícia” e o “negativismo”[11] . Apesar de Vinz, Said e Hubert cometerem pequenos delitos para satisfazerem suas necessidades, é possível dizer que a subcultura em que estão inseridos possui essas características, principalmente nos casos dos levantes urbanos. Os adolescentes destruíam casas, escolas, carros e espaços de convivência das comunidades, sem qualquer fim lucrativo, e negam a cultura oficial. Por outro lado, para alguns existe um teor mais político nos levantes urbanos, apesar da irracionalidade. Afinal, representam contestações legítimas contra uma polícia violenta e desumana. Nesse sentido, mesmo se aproximando de alguns elementos da teoria da subcultura deliquente, os levantes urbanos possuem um teor reivindicatório.

O Estado e sua face penal

Uma propaganda irônica aparece algumas vezes no filme, com os seguintes dizeres: “O mundo é seu”. Ela expressa a cultura de consumo exacerbada presente na sociedade, na qual o poder de compra é a chave para conquistar o que desejar. E acompanhando a vida desses três jovens, que estão distantes de possuir o mundo, a propaganda também aponta para a contradição entre uma cultura de consumo e uma estrutura econômica concentradora de renda. Esse desajuste entre cultura e estrutura é perverso, principalmente porque os sonhos e padrões de consumo atingem os adolescentes de forma especial. Isto, pois, desperta nos jovens problemas de aceitação e status.

Para além de uma cultura de consumo, não existem oportunidades no mercado de trabalho para esses jovens. As frustrações e necessidades aumentam. Essas desigualdades sociais já não são mais respondidas por políticas públicas, mas pelo sistema penal:

“Assim, desenha-se a figura de um novo tipo de formulação política, espécie de ‘Estado-centauro’, dotado de uma cabeça liberal que a aplica a doutrina do ‘lassez-faire, laissez-passer’ em relação às causas das desigualdades sociais, e de um corpo autoritário que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as conseqüências dessas desigualdades.” [12] .

Os levantes urbanos são uma reação a essa política repressora, que penaliza os jovens pelas próprias mazelas em que vivem. Os crimes de maio de 2006, nas periferias de São Paulo, fazem parte do mesmo processo, em que jovens inocentes sofrem execuções sumárias por policiais.

“O ódio” retrata autenticamente esta realidade. Cena após cena, sentimos a “queda” da nossa sociedade, que, por mais avançada que esteja em alguns aspectos, usa das formas mais violentas para dominar as classes marginalizadas. Como diz Hubert: “Até aqui tudo bem... Até aqui tudo bem...Mas o que conta não é a queda, é aterrisagem”.

Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social – uma crônica do salário. 3ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.

MACHADO, Rubens. Os espaços de exclusão e de violência no cinema e na TV brasileira, conferência proferida no evento "As Linguagens da Violência", primeira edição do Ciclo "Cultura e Sociedade", organizado pelo Consulado Geral da França, pelo SESC e pela Prefeitura Municipal de São Paulo, no Teatro SESC Pompéia, São Paulo, 14.09.2001. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?Referencia=173&ID=143&ParamEnd=9 Acesso em: 30.09.2010.

PERALVA, Angelina. Levantes urbanos na França. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702006000100005&script=sci_arttext. Acesso em 28.09.2010.

WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado Penal, in Discursos Sediosos – Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

Yasmin Oliveira Mercadante Pestana

Acadêmica de Direito da Faculdade Direito do Largo de São Francisco, Universidade de São Paulo – USP.

[1] Ficha técnica: Título no Brasil: O Ódio; Título Original: La Haine; País de Origem: França; Tempo de Duração: 97 minutos; Ano de Lançamento: 1995; Diretor: Mathieu Kassovitz.

[2] “Foi um surto de filmes, começando em 1990, 1991, até 1995 de filmes: filmes de periferia, filmes do arrabalde, filmes feitos do ângulo de quem vive nos arrabaldes das grandes cidades francesas. No Brasil só chegou um filme desse ciclo. É um ciclo pequeno, teve talvez uma dezena, uns quinze filmes no máximo, mas que tiveram grande repercussão de público. Aqui só chegou ‘O ódio’...” Rubens Machado em "Os espaços de exclusão e de violência no cinema e na TV brasileira", conferência proferida no evento "As Linguagens da Violência", primeira edição do Ciclo "Cultura e Sociedade", organizado pelo Consulado Geral da França, pelo SESC e pela Prefeitura Municipal de São Paulo, no Teatro SESC Pompéia, São Paulo, 14.09.2001. http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?Referencia=173&ID=143&ParamEnd=9.

[3] CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social – uma crônica do salário, 3ª edição, Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.

[4] Idem, ibidem, p. 546.

[5] PERALVA, Angelina. Levantes urbanos na França. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v18n1/30008.pdf. Acesso em 24.09.2010.

[6] Angelina Peralva é ex-professora da Faculdade de Educação da USP, professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Toulouse II, pesquisadora do CERSCieun (Toulouse II) e do Cadis-EHESS, Paris.

[7] Idem, ibidem.

[8] Idem, ibidem.

[9] Idem, ibidem.

[10] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 73.

[11] Idem, ibidem, p.73.

[12] WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado Penal, in Discursos Sediosos – Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Revan - Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p.13.