Apresentação
Apresentação
Data: 24/11/2020
Autores:

Nesta primeira edição de 2016, necessário se faz o resgate da “herança” de lutas do ano antecedente que, notadamente marcado por avanços conservadores, se projeta neste, fazendo-se imprescindível, mais uma vez, o levante do Instituto como resistência democrática, marca essa estampada nesta edição da Revista Liberdades.

Quem abre esta edição da Revista Liberdades é Roberto Tardelli, ex-membro do Ministério Público e Procurador de Justiça aposentado. Em entrevista concedida a Roberto Luiz Corcioli Filho, ele fala sobre sua opção por trabalhar no Ministério Público de São Paulo no período da redemocratização na década de 1980 e relembra a reconstrução da Instituição. Poder de investigação do Ministério Público, redução da maioridade penal e outros temas atuais também foram assunto dessa conversa.

Iniciamos a seção de artigos com o texto “Sextorsão”,de Ana Lara Camargo de Castro e Spencer Toth Sydow, que analisam os modelos de antijuridicidade atualmente existentes no ordenamento jurídico brasileiro em face de novas formas de chantagem por meio de ameaça de divulgação de fotos íntimas pela internet. Será necessário adequar legislação penal brasileira às novas tecnologias? Em caso positivo, como fazê-lo? Leitura mais que indicada para quem quiser se aprofundar nesses questionamentos.

Em seguida, Carlos Velho Masi discute as finalidades da pena no artigo “Análise crítica da teoria unificadora preventiva da pena, a partir de Roxin”. Ao retomar o célebre autor alemão, Masi questiona a politização do ato jurisdicional de aplicação da pena, decorrente da atribuição de amplos poderes aos magistrados, a quem cabe decidir, por fim, o significado de determinar a intervenção penal na vida de um cidadão e de poder fazê-lo até mesmo com base em argumentos meramente retóricos e demagógicos, a pretexto de combater “a violência” e “a impunidade”. Tal discussão vai ao âmago do Direito Penal e propõe uma reflexão sobre o próprio sentido de sua existência.

Carlos Henrique da Silva Ayres, autor de “Responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos Estados Unidos e no Brasil”, compara as diferenças existentes entre os sistemas de responsabilização das pessoas jurídicas nos dois países por meio de rico levantamento de legislação, doutrina e jurisprudência a respeito do tema.

Ainda na seção Artigos, em “A teoria do incremente do risco e os elementos estruturantes do ilícito-típico culposo”, Daniel Leonhardt dos Santos e Letícia Burgel analisam a possibilidade de recepção da teoria do incremento do risco ao ordenamento jurídico-penal brasileiro, questionando a possibilidade de imputação do resultado nos casos em que não é certo, mas apenas provável ou possível, que o comportamento alternativo conforme o direito evitaria o resultado. Texto indispensável em tempos de ampliação de responsabilidade penal, com cada vez menos exigências quanto ao nexo de causalidade entre conduta e resultado.

Para fechar a seção, em “O princípio da não autoincriminação”,Leandro Ayres França e Maira da Silveira Marques analisam a instrumentalização do princípio processual penal da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere) pelos Tribunais Superiores brasileiros, buscando demonstrar por meio de pesquisa documental a razão de ser da proibição contida no referido princípio.

Na seção Escolas Penais, apresentamos os trabalhos “Uma análise crítica do sistema garantista de Luigi Ferrajoli ante o abolicionismo de Louk Hulsman”, de Andrea Sangiovanni Barretto, e “A proibição do uso de máscaras em manifestações públicas: subversão do programa garantista no país da pretensão democrática”, de Bruno Almeida de Oliveira. O primeiro sintetiza os principais argumentos das duas correntes e analisa as críticas recíprocas feitas pelos respectivos autores, com especial ênfase em seus principais representantes, Ferrajoli e Hulsman. Já o segundo, mantendo o tema do garantismo de Ferrajoli, traça reflexões sobre a Lei Estadual 15.556/2014, que proíbe o uso de máscaras e afins em manifestações públicas e confere poder às polícias para reprimir essa conduta.

Na seção de Direitos Humanos, em “Tortura e violência sexual durante a ditadura militar: uma análise a partir da jurisprudência internacional”,Julia Melaragno Assumpção analisa as condutas de violência sexual durante a Ditadura Militar brasileira à luz de relatos de vítimas e da jurisprudência internacional, questionando se essas violações podem ser reconhecidas como formas de tortura.

Em “A revisão da Lei de Anistia como uma forma de superarmos a ditadura: uma análise comparativa com as experiências na Argentina e no Uruguai”,Nathália Regina Pinto analisa as motivações jurídicas e sociais na Argentina e Uruguai para reverem suas leis de anistia promulgadas durante seus períodos de transição democrática, e propõe medida análoga no Brasil como forma de superação do que entende por “impunidade”.  

Na seção de Infância e Juventude contamos, nesta edição, com artigo de Betina Warmling Barros e Luiza Griesang Cabistani sobre a “Justa causa no direito penal juvenil”, em que se pretende analisar “a questão da (ausência de) justa causa no âmbito do procedimento de apuração de ato infracional”, propondo-se como ponto de partida uma leitura crítica da legislação, à luz da Constituição.

Apresentamos, ainda na seção de Infância e Juventude, artigo de autoria de Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci e Michelle Asato Junqueira, intitulado “Igualdade também se aprende na escola: por uma educação libertadora, emancipatória e não sexista à luz das máximas de Paulo Freire”, em que, valendo-se dos conhecimentos disseminados pelo educador, propõem tratar da educação como um “direito de igualdade que visa a efetivação também da liberdade e [que], portanto, é o elemento construtor da cidadania e elemento essencial da Democracia”, sendo “preciso dialogar com as diferenças, mas não negá-las”.

Em seguida, o Juiz de Direito e cronista João Marcos Buch é o autor da vez de nossa seção de Contos, trazendo seu “O homem – pequeno e singular”, em que, em meio a um relato sobre o condenado Vilmar (fictício), bem como ao costume de alguns meios de comunicação em taxar os defensores dos direitos humanos como “defensores de bandidos, o cronista chama atenção para o fato de que não importam as críticas que receba, [...] a pessoa do detento nunca perderá sua condição humana e por isso será sempre merecedora de irrestrito respeito em seus direitos e garantias fundamentais. Afinal, o ser humano é uma promessa, jamais uma ameaça”.

Por final, como já é costume, a seção Cadeia de Papel, da antropóloga e cronista Debora Diniz, nos apresenta os “Coletes azuis”. Deixando que a própria autora anuncie sua obra: “Os coletes azuis foram recepcionados pelo rádio, ‘Inspetores da Onu contra a tortura chegaram’. ‘Eles podem tudo’, ouvi alguém dizer: fotografar, medir espessura de colchão ou provar comida. [...] Um dos colete azul parecia ser holandês, nele concentrei minha atenção. Como seria a experiência gastronômica em uma missão de tortura nas cadeias de papel da capital do Brasil?”.

Coordenadores da Gestão 2015/2016.

Entrevista
Roberto Luiz Corcioli Filho entrevista Roberto Tardelli
Data: 24/11/2020
Autores:

O que lhe motivou a decidir-se por fazer carreira no Ministério Público?

Resposta: Faz tanto tempo... Naqueles dias, década de 1980, a chamada década perdida, de uma inflação absolutamente enlouquecida e de poucas oportunidades de inserção profissional, arriscar-se a um concurso era uma forma digna de pretender ganhar a vida, notadamente para quem, como eu, não conseguia nenhuma beirada em escritórios de advocacia, na cidade em que vivia.

Como era esse Ministério Público do período da redemocratização e como é ele desde os últimos anos? Tem apontado para qual direção?

Resposta: Eram épocas muito diferentes e havia uma geração saída da ditadura militar, submetida a censura prévia, com acesso tutelado aos meios de informação e de cultura – filmes e livros eram simplesmente proibidos, por exemplo – que tinha sede de Justiça e de Liberdade, A redemocratização era um oxigênio que todos nós buscávamos, ainda aqueles alinhados à direita eram comprometidos com a democracia e a democratização. Alguma coisa foi mudando e não sei exatamente o que foi, mas o compromisso com a democracia foi se enfraquecendo quase imperceptivelmente, dia a dia. Hoje, a direção é a sociedade da ordem, da organização, da assepsia, da liberdade dirigida....

Durante sua trajetória, o senhor se destacou principalmente pela sua atuação perante o Tribunal do Júri. O júri faz sentido na sociedade contemporânea?

Resposta: O júri sempre fará sentido, desde que ele reflita o recorte da sociedade. Não é possível um júri formado por funcionários públicos, burocratas e classe média. As portas do júri precisam ser abertas ao povo. Atualmente, o júri é formado na conveniência do julgamento e não na essência de sua representatividade.

Todos sabemos do caso que mais lhe projetou na atuação como promotor de justiça, mas o que mais lhe marcou nessas décadas de dedicação ao Ministério Público?

Resposta: Vários casos foram marcantes, mas um foi decisivo: Ivan Meneia, uma história que prefiro contar um dia. Mudou a mim como promotor de justiça que era, como cidadão comum, como ser humano, mudou minha visão de mundo e determinou muito do que passei a ser depois dele. Isso foi em 1991/1992.

Neste ano de 2015 o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 25 anos. Como o senhor avalia a atuação do Ministério Público na área – tanto nas questões protetivas, quanto na área infracional?

Resposta: Diria que a atuação tem as contradições do que a própria lei oferece. O MP é extremamente avançado em algumas questões, notadamente quando lutou e luta pela implantação dos Conselhos Tutelares. Atua com força e determinação nas questões da saúde e da educação. É satisfatória sua atuação na questão da adoção.

Todavia, ainda é medieval na questão dos atos infracionais, provavelmente por viver e aceitar a teoria da guerra contra o crime.

Faz algum sentido pensar em redução da maioridade penal?

Resposta: Nenhum sentido. Nada muito inteligente sai de quem defende a redução.

Qual a sua opinião sobre o poder de investigação do Ministério Público? Isso extrapola ou não as atribuições constitucionais da instituição? Seria o caso de regulamentar a investigação realizada por ambas as partes (MP e defesa)?

Resposta: É certamente a maior razão do protagonismo do MP nos últimos anos, mas resulta de uma visão histórica distorcida, uma vez que o compromisso do MP nunca foi com a investigação, mas com a legalidade da investigação feita por outra instituição, a Polícia Judiciária. Quando tomou para si a investigação, passou a incorrer nos mesmos vícios, porque o compromisso passou a ser com o resultado da investigação. Isso confundiu a Instituição e ainda confunde. Não diria que extrapola as atribuições constitucionais, mas traz um complicador a elas, um complicador cuja extensão e profundidade o tempo dirá. Nenhum poder investigatório pode subsistir sem limites claros estabelecidos em lei.

O foco de atuação do Ministério Público na área criminal deve ser ajustado? Falta uma orientação política mais clara para a persecução de grandes delitos econômicos, por exemplo, ao passo que sobra energia acusatória em fase dos "inimigos de sempre"?

Resposta: A cena célebre de Casablanca: "Prenda os suspeitos de sempre"...

O MP vive a pior e mais triste fase de sua história criminal porque volta sua atuação contra a população periférica de um lado, considerada parceira de facções criminosas, e, de outro, de combater a corrupção, como causa de todos os males.

Tudo para combater um fantasma, chamado impunidade.

O senhor enfrentou problemas com a instituição, com a Corregedoria, alguma tentativa de ingerência ou controle ideológico?

Resposta: Controle ideológico nunca permiti, jamais permitiria; ingerência é uma expressão forte demais. Mas, certamente, houve um processo de desgaste de imagem, como se eu – as palavras são oficiais – não tivesse "garra bastante" para atuar no plenário do júri, onde pedia absolvições em demasia ao gosto conservador. Fui apontado como um profissional com "falta de combatividade" várias vezes. Isso me entristecia, é verdade, mas nunca mudei minha forma de atuar por isso. Por exemplo, em casos de júri, julgamento em plenário, com prova exclusiva do inquérito, eu pedia absolvição. Isso desagradava muita gente.

Como o senhor avalia a questão da independência funcional dos promotores hoje? O controle que se faz durante o estágio probatório do promotor recém ingresso tem respeitado a independência funcional do jovem promotor?

Resposta: A questão é muito complexa. Mas, existem focos importantes de pensamento interno, por próceres da Instituição, que defende a necessidade da mitigação desse princípio, em nome do aperfeiçoamento funcional, do resultado final da atuação. A alguns parece que a independência funcional é mais um problema que uma solução e deve ser balizada, pensamento que não existia no passado.

Essa questão é tema de debate, infelizmente. Quando se debate um direito que é a pilastra fundamental da atuação de um agente político é porque alguma coisa está fora da ordem, mesmo porque se trata de fundamento constitucional.

O jovem promotor passa por um período de fiscalização e de aceitação. Não sei como está hoje, mas antes muitos diziam que eram cobrados, caso não atuassem "a contento", entendido como todos imaginam ser...

E a questão dos chamados grupos de atuação especial? Isso ofende o princípio do promotor natural?

Resposta: Os grupos especiais de atuação, com o devido respeito, é o que de mais funesto poderia existir. Existem, pulsam e se constituem já em uma "elite" institucional.

Na sua visão, como resgatar dentro do Ministério Público sua verdadeira missão constitucional, com vistas aos valores de nosso Estado Democrático e Social de Direito, respeitando-se a independência de seus membros e o princípio do promotor natural?

Resposta: Roxin tem uma expressão muito feliz: retorno à legalidade. O MP precisa retornar à legalidade e à pulsão constitucional. Por mais que se tenha hoje o apoio acrítico da sociedade, é preciso ver e lembrar que não se vive de popularidade, mas de compromisso histórico com a manutenção e fortalecimento das instituições democráticas. Esse compromisso histórico precisa ser retomado, não apenas pelo Ministério Público, mas pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo, com uma atuação repressiva nos limites da lei.

É preciso deixar claro que, rompendo-se o compromisso com a ordem legal (que é diferente da ordem jurídica), perde-se o aprumo constitucional. Perde-se o eixo ético de atuação.

Artigos
Sextorsão
Data: 24/11/2020
Autores: Ana Lara Camargo de Castro e Spencer Toth Sydow

Resumo: A expressão sextorsão trata de figura em que uma relação de poder é utilizada como instrumento para obter vantagens sexuais. É uma modalidade de conduta não adequadamente definida na legislação nacional por conjugar uma corrupção individual com um abuso de poder no intuito de obter sexo em troca de benefícios. Com a propagação da informática, novos modos de extorsão a partir da ameaça de divulgação de fotos e filmes têm se difundido com grande força, trazendo o debate desse modelo de antijuridicidade para o cenário penal informático e de gênero.

Palavras-chave: Sextorsão; crimes sexuais; crimes informáticos; crimes de gênero; extorsão.

Abstract: The expression “sextorsion” represents the figure in which the power based on a specific relationship is used to obtain sexual advantages. It is a type of conduct not adequately defined in brazilian legislation and combines an individual corruption act with abuse of power in order to get sex in exchange for benefits. With the spread of information technology, new ways of extortion using pictures and other midias helped the dissemination of threats, bringing the debate in such a model regarding computer crimines scenario and sex gender.

Keywords: Sextortion; sex crime; internet crime; gender crime; extortion.

O título não está escrito errado. É mesmo da aglutinação da palavra “sexo” com a palavra “extorsão”. [1] Trata-se da situação em que uma relação de poder é utilizada como instrumento para a obtenção de vantagens sexuais. É um neologismo, ainda quase desconhecido no Brasil e recentemente potencializado pela rápida e massiva capacidade de difusão tecnológica, como explicaremos adiante.

Recentemente, a expressão sexting ficou conhecida por significar a troca de mensagens de cunho sexual ou a troca de fotografias da mesma natureza. O neologismo das palavras em língua inglesa sex e texting é uma das mais interessantes facetas de conexão pessoal da geração millennials e difundiu-se no meio legal e jurídico mundial – inicialmente nos Estados Unidos da América do Norte –, também no contexto de cyberstalking, como uma das modalidades de cyberbulling.

Por certo, a legislação brasileira não se modernizou para contemplar previsões compatíveis com os avanços da tecnologia. Sextorsion ou sextorsão, conceito internacional mais recente, está ainda para ser formalmente apresentado em Terra Brasilis. Nosso mote é trazê-lo para o debate doutrinário e conscientizar os debates em política criminal e reforma legislativa.

A preocupação com o uso do poder como meio de obter favores sexuais surge no contexto dos organismos internacionais a partir do ano 2002, quando o assunto começa a ser tratado de forma direta pela Organização das Nações Unidas (ONU), que já em 2003 edita o Boletim Geral em Medidas Especiais para Proteção contra Exploração Sexual e Abuso Sexual. [2]

O referido boletim, adotado como chamada política de tolerância zero, teve por objetivo enfrentar as notícias de abusos praticados pelos próprios peacekeepers da ONU, veiculadas após as intervenções das forças de paz na guerras da Bósnia e do Kosovo, e nos conflitos da Guiné, Libéria e Serra Leoa.

O boletim da ONU introduziu formalmente a problemática no cenário internacional de proteção dos direitos humanos e esclareceu se tratar de troca de assistência, dinheiro, emprego, mercadorias ou serviços por sexo, incluindo favores sexuais ou outras formas de humilhação, degradação e exploração.

A ONU estabeleceu essa prática como sério desvio, sujeito a sanções disciplinares, nas quais se incluiu a dispensa sumária. Apesar de o citado boletim ser datado de 2003, a nomenclatura original sexual exploitation (exploração sexual) era usada de forma intercambiável com outras expressões, como escândalo sexual, descompostura sexual, abuso sexual, assédio sexual, e permaneceu muito ligada à exploração por meio exclusivo de obrigar a vítima à prostituição, deixando de espelhar os intrincados mecanismos de poder atrelados à conduta. É no cenário da volatilidade conceitual e terminológica que o termo sextorsion foi politicamente cunhado.

O neologismo, por ser oriundo do berço dos direitos humanos internacionais, segue a tradição política do naming and shaming, principal mecanismo de pressão contra os Estados signatários dos tratados. Ao cunhar-se uma expressão própria para dar nome ao abuso de poder por meio da exploração sexual, dá-se visibilidade ao fenômeno e estimulam-se métodos de educação, prevenção e repressão. Cria-se uma identificação para a conduta e abre-se espaço para o debate técnico a partir da apropriação de uma única palavra que possa ser associada a diversas práticas ilícitas de mesma conotação.

Em 2012, a associação internacional de mulheres juízas (International Association of Women Judges – IAWJ), patrocinada pelo Governo da Holanda e em parceria com mulheres juízas da Bósnia Herzegovina, das Filipinas e da Tanzânia, desenvolveu o estudo do tema e deu notoriedade ao termo, associando-o em definitivo com os delitos de corrupção. [3]

O conceito de sextorsão difundido pela IAWJ exige a existência de um duplo componente, vale dizer, a (i) corrupção associada ao (ii) sexo na forma do exercício abusivo de poder. E a base sociológica da sextorsão, como já adiantava o boletim da ONU, é a inerente disparidade detectada na dinâmica dessas relações de poder em que os favores sexuais se estabelecem com comprometimento da dignidade do relacionamento.

Assim, para se caracterizar a sextorsão, quem aceita, exige ou solicita deve estar em posição de dominante em relação à vítima. A IAWJ lista três características: o abuso de autoridade, a troca quid pro quo e o emprego da coerção psicológica, e não física.

Contudo, a expressão “abuso de autoridade” adquire nessa seara contornos diversos daqueles conhecidos pela legislação brasileira e limitados pelo art. 5.º da Lei 4.898/1965 ao apontar que “Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração”.

O autor da extorsão pode ser agente do Poder Público que troca o favor sexual para fazer ou deixar de fazer algo previsto no exercício das suas atribuições funcionais (policiais, juízes, promotores, políticos, fiscais, guardas de trânsito etc.), mas também pode ser o empregador que vincula o favor à oferta ou à manutenção do emprego, ao aumento ou à redução salarial e até mesmo o professor que vincula o favor à nota, à aprovação ou à reprovação.

Enfim, na sextorsão, qualquer pessoa que tenha status díspar em relação à vítima e possa se beneficiar da sua posição de poder enquadra-se no conceito de abusador.

É fundamental compreendermos que não se trata de delito cometido por homens contra mulheres, mas sim de modo amplo, por homens contra homens, mulheres contra mulheres, mulheres contra homens, e, o mais comum, homens contra mulheres. [4]

Ainda no que se refere ao componente duplo, mais algumas palavras mostram-se necessárias.

O conceito de “corrupção” merece atenção, por seu caráter de indefinição e multiplicidade de conceituações. A expressão corruptus vem do latim e significa “estragado”. Optaremos, entretanto, pelo uso da expressão no sentido de que corrompido é algo que teve sua integridade afetada.

No caso da sextorsão clássica, a função objetiva e linear desenvolvida pelo superior hierárquico é desviada por questões egoísticas, afastando-se do seu desenvolvimento ideal. Corrupto, assim e neste trabalho, busca significar aquele que agiu contra o desenvolvimento adequado e neutro de suas funções. Conforme veremos adiante, porém, há necessidade de alargamento do próprio conceito de sextorsão para encaixar-se em situações em que não há hierarquia propriamente dita, mas verdadeiro poder situacional.

No que se refere ao componente sexual, este se aperfeiçoa a partir de uma atividade sexual na forma de conjunção carnal, ato libidinoso, exposição de nudez total ou parcial, participação em fotos e/ou vídeos eróticos e/ou pornográficos, phone sex, sexting, entre outros, em troca de ação ou omissão que viole a integridade, a justiça ou a imparcialidade da posição, cargo ou função do agente. A ação se consuma por meio da mera exigência ou solicitação explícita ou implícita, sendo a realização mero exaurimento do delito.

Importante destacar que a oferta espontânea e verdadeira de atividade sexual – e, portanto, com o consentimento não viciado e de maior capaz –, mesmo que com o intuito de obter vantagens acerca da condução de uma atividade praticada por alguém em posição de poder, afasta a tipicidade da prática da sextorsão. Eventualmente, poderá configurar violação disciplinar por parte daqueles que cederem a tais seduções e indevidamente favorecerem cidadãos. Entretanto, tais casos não são objeto de tutela do direito penal e não são o azo desses desenvolvimentos.

No Brasil, o fenômeno delinquente aqui tratado está longe de ser compreendido e, embora existam tipos penais que poderiam ser aplicados à sextorsão, a proteção jurídica – tanto em teoria quanto na prática – está longe de ser eficiente.

Primeiro porque, ainda que se possa utilizar de alguns tipos penais pátrios, não há familiaridade com o tema, nem publicidade, de modo que nem as vítimas e os agentes públicos sabem manejar as leis em vigor para os casos de sextorsão.

Em segundo lugar, há a notória cifra negra corroborada pelas noções de vitimização secundária que refreiam a comunicação da problemática às autoridades: a vítima tem vergonha, sente-se constrangida e sabe que há enorme preconceito e ridicularização por parte de comunicações criminais de cunho sexual na polícia e até dentro do processo. Em caso de vítimas do sexo masculino, os estereótipos de gênero arraigados na sociedade geram ainda maior coibição de relatos, posto que a figura do “macho alfa” prevalece: um homem que apresenta a notícia de que foi vítima de proposta sexual por parte de uma mulher (em situação de hierarquia ou não) e negou tal proposta é considerado perdedor e sexualmente fraco, até mesmo descumpridor de seu “papel”. Por isso, o índice de encobertamento de casos de tal natureza é esperadamente alto.

Em terceiro lugar, a vetusta tipologia é bastante limitada, eis que o direito penal garantista – que deve ser interpretado restritivamente – é antipático ao alargamento do conteúdo do preceito primário das normas penais para alcançar novas condutas. Assim, o princípio da taxatividade, da subsidiariedade e da reserva legal.

As práticas ilícitas de ordem sexual no Brasil evoluíram grandemente a partir de 2009 quando o Congresso Nacional renomeou o Título VI, passando de “crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual”, alinhando-se no uso da palavra “dignidade” com uma linguagem mais apropriada aos direitos humanos internacionais. Tal passo fez que questões sexuais passassem a ser interpretadas como violações à intimidade e à individualidade de cada cidadão, e não mais à conduta normal da sociedade. Nesse sentido, Silveira, ao apontar que a denominação “crimes contra os costumes” já há muito se encontrava anacrônica. [5]

Contudo, o mesmo não se pode dizer no que se refere às adaptações necessárias a partir de novas práticas identificadas. Mantém-se um Código Penal de espírito antigo e reformado desajeitadamente mais de 150 vezes desde sua criação. Ainda que sejamos contra a edição do novo Código Penal como proposto (PL 236/2012), verdadeiro é que mudanças são importantes em nosso diploma.

Enquanto adequações não surgem, vejamos as possibilidades de aproveitamento dos atuais tipos penais.

No que se refere à sextorsão, o tipo penal que mais nos parece assemelhado é o previsto no art. 216-A [6] do CP, no qual o duplo componente – corrupção e sexo – apresenta-se de forma clara. Mesmo que os profissionais do Direito não façam qualquer correlação do tipo com corrupção, e tampouco o legislador tenha pensado tão longe quando o concebeu, é assim que se encontra o tipo no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual.

Criticado por Bitencourt por ser “falso moralismo dos americanos do norte”, [7] trata-se do constrangimento indevido de um subordinado com o intuito de obter favores sexuais, buscando proteger a liberdade sexual do homem e da mulher, a dignidade sexual dos mesmos e a dignidade das relações trabalhistas funcionais.

Não obstante a inclusão do crime de assédio sexual ser razoavelmente antiga – datada do ano 2001 –, o fato é que a efetiva aplicação segue tímida na vida real pelas infindas críticas em se tutelar penalmente em demasia. Ademais, o tipo penal seguiu a postura legislativa brasileira progressista em relação a direitos trabalhistas e se ocupou unicamente com a prevalência da autoridade hierárquica ou ascendência decorrentes do exercício de emprego, cargo ou função, deixando de contemplar inúmeras posições de autoridade. A doutrina, contudo, defende serem quatro os aspectos do tipo: (a) constrangimento; (b) especial fim sexual; (c) relação de superioridade hierárquica; (d) abuso vertical ascendente dessa relação – o superior buscando favores do inferior hierárquico. [8]

O tipo fica restrito a relações formais de hierarquia decorrentes de relação empregatícia, afastando relações eventuais, pessoais, religiosas e informais. Também independe da atividade sexual em si, que é exaurimento.

Outro tipo penal que se assemelha tangencialmente ao conceito de sextorsão e está no mesmo título e capítulo do Código Penal é a violação sexual mediante fraude, prevista no art. 215, [9] com a nova redação dada pela Lei 12.015/2009.

O delito trata de alguém que se utiliza de subterfúgios para manter atividade sexual e da expressão “ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Ocorre que o tipo não foi concebido para englobar o conceito de sextorsão e está distanciado da ideia de corrupção; entretanto, se aplicável à espécie em comento, não nos parece limitar a figura de autor qualificado (crime próprio).

O principal obstáculo está no nomen iuris. Assim, não é o artifício extorsivo de que trata o tipo, mas sim a colocação da vítima em situação de falsa percepção da realidade e a cessão sexual espontânea (consentida), a partir de tal crença.

Quiçá poder-se-ia interpretar mais largamente a expressão “outro meio que impeça (...) a livre manifestação de vontade da vítima” nos casos em que alguém em situação de poder enganasse a vítima a partir de sua posição e a levasse a ceder a favores sexuais. Porém, a lógica por trás da sextorsão é mais grave e pressupõe um verdadeiro constrangimento contra a vontade do ofendido e vinculante de ação ou omissão.

Por isso, entendemos, assim como Gonçalves, que foi concebido pelo legislador com o intuito de “punir os atos fraudulentos em que a vítima se entrega em face do erro e não por almejar algum tipo de vantagem em troca do próprio corpo”. [10] Carece, pois, do quid pro quo e não necessariamente requer abuso de autoridade.

Outro delito de possível aplicação seria o de concussão, previsto no art. 316 [11] do CP, inserido no capítulo dos crimes praticados por funcionário público, no título dos crimes contra a Administração Pública.

Delito que pressupõe corrupção do agente, lógica de quid pro quo e coação psicológica enquadrar-se-ia inicialmente nos requisitos da sextorsão se não por dois detalhes: ser crime próprio, que deve ser praticado ao menos por um sujeito ativo qualificado (funcionário público), e não tratar de delito que atenta aos bens jurídicos dignidade e liberdade sexual.

O crime de concussão encontraria imensa resistência de aplicação, e certamente abriria um debate nas cortes acerca da possibilidade de enquadramento da expressão “vantagem”, já que o tipo não foi concebido com o duplo componente característico da sextorsão, por ausência do viés “sexo”.

Nesse sentido, a maior parte da doutrina entende que haveria exclusividade para a lógica de egoísmo patrimonial. Mirabete [12] e Capez [13] acreditam, por sua vez, que qualquer espécie de vantagem seria típica, uma vez que a lei não faz distinção.

Contudo, não é apenas a questão do sexo. Há também o debate filosófico-existencial paralelo que se estabelece acerca da expressão “indevida” e o seu emprego na busca do prazer sexual, que, apesar de desviante, é instinto básico animal e, sendo assim, também muito humano. Por isso, dizer que é indevida uma relação sexual ou um prazer erótico poderia ser tido como objetivamente incoerente, posto que negar a natureza do próprio ser humano ou colocá-lo em posição jurídico-impositiva de afastar-se de suas vontades não faria parte das funções do direito, quanto menos do direito penal.

Por último, frise-se que, da mesma forma que o tipo do art. 216-A, o tipo restrito a um grupo específico de agentes torna sua aplicação limitada e faz o escopo da sextorsão perder-se.

Nessa mesma linha encontra-se o crime de corrupção passiva, previsto no art. 317, [14] em que, em vez da exigência a solicitação ou o recebimento da vantagem indevida são puníveis. As dificuldades para aplicação seriam quase idênticas às expostas quanto ao art. 316, a ausência do componente “sexo” na mens legis da palavra “vantagem”, a latitude filosófica da expressão “indevida” e a limitação da autoria.

Esse tipo enfrentaria ainda um obstáculo adicional, que seria a existência de um tipo correspondente para punir quem oferece a vantagem, o tipo do art. 333 [15] do CP, que foge ao espírito concebido na proteção internacional dos direitos humanos, que costuma tratar a sextorsion como coação irresistível diante da disparidade da relação de poder.

Há ainda outros tipos penais correlatos, mas não aplicáveis à conduta da sextorsão. Um deles é a própria extorsão, prevista no art. 158 [16] do CP, que escapa ao conceito tanto por exigir “violência ou grave ameaça”, termos que no Brasil, por falta de tradição jurídica e desenvolvimento legislativo mais moderno, são tidos pelas Cortes como exigência de componente físico (agressão com contato corporal – vis absoluta) ou pelo menos ameaça grave de mal injusto de natureza física.

A jurisprudência não valoriza a coerção psicológica – vis compulsiva – cerne da sextorsão aqui enfrentada. Além disso, o tipo do art. 158 do CP escapa ao conceito de sextorsão por (novamente) exigir vantagem econômica, quando o componente seria sexual, e também foge à noção de abuso de poder, já que a violência e a ameaça exigíveis à configuração não dependem de hierarquia ou autoridade e são, por si mesmas, os mecanismos de constrangimento.

Outro tipo correlato seria o próprio estupro, previsto no art. 213 [17] do CP. Porém, no Brasil o estupro não contempla o mero não consentimento, pois exige, para sua configuração, violência ou grave ameaça, termos que apresentam os mesmos obstáculos expostos no parágrafo anterior acerca do crime de extorsão.

Há o abuso de autoridade, mas que não vale o esforço do comentário, uma vez que o Congresso Nacional ainda conserva com carinho a Lei 4.898/1965, do tempo do General Castelo Branco, que apresenta específicos direitos violáveis, dentre os quais os bens jurídicos aqui tratados não se incluem. [18]

Finalmente, o tipo de constrangimento ilegal do art. 146, [19] subsidiário aos demais e utilizado como esforço de aplicação da lei penal. Nele, o bem jurídico protegido é a liberdade. Porém, há a exigência do elemento do tipo “violência ou grave ameaça”, que também gera resistência em situações de vis compulsiva psicológica em que não é atacada/ameaçada a integridade física da vítima. Outro empecilho está no fato de que o delito é comissivo por parte do agente, fazendo que meras sugestões de quid pro quo escapem da aplicabilidade do tipo, por faltarem no modus operandi do agente, que deve exigir unilateralidade da prática comissiva ou omissiva por parte da vítima.

Importa observar que nos Estados Unidos a expressão sextorsion é empregada de forma distinta à concebida no âmbito da violação aos direitos humanos (e difundida pela IAWJ) e pode significar simplesmente uma forma de exploração sexual que se dá pelo constrangimento de uma pessoa à prática sexual ou pornográfica, em troca da preservação em sigilo de imagem ou vídeo da vítima em nudez total ou parcial, ou durante relações sexuais. O termo americano data de 2010, quando foi oficialmente usado em um affidavit do Federal Bureau of Investigation (FBI), [20] em investigação em que um hacker passou a controlar a webcam e o microfone da vítima, tinha acesso ao seu quarto, ouvia suas conversas, acompanhava cada digitação on-line, e, então, ameaçava expô-la caso não cedesse a suas demandas.

Aqui, nosso supracitado conceito de poder situacional.

Ainda que a figura em si, originalmente desenvolvida, apresente como requisito a existência de um “poder hierárquico” corrompido, remanescem muitas situações não acobertadas pela figura em sentido estrito, mas que se encaixam igualmente na problemática. Além do acesso por hacking, são inúmeros os casos em que alguém obtém material erótico ou pornográfico de outrem – recebe da própria vítima ou de terceiros a mídia por comunicadores instantâneos, e-mail; o obtém por meio de acesso indevido a dispositivo informático alheio; ou cria o material por meio de filmagem ou fotografia utilizando smartphone ou outro dispositivo.

A posse de material restrito – e que pode macular a imagem e violar a intimidade daquele que ali se encontra – coloca o possuidor da mídia numa situação de poder. Permite que alguém mal intencionado ameace a divulgação do material e faça chantagem em troca de dinheiro ou favores sexuais.

No Brasil, a sextorsion por meio de hacking ou outro tipo de violação de dispositivo informático foi contemplada na Lei 12.737/2012, apelidada Lei Carolina Dieckmann, que inseriu o art. 154-A no Código Penal. [21] Um tipo penal que resultou limitado e confuso. Primeiro, porque a lei prevê exclusivamente a criminalização da conduta “invasão” (violação indevida), excluindo as hipóteses de envio espontâneo no âmbito de relacionamento erótico-afetivo (revenge porn) e também aquelas de circulação em contexto de cyberstalking, cujo recebimento se deu por terceiros ou ex-parceiro(a), e não por “invasão”. A vantagem ilícita pode ou não ser com prejuízo econômico à vítima, mas o tipo exige fim específico de obter, adulterar ou destruir dados.

Nas hipóteses em que a vítima cede à coação a fim de evitar a exposição ou a difusão das imagens via sexting (dispositivos multiplataforma) ou Internet, o que pode se dar tanto no âmbito da revenge porn (vingança pornográfica) praticada como assédio psicológico pelo próprio ex-parceiro(a), quanto no âmbito do cyberstalking (cyberbullying), há dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, mas ganha força para aprovação o PLS 63/2015. [22]

O PLS 63/2015, caso se torne lei, terá o mérito de introduzir esse tema no ordenamento jurídico brasileiro, mas, caso aprovado como redigido, nascerá com vários problemas a serem enfrentados de imediato pelos profissionais do Direito, dentre eles: a limitação da conduta na modalidade de “divulgar”; a expressão “sem autorização da vítima”; e a indenização civil no processo penal. A previsão de pagamento de despesas decorrentes com mudança de domicílio, de instituição de ensino, de tratamento médico e psicológico e perda de emprego, no âmbito penal, torna inviável a condução do processo.

A Lei 11.719/2008 reformou o art. 387 do CPP para determinar que o juiz “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. A alteração legislativa comtempla danos materiais e morais e tem gerado, desde sua edição, enorme controvérsia. A boa intenção de se adotar um sistema de solidariedade entre os processos penal e civil, por meio da responsabilização ex delicto na prolação da sentença penal (gerando título executivo a ser liquidado no juízo cível), revelou-se problemática em razão da inviabilidade de dilação probatória para apuração do valor dos danos materiais. A melhor interpretação do referido artigo é o foco na expressão “valor mínimo”, no sentido de que não se estenda a produção da prova cível no juízo criminal; não se substitua eventual ação de reparação do valores totais no juízo cível; e não se desvie a atenção devida à sumariedade típica do processo penal. O PLS 63/2015 vai muito além e introduz no ordenamento jurídico dilação probatória extensa e estranha ao processo penal.

Nesse sentido, mereceria atenção a redação do PL 7.377/2014. [23] Primeiro, por conta da opção pelo tipo penal de ação mista alternativa – “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar”. Segundo, por já ter enfrentado a problemática do consentimento, já que nas situações de revenge porn a vítima usualmente consentiu na captura ou enviou o arquivo digital para o(a) parceiro(a) aceitando que ele(a) o guardasse consigo. O projeto enfrentou a questão de que o consentimento, nessa primeira etapa, não retira a expectativa de privacidade, o que é uma zona cinzenta em algumas leis estadunidenses, gerando controvérsia no curso do processo penal. E, ademais, por não introduzir no processo penal – além do que já está previsto no art. 387 do CPP – matéria cível exógena à justiça criminal.

Sabidamente, a rede é um ambiente de rápida disseminação de materiais, especialmente de cunho erótico. Assim, mídias de tal gênero tendem a ser rapidamente espalhadas, chegando ao conhecimento de uma infinidade de usuários.

O direito brasileiro, ao debater delitos contra a honra, agrava em um terço exposições que são feitas “por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria”. A rede, por sua característica de velocidade, ubiquidade e acesso irrestrito, enquadra-se em tais classificações. Notório, pois, o poder de alastramento de uma ação prejudicial à imagem de alguém.

Não à toa, a União Europeia debate fortemente o direito de esquecimento (reconhecido, inclusive, pela importante sentença de 2014, em processo que a Agencia Española de Protección de Datos (AEPD) e Mario Costeja González moveram contra Google Spain SL e Google Inc. [24] ) e o Brasil integrou a lógica de retirada de conteúdo no texto do Marco Civil da Internet (art. 19 da Lei 12.965/2014).

A sextorsão encontra na era tecnológica um imenso propulsor da coerção psicológica, que beneficia os autores e apavora as vítimas, uma vez que o potencial de difusão e de danos à intimidade é incalculável. Dessa forma, tanto a vítima que na sextorsion conceitual cede ao abuso de poder e se submete à prática sexual, sendo, então, fotografada ou filmada, permanecerá nas mãos do explorador, quanto a vítima da sextorsion das relações cotidianas será mantida sob permanente controle.

Importante também dizer que a sextorsão, embora se estenda a homens e mulheres, encontra nas vítimas do sexo feminino seus principais alvos. A abordagem da herança histórico-cultural e dos estereótipos sobre masculinidade e feminilidade que conduzem à discriminação merece artigo específico, mas não se pode encerrar este sem reconhecer que a inegável prevalência da sextorsion contra as mulheres nada mais é do que uma inter-relação da disparidade de poder entre os gêneros, e a disparidade de poder entre os detentores de autoridade ou hierarquia e seus dependentes ou subordinados. É o resultado de uma dupla situação de dominação.

Em conclusão, sextorsão hoje no Brasil é uma prática que carece de previsão legislativa adequada e específica e de campanhas preventivas. A conscientização dos agentes públicos, em especial juízes, promotores e delegados, seria o primeiro passo a fim de permitir que as vítimas possam se apropriar dos tipos penais já existentes no ordenamento jurídico. O manejo desses tipos levaria a temática aos Tribunais Estaduais, ao STJ e ao STF de modo a formar uma jurisprudência capaz de interpretar os tipos penais existentes no sentido de acolher ou refutar a inclusão do conceito de sextorsão. Em verdade, o significado das palavras ou expressões que compõem os tipos penais somente é conhecido integralmente no teste do debate argumentativo perante o Poder Judiciário. E, ainda que a mens legislatoris fosse outra no tempo da concepção desses tipos penais, o fato é que em Terra Brasilis não há Framers e, portanto, não há a necessidade recorrente de se voltar ao pensamento interpretativo dos nossos founding fathers.

Há também de se lembrar que o direito penal não é a solução para todos males, e a ampla repercussão do tema também permitiria aos advogados melhor orientar as vítimas nos campos civil e trabalhista para ajuizamento de ações indenizatórias. E, claro, nada disso exclui a missão do Parlamento de se modernizar, de acompanhar os ventos da mudança que sopram velozes na era da tecnologia, porque é muito no carpete verde e azul das Casas Legislativas da nossa Capital Federal que o destino civilizatório da nação é traçado. E para qualquer país se adequar verdadeiramente aos organismos internacionais de proteção aos direitos humanos a regra é clara: if you don’t name it, you can’t shame it, ou seja, é necessário criar um nome para criar a reprovabilidade!

Referências bibliográficas

Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 4.

Capez, Fernando. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 3.

Gonçalves, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2011.

Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2012. v. 3.

Silveira, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

Ana Lara Camargo de Castro

Promotora de Justiça na Vara Criminal Especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher em Campo Grande (MS).

LLM em Direito Criminal pela State University of New York.

Especialista em inteligência de Estado e inteligência de segurança pública pela Fundação Escola do Ministério Público de Minas Gerais.

Spencer Toth Sydow

Professor de graduação e pós-graduação. Doutorando e mestre em Direito Penal, Criminologia e Medicina Legal pela Fadusp. Especialista em Direito Penal Informático. Advogado. Autor do Blog LEG@L de Direito e Tecnologia, autor do livro Crimes informáticos e suas vítimas (2. ed., Saraiva, 2015). Articulista e parecerista.

[1] Originalmente, o neologismo foi formado pela fusão das palavras sex e corruption. Porém, na realidade brasileira em que estamos inseridos, sem o delito de corrupção no setor privado, optamos pela adaptação.

[2] Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

[3] Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2015.

[4] Crescem exponencialmente na mídia casos de professoras que mantiveram relações sexuais com seus alunos do sexo masculino e relações homossexuais incluem-se igualmente na questão em debate. 50 exemplos em: . Acesso em: 23 abr. 2015.

[5] Silveira, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 152 e ss.

[6] Assédio sexual. “Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

§ 2.º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos”.

[7] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 4, p. 31.

[8] A ação inversa de o inferior hierárquico constranger o superior a favores sexuais não configura assédio sexual, mas tão somente constrangimento ilegal. A resolução de tal situação, porém, pode estar nas mãos do superior hierárquico, que pode simplesmente dispensar os serviços do subordinado.

[9] Violação sexual mediante fraude.Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa”.

[10] Gonçalves, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 530.

[11] Concussão. “Art. 316. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa”.

[12] Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2012. v. 3, p. 315.

[13] Capez, Fernando. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 3, p. 421.

[14] Corrupção passiva. “Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§ 1.º A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2.º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa”.

[15] Corrupção ativa. “Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional”.

[16] Extorsão. “Art. 158. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:

Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

§ 1.º Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade.

§ 2.º Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3.º do artigo anterior.

§ 3.º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2.º e 3.º, respectivamente”.

[17] Estupro.Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. 

§ 1.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. 

§ 2.º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

[18] São os valores protegidos pela Lei do Abuso de Autoridade: (a) liberdade de locomoção; (b) inviolabilidade do domicílio; (c) sigilo da correspondência; (d) liberdade de consciência e de crença; (e) livre exercício do culto religioso; (f) liberdade de associação; (g) direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; (h) direito de reunião; (i) incolumidade física do indivíduo; (j) direitos e garantias legais assegurados ao exercício professional; e (k) demais garantias processuais constantes no art. 4.º da aludida lei.

[19] Constrangimento ilegal. “Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa”.

[20] Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2015.

[21] Invasão de dispositivo informático. “Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

§ 1.º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput.

§ 2.º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico.

§ 3.º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido:

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

§ 4.º Na hipótese do § 3.º, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos.

§ 5.º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra:

I – Presidente da República, governadores e prefeitos;

II – Presidente do Supremo Tribunal Federal;

III – Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou

IV – dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal”.

[22] Senado – Projeto 063/2015 – Romário Faria (PSB/RJ)

“Art. 1.º Esta lei torna crime a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato sexual sem autorização da vítima.

Art. 2.º O Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 216-B:

‘Divulgação indevida de material íntimo

Art. 216-B. Divulgar, por qualquer meio, fotografia, imagem, som, vídeo ou qualquer outro material, contendo cena de nudez, ato sexual ou obsceno sem autorização da vítima.

Pena – detenção, de um a três anos, e multa.

§ 1.º Está sujeito à mesma pena quem realiza montagens ou qualquer artifício com imagens de pessoas.

§ 2.º A pena é aumentada de um terço se o crime é cometido:

I – com o fim de vingança ou humilhação;

II – por agente que era cônjuge, companheiro, noivo, namorado ou manteve relacionamento amoroso com a vítima com ou sem habitualidade;

§ 3.º A pena é aumentada da metade se o crime é cometido contra vítima menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa com deficiência.’ (NR)

Art. 3.º O agente fica sujeito a indenizar a vítima por todas as despesas decorrentes de mudança de domicílio, de instituição de ensino, tratamentos médicos e psicológicos e perda de emprego.

Art. 4.º O pagamento da indenização prevista no artigo anterior não exclui o direito da vítima de pleitear a reparação civil por outras perdas e danos materiais e morais.

Art. 5.º Se o crime foi cometido por meio da Internet, na sentença penal condenatória, o juiz deverá aplicar também pena impeditiva de acesso às redes sociais ou de serviços de e-mails e mensagens eletrônicas pelo prazo de até dois anos, de acordo com a gravidade da conduta.

Art. 6.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

[23] Câmara dos Deputados – Projeto 7.377/2014 – Fábio Trad (PMDB/MS)

“Art. 1.º Esta Lei insere o art. 216-B no Código Penal com o intuito de criar o tipo relativo à violação de privacidade.

Art. 2.º O Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte artigo:

‘Violação de privacidade

Art. 216-B. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar, sem consentimento da vítima, imagem em nudez total, parcial ou em ato sexual ou comunicação de conteúdo sexualmente explícito, de modo a revelar sua identidade, utilizando-se de qualquer mídia, meio de comunicação ou dispositivo.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

§ 1.º A pena é aumentada de um terço se o crime é cometido:

I – com finalidade de assediar psicologicamente;

II – em ato de vingança;

III – para humilhação pública ou por vaidade pessoal;

IV – contra cônjuge, companheira, namorada ou com quem conviva ou tenha convivido em relação íntima, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

§ 2.º Configura-se o crime ainda que a vítima tenha consentido na captura ou no armazenamento da imagem ou da comunicação’.

Art. 3.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

[24] Disponível em:

e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuNb3z0?text=&docid=152065&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=

&occ=first&part=1&cid=262988>. Acesso em: 27 abr. 2015.

Artigos
Análise crítica da teoria unificadora preventiva da pena, a partir de Roxin
Data: 24/11/2020
Autores: Carlo Velho Masi

Resumo : A discussão em torno dos fins da pena remete a questões de legitimação, fundamentação e função da intervenção penal estatal, assim como ao próprio destino do Direito Penal. O presente artigo busca analisar as teorias absolutas e relativas da pena e vinculá-las à concepção unificadora desenvolvida por Roxin e aceita por diversos outros autores, que teoricamente afasta seus fins retributivos e reconhece objetivos exclusivamente preventivos e benéficos para o indivíduo e para a coletividade na efetiva imposição da sanção estatal. Observa-se que esta teoria, por intermédio do princípio da culpabilidade, oferece uma diferenciação pouco precisa de até que ponto as penas são efetivamente necessárias e de como aferir essa necessidade. O risco é atribuir um poder discricionário muito amplo ao julgador, culminando naquilo que hoje pode-se denominar de “ditadura do Poder Judiciário”. Portanto, a imposição da pena acaba sendo um ato muito mais político que propriamente jurídico, de modo que as finalidades preventivas acabam se constituindo em meros argumentos retóricos ou demagógicos para o que realmente representa a pena, ou seja, a imposição de um mal pelo Estado como retribuição por outro mal praticado. Tal explicação torna-se, pois, insuficiente para romper com o ciclo de violência e proporcionar o restabelecimento da “paz social” ou da “ordem pública”.

Palavras-chave: Direito Penal; pena; teoria absoluta; teoria relativa; teoria unificadora preventiva.

Abstract : The discussion around the penalty purposes refers to matters of legitimacy, grounding and function of the criminal state intervention, as well as to the fate of the Criminal Law. This paper aims to analyze the absolute and the relative theories of punishment and link them to the unifying concept developed by Roxin and accepted by several other authors. By this theory, the retributive purposes of the penalty are removed remaining only the preventive ones concerning the individuals and the community. It is observed that this theory, through the principle of culpability, offers an unclear distinction of how effectively necessary the penalties are and how to measure this need. The risk is to assign a very wide margin of discretion to the judge, culminating in what today might be called “judiciary dictatorship”. Therefore, the imposition of the penalty ends up being much more a political than a legal act. Preventive purposes end up constituting merely rhetoric or demagogic arguments to justify what really represents the penalty, which is the imposition of an evil by the State as a retribution for another evil practiced. So this explanation becomes insufficient to break the cycle of violence and to provide the restoration of “social peace” or “public order”.

Keywords: Criminal Law; criminal penalty; absolute theory; relative theory; preventive unifying theory.

Sumário: 1. Introdução – 2. A teoria absoluta da retribuição e a pena como “mal necessário” – 3. A teoria da prevenção especial e a (re)integração do delinquente – 4. A teoria da prevenção geral e o restabelecimento da confiança no ordenamento jurídico – 5. As teorias unificadoras e a necessidade de congregar fins preventives – 6. Considerações finais – Referências.

1. Introdução

A discussão em torno dos fins da pena remete a questões de legitimação, fundamentação e função da intervenção penal estatal, assim como ao próprio destino do Direito Penal.[1] Na esteira de Ferrajoli, a história do Direito Penal e da pena pode ser contata como a história de uma larga luta contra a vingança.[2]

Roxin defende que o Direito Penal deve servir à proteção subsidiária de bens jurídicos e, com isso, ao desenvolvimento do indivíduo. As teorias dos fins da pena indicam, segundo ele, qual a missão do Direito Penal.[3] Existem duas principais teorias que tratam dos fins da pena (absolutas e relativas), a partir das quais desenvolvem-se variantes ecléticas.[4]

Enquanto as teorias absolutas associam a pena à retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do crime; as teorias relativas enxergam na pena uma função de prevenção, seja ela de caráter geral ou especial (individual). Mir Puig expõe que retribuição e prevenção são dois aspectos inerentes ao complexo instituto da pena.[5] Na clássica constatação de Carnelutti, ao tratar das “misérias do processo penal”,

“Dizem, facilmente, que a pena não serve somente para a redenção do culpado, mas também para advertência de outros, que poderiam ser tentados a delinquir e por isso deve os assustar; e não é este um discurso que deva se tomar por chacota; pois ao menos deriva dele a conhecida contradição entre a função repressiva e a função preventiva da pena: o que a pena deve ser para ajudar o culpado não é o que deve ser para ajudar os outros; e não há, entre estes dois aspectos do instituto, possibilidade de conciliação”. [6]

O presente artigo busca analisar tais teorias e vinculá-las à concepção unificadora desenvolvida por Roxin e aceita por diversos outros autores, que teoricamente afasta os fins retributivos da pena e reconhece fins exclusivamente preventivos e benéficos para o indivíduo e para a coletividade na efetiva imposição da sanção estatal.

2. A teoria absoluta da retribuição e a pena como “mal necessário”

Nos primórdios da civilização, as punições, confiadas a líderes políticos ou religiosos, constituíam reações instintivas às perturbações externas das condições de vida em sociedade. Já na Modernidade, com o apogeu do Iluminismo, o que passou a legitimar a imposição dos castigos foi o interesse em preservar o bem-estar da coletividade, de modo a evitar, com a pena, o retorno dos indivíduos e de todas as formações sociais à barbárie.

Com amparo do pensamento de Kant e Hegel, a “Escola Clássica” formulou a primeira teoria justificadora da punição, qual seja, a de retribuição. O crime equivalia a um pecado, e a pena a sua consequência, servindo de exemplo para que os acusados não voltassem a delinquir e a sociedade aprendesse pelo exemplo. O fundamento da pena para os retribucionistas era o castigo do delinquente.

A teoria da retribuição parte do princípio da que a pena serve para retribuir um mal causado pelo autor do fato. Trata-se de uma teoria absoluta, uma vez que o fim da pena nesta perspectiva está desvinculado de qualquer efeito socialmente útil, conquanto também possua efeitos reflexos ou laterais relevantes (como a intimidação da generalidade das pessoas, a neutralização dos delinquentes, a ressocialização etc.). O real objetivo da pena seria o de dar ao agente a retribuição merecida pelo dano causado pelo fato de sua autoria.

Sendo assim, a quantificação da pena deve ocorrer exclusivamente com base na correspondência entre a conduta e o fato.[7] Se a pena deve ser justa, ela deve corresponder em duração e intensidade à gravidade do delito. A mais antiga representação desta concepção está retratada na “Lei do Talião”.

Tal teoria sobreviveu por tanto tempo não apenas por sua plausibilidade teórica cotidiana, mas em função da ideologia que a amparou. Kant sustentava que a lei penal seria um imperativo categórico. A pena deveria existir ainda que o Estado e a sociedade já não mais existissem. Hegel, por sua vez, entendia o delito como uma negação do Direito e pena como negação desta negação, ou seja, como anulação do delito que, do contrário, teria validade. A aplicação da pena representa o restabelecimento do Direito. Delito e pena se confundem. Não haveria, pois, qualquer meta preventiva na pena.

Esse pensamento encontrou ao longo da história grande ressonância religiosa, pois a concepção retributiva da justiça pode ser interpretada como um mandamento de Deus, sendo a imposição da pena uma execução substitutiva das funções de Deus como juiz.[8]

Roxin afirma que a teoria da retribuição encontra espaço nos tribunais e nas leis penais até os dias de hoje. Seu grande mérito residiria na imposição de um parâmetro para a dosagem da pena, na medida em que ela deverá corresponder à magnitude da culpabilidade, representando assim uma limitação ao poder punitivo do Estado. Ainda que não se trate de uma ciência exata, a pena, sob este enfoque, poderia ser dosada proporcionalmente ao “mal” praticado.[9]

Desde então, ainda que não seja fundamento da pena, a culpa cumpre o papel de evitar o excesso desproporcional no sistema punitivo, estabelecendo o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. Configura, então, nas palavras de Figueiredo Dias, “uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar”.[10]

Muito embora tenha representando um avanço histórico, tal teoria não é mais sustentável cientificamente diante da finalidade do Direito Penal. Para Roxin, não é mais possível pregar uma pena sem qualquer finalidade social. A teoria retributiva preconiza uma pena até mesmo nos casos em que não há ofensa relevante a um bem jurídico. Ocorre que, nestes casos, a pena não tem nenhuma legitimação:

“[…] el Estado, como institución humana, no es capaz de realizar la idea metafísica de justicia ni está legitimado para ello. La voluntad de los ciudadanos le obliga a asegurar la convivencia del hombre en paz y en libertad; está limitado a esta tarea de protección. La idea de que se puede compensar o suprimir un mal (el delito) causando otro mal adicional (el del sufrimiento de la pena), sólo es susceptible de una creencia o fe, a la que el Estado no puede obligar a nadie desde el momento en que ya no recibe su poder de Dios, sino del pueblo. Tampoco la tesis de una “culpabilidad” que hay que retribuir puede fundamentar por sí sola la pena; la culpabilidad individual está ligada a la existencia de una libertad de voluntad, cuya indemostrabilidad la hace inadecuada como único fundamento de las intervenciones estatales.[11]

A imposição de uma pena nestas circunstâncias pode ser indesejável até mesmo sob o viés político-social, pois a imposição de um mal não pode servir para a reparação dos danos na socialização, que normalmente são as causas da prática de delitos. Dessa forma, a pena acaba não tendo qualquer efeito sobre a delinquência.[12]

Assim, a doutrina da retribuição foi teoricamente superada por sua inadequação ao sentido da intervenção penal. Reconheceu-se que a retribuição do mal do crime não constitui meio idôneo e legítimo para assegurar o cumprimento da função estatal de proporcionar as condições de existência comunitária.[13]

A visão da teoria retributiva como uma teoria da expiação, segundo a qual o autor interiorizaria a pena como uma justa compensação pelo seu ato, assimilando moralmente seu comportamento delitivo, purificando-se e recobrando sua integridade humana e social, também não pode servir para justificar a pena como retribuição. Essa introjeção do indivíduo não passa de um ato moral autônomo de personalidade e não pode ser imposto à força.[14]

A retribuição do mal pela pena apenas legitimaria a vingança pelo Estado, dispensando-se o ofendido de manchar, ele próprio, suas mãos com o sangue do ofensor. Logo, um mal não poderia ser combatido com outro mal. Como, para Roxin, a função do Direito Penal é a tutela do ordenamento jurídico, a pena só se justifica enquanto necessária para garantir tal finalidade.[15]

Na crítica de Geraldo Prado,[16] a consolidação da modernidade proporcionou a formação de uma estrutura de direitos e garantias de natureza penal que, ao lado de controlar a resposta estatal aos atos criminosos, atenuando-lhe a brutalidade, buscou definir o Estado como entidade cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de uma legalidade prenhe de legitimidade e conformada eticamente. Dessa forma, os atos de repressão, apuração e punição das infrações penais e de seus autores não poderiam ser, de forma alguma, equiparáveis aos atos dos próprios agentes de delito.

O sentido da pena retributiva é puramente negativo, pois cinge-se ao mal que impõe ao delinquente como compensação pelo mal do crime. Não há qualquer tentativa de ressocialização do delinquente e restauração da ordem jurídica afetada pelo crime, o que a torna ineficaz para a gestão eficaz da criminalidade.[17]

Se a pena já é um “mal necessário”, sua justificação deve encontrar uma finalidade político-criminal positiva, qual seja, a da prevenção ou profilaxia criminal.[18] Este é o predicado das teorias relativas da pena.

3. A teoria da prevenção especial e a (re)integração do delinquente

A compensação ou igualação entre “o mal do crime” e o “mal da pena”, que, nos primórdios, era de ordem fática, evoluiu para o marco puramente normativo.[19] O gradual progresso da ciência, em detrimento da religião, acabou por provocar o advento da “Escola Positiva” (com diversas dissidências), segundo a qual o Direito Penal passou a ser um instrumento de defesa da sociedade.[20]

Forneceu-se uma explicação patológica para a criminalidade, trabalhando as características biopsicológicas dos criminosos.[21] O objeto de estudo deslocou-se do delito para o delinquente e a criminalidade passou a ter causas individuais determinantes, oriundas da degenerescência, e não da sociedade. O “determinismo biológico” negou e se contrapôs ao livre-arbítrio, que fora um dos pilares do Iluminismo.[22]

A aplicação da pena passou a ser concebida como uma reação natural do organismo social contra a atividade anormal dos seus componentes, adquirindo, dessa forma, uma função preventiva. O delito e o delinquente ganharam o status de “patologias sociais”, tornando desnecessários os conceitos morais da responsabilidade penal. O fundamento da punição passou a ser a personalidade do réu, sua capacidade de adaptação e, especialmente, sua periculosidade.[23] A natureza do delito e sua gravidade pouca influência teriam na quantificação da pena, a não ser fornecer subsídios para demonstrar o maior ou o menor grau de desvio do delinquente.

Nas teorias prevencionistas, o objetivo da pena é desestimular o autor a praticar futuros delitos. Trata-se de teoria relativas, pois se referem à prevenção de delitos. Esta prevenção será “especial” quando incidir sobre o autor individual, com o fim de evitar que, no futuro, o indivíduo cometa novos crimes (“prevenção da reincidência”).[24] Tal concepção remonta aos ensinamentos clássicos de Platão, segundo o qual “nemo prudens punit, quia peccatum este, sed ne peccetur” (nenhum homem sensato castiga porque se pecou, mas para que não se peque).

A prevenção especial orienta a correção do agente para que se reintegre à comunidade e, nos casos de delinquentes incorrigíveis, determina sua eliminação e inoculação.[25] O objetivo é criar uma experiência de utilidade que persuada o delinquente de que não é conveniente delinquir, porque a consequência é um mal maior do que a satisfação procurada pelo delito.

Esta tese perdeu espaço para a teoria da retribuição, mas foi retomada no século XIX, com a escola sociológica de Franz Von Liszt e sua ideia de “defesa social”, segundo a qual a pena protege a sociedade dos delinquentes por meio de sua segregação, intimida o autor para que não cometa futuros delitos e o preserva da reincidência, mediante sua correção. Liszt propunha a inocuização do delinquente habitual, a intimidação do delinquente ocasional e a correção (“ressocialização”) do delinquente corrigível.[26]

Há quem afirme que o alinhamento do delinquente é impossível, razão pela qual a prevenção especial só poderia dirigir-se à sua intimidação individual. A pena destinar-se-ia, assim, tão somente a causar temor, até um ponto em que o sujeito não voltaria a praticar crimes. Para outros, a prevenção especial só atingiria um efeito de pura defesa social, pois, com a segregação do delinquente o único “benefício” seria neutralização da sua perigosidade social (prevenção especial negativa ou de neutralização).[27] Outra perspectiva parte da necessidade de criação de hábitos no ofensor para que possa reintegrar-se na sociedade (ou integrar-se, no caso daqueles que sempre foram dessocializados)[28] e, nesta medida, é conceituada como prevenção especial positiva ou de socialização.

Roxin faz referência a diversos textos legais que aludem às consequências da pena para a vida futura do delinquente em sociedade. A jurisprudência tem entendido que o Estado deve reconhecer o delinquente como sujeito de direitos fundamentais e oportunizar a reintegração social após o cumprimento de sua pena. Essa teoria preocupa-se tanto com a sociedade quanto com o autor, evitando a esterilidade prática da retribuição.[29]

Seu defeito mais grave residiria na ausência de critérios para a dosagem da pena, uma vez que o delinquente deveria ser condenado ao tempo necessário para sua ressocialização, o que gera grande insegurança jurídica. Isso conduz à aplicação de uma pena indeterminada, o que não pode ser desejável e admitido em um Estado liberal de Direito.[30]

Da mesma forma, a prevenção especial não consegue lidar com aqueles autores que não necessitam de ressocialização, tais como aqueles que praticam delitos culposos ou de menor potencial ofensivo ou mesmo delitos graves, porém em circunstâncias irrepetíveis. Se a carência de socialização não se verificar, tudo se resumirá em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da “moldura de prevenção” ou mesmo que com ele coincida (“defesa do ordenamento jurídico”).[31] Afora isso, nunca se conseguiu chegar a um consenso sobre como promover a socialização do reincidente.[32]

4. A teoria da prevenção geral e o restabelecimento da confiança no ordenamento jurídico

Na prevenção geral, a pena exerce influência sobre toda a comunidade, que, mediante as ameaças penais e a execução, é instruída sobre as proibições legais e apartada de sua violação. Trata-se de uma outra teoria relativa, pois também atua preventivamente.

Esse pensamento foi desenvolvido por Feuerbach por meio da “teoria da coação psicológica”, segundo a qual o fundamento psicológico das infrações tem origem na sensualidade. O homem é incitado pelo prazer da ação de cometer o fato e este impulso pode ser suprimido ao saber que o fato será seguido por um mal superior e inevitável.[33]

Von Liszt também afirmava que a pena correta era a pena justa e necessária, porém queincidissesobre os cidadãos em geral porque, de um lado, pela sua força de intimidação, refrearia as tendências criminosas e, de outro, manteria o Direito, firmando e fortalecendo o sentimento jurídico.[34]

De certo modo, este pensamento mantém sua atualidade, vez que, conforme Hassemer, “uma proibição penal apenas se justifica quando persegue de forma adequada uma finalidade admitida”.[35]

Se a finalidade visada pela pena é a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, esta deve ser também, por conseguinte, a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não obviamente num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo, por isso, uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.[36]

A pena seria uma ameaça que só tem efeito se sua execução for efetiva. Como a pena deve intimidar todos os cidadãos, é a sua execução que outorga eficácia à lei. Então, o fim mediato da aplicação da pena seria a mera intimidação dos cidadãos pela lei.[37]

Esta teoria tem grande influência na atualidade e conta com justificação psicológica. Muitas pessoas só contêm seus impulsos antijurídicos quando percebem que outras não conseguem êxito com essas práticas e acabam sofrendo graves inconvenientes. Pelos estudos de Freud, quando alguém satisfaz um desejo reprimido, todos os membros da sociedade adquirem o mesmo desejo. Assim, para manter apaziguada esta tentação, é necessário que o transgressor seja privado do fruto do seu atrevimento.[38]

O denominador comum das doutrinas da prevenção geral radica na concepção da pena como instrumento político-criminal de atuação psíquica sobre os membros da comunidade, afastando-os da prática criminosa por meio da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efetividade da sua execução. Pela reafirmação da moral coletiva e da atuação segundo seus princípios, a prevenção geral desenvolve uma função social pedagógica.

Essa atuação estatal sobre a coletividade adquire uma dupla perspectiva. Fala-se em prevenção geral negativa ou de intimidação, quando a pena é imposta com a finalidade de intimidar os cidadãos pelo sofrimento que ser-lhes-ia imposto caso delinquissem, o que acabaria prevenindo as práticas delitivas pelo receio da penalização. A pena serviria de intimidação àqueles que correm o risco de praticar um delito semelhante.

O problema aqui é que o crime não deixa de ser cometido em função da magnitude da pena, e sim em função do risco de ser descoberto. Em termos de Política Social, mais eficaz é a intensificação da persecução penal (por exemplo, reforço do aparato policial) do que propriamente uma agravação da sanção penal.

De outro lado, a prevenção geral é positiva ou de integração, quando a imposição da pena tem a finalidade de conservar e reforçar a confiança da comunidade na validade e força de vigência do ordenamento jurídico-penal, prevenindo o crime pela certeza de que o cidadão tem de que será punido, caso pratique algum delito.[39] A pena tem aqui a função de demonstrar a inviolabilidade do ordenamento ante a comunidade jurídica e, dessa forma, reforçar a confiança jurídica do povo.[40]

Renuncia-se a uma determinação empiricamente precisa da prevenção direta, na expectativa de que o Direito Penal possa, de fato, cumprir a função de gestão do risco.[41] Esta ideia remonta à Carrara, o qual relegou a correção do delinquente a efeito acessório da pena e exaltou como sua principal função o restabelecimento da ordem externa da sociedade.[42]

Welzel também entendia que a função do Direito Penal seria a de reforçar a ética social de confiança no sistema e, secundariamente, tutelar bens jurídico-penais. A proibição penal teria o objetivo de robustecer uma consciência jurídica dos cidadãos na confiabilidade do ordenamento jurídico. Enquanto a proteção de bens jurídicos desempenhava uma função negativa (dizer o que não estava sob a tutela penal), a tarefa primordial do Direito Penal era positiva, ou seja, de garantir a lealdade ao ordenamento jurídico por meio da proibição e do castigo.[43]

Este aspecto da prevenção geral produz, conforme Roxin, três efeitos. Um efeito de aprendizagem, pelo qual a população começa a atuar conforme o Direito. Um efeito de confiança, pelo qual se passa a confiar na atividade da justiça penal, na medida em que vê que o Direito se aplica. E um efeito de pacificação social, que se produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza, em virtude da sanção (“prevenção integradora”).

Abandona-se uma consideração meramente empírica de prevenção direta e colocam-se em contato as concepções dominantes acerca da pena com o clima político geral que favorece a visão do Direito Penal como meio para solucionar os grandes problemas sociais.

A teoria preventivo-geral da pena demonstra que mesmo na ausência de perigo de reiteração criminosa não se deve renunciar totalmente à pena. A sanção ainda se faria necessária nestes casos, porque mesmo os delitos que não trazem consequências para o autor incitam a imitação. Como o objetivo é motivar o cidadão a distanciar-se de determinada conduta, a pena deve ser exata.

Roxin alerta que esta teoria se baseia em suposições psicológico-sociais, uma vez que a maioria da população se comporta de acordo com o Direito. É muito difícil determinar de forma empírica em que medida isso se deve aos aspectos positivos ou negativos da prevenção geral ou até mesmo se a práxis punitiva estatal tem realmente um papel fundamental sobre esse comportamento.[44]

Essa teoria não traz qualquer parâmetro de delimitação da duração da pena e dirige-se exclusivamente à comunidade, e não ao autor. A mera intimidação dos cidadãos, para Roxin, tem o potencial de incitar ainda mais a reincidência do que evitá-la, prejudicando mais do que beneficiando a luta contra a criminalidade.[45] Dessa forma, comandadas apenas por considerações pragmáticas e eficientistas, as doutrinas da prevenção geral fazem da pena um instrumento que violaria a dignidade da pessoa humana.[46]

5. As teorias unificadoras e a necessidade de congregar fins preventivos

Hoje, fala-se em teorias que congregam elementos retributivos e preventivos gerais e especiais como fins da pena. São as chamadas teorias mistas, unificadoras ou ecléticas da pena.

De um modo geral, a conclusão dessas novas doutrinas ora gravita no desenvolvimento de uma pena retributiva, no seio da qual procuram-se pontos de vista de prevenção, geral e especial, ora no de uma pena preventiva mediante justa retribuição.[47] Nenhuma das teorias penais está ordenada ou proibida por lei, de sorte que podem ser colocadas em primeiro plano qualquer uma dessas finalidades, como os tribunais em geral têm feito.[48]

Roxin entende que essas teorias partem do correto entendimento de que nem a teoria da retribuição, nem qualquer das teorias da prevenção podem determinar isoladamente os limites da pena. Entretanto, identifica a falta de fundamento teórico na mera unificação das funções (“teoria unificadora aditiva”), uma vez que esta perspectiva não leva em conta as carências das diferentes opiniões particulares, conduzindo a uma indefinição.[49]

Uma teoria unificadora, nos dias atuais, deve anular o pensamento retributivo e qualquer abordagem absoluta da pena, de sorte a conservar apenas os seus aspectos positivos e amortizar suas deficiências.[50]

Para Roxin, a única função defensável da pena seria a prevenção de delitos, na medida em que, tal como as normas penais, a pena só se justifica quando visa à proteção da liberdade individual e da ordem social. Isso significa que prevenção especial e prevenção geral devem figurar conjuntamente como fins da pena, já que os fatos delitivos podem ser evitados por meio da influência sobre o particular e também sobre a coletividade, fins igualmente legítimos nesta ótica. Portanto, a pena fixada em sentença deve ser adequada para atingir ambas as finalidades.

O Direito Penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à disponibilidade (e à autonomia) de cada pessoa o mínimo de seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao funcionamento, tanto quanto possível, sem entraves, da sociedade. Destinam-se, ainda, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais e a permitir, em último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um enquanto indivíduo e enquanto membro da comunidade. Se assim o é, então, também a pena criminal – na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução efetiva – só pode perseguir a realização daquela finalidade prevenindo a prática de futuros crimes.[51]

Mesmo nos casos em que não haja qualquer perigo de reincidência ou nos casos em que não houver cooperação do condenado para a ressocialização, a pena encontrará sua legitimidade na prevenção geral.[52]

Isso afastaria o argumento de que a ressocialização conduz a uma adaptação forçada que viola a personalidade do condenado. Roxin argumenta que, quando o condenado, por iniciativa própria, colabora com o desenvolvimento da execução, isso não contribui para a violação de sua personalidade, mas sim ao desenvolvimento desta. Dessa forma, a função preventivo-geral poderia sustentar isoladamente a pena caso seja necessário, isto é, quando os fins preventivo-especiais não forem eficientes.

O único conflito que se estabelece entre tais finalidades é de que elas exigem diferentes quantias de pena. Roxin exemplifica que ao jovem que causa lesões a terceiro durante uma briga pode parecer adequado um castigo de três anos de privação de liberdade, com base na prevenção geral; mas as exigências de prevenção especial podem recomendar que cumpra só um ano, com benefícios legais, porque uma pena mais grave contribuiria muito mais para a sua dessocialização, ampliando as chances de voltar a delinquir. Num caso assim, seria necessário sopesar os fins de prevenção geral e especial e colocá-los em ordem de prioridade, a fim de que um não anule o outro. No entanto, em função do fim preventivo-especial, a pena não pode ser reduzida a tal ponto que quebre a confiança no ordenamento jurídico, pois isso estimularia a imitação. Por isso, geralmente o limite inferior da pena cominada nos tipos legais é pensado em consideração ao “mínimo preventivo-geral” .[53]

Ao passo que a previsão legal de marcos mínimos e máximos para aplicação da pena leva em conta a prevenção geral, a sentença condenatória deve considerar as necessidades preventivas tanto gerais como especiais. Já na fase de execução, o fim preventivo-especial (ressocialização) assume o primeiro plano. Roxin nota, no entanto, que essa distinção por fases não é perfeita e deve ser ponderada. A cominação penal não pode perder sua função motivadora, nem a execução o seu efeito preventivo-geral.[54]

Quando houver contradição entre os fins preventivo-geral e preventivo-especial deve prevalecer este último. Por outro lado, o fim preventivo-geral domina a cominação legal e prevalece caso a ressocialização fracasse. Ambos os efeitos devem ser cuidadosamente equilibrados para oferecer um fundamento teórico à pena estatal.[55]

Roxin advoga que a teoria unificadora mista deve renunciar totalmente a qualquer finalidade retributiva, até mesmo quando esta estiver associada à prevenção. Nos casos em que o agente é socialmente integrado, a pena cumpre exclusivamente a função preventivo-geral em relação aos outros membros da comunidade.

A pena é uma intervenção coercitiva do Estado e uma carga para o condenado enquanto inerente a um elemento repressivo. Isso, no entanto, não significa que sua essência seja retributiva, mas sim que seus componentes de finalidade preventivo-geral restariam frustrados se motivassem a comissão de fatos delitivos em vez de reprimi-los. O castigo é uma censura ético-social que estabelece deveres, mas isso também não torna a pena essencialmente retributiva ou causadora de um mal, porque da desaprovação de uma conduta pode derivar-se a consequência de que sua futura evitação tem uma influência ressocializadora.[56]

Na teoria preventiva mista, Roxin resgata da teoria retributiva o princípio da culpabilidade como meio de limitação da pena. A quantidade de pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, ainda que interesses de tratamento, segurança ou intimidação revelem como desejável uma prisão mais prolongada, sob pena de atentar contra a dignidade da pessoa. Prevalece o interesse de liberdade do condenado, pois a culpabilidade exerce aqui uma função liberal totalmente independente da retribuição.

O princípio da culpabilidade é o meio mais liberal e mais propício para a restrição da coerção estatal, porquanto o grau de culpabilidade é determinado por fatores internos da pessoa do autor. Pela dimensão dos danos ocasionados, é possível contrapor eficazmente as exigências preventivas determinadas pelos interesses da sociedade. A sensação de justiça, que tem grande influência para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que merece. Merecida é uma pena de acordo com a culpabilidade.[57]

Se a pena não pode ultrapassar o grau de culpabilidade, não significa que não possa ser inferior, desde que isso seja suficiente para o cumprimento de seu fim preventivo. Isso afasta a teoria unificadora da teoria retributiva, uma vez que a retribuição exige uma pena correspondente à ofensa causada, independentemente da necessidade preventiva.[58]

Ainda que a culpabilidade não seja demonstrável empiricamente, já que se encontra no âmbito interno do indivíduo, o recurso a ela serviria exclusivamente para estabelecer uma fronteira para a intervenção estatal necessária a partir de fundamentos preventivos. Sua aceitação é uma posição normativa que dispõe que o homem deve ser tratado pelo Estado como naturalmente livre e capaz de ser responsabilizado. Dessa forma, a legitimidade de seu reconhecimento é um meio de salvaguarda da liberdade do cidadão e independe de demonstração.[59]

A vinculação da pena com a culpabilidade também afasta as objeções de que a pena com fins preventivos trataria o particular como um meio para atingir um fim, violando sua dignidade como pessoa. É que, dentro do merecido, toda pena é imposta contra a vontade do indivíduo, de maneira que o afetado é tratado como meio para um fim que não é seu (fim preventivo-social). Isso não muda em nada o fato de que o condenado é sempre um objeto do poder coercitivo do Estado. Considerar isso inadmissível, explica Roxin, significa renunciar totalmente à pena e à coerção estatal, o que nenhum ordenamento jurídico foi capaz até hoje.[60]

A culpabilidade não pode ser substituída pela proporcionalidade, pois esta diz respeito à medida de segurança, não à pena. O princípio da proporcionalidade restringe-se a proibir o excesso no marco de duração da sanção, mas não está atrelado à dosagem do castigo conforme o fato cometido, o que só pode ser alcançado pelo princípio da culpabilidade.[61]

Portanto, como sustenta Figueiredo Dias, as finalidades preventivas geral e especial devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até o limite possível, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.[62]

6. Considerações finais

O fundamento da pena sempre foi o de preservar o bem-estar da coletividade.

Na teoria absoluta, a pena não possuía nenhuma finalidade social. Era mera retribuição pelo mal causado pelo delito. O castigo serviria de exemplo. Contudo, este castigo devia ser diretamente proporcional à conduta praticada pelo delinquente. Eis aqui, portanto, uma primeira delimitação do poder punitivo estatal, na medida em que a pena justa seria aquela limitada pela culpabilidade. Sua atuação sobre o próprio delinquente, porém, é algo inconcebível, pois acreditava-se na aceitação da punição como uma compensação pela prática do fato, o que não encontra qualquer fundamento empírico. Assim, a pena nesta perspectiva limitar-se-ia a legitimar a vingança, já não mais pelas mãos do próprio ofendido, mas agora pela intervenção do Estado.

O advento das teorias relativas está associado ao avanço da ciência, com o deslocamento do objeto de estudo do crime para o criminoso. A pena passa a levar em conta a periculosidade do agente para promover a defesa social.

A perspectiva prevencionista enxerga na pena a possibilidade de desestimular o agente do cometimento de futuros delitos. Na prevenção especial, o foco é convencer o próprio delinquente de que não é conveniente delinquir. Na vertente negativa, o propósito da pena é simplesmente neutralizar o delinquente. Num viés positivo, seu objetivo será (re)integrá-lo na sociedade. Ao passo que tais teorias começaram a se preocupar com o delinquente como sujeito de direitos fundamentais, esqueceram de impor limites para a dosagem da pena, já que esta deverá ser suficiente para atingir a finalidade de ressocialização, algo que ainda não se sabe como promover.

Na prevenção geral, de outro lado, busca-se influenciar toda a comunidade pela efetiva execução da pena, a qual exerce um papel político-criminal de atuação psíquica sobre os cidadãos. Seu fim pode ser tanto a mera intimidação pela aplicação da lei (prevenção geral negativa) – cumprindo sua finalidade ante a criação de um receio de penalização –, como o reforço da confiança na validade, força e vigência do ordenamento jurídico violado pelo delito (prevenção geral positiva). A aplicação da pena levaria a população a atuar conforme o direito, a confiar na Justiça e a tranquilizar-se.

Mesmo para os delinquentes que não correm o risco de reincidir, a pena seria necessária para evitar a imitação pelos demais membros da sociedade. O Direito Penal passa a ser visto como instrumento para a solução de problemas sociais. Esta teoria acaba valendo-se de suposições psicológico-sociais e também não impõe parâmetros de limitação da pena, o que implica violação da dignidade da pessoa humana. Porém, como acentúa Antón Oneca,

“Además es intimidación, ya que actúa como instrumento educador sobre las conciencias más rudas, y como medio de que el Estado dispone para el mantenimiento del orden jurídico, del que todo individuo es posible infractor. Y finalmente es satisfacción a la víctima y a los círculos a ella inmediato, donde la infracción a la norma tuvo mayor repercusión”.[63]

As teorias unificadoras congregam elementos retributivos e preventivos (tal como ocorre no Brasil), partindo do princípio de que nenhuma delas pode determinar isoladamente os limites da pena. Roxin prega a desconsideração de qualquer abordagem retributiva da pena, focando-se em aspectos preventivos especiais e gerais, que ressaltam finalidades socialmente úteis para a punição. Defende sua teoria unificadora preventiva, argumentando que a imposição da pena não implica a violação da personalidade do condenado, mas contribui para o seu desenvolvimento.

Quando for desnecessária a finalidade preventiva especial (casos em que não houver risco de reincidência) ou esta não demonstrar sua efetividade (casos em que o condenado não colaborar para a ressocialização), ainda assim a pena cumprirá sua função por meio da prevenção geral.

O problema é que prevenção especial e prevenção geral demandam quantias diversas de pena, dadas as suas distintas finalidades. Neste caso, Roxin considera que elas devem ser sopesadas no caso concreto, para que ambas não acabem se anulando. Em tese, na cominação legal das penas estará presente a prevenção geral. Contudo, na execução, prevalecerá a prevenção especial. Essa distinção não é perfeita e demanda a ponderação por parte do julgador para que a pena não perca os seus fundamentos.

Roxin não enxerga uma essência retributiva na pena. Ainda que possa caracterizar um mal, este mal essencialmente visa a um bem, que seria a evitação do crime e a ressocialização do delinquente. Toda pena estatal é imposta contra a vontade do indivíduo, mas isso por si só não violaria sua dignidade. Considerar inadmissível que o delinquente seja tratado como objeto do poder coercitivo do Estado equivale à deslegitimação total da pena.

O resgate do princípio da culpabilidade, que verifica aspectos internos do autor, se dá com a finalidade de dosar a pena, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda que não possa ser cientificamente determinável, o recurso a ele se daria como uma posição normativa de resguardo do cidadão, a fim de estabelecer a fronteira da intervenção estatal necessária.

Nenhuma das finalidades preventivas da pena poderia sobrepor-se ao interesse de liberdade do condenado, que não perde seu status de cidadão ou pessoa ao ser preso. Isso se dá em respeito ao Estado democrático de Direito, que não admite um castigo superior ao merecido de acordo com a culpabilidade do agente. Nada obstante, ainda que a pena deva respeitar o limite máximo da culpabilidade, poderá ser inferior, desde que isso seja o bastante para atingir suas finalidades preventivas. Este aspecto afasta a mera retribuição como fim da pena.

Portanto, a teoria unificadora preventiva, capitaneada por Roxin e outros, avança na tentativa de expurgar da pena um fim retributivo e reconhecer a prevalência das garantias fundamentais do condenado sobre qualquer finalidade. No entanto, a despeito de considerar que o condenado é, sem dúvida, um objeto da coerção estatal, continua enxergando na imposição da pena finalidades construtivas, no sentido de efetivamente poderem constituir-se nos fundamentos do jus puniendi.

Defensor das penas alternativas, Roxin ainda julga válidas as penas privativas de liberdade para alguns delitos, fazendo uma diferenciação pouco precisa de até que ponto elas são efetivamente necessárias e de como aferir essa necessidade. Por certo, a culpabilidade constituiu-se num vetor normativo historicamente delimitador da dosagem da pena. Porém, é preciso reconhecer que este parâmetro não obteve sucesso na prática forense (ao menos quando analisamos a realidade brasileira e de outros países latino-americanos), o que, em realidade, acabou atribuindo um poder discricionário muito amplo ao julgador, culminando naquilo que hoje pode-se denominar de “ditadura do Poder Judiciário”.

O que se verifica é que a imposição da pena acaba sendo um ato muito mais político que propriamente jurídico. Nesse sentido, as finalidades preventivas acabam se constituindo em meros argumentos retóricos ou demagógicos para o que realmente representa a pena, ou seja, a imposição de um mal pelo Estado como retribuição por outro mal praticado. Logo, não se consegue com esta explicação romper com o ciclo de violência, muito menos é possível falar em real restabelecimento da “paz social” ou da “ordem pública”. Para tanto, é preciso partir para outras abordagens que avancem nesta discussão, a exemplo da teoria agnóstica, segundo a qual a pena seria um ato político de negação da vingança e o Direito passaria a atuar como limitador da política.

Referências

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Carlo Velho Masi

Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal) e em Ciências Penais pela PUC-RS. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP) e Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Advogado criminalista.

[1] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. São Paulo: RT, 2007. t. 1, p. 44.

[2] Ferrajoli, Luigi. El derecho penal mínimo. Trad. Roberto Bergalli. In: Bustos Ramírez, Juan (Dir.). Prevención y teoría de la pena. Santiago de Chile: Editorial Jurídica ConoSur, 1995. p. 25-48, especialmente p. 38. O autor explica que “Es por esto que cada vez que un juez aparece animado por sentimientos de venganza, o parciales, o de defensa social, o bien el Estado deja un espacio a la justicia sumaria de los particulares, quiere decir que el derecho penal regresa a un estado salvaje, anterior al nacimiento de la civilización”.

[3] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de la 2.ª edición alemana por Diego-Manuel Luzón Pena et al. Barcelona/Madrid: Civitas, 1997. t.1, p. 81.

[4] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 44.

[5] Mir Puig, Santiago. Política criminal y reforma penal. Madrid: EDISOFER, 2007.

[6] Carnelutti, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Pillares, 2009.p. 103.

[7] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 45.

[8] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 82-83.

[9] Idem, ibidem, p. 84.

[10] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 83.

[11] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 84.

[12] Idem, ibidem, p. 84.

[13] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 48.

[14] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 85.

[15] Roxin, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal.Valencia:Tirant lo Blanch,2000.

[16] Prado, Geraldo. Da lei de controle do crime organizado: crítica às técnicas de infiltração e escuta ambiental. In: Wunderlich, Alexandre (Org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 125-137.

[17] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 49.

[18] Idem, ibidem, p. 49.

[19] Idem, p. 46.

[20] Prado, Luis Régis; Bitencourt, Cezar Roberto. Elementos de direito penal: parte geral. São Paulo: RT, 1996.

[21] Batista, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 45.

[22] Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 38.

[23] Costa, Fausto. El delito y la pena en la Historia de la filosofía. México: UTEHA ,1953. p. 153.

[24] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 54.

[25] Hirsch, Hans Joachim. El derecho penal y procesal penal ante las nuevas formas y técnicas de criminalidad. In: Hirsch, Hans Joachim. Obras completas. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2000. p.67 ss.

[26] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 84-85.

[27] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 54.

[28] Antón Oneca, José. La prevención general y la prevención especial en la teoría de la pena. In: Hirsch, Hans Joachim. Obras completas. Santa Fé/Argentina: Rubinzal-Culzoni, 2003. p. 58-60.

[29] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 87.

[30] Idem, ibidem, p. 88.

[31] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 82.

[32] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 89.

[33] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 90.

[34] Liszt, Franz von. Tratado de direito penal allemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C, 1899. p. 99 e ss.

[35] Hassemer, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal? In: Hefendehl, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 99.

[36] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 79.

[37] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 90.

[38] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 91.

[39] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 50-51.

[40] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 91.

[41] Hassemer, Winfried. Desenvolvimentos previsíveis na dogmática do direito Penal e na Política Criminal. Revista Eletrônica de Direitos Humanos e Política Criminal, Porto Alegre, n. 2, abr. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2012, p.6.

[42] Carrara, Francesco. Programa de derecho criminal: parte general. Trad. Ortega Torres. Bogotá: Temis, 1956.  §§ 615-616.

[43] Welzel, Hans. Derecho penal aleman. Trad. Juan Busto Ramírez e Sergio Yánez Pérez. 4. ed. Santiago: Jurídica de Chile, 1997. p. 5.

[44] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 92.

[45] Idem, ibidem, p. 93.

[46] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 53.

[47] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 61.

[48] Convém salientar que, no Brasil, após a reforma da Parte Geral do Código Penal e a edição da Lei de Execução Penal, em 1984, o legislador pátrio adotou expressamente uma dupla finalidade retributiva e preventiva geral da pena, no momento da sentença (art. 59 do CP), e deu maior atenção à prevenção especial – reintegração social – no momento da execução (art. 1º da LEP).  O forte apelo intimidatório (prevenção geral negativa) conferido à pena reflete-se nas inúmeras leis editadas nas últimas décadas, das quais a Lei dos Crimes Hediondos (n. 8.072/1990) é a mais representativa, sempre aumentando as penas ou criando maiores restrições à progressão de regime prisional. Em outra perspectiva, o adevento da Lei dos Juizados Especiais Criminais (n. 9.099/1995), teve uma finalidade eminentemente retributiva, de reparação do dano, exaltando a figura da vítima.

[49] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 94.

[50] Idem, ibidem, p. 95.

[51] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 78.

[52] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 95-96.

[53] Idem, ibidem, p. 97.

[54] Idem, p. 96-97.

[55] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 98.

[56] Idem, ibidem, p. 99.

[57] Idem, p. 100.

[58] Roxin, Claus. Derecho penal: parte general cit., p. 101.

[59] Idem, ibidem, p. 101.

[60] Idem, p. 102.

[61] Idem, p. 103.

[62] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral cit., p. 79.

[63] Antón Oneca, José. La prevención general… cit., p. 78.

Artigos
Responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos Estados Unidos e no Brasil
Data: 24/11/2020
Autores: Carlos Henrique da Silva Ayres

Resumo: Este artigo aborda a proibição do uso de máscaras e afins em manifestações públicas, assim como o poder conferido às polícias para reprimir essa conduta, nos termos da correlacionar a cogitada Lei estadual 15.556/2014. Sob o fio condutor da preeminência dos direitos fundamentais, tônica do Estado Democrático de Direito, e de considerações com pretensão crítica, procura correlacionar a cogitada vedação com a perspectiva do garantismo penal de Ferrajoli, notadamente a diretriz que preconiza a minimização do poder punitivo estatal e a maximização da liberdade dos cidadãos.

Palavras-chave: máscaras; manifestações; Lei 15.556/2014; garantismo.

Abstract: This paper discusses a ban on the use of masks in public demonstrations, as well as the power given to the police to suppress such conduct under State Law 15.556 /2014. Under the guiding principle of the primacy of fundamental rights, main characteristic of democratic state of law, and supposed critical point of view, this paper seeks to correlate the ban of use of masks with the prospect of so called ‘Legal Garantism Theory’, formulated by Ferrajoli, notably the theoric guideline that calls for the minimization of state punitive power and maximizing the freedom of citizens.

Key-words: masks; public demonstrations; Law 15.556/2014; garantism theory.

Sumário:Introdução – 1. A Lei 15.556/2014: crônica de uma morte anunciada – 2. A conduta – 3. Novas velhas incumbências das polícias – 4. Vedar para garantir? 5. Punitivismo: quosque tandem? (até quando?) – 6. Garantismo penal – Conclusão – Referências bibliográficas.

Introdução

Manifestações públicas ocorridas no Brasil a partir de junho de 2013 firmaram, muitos quiseram crer, salutar início de nova era no exercício da cidadania brasileira, talvez a da efetivação dos direitos, de acordo com Bobbio.[1] De um panorama de difuso descompromisso com os assuntos políticos, por generalizada negligência quanto à res publica, muitos brasileiros passaram a agir de forma inédita, ao menos na história recente deste país. Milhares às ruas a gritar, a plenos pulmões, que as coisas não iam bem.

Na multidão, também, apresentaram-se mascarados, pessoas que logo passaram a ser associadas às práticas de crimes no desenrolar das manifestações públicas, mote para toda a sorte de críticas.

Entre elas, apresentaram-se, é claro, punitivistas, reunidos por discursos de senso comum teórico, a clamar, segundo a praxe, punições; punições penais. Perspectiva que não se compadece com diretrizes do Estado Democrático de Direito, que preza substancialmente o valor superior liberdade.

Esse é o assunto que anima este breve articulado: a correlação entre liberdade e poder punitivo estatal, no contexto da proibição do uso de máscaras e afins em manifestações públicas.

1. A Lei 15.556/2014: crônica de uma morte anunciada

Em 29 de agosto de 2014, deu-se a publicação da Lei estadual 15.556:[2]

“Art. 1.º O Estado garantirá, nos termos dos incisos IV e XVI do art. 5.º da Constituição Federal, a qualquer pessoa o direito à manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, e a reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente, na forma desta lei.

Art. 2.º Na manifestação e reunião a que se refere o art. 1.º, com o objetivo de assegurar que ninguém a faça no anonimato, fica proibido o uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça a sua identificação.

Parágrafo únicoA proibição a que se refere o “caput” deste artigo não se aplica às manifestações e reuniões culturais incluídas no Calendário Oficial do Estado.

Art. 3.º À proibição constitucional de portar armas nas manifestações e reuniões públicas, incluem-se as de fogo, as armas brancas, objetos pontiagudos, tacos, bastões, pedras, armamentos que contenham artefatos explosivos e outros que possam lesionar pessoas e danificar patrimônio público ou particular.

Art. 4.º As manifestações e reuniões em locais e vias públicas, inclusive organizadas através das redes sociais, na Internet, conforme previsão constitucional, deverão ser previamente comunicadas às Polícias Civil e Militar, na forma de regulamento expedido pela Secretaria da Segurança Pública.

Art. 5.º Para a preservação da ordem pública e social, da integridade física e moral do cidadão, do patrimônio público e particular, bem como para a fiel observância do cumprimento desta lei, as Polícias Civil e Militar efetuarão as devidas intervenções legais.

Art. 6.º Esta lei deverá ser regulamentada até 180 (cento e oitenta) dias após a sua publicação.

Art. 7.º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Do que de imediato interesse ao presente estudo, destacam-se dois dados da Lei estadual 15.556/2014: 1) a proibição de uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça sua identificação – art. 2.º – e 2) a incumbência das polícias civil e militar de efetuar as devidas intervenções legais para o cumprimento da lei – art. 5.º.

Antes, porém, de examiná-los, necessário apontar circunstâncias que antecederam sua edição.

A aprovação dessa Lei esteve intimamente ligada a manifestações públicas ocorridas em vários Estados do Brasil a partir de junho de 2013, motivadas, de início, contra o aumento dos valores das tarifas do transporte público.

Agregaram-se, após, outras demandas sociais, adstritas à efetivação de políticas públicas, com a repressão, em regra, das polícias. Truculência, violência e violação de direitos humanos constituíram respostas imediatas ofertadas pelo Estado às palavras de ordem que ecoaram pelas ruas deste País, verdadeira “estratégia do medo”, segundo relatório da Anistia Internacional.[3]

Apesar da larga repressão à sociedade civil como um todo, as manifestações prosseguiram, até o momento em que a mídia passou a noticiar a prática de crimes no desenrolar das manifestações, por indivíduos mascarados:

“Mascarados depredam ônibus e entram em confronto com a PM de Salvador” – Folha de S. Paulo, 07.09.2013;[4]

“Mascarados aterrorizam centro com saques e ataques a policiais” – Estadão, 19.06.2013;[5]

“Mascarados entram em confronto com a PM após ato de professores” – O Globo, 15.10.2013;[6]

“Sem policiamento, grupo mascarado promove onda de vandalismo em BH” – O Estado de Minas, 18.06.2013.[7]

Vale observar que, até então, havia discurso das autoridades públicas mais ou menos homogêneo no sentido de concordarem com a legitimidade das pautas das manifestações, talvez por anteverem oportunas plataformas eleitorais para a campanha seguinte.

Todavia, com o suposto atuar dos mascarados, despontou, no horizonte político, raio oportuno, a sobrepujar a urgência de um debate sincero de toda a sociedade brasileira sobre tudo o que acontecia, pela busca da criminalização de um novo inimigo, o mascarado, ou, por via reflexa, o movimento social.[8] Como dizia a vinheta de aclamado filme brasileiro, “o inimigo, agora, é outro”.

Em jogo, direitos e garantias fundamentais:

“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[...]

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

[...]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

[...]

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”

Em breve resumo, algo absolutamente inócuo como o uso de máscaras, em certo sentido até jocoso, tal qual o “porte de vinagre”, no específico lócus das manifestações públicas passou a ser associado à prática de condutas criminosas. Um ideal, mais ou menos velado, de que o mascarado ou praticou ou praticará crimes.

Nada que o delírio legislativo não resolva. Então, fruto de paulatino endurecimento do poder punitivo respeitante ao problema sociopolítico que subjazia as manifestações públicas, foi editada a Lei 15.556/2014, crônica de morte anunciada, destinada à repressão desse sujeito perigoso, o mascarado, alvo, igualmente, de outros Projetos de Lei, o 236/2012 e o 508/2013, os quais propõem a criminalização do “terrorismo”, atos de “vandalismo” e afins, mediante preceitos primários lacunosos, expressivos exemplos de retrocesso democrático.[9]

2. A conduta

Isso recuperado, reinveste-se nos pontos suspensos. O primeiro deles é a conduta, a proibição de uso de máscara ou objeto afim, apto a dificultar a identificação da pessoa. Tudo sob ambivalente propósito de garantir o exercício de liberdades públicas, desde que não se faça sob anonimato.

De plano, saltam aos olhos a inexistência, ao menos declarada, de sanção, lei imperfeita, segundo classificação proposta por Franco Montoro;[10] preceito ético, talvez, cujo adimplemento requer espontânea adesão, de acordo com Reale,[11] ou, diria Thoreau, em tom de desobediência civil, irresistível convite ao “direito de revolução”.[12]

Consequência, quem sabe, da rapidez na tramitação do Projeto, o 50/2014, outro exemplo de singular atecnia jurídica, fundamentado, entre outros, na busca de vedar o anonimato, dito “ato preparatório para a prática de crimes”,[13] dado, por si só, de lamentável carência dogmática, afinal, em nossa tradição jurídica, tais atos, em regra, são impuníveis.

Por isso, senão pela estrutura, a perspectiva – seria oportuno escrever “o ranço” – que presidiu a edição da lei, ao cercear direitos fundamentais, é de evidente caráter penal.

Daí ser oportuno desde já situá-la distante daquela “relação de mútua referência” entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal, referida por Figueiredo Dias, para a aferição do bem jurídico, cerne da tutela jurídico-penal. Ao menos em um país com pretensão democrática.[14]

Com efeito, tem-se evidente objeção a um estilo, ou modo de ser, dos indivíduos que usam máscaras, quadro que não se compadece, agora, sob viés dogmático, com o “caráter limitado do Direito Penal”, fragmentário, subsidiário e de intervenção mínima.[15]

Parece, assim, haver inequívoca aposta na ideia de que o “ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso”,[16] característica do Direito Penal do autor, repressivo e estigmatizador, forjado em (pres)suposta periculosidade do agente.

Quadro apresentado à sociedade, aliás, por um discurso que se encarrega de disfarçar nossa práxis: “o principal expediente é proclamar, nas leis e nas teorias jurídicas, que as pessoas são punidas pelo que fazem e não pelo que são”.[17]

Então, com algum jogo de palavras, afirma-se destinar a proibição à garantia do exercício de direitos fundamentais, notadamente liberdade de expressão, desde que não se faça sob anonimato. Como se o exercício deles dependesse da intermediação do legislador estadual para “regulamentá-los”, quando a mera enunciação “é livre...”, intuitivamente demarca limite, um dever geral de abstenção, de não ingerência, do Estado.

Assim, o mascarado, vândalo, “representado como potencialmente capaz de desenvolver práticas de dilapidação do patrimônio público e privado, para o qual se tornarão igualmente necessárias ações repressivas, particularmente da polícia militar brasileira”,[18] passou a ser considerado inimigo da sociedade brasileira, perseguido pela polícia antes mesmo de lei legitimar o ilegitimável.

3. Novas velhas incumbências das polícias

Se não bastasse a duvidosa constitucionalidade do art. 2.º da Lei estadual 15.556/2014, no art. 5.º o legislador conferira às polícias civil e militar o poder de efetuar as “devidas intervenções legais”.

Sem esclarecer o que elas seriam, legitimou, por via oblíqua, a possibilidade de policiais efetuarem conduções de “suspeitos” a delegacias de polícia, para averiguações, prática que afronta a Constituição Federal, mas suficiente à temporária neutralização de seus alvos.

Ponto que se aproxima de todo o simbolismo da ameaça ínsita à pena restritiva de liberdade, ápice da sanha punitivista, com a difusa possibilidade de contenção inconstitucional/ilegal/ilegítima de práticas mal vistas por autoridades públicas, as quais, entretanto, não encontram amparos constitucional e legal.

Basta cogitar dos episódios insistentemente noticiados pela imprensa de violência e de truculência de policiais contra mascarados e não mascarados em manifestações públicas, entre as quais o do dia 14.06.2013, referido no Editorial n. 249 do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que culminara em 232 pessoas conduzidas a delegacias de polícia, resultando, ao cabo, em apenas 4 prisões.[19]

Nada muito distante de conhecida política seletiva do sistema penal, ao vedar determinadas práticas que, realizadas em espaços públicos, são sobranceiramente reprimidas pelas polícias. Eis o fator “visibilidade da infração”, referido por Augusto Thompson, a concorrer para o reconhecimento formal, ou não, da ocorrência de dado delito pelas polícias.[20]

Isso se dá, também, com o tráfico de drogas, outro significativo exemplo de infração penal orientada pela seletividade, conforme pesquisa empírica levada a efeito por Orlando Zaccone, delegado de polícia no Rio de Janeiro.

É que a traficância, nos bairros pobres, ocorre a céu aberto, em vias públicas, distinta daquela realizada em bairros ricos, restrita a espaços privados, não sujeita à atividade policial. Dado a concorrer para o entendimento do papel fundamental das polícias na criminalização secundária dessa conduta,[21] à semelhança do cogitado uso de máscaras.

Retomando-o, certo é que, na prática, antes mesmo da aprovação da Lei 15.556/2014, a situação já havia alcançado contornos dramáticos, com a aplicação da Lei federal 7.170/1983, a Lei de Segurança Nacional, aos indivíduos mascarados surpreendidos em supostas atividades ilícitas (rectius: subversivas) em manifestações públicas.

Essa temática, aliás, foi objeto de Mesa de Debate do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, com a participação dos professores Alexis Couto de Brito e Carlos Alberto Corrêa de Almeida, em que este, ao contrário daquele, referiu entender a plena aplicabilidade dessa autoritária legislação nos dias atuais.[22]

4. Vedar para garantir?

Sem grandes esforços, então, conclui-se que os parlamentares de São Paulo, premidos por circunstâncias político-sociais a que não estão acostumados, isto é, explicitações, quase que em todos os dias do mês de junho de 2013, da desconformidade de considerável parcela da população, decidiram, conforme expuseram no Projeto de Lei 50/2014, não embaciar preceitos fundamentais:

“Não obstante os louvados propósitos que levaram milhões de pessoas às ruas em todo o País no mês de junho de 2013, entendemos que esse direito individual e coletivo de manifestar-se e reunir-se deve ser regulamentado, dentro dos próprios limites estabelecidos pela Constituição da República – que no mesmo sentido impõe deveres individual e coletivo –, com o intuito de combater excessos no uso de tal direito, que possa, eventualmente, prejudicar a esfera de direitos de um número muito maior de cidadãos.

Com efeito, nos últimos meses, as manifestações tornaram-se palco quase que exclusivo de grupos autodenominados radicais, cuja plataforma principal de reivindicação é destruir, danificar, explodir, queimar, saquear e aterrorizar. Esses grupos costumam utilizar-se de máscaras ou outros paramentos que dificultam a identificação individual. Tal comportamento, por fim, tem esvaziado as legítimas manifestações e prejudicado o direito dos demais cidadãos de bem de se manifestarem. Além, por óbvio, de deixarem rastros de pânico e destruição e, consequentemente, causando prejuízos ao erário público.”[23]

Não. Deputados estaduais, assumindo papel de intérpretes de anseios de parcela de cidadãos “de bem”, provavelmente por que se consideram também cidadãos “de bem”, enunciaram necessidade de conter excessos de outros, os “de mal”; vedar para garantir (“[...] tal comportamento, por fim, tem esvaziado as legítimas manifestações e prejudicado o direito dos demais cidadãos de bem de se manifestarem [...]”).

Perspectiva muito próxima àquilo que Giorgio Agamben expôs sobre dada tendência de se considerar o estado de exceção, pela supressão, efêmera, do ordenamento jurídico (anomia), para sua manutenção, “um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde pura violência sem ‘logos’ pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real”.[24]

5. Punitivismo: quosque tandem? (até quando?)

De fato, mediante discurso de baixa, baixíssima densidade crítica, sedimenta-se, em nossa margem periférica, conforme Zaffaroni, a perpetuação de uma tradição de desrespeito a direitos comezinhos no Estado Democrático de Direito.[25]

Com isso, por evidente, não se quer descaracterizar a necessidade do Direito Penal em um país como o Brasil, de dimensões continentais, em que problemas estruturais, não raro, deságuam no grande rio da violência.

Sustentar essa perspectiva, para além de negar, em larga medida, a capacidade de autodeterminação das pessoas, elemento fundamental de nossa tradição jurídico-penal – rotineiramente referido nas reuniões do Grupo de Estudos Avançados – GEA – seria um sonho. Um sonho como pretender aplicar, a palo seco, em terrae brasilis, o programa do abolicionismo penal, concebido em longínqua realidade social.[26]

Esse modo de examinar o problema, entretanto, não deslegitima discurso que indica a consolidação de um processo de policização por que passa a sociedade brasileira, algo muito claro, noticiado diariamente pela mídia, mas que escapa ao cidadão do vulgo, embevecido na falácia do êxito da ameaça da pena restritiva de liberdade, a prisão, “história de 200 anos de fracasso, reforma, novo fracasso e assim por diante”.[27]

De fato, “como se uma cultura punitiva de longa duração se metamorfoseasse indefinidamente”,[28] com o paulatino aumento do poder punitivo, inversamente proporcional ao âmbito de liberdade do indivíduo.

Pondera-se, então, a necessidade de se divisar uma abordagem teórica apta a ofertar, no panorama brevemente exposto, legítima correlação entre o poder punitivo estatal e a liberdade dos cidadãos. Daí a urgência de se falar em garantismo penal.

6. Garantismo penal

Como se sabe, a teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli, forjada, entre outros, na preeminência da dignidade da pessoa, propõe a diretriz de maximização dos direitos fundamentais e a minimização do poder restritivo do Estado.[29]

Notadamente no Direito Penal, âmbito no qual o “direito formal em jogo é a imunidade do cidadão a proibições e punições arbitrárias”,[30] os direitos fundamentais constituem, assim, limites substanciais à atuação estatal: “uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do bem comum”,[31] ainda que, por exemplo, consubstanciada em lei.

Daí corriqueira a menção a esferas, no Estado Democrático de Direito, do decidível e do não decídivel, enquadrando-se nesta “os direitos fundamentais, funcionando como ‘verdadeiro marco divisório, impeditivo do avanço do legislativo’”.[32]

Oportuno, agora, correlacionar tais diretrizes teóricas à vedação do uso de máscaras, prevista na Lei estadual 15.556/2014.

Consoante referido no item anterior, a proibição do uso de máscaras em manifestações públicas proporciona minimização de direitos fundamentais – como liberdade e liberdade de expressão – e a maximização do poder repressivo do Estado, subversão do programa garantista.

De fato, pela enunciação de suposto objetivo declarado de propiciar o exercício de liberdades públicas, o legislativo de São Paulo aprovou lei que constitui claro exemplo de uma política criminal punitivista, orientada para a contenção de nicho específico da sociedade brasileira, o “mascarado”.

Dando-lhe o predicativo de inimigo, possibilita intervenções das polícias, deixa para a prática das famigeradas conduções para averiguação, evidente retrocesso jurídico-legal, ainda mais em um país que passou por recente período de ditadura militar.

Não há pretensão de democracia na contemporaneidade que se mantenha diante de atuações estatais as quais, paulatinamente, derrocam direitos fundamentais, no caso em voga, sob a alegação de proteção de preceito constitucional outro, a vedar o anonimato, mas que não encontra amparo, como visto, em premissa essencial do Estado Democrático de Direito, logo, do garantismo penal, a contenção do poder punitivo estatal.

Conclusão

Este pequeno artigo teve como mote a Lei 15.556/2014, do estado de São Paulo, que proibiu o uso de máscaras e afins em manifestações públicas, assim como conferiu às polícias o dever de realizar as ditas intervenções necessárias.

Vedação levada a efeito sob argumentos diversos, oportunamente abordados, convergentes, consoante se referiu, para a punibilidade de um modo de ser, ou, por via reflexa, de movimentos sociais, muito distantes do postulado essencial do bem jurídico-penal.

Houve também ensejo para referência a certa perspectiva de estado de exceção, proposta por Agamben, em que há subversão do Estado Democrático de Direito, sob subterfúgio de alcançar-se sua manutenção. Um descalabro, ao qual, de certa forma, não se está distante.

Após, foram declinadas, em continuidade, nuanças do punitivismo que grassa o Brasil, país periférico em que há larga tradição do aumento do poder punitivo do Estado, à proporção que é mitigada a liberdade dos indivíduos.

Então, deu-se correlação desse panorama com premissa do garantismo penal, na proposta de Ferrajoli, que prega justamente o contrário: a maximização da liberdade dos cidadãos e a minimização da ingerência estatal na vida das pessoas, ainda mais mediante o gravoso instrumental das agências criminais, tônica de verdadeiro estado policialesco.

Ao fim, conclui-se pela total desconformidade da Lei 15.556/2014 do estado de São Paulo com proposta do garantismo penal, eis que atentatória a liberdades públicas, ínsitas ao âmbito do não decidível, impassível de ser agravada pela atividade estatal da forma como proposta.

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Bruno Almeida de Oliveira

Pós-graduando em Direito Penal Econômico e em Direitos Fundamentais - IBCCRIM/Universidade de Coimbra. Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia - Instituto de Criminologia e de Política Criminal – ICPC/ UNINTER.

[1] Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 64.

[2] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2014/lei-15556-29.08.2014.html>.

[3] Disponível em: <http://www.amnesty.org/fr/library/asset/AMR19/005/2014/fr/a24cd3fa-c32f-4e28-984a-d57dab154532/amr190052014pt.pdf>.

[4] Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/09/1338690-mascarados-depredam-onibus-e-entram-confronto-com-a-pm-em-salvador.shtml>.

[5] Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,mascarados-aterrorizam-centro-com-saques-e-ataques-a-policiais-imp-,1044082>.

[6] Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mascarados-entram-em-confronto-com-pm-apos-ato-de-professores-10369804>.

[7] Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/06/18/interna_gerais,408266/sem-policiamento-grupo-mascarado-promove-onda-de-vandalismo-no-centro-de-bh.shtml>.

[8] Gohn, Maria da Glória. As manifestações de junho de 2013 no Brasil no contexto da democracia. MPD Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, n. 41, p.25-26, fev. 2014.

[9] IBCCRIM. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Editorial – Manifestações, legislação penal e Constituição. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 22, n. 258, p.1, maio 2014.

[10] Montoro, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: RT, 2008. p. 392.

[11] Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 44.

[12] Thoreau, Henry David. A desobediência civil. Trad. Sérgio Karam. São Paulo: L&PM, 2010. p. 11.

[13] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1188705>.

[14] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal. São Paulo: RT, 2007. t. I, p. 120.

[15] Toledo, Francisco Assis de. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 14.

[16] Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2011, p. 110.

[17] Batista, Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 169.

[18] Lima, Roberto Kant de. Manifestações populares e as recorrentes formas de administrar conflitos entre juridicamente desiguais. MPD Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, n. 41, p.31-32, fev. 2014.

[19] IBCCRIM. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Editorial – As manifestações da sociedade civil e a repressão policial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 21, n. 249, p.1, ago. 2013.

[20] Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 60/64.

[21] D’Elia Filho, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 11-26.

[22] Mesa de Estudos e Debates “movimentos sociais e a lei de segurança nacional: análise crítica”, em 08.04.2014. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/tv_ibccrim_video/145-Movimentos-sociais-e-a-Lei-de-Segurana-Nacional-Anlise-Crtica> – V. a partir de 28’ 41’’.

[23] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1188705>.

[24] Agamben, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 63.

[25] Zaffaroni, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: 1988. p. 61.

[26] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Rio de Janeiro: Revan, 1993. p. 90.

[27] Santos, Juarez Cirino dos. 30 anos de vigiar e punir (Michel Foucault). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, p. 289-298, jan.-fev. 2006.

[28] Batista, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 113

[29] Ticami, Danilo. Breves delineamentos acerca do garantismo penal. In: Brito, Alexis Augusto Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (Org.). Cadernos de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012.

[30] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p. 688.

[31] Carvalho, Salo de; Carvalho, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 19.

[32] Rosa, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como “bricolage” de significantes. Tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do Paraná, 2004. p. 92.

Artigos
A teoria do incremente do risco e os elementos estruturantes do ilícito-típico culposo
Data: 24/11/2020
Autores: Daniel Leonhardt dos Santos e Letícia Burgel

Resumo: Busca-se, no presente artigo, verificar a forma pela qual o resultado é imputado nos crimes culposos, por meio da utilização de critérios normativos da teoria do incremento do risco, desenvolvida por Roxin. A proposta consiste na análise dos fundamentos e da possibilidade de recepção da teoria do incremento do risco ao ordenamento jurídico-penal brasileiro, questionando a possibilidade de imputação do resultado nos casos em que não é certo, mas apenas provável ou possível, que o comportamento alternativo conforme o direito evitaria o resultado.

Palavras-chaves: Teoria do incremento do risco; crimes culposos; princípio da confiança.

Abstract: This article has as its goal analyze how the result is imputed in the negligent crimes through the normative criteria of the “Risikoerhöhungstheorie”, developed for Roxin. The proposal consists in the review of the fundamentals of the theory, and also to analyze the possibility of reception of this theory by the Brazilian criminal law, questioning the possibility of imputation of the result when it is not secure, but just possible, that an alternative behavior according to the law would avoid the damage.

Keyword: Increased risk theory; negligent crimes; trust principle.

Sumário: 1. Introdução – 2. A teoria do incremento do risco de Roxin (Risikoerhöhungstheorie) – 3. Fundamentos da teoria do incremento do risco (Risikoerhöhungstheorie) de Roxin – 4. Apontamentos críticos à teoria do incremento do risco – 5. A impossibilidade de recepção da teoria do incremento do risco pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro – 6. Os elementos estruturantes do ilícito-típico culposo – 7. Conclusões – 8. Referências.

1. Introdução

A presente pesquisa tem por objetivo analisar a forma pela qual o resultado é imputado nos crimes culposos, por meio da utilização dos critérios normativos da teoria do incremento do risco (Risikoerhöhungstheorie), desenvolvida por Roxin. A delimitação do problema centrou-se na busca dos possíveis equívocos dogmáticos da teoria do incremento do risco, bem como nas consequências de sua aplicação, procurando analisar a possibilidade de sua recepção pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro, verificando a (in)existência de conformidade entre eles.

A escolha da temática se deu em razão da grande discussão dogmática acerca da teoria do incremento do risco, a qual tem sido objeto de inúmeras críticas de renomados doutrinadores. Diante do exíguo número de estudos realizados a respeito desse tema em nosso país, mostrou-se academicamente interessante o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado a respeito do tema, especialmente no que tange a sua recepção pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro.

A teoria do incremento do risco (Risikoerhöhungstheorie) foi desenvolvida por Roxin mediante estudo de casos julgados pelo Supremo Tribunal alemão (Bundesgerichtshof). De acordo com essa teoria, nos casos em que não for possível determinar, com probabilidade próxima à certeza, que o risco criado pelo autor acarretou o resultado, ele deverá ser responsabilizado na hipótese de que um comportamento alternativo conforme ao direito poderia, possível ou provavelmente, ter evitado a ocorrência do evento. Nesses casos, o agente é responsabilizado pelo resultado apenas pelo fato de ter ultrapassado o risco permitido, aumentando a possibilidade de sua concreção, não sendo necessário verificar se a ação foi decisiva para a sua produção. [1]

A partir do estudo da teoria do incremento do risco, surgiram diversos questionamentos, dentre eles, se deve ser imputado ao agente um resultado que, mediante uma conduta conforme o direito, haveria sido evitado, não com segurança, mas possível ou provavelmente. [2] Diante desse questionamento, outros se sucederam no que tange aos aspectos dogmáticos da teoria do incremento do risco.

2. A teoria do incremento do risco de Roxin (Risikoerhöhungstheorie)

O paradigmático “caso do ciclista”, [3] julgado pelo Supremo Tribunal alemão (Bundesgerichshof) em 1957, criou a possibilidade de se auferir responsabilidade penal mediante o emprego de cursos causais hipotéticos. Assim, surgiu o critério da “conduta alternativa conforme o direito” como uma tentativa de delimitar a utilização de cursos causais hipotéticos. [4]

Esse critério é utilizado pela doutrina como um mecanismo para verificar a existência de uma relação específica entre a conduta e o resultado, a qual é chamada de nexo de causalidade da infração de dever. Busca-se verificar, por meio de um juízo hipotético, a possibilidade de causação do mesmo dano mediante uma conduta alternativa correta. Assim, questiona-se, ante uma ação imprudente, se o agente deverá responder ainda que a lesão não teria, possível ou provavelmente, sido evitada caso ele tivesse se comportado corretamente. [5]

No âmbito da doutrina, Roxin é o protagonista na discussão sobre esse tema nos últimos 30 anos. Para ele, há três circunstâncias que dão unidade a todos esses casos: o acusado não se comportou de forma correta; existe uma duvidosa relação de causalidade entre a ação e o resultado; e o dano também poderia ser produzido se o agente tivesse se comportado de forma correta. [6]

Contudo, é importante salientar que nem todo o cálculo hipotético é relevante para o tipo, pois nem toda a conduta defeituosa hipotética de um terceiro, ou da própria vítima, tem utilidade para explicar a realização do risco. Assim, segundo Feijóo Sánchez, somente será relevante para a imputação do resultado o cálculo hipotético relacionado com o cumprimento de certas normas de cuidado e com o risco permitido. De acordo com o autor, a conduta alternativa conforme o direito nada mais é que “a conduta efetivamente realizada sem considerar os dados que fundamentam a infração do dever de cuidado”. [7]

Para o autor, a raiz material do problema das condutas alternativas adequadas ao direito consiste na possibilidade de verificar se o resultado é a realização do risco não permitido (da infração do dever), não sendo coincidência o fato de que os casos objetos de reflexão estejam no âmbito de subsistemas em que, ainda que o agente aja com o devido cuidado, sempre haverá um resquício de risco considerável, sendo, em algumas ocasiões, difícil delimitar em que ponto começa, de fato, o risco não permitido. Com o critério das condutas alternativas conforme o direito pretende-se, na verdade, combater a ideia de que o criador de um risco não permitido responde não somente pelo risco típico por ele desencadeado, mas também por outros riscos permitidos que tenha criado ou favorecido. [8]

Uma das críticas feitas à utilização de condutas alternativas de acordo com o direito, como critério para determinar a realização do resultado, é no sentido de que não é necessário acudir a nenhum comportamento hipotético que não tenha ocorrido na realidade para determinar se o risco não permitido se integralizou no resultado. Todos os casos que se tentou resolver por meio da aplicação desse método se solucionam da mesma forma, pois, do ponto de vista do tipo, não há a realização do risco típico, mas de um risco permitido ou residual acompanhante, ou seja, o risco permitido, o que, por si só, explicaria a ocorrência do dano, independentemente da conduta transgressora do dever. [9]

3. Fundamentos da teoria do incremento do risco (Risikoerhöhungstheorie) de Roxin

Em 1962, tendo em consideração o julgamento pelo Superior Tribunal alemão (Bundesgerichshof) do conhecido “caso do ciclista”, Roxin desenvolveu a chamada teoria do incremento do risco (Risikoerhöhungstheorie). De acordo com essa teoria, nos casos em que não for possível determinar, com probabilidade próxima à certeza, que o risco criado pelo autor acarretou o resultado, ele deverá ser responsabilizado na hipótese de que um comportamento alternativo conforme ao direito teria, possível ou provavelmente, evitado a concretização do dano. Nesses casos, para que haja imputação, é necessário apenas que o agente ultrapasse o risco permitido e aumente a probabilidade de ocorrência do evento danoso, não sendo preciso verificar se o risco por ele criado foi determinante para a produção do resultado. [10]

Nas hipóteses de dúvida em que é possível, mas apenas possível, que o resultado seja produzido por meio de uma conduta conforme a prescrita pelo direito, o tratamento jurídico dessas situações não depende da relação de determinação entre o perigo e o dano, mas exclusivamente do fato de saber se uma conduta conforme o dever diminuiria, de modo relevante, o risco de produção do resultado. [11] Assim, se fosse possível verificar com segurança que o resultado ocorreria da mesma forma, independentemente de o autor atender ao dever de cuidado, não se poderia falar em imputação pela não realização do risco não permitido. No entanto, no “caso do ciclista” não há essa certeza. [12] Nesse caso, não é possível verificar com certeza a permanência do resultado danoso (morte) na hipótese de um comportamento diverso conforme o direito por parte do caminhoneiro, e, assim sendo, segundo a teoria do incremento do risco, ele deverá responder pela morte do ciclista. [13]

De acordo com Roxin, para que possamos reconhecer se uma violação do dever de cuidado, a qual segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente, faz-se necessário “examinar qual a conduta que não poderia ser imputada ao agente como violação do dever, de acordo com os princípios do risco permitido, comparando-se a conduta conforme o direito à forma de atuar do autor”. [14] Comprovando-se, então, que a ação do agente aumentou a probabilidade de produção do resultado, ele deverá ser punido a título de crime negligente. Afinal, segundo Roxin, seria completamente errado supor que a produção de um resultado mediante uma ação que implica um risco maior, não permitido, ficaria impune apenas porque o resultado seria produzido na hipótese de uma ação cuidadosa. [15]

Como nos demais casos de realização do risco, a sua valoração se dá sob uma perspectiva ex post, pois corresponde ao desvalor do resultado. Assim, devem ser levadas em conta todas as circunstâncias fáticas, mesmo as que somente posteriormente venham a ser conhecidas. Haverá imputação objetiva, portanto, quando, ex post, o risco real for maior que o permitido, pois, na concepção de Roxin, mostra-se político-criminalmente conveniente exigir apenas que a infração de dever do cuidado tenha aumentado o risco já existente de produção do resultado. [16]

Ulsenheimer, um dos autores que tem aprofundado seus estudos sobre essa teoria, afirma que os deveres de diligência têm, como finalidade preponderante, evitar a ocorrência de resultados típicos. Assim, se demonstrado que no caso concreto, ainda que respeitada a norma, o resultado produzir-se-ia da mesma forma, então está claro que a norma, neste caso, não cumpre nenhum efeito protetor. Dessa forma, segundo o autor alemão, quando, “diante das circunstâncias especiais do caso concreto, a norma não estiver cumprindo o seu efeito protetor, a lesão do dever de cuidado será irrelevante, não havendo a necessidade de imputar o dano ao autor”. [17]

4. Apontamentos críticos à teoria do incremento do risco

Em que pesem os argumentos trazidos por Roxin, a teoria do incremento do risco tem sido objeto de inúmeras críticas por renomados doutrinadores, enfrentando dificuldades de aceitação, inclusive, pelos tribunais alemães. Dentre seus maiores críticos, podemos citar Feijóo Sánchez. Segundo ele, a teoria do incremento do risco não passa de uma “manipulação dogmática” para poder punir certas “tentativas culposas”, na medida em que, com base nos critérios estabelecidos por Roxin, não é necessário verificar se o perigo criado pelo sujeito efetivamente se concretizou no dano ao bem jurídico. [18]

Para Feijóo Sánchez, a teoria do incremento do risco é inaceitável, pois não se pode converter toda e qualquer dúvida sobre a ocorrência de uma tentativa em um delito consumado apenas pelo fato de o ordenamento jurídico-penal não prever uma punição na forma tentada. Tal manobra não respeita os limites dos tipos penais, acarretando uma interpretação extensiva, a fim de garantir uma maior punibilidade. Segundo ele, se o legislador decidiu não punir a tentativa culposa, essa decisão deve ser respeitada, assim, não devemos aceitar manipulações dogmáticas para atender a fins político-criminais, sob pena de violação do princípio da legalidade. [19]

De acordo com o doutrinador, a ideia de que tudo é objetivamente previsível para quem infringe o dever objetivo de cuidado é responsabilidade objetiva pura, infringindo o princípio da culpabilidade. Não se deve conjecturar sobre o que teria acontecido se o agente não tivesse criado o risco proibido, senão determinar o que efetivamente aconteceu com o risco não permitido, e se houve consumação ou não em um resultado. Assim, não é necessário acudir a nenhum percurso lesivo hipotético que não tenha ocorrido na realidade para determinar se o risco não permitido se integralizou no resultado, basta apenas observar no caso concreto se o dano ocorreu em razão da ultrapassagem do risco permitido pelo agente. [20]

Nosso posicionamento, no entanto, difere em parte do de Feijóo Sánchez. Da mesma forma que o doutrinador espanhol, entendemos que a teoria do incremento do risco é dogmaticamente inaceitável, contudo, por motivos diversos. A nosso ver, a teoria do incremento do risco equivoca-se na medida em que converte crimes de perigo em crimes de dano, [21] afinal, para que o agente seja responsabilizado, basta apenas que ele aumente o risco de produção do resultado. No entanto, nos crimes de lesão, é necessário algo mais do que o mero incremento do risco; é fundamental que o perigo criado se concretize no dano ao bem jurídico. [22] Segundo Frisch, para que possamos falar em relação de causalidade entre o perigo proibido e o evento lesivo, deve ser possível observar no resultado a materialização do risco praticado pelo agente, de modo que, se tal nexo não for constatado, não deverá haver imputação. [23]

Jakobs sustenta que para a teoria do incremento do risco ser viável deveríamos prescindir da realização do risco e dos cursos causais hipotéticos, afinal, para que o agente responda por delito consumado, no tipo objetivo, é necessário apenas que ele tenha criado um risco de magnitude não permitida e que o resultado tenha sido produzido causalmente por meio da ação do autor. Assim, a relação de imputação estaria atrelada à ação, o resultado seria apenas uma condição objetiva da tipicidade penal. Com base nesse raciocínio, Jakobs afirma que “os delitos de resultado deveriam ser entendidos como delitos de perigo condicionados pelo resultado”. [24]

Diante disso, nota-se que Roxin incorre em uma contradição, visto que a teoria do incremento do risco se mostra incompatível com a sua própria base, isto é, com a teoria da imputação objetiva. Segundo a teoria da imputação objetiva, o resultado somente será imputável ao agente quando a sua conduta tiver criado um perigo para um bem jurídico que tenha ultrapassado o risco permitido, e esse perigo se realizar em um resultado concreto coberto pelo âmbito da norma. [25] Dessa forma, para que houvesse compatibilidade entre essas teorias seria preciso abrir mão de um dos critérios de imputação estabelecido por Roxin – a verificação do risco não permitido no resultado – pois para a teoria do incremento do risco importa apenas que o autor tenha criado um risco proibido que aumentou a probabilidade de ocorrência do dano, sendo irrelevante, para fins de imputação, a concretização do perigo no resultado. [26]

Para Koriath, a teoria do incremento do risco parte de uma ideia fundada na fórmula “evite riscos”, criando uma espécie de “teoria dos imperativos”, alheia à essência das normas jurídico-penais. O autor afirma que é impossível utilizar essa teoria com exatidão, afinal, segundo ele, não se pode acreditar em análise ex post que propõe assumir um ponto de vista totalmente objetivo e neutro, pois “se estará muito facilmente inclinado a deduzir o aumento do risco da realização do resultado, havendo, desde já, a tendência a imputar o resultado ao agente”. [27]

De acordo com Frisch, conceitos como o do incremento notável do risco, em razão de não ter uma definição, abrem uma porta ao arbítrio, deixando para ele a tarefa de determinar a aplicação justa do direito, apenas pelo fato de que por notável cada um pode representar algo distinto. Assim, ele questiona se o limite da punibilidade poderia depender de um conceito tão difuso, especialmente se não é possível esclarecer detalhadamente o fato. Nesses casos, o requisito da relação de causalidade entre a ação e o resultado, em que é preciso verificar a realização do perigo no dano, perde, em definitivo, a sua funcionalidade para fins de imputação. [28]

Para além disso, as conclusões obtidas por meio de uma operação com hipóteses são arbitrárias, pois, como regra geral, dispõe de inúmeras modalidades alternativas de comportamento permitido, com suas respectivas e distintas consequências, de modo que o resultado pode ser manipulado por meio da seleção de determinado comportamento pelo julgador. Dessa forma, a quantidade de comportamentos conforme o direito que teriam produzido do mesmo modo o resultado e a quantidade de comportamentos alternativos que o teriam evitado, estariam limitadas apenas pela imaginação do intérprete da lei. [29]

A fim de ilustrar o problema que encerra a teoria do incremento do risco trazemos o exemplo clássico do condutor de um veículo que, trafegando em uma zona urbana a 53 km/h, cuja velocidade máxima permitida era de 50 km/h, atropela um pedestre. Embora não se possa atestar com grau de certeza que o atendimento à velocidade máxima permitida evitaria o acidente, mesmo assim, utilizando os critérios da teoria do incremento do risco, ele deverá responder pelo resultado, pois a desobediência à velocidade regulamentar representaria o limite máximo de tolerabilidade do risco, cujo excesso faz emergir a responsabilização do autor pela conduta. [30] No entanto, deveria o agente responder pelo resultado mesmo quando o risco por ele criado aumenta minimamente as chances de produção? [31]

No que concerne aos delitos culposos, Prado, questiona se o critério do aumento do risco não seria, em realidade, um elemento integrante do tipo de injusto culposo, pois nesses casos o resultado somente poderia ser imputado ao agente se fosse comprovado que a sua conduta negligente, em comparação com uma conduta que observa o devido cuidado, elevou ou incrementou o risco de produção do dano. [32] Nesse sentido também se posiciona Welzel, afirmando que o tipo de injusto dos delitos culposos não é observado pelo mero nexo de condição, mas somente por aquela causa do resultado que for evitável na aplicação da diligência objetivamente imposta. Se, contudo, o resultado não teria sido evitado, ainda que observada a diligência objetiva, então o tipo de injusto do delito culposo não está cumprido, já que a observância da norma imposta pelo direito tampouco teria modificado o resultado. [33]

Herzberg afirma que ao imputar objetivamente o resultado à ação nos casos em que mesmo com um comportamento alternativo conforme o direito o resultado típico teria seguramente ocorrido, significaria fazer funcionar a dúvida contra o agente e assim violar um dos princípios do processo penal, o in dubio pro reo. [34] Roxin, ao propor a teoria do incremento do risco, pretende trazer para o âmbito da dogmática penal um problema que deve ser resolvido no âmbito do processo penal, pela utilização do princípio do in dubio pro reo. Nota-se que a presente teoria não possui utilidade dogmática, podendo, inclusive, induzir a erro, acarretando a imputação do resultado nos casos duvidosos, ao negar a aplicação do referido princípio com um intuito de evitar uma possível impunidade no âmbito dos delitos culposos. [35]

Contudo, é importante esclarecer que existem dois aspectos sobre os quais a dúvida pode pesar. Há casos em que a dúvida recai unicamente sobre a evitação do resultado, em que os adeptos da teoria sustentam que o que importa é a elevação do risco, e não saber se o resultado seria produzido da mesma forma por uma conduta alternativa conforme o direito. No entanto, muitas vezes, há dúvidas a respeito do próprio aumento do risco, o qual é o ponto nodal da teoria do incremento do risco. Assim, se a própria teoria pressupõe esse requisito (elevação do risco) para punição, o aplicador do direito não pode responsabilizar o agente quando não sabe se o elemento principal está presente, devendo absolver o autor com base no princípio do in dubio pro reo. [36]

Esses são apenas alguns dos equívocos dogmáticos que encerra a teoria do incremento do risco, a qual se funda em critérios de possibilidades, gerando, por conseguinte, uma enorme insegurança jurídica, na medida em que abre margem a um grau exagerado de subjetivismo judiciário, mormente quando analisado mediante critérios garantistas. [37]

5. A impossibilidade de recepção da teoria do incremento do risco pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro

O ordenamento jurídico-penal brasileiro adota da teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non) para determinar a relação de causalidade. [38] Segundo o texto do caput do art. 13 do Código Penal, “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. [39] De acordo essa teoria, “é causa toda a condição necessária para a produção do resultado”, [40] ou seja, a conduta deve ser “a condição indispensável para a ocorrência do evento”. [41] Em outras palavras, para que possamos falar em imputação, a ação ou omissão deve ser a conditio sine qua non do resultado. [42]

Aos nos depararmos com tal afirmação notamos que a recepção da teoria do incremento do risco pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro se mostra dogmaticamente impossível, pois para essa teoria, nos casos em que é possível, mas apenas possível, que o resultado seja produzido por uma conduta conforme à prescrita pelo direito, “o tratamento jurídico dessa situação não depende do que realmente tenha acontecido, mas exclusivamente do fato de saber se uma conduta conforme o dever diminuiria, de modo relevante, o perigo de produção do resultado”. [43] Para Roxin, não possui relevância alguma determinar se a ação ou omissão do agente foi elementar para a produção do dano, basta apenas apurar que ele agiu sem a observância das normas de cuidado e que tal fato possa ter sido a razão da concretização do resultado.

Assim, observa-se que a teoria do incremento do risco não se encaixa ao nosso ordenamento jurídico-penal, na medida em que ela propõe uma relação de essencialidade entre a ação e o resultado, de modo que o dano não ocorreria se o agente não tivesse praticado a conduta descuidada. Enquanto a teoria do incremento do risco exige apenas o nexo de aumento do risco, ou seja, que “a infração do dever de cuidado do sujeito tenha aumentado o risco já existente de produção do resultado”. [44]

Além disso, segundo Greco, a teoria do incremento do risco não se mostra sequer necessária para o ordenamento jurídico-penal brasileiro, nem mesmo em um viés político-criminal, ao passo que em nosso ordenamento há o crime previsto no art. 132 do Diploma Penal, em que é cominada uma pena à exposição da vida ou da saúde de outrem em perigo. [45] Tal norma não existe no Direito Penal alemão, assim, as lacunas existentes na teoria da evitabilidade [46] não seriam demasiado amplas no âmbito do Direito Penal brasileiro em razão do dispositivo previsto em nosso Código Penal. [47]

A relevância da causalidade para o crime culposo não reside na sua utilidade para a determinação da tipicidade objetiva, mas apenas na sua delimitação, tendo em vista que a conduta daquele que viola o dever objetivo de cuidado é tão causal como a daquele que age com a sua observância. Assim, se dois veículos colidem em um cruzamento, avançando um pela direita quando atravessava o outro que não tinha a preferencial, de imediato diremos que a conduta culposa é a de quem não tinha a prioridade de passagem, pois não respeitou a preferência do outro. Contudo, o fato de o agente ter violado um dever de cuidado não significa que ele tenha causado a colisão, ou seja, embora o motorista tenha criado um perigo não permitido, tal fato não é suficiente para imputar a ele o resultado, é necessário comprovar, por meio da causalidade, que o risco por ele criado se concretizou no dano (colisão). [48]

É por intermédio da causalidade que se pode concluir se o fazer ou não fazer do agente foi o que ocasionou a ocorrência típica. Esse é o problema inicial de toda a investigação que tenha por fim incluir o agente no acontecer punível e fixar a sua responsabilidade penal. Assim, nos moldes da teoria da equivalência das condições, faz-se mister verificar que, sem essa condição (a conduta descuidada do autor), o resultado não aconteceria da forma que ocorreu, de modo que, se eliminado mentalmente o perigo criado pelo agente, desapareceria, do mesmo modo, o dano. [49]

Pelo exposto, podemos concluir que a teoria do incremento do risco se mostra incompatível com o ordenamento jurídico-penal brasileiro, na medida em que propõe a responsabilização do agente pelo mero incremento do risco, não sendo necessário apurar a relação de essencialidade entre a ação e o resultado. Ao passo que, no sistema jurídico-penal brasileiro, a ação deve se mostrar determinante na produção do resultado, de modo que, sem ela, este não ocorreria, tendo em vista que no âmbito dos crimes culposos, o desvalor da ação (conduta negligente) não é, por si só, suficiente para determinar a imputação. É preciso, ademais, que seja possível associá-lo ao desvalor do resultado (dano). [50]

6. Os elementos estruturantes do ilícito-típico culposo

A estrutura típica do ilícito culposo diferencia-se substancialmente da tradicional concepção do tipo doloso. Nos crimes culposos, não há a punição de uma ação dirigida a um fim ilícito, como o é nos crimes dolosos, porém há a punição da “conduta mal dirigida”, não importando, necessariamente, o fim específico da conduta em questão. [51] A finalidade da ação prévia à consumação do resultado danoso diferencia-se da meta final proposta pelo agente, [52] ademais, irrelevante para a análise do tipo culposo, importando imperativamente a forma ou o meio utilizado pelo agente para chegar a esse fim. [53] A forma final da ação dirigida pelo agente corresponde a não observação da diligência devida, a inobservância do cuidado devido, materializada na lesão ou no perigo de lesão a um bem jurídico. A análise precípua do típico ilícito culposo não se adstringe à verificação do desvalor de resultado, entretanto, também, pela averiguação do desvalor da ação. Ausente esta, irrelevante para o Direito Penal aquela, visto alheio ao âmbito de tutela da norma penal. [54] Por exemplo, condutor de veículo que, respeitando as diretrizes de trânsito, atendendo ao cuidado devido, atropela, por uma fatalidade, um indivíduo. Há um desvalor de resultado, porém a ação é alheia à órbita do Direito Penal, pois o agente atendeu ao dever objetivo de cuidado. Noutro exemplo, um agente, dirigindo um veículo imprudentemente em alta velocidade, vem a lesionar um transeunte, incorre em um ilícito culposo, pois ausente o dever objetivo de cuidado e presente a previsibilidade da possibilidade de ocorrência de um fato danoso. A conduta não diligente é uma condição necessária para a consubstanciação do crime culposo. [55]

A exigência de cuidado esperado do agente é de natureza objetiva, em decorrência da necessidade de proteção dos bens jurídicos e exigida para a saudável condução da vida em sociedade. Trata-se de um “cuidado necesario para el desarrollo de uma actividad social determinada: uma persona que no pueda observarlo está obligada a abstenerse de su realización”. [56] É um conceito objetivo e normativo. É objetivo, pois “no interesa para establecerlo cuál es el cuidado que em el caso concreto há aplicado o podia aplicar el autor sino cuál es el cuidado requerido em la vida de ralación social respecto a la realización”. [57] I.e., a análise factual da conduta delituosa do agente está adstrita ao que objetivamente se espera de um “homem médio”, inserido em determinada camada social e intelectual. [58] É normativa, pois “surge de la comparación entre la conducta que hubiera seguido um hombre razonable y prudente em la situación del autor y la observada por el autor realmente”. [59]

O que é, entretanto, o homem médio? Um dos elementos estruturantes do ilícito-típico culposo consiste na aferição da conduta efetivamente praticada pelo agente e a que se esperava dele em determinada circunstância. A análise desse cuidado é objetivo e tal verificação consiste no juízo de tipicidade. [60] Como verificar, entretanto, qual o cuidado objetivo que se espera do agente em suas ações do cotidiano? A adoção de tal critério, segundo D’Ávila, seria inadmissível, pois impróprio e violador do princípio da legalidade lata e estrita. [61] Para Tavares, não é possível a invocação das figuras do “homem prudente, consciencioso e diligente”, pois são figuras pertencentes à teoria causal que remetem ao conceito de homo medius. Para o autor, “a característica da conduta cuidadosa deve ser inferida das condições concretas, existentes no momento do fato, e da necessidade objetiva, naquele instante, de estabelecer os pressupostos do perigo e da lesão do bem jurídico”. [62]

Dentro da esfera do cuidado objetivo devido situa-se o princípio da confiança, consagrado na Alemanha pelo Tribunal Supremo. Consiste esse princípio na ideia de consciência que um condutor de um veículo automotor pode ter com relação à atuação dos outros indivíduos inseridos naquele contexto, referente à observância do cuidado objetivo devido, desde que ausente alguma circunstância que, no caso concreto, possibilite pensar o contrário. Quem se comporta “de acordo com a norma de cuidado deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros; salvo se tiver razão concretamente fundada para pensar ou dever pensar de outro modo”. [63] Entende-se atualmente que o princípio da confiança, apesar de inicialmente aplicado apenas para circunstâncias que envolvessem relações de trânsito, pode ser invocado para diversos outros aspectos da vida social. [64] Exemplo contundente consiste na utilização do princípio da confiança nas relações de trabalho com divisão de tarefas, principalmente na área médica. Por exemplo, procedimento cirúrgico no qual há divisão das responsabilidades de cada médico e enfermeiro. Espera-se que cada profissional na relação proceda com o cuidado devido durante o procedimento, isentando de eventual responsabilidade os demais, caso alguém cometa um erro. Situação peculiar ocorre, entretanto, no caso de interveniente que possui especial dever de vigilância durante o procedimento médico, como o médico que assiste o residente. [65] Em tal situação, como também em face do conhecimento ou da previsibilidade da ocorrência de “erro notório” dos outros membros da equipe, impossibilitar-se-ia a aplicação do princípio da confiança. [66]

O princípio da confiança possui seu fundamento material no “princípio da autorresponsabilidade de terceiros”, i.e., os outros indivíduos na sociedade também são responsáveis por suas próprias ações – caso se comportem com descuido, tal conduta é de responsabilidade única, em princípio, a sua pessoa. Não pode o Direito Penal responsabilizar, em regra, um indivíduo pelo descuido de terceiro, pelo contrário, espera-se que os outros cidadãos comportem-se conforme os deveres de cuidado esperado. Nesse sentido, a demarcação do limite e âmbito de tal princípio estar-se-ia adstrita “em função da extensão da auto-responsabilidade de terceiro”. [67] Conforme anteriormente exposto, se um condutor de um veículo que, respeitando as regras de trânsito, atravessa uma via quando o semáforo lhe autoriza e, em decorrência da ação imprudente de terceiro, vem a colidir com este que atravessa na transversal, apenas poderíamos invocar o princípio da confiança caso o primeiro motorista estivesse agindo estritamente conforme as regras de cuidado objetivo – não poderia ser invocado tal princípio, entretanto, caso o condutor, por exemplo, excedendo o limite de velocidade, ultrapassasse o semáforo quando proibido e colidisse com outro motorista na transversal. [68]

Tavares, apesar de adepto de corrente que expõe acerca da impossibilidade de aplicação do princípio da confiança nas hipóteses de desrespeito do cuidado objetivo devido, expõe que, apesar disso, tal entendimento não pode ser aplicado de forma absoluta. Para o autor, é necessário verificar quem efetivamente produziu o resultado, i.e., “se o resultado decorreu ou não da violação ao dever de cuidado”. Dessa forma, no exemplo de um motorista que dirige embriagado, deve-se excluir “sua negligência se o acidente resultar, exclusivamente, do não atendimento do cuidado pelo outro condutor”. Para o autor, o fundamento da exclusão da responsabilidade deve-se ao “critério normativo suplementar de imputação”, que exclui a “negligência se o acidente não puder ser evitado, ainda que o motorista estivesse sóbrio”. O mesmo não poderia ser aplicado, entretanto, na hipótese de excesso de velocidade. [69]

Há uma peculiaridade, entretanto, nos chamados “riscos permitidos”. São condutas que, justificadas por seus fins lícitos, geram um risco inerente à própria atividade, como é o caso da condução de uma ambulância em alta velocidade para socorrer um paciente. Há a criação de um risco não permitido, ou a violação de um dever objetivo de cuidado, porém presente uma causa de justificação. Entretanto, conforme alerta Muñoz Conde, tal atividade, mesmo que perigosa, deve observar a precaução e a diligência devida: “[...] ya que lo que excluye la responsabilidad em estos casos no es que la actividad peligrosa esté permitida, sino que está permitida en la medida en que se realiza con la diligencia debida”. [70]

Outra importante aplicação do princípio da confiança consiste no cometimento de delitos dolosos por terceiros em decorrência de ação culposa. [71] I.e., quando, por um ato culposo, torna-se possível que outrem cometa um ilícito doloso – “entre a actuação violadora de um dever de cuidado e a verificação do resultado típico se interponha uma actuação dolosa de outrem”. [72] Em outras palavras, apenas foi possível a perpetração de crime doloso em decorrência da ação culposa de um indivíduo. Podemos aplicar o princípio da confiança, por exemplo, quando A, com a intenção de cometer suicídio, deixa, por descuido, veneno na mesa de sua sala, com o qual B utiliza para matar dolosamente C. Não poderia ser invocado tal princípio, entretanto, no caso de o indivíduo A deixar, por imprudência, uma arma carregada à exposição em local no qual os indivíduos B e C brigam ferozmente – o indivíduo B, utilizando-se da arma deixada por A, mata C. Para Dias, o critério de aplicação do princípio da confiança reside no reconhecimento da ação anterior em propiciar uma “especial aptidão para provocar o facto posterior doloso”, i.e., na criação de um “perigo intolerável de cometimento do facto doloso”. [73] O fundamento de aplicação desse princípio consiste na chamada proibição de regresso, “según la cual la cooperación no dolosa em delitos dolosos es impune”, [74] i.e., não pode a responsabilidade jurídico-penal passar dos limites impostos pela atuação em conjunto dolosa de outrem para também responsabilizar terceiro que age culposamente. [75]

Não é possível a aplicação do princípio da confiança nos chamados “deveres especiais de controle”. Em situações que envolvem, em função da especificidade, uma especial atenção de controle e cuidado do agente, não é possível a invocação desse princípio na hipótese de perpetração de uma conduta culposa de terceiro. É o caso, por exemplo, do engenheiro “encarregado de supervisão de todos os trabalhos executados em uma obra” – não é possível se esperar que os supervisionados cumpram plenamente todos os seus deveres de cuidado, pois a supervisão do superior se estende também a verificação efetiva desse cumprimento. [76]

Necessário, além da violação do cuidado objetivo devido, a produção de um resultado e o nexo causal, a previsibilidade objetiva do resultado. O cuidado objetivo devido apenas será considerado quando todas as consequências objetivamente previsíveis da ação estão presentes. I.e., por meio de um juízo ex ante é possível averiguar se determinada conduta possibilitará determinado resultado, se a consequência não é absolutamente improvável. [77] Se, entretanto, a conduta for imprevisível, não haverá crime. [78]

Roxin, por outro lado, explana que os elementos de inobservância do cuidado objetivo devido, produção de um resultado e previsibilidade objetiva do resultado, não são elementos necessários para a averiguação estrutural do ilícito-típico dos crimes culposos. Para o autor, basta a verificação dos elementos presentes no critério de aferição da imputação objetiva para a análise dos delitos culposos. Por esse critério, dessa forma, estaria mais cristalina a explicação da não consubstanciação do crime culposo, por exemplo, o caso de um motorista que, respeitando todas as regras de trânsito, atropela um transeunte. Para o autor, a mera referência à observância do cuidado objetivo devido não é suficiente para a fundamentação exata da exclusão do crime, o contrário ocorre, entretanto, com o conceito de criação de um risco não permitido. Assim, “para constatar la realización imprudente de un tipo no se precisa de criterios que se extiendan más allá de la teoría de la imputación objetiva”. [79]

Podemos distinguir duas formas de especial aparição da culpa nos crimes culposos: culpa consciente e culpa inconsciente. [80] Não há, entretanto, no Código Penal brasileiro distinção entre as duas, apontando alguns autores ausência de efetiva necessidade prática para sua diferenciação, tendo em vista a dificuldade de comprovação da ocorrência de uma hipótese ou de outra. [81] Culpa consciente é a hipótese de o agente representar a possibilidade de ocorrência de um fato danoso, de colocação em perigo de um bem jurídico ou violação de um dever objetivo de cuidado, entretanto, confia plenamente na não ocorrência do resultado representado. [82] Na culpa inconsciente, por outro lado, não há representação da possibilidade de ocorrência de um resultado lesivo. O agente, no caso concreto, não previu acerca da possibilidade de sua ação poder gerar um resultado lesivo pela não observância do cuidado objetivo devido. Imperativo, entretanto, verificar-se que, no caso concreto, era objetivamente possível a representação do resultado, pois, quando imprevisível, tratar-se-á de uma hipótese de caso fortuito ou de força maior. A principal diferença da culpa consciente e inconsciente reside nesse vínculo de representatividade do agente com o resultado. [83]

Essa distinção é de suma importância quando da análise da diferença entre culpa consciente e dolo eventual, tendo em vista a hercúlea tarefa probatória nos casos concretos. Tal discussão acentua-se principalmente quando na seara dos acidentes de trânsito, cuja tendência é de aplicação de um Direito Penal máximo a atuante, de uma tentativa de paternalismo estatal por meio de uma pena rigorosa. Tanto na culpa consciente como no dolo eventual há a representação do resultado, entretanto nesta o agente anui com a possibilidade do resultado, “assumindo o risco de produzi-lo”, enquanto que naquele o agente “repele a hipótese de superveniência do resultado”, acreditando que este não ocorrerá. [84] A diferença entre ambos reside no vínculo psicológico entre o agente e o resultado, na anuência ou repúdio da possibilidade efetiva de ocorrência do resultado lesivo. Verifica-se, assim, por se tratar de apenas um vínculo subjetivo, a extrema dificuldade probatória.

Com relação às causas de justificação nos crimes culposos, expõe Dias acerca da controvérsia existente com relação aos seus requisitos e a sua extensão. Segundo o autor, não há, entretanto, muitas vozes contrárias que advoguem contrariamente ao mesmo significado dogmático que as causas de justificação assumem nos crimes culposos em comparação aos dolosos. Para o autor, tendo em vista a menor gravidade que assumem os crimes culposos, está-se “a aceitar um campo mais lato de actuação de certas causas justificativas, mesmo em caso de igual gravidade externa do resultado típico”. Não há o requerimento, da mesma forma, de “verificação de elementos subjetivos da justificação”, chamado de “conhecimento da situação justificante”. Assim, “ainda que se não dê no caso a existência de elementos subjetivos (gerais) de justificação, um desvalor de resultado não se verifica porque estão presentes os elementos objectivos da justificação”. “O desvalor de acção”, prossegue o autor, “poderá estar presente, mas ele não será em si mesmo, em princípio, punível, porque para tanto é em princípio necessária, na negligência, a verificação do resultado e do respectivo desvalor”. [85]

7. Conclusões

Por todo o exposto, concluímos que a aplicação da teoria do incremento do risco é dogmaticamente inaceitável, uma vez que acaba por converter delitos de perigo em delitos de dano, ao sustentar a ideia de que, para haver imputação, é suficiente a constatação do nexo de aumento do risco, sendo desnecessária a verificação da realização do risco não permitido na lesão. Nosso posicionamento é no sentido de que para imputarmos um dano em um crime de resultado naturalístico é essencial constatar que o risco criado pelo agente foi o que determinou a sua ocorrência, na medida em que o nexo existente entre o desvalor da ação e o desvalor do resultado é elementar para a verificação do ilícito-típico negligente.

A solução proposta por Roxin com essa teoria se mostra, além de problemática, também desnecessária, uma vez que nos casos em que não for possível constatar com uma probabilidade próxima à certeza que um comportamento alternativo conforme o direito evitaria a ocorrência do resultado, o sujeito deve ser absolvido com base no princípio do in dubio pro reo, já consagrado em nossa legislação. Assim, se o Estado, o qual possui o dever de comprovar que o agente cometeu o delito que lhe está sendo imputado, não conseguiu produzir as provas necessárias para fazê-lo, não seria justo responsabilizar o sujeito pela ineficácia do papel do Estado na persecução criminal. Diante disso, nota-se que Roxin procura oferecer uma solução no âmbito do Direito Penal, contudo, ela já existe na esfera do processo penal.

No que tange à possibilidade de recepção da teoria do incremento do risco pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro, esta tem como sua maior barreira o art. 13, caput, do Código Penal, o qual consagra a teoria da equivalência das condições. Dessa forma, constatamos que a teoria do incremento do risco não poderá ser recepcionada pelo nosso ordenamento, na medida em que a teoria da equivalência das condições propõe a noção de essencialidade entre o desvalor da ação e o desvalor do resultado.

8. Referências

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Daniel Leonhardt dos Santos

Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Ciências Penais e graduado em Direito pela PUC-RS. Bolsista CAPES.

Letícia Burgel

Mestranda em Ciências Criminais e Graduada em Direito pela PUC-RS. Estudante.

[1] D’Ávila, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. São Paulo: RT, p. 60.

[2] Idem, p. 59.

[3] Nesse sentido refere Roxin: “O motorista de um caminhão deseja ultrapassar um ciclista , mas o faz a 75 cm de distância, não respeitando a distância mínima ordenada. Durante a ultrapassagem, o ciclista, que está bastante bêbado, em virtude um reação de curto circuito decorrente da alcoolização, move a bicicleta para a esquerda, caindo sob os pneus traseiros da carga do caminhão. Verifica-se que o resultado também teria provavelmente (variante: possivelmente) ocorrido, ainda que tivesse sido respeitada a distância mínima exigida pela Ordenação de Trânsito (Strassenverkehrsordnung)” (Roxin, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 338).

[4] Cavalcante de Souza, Luyla. O nexo de aumento do risco na teoria da imputação objetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 66, ano X, p. 82 e ss., 2007.

[5] Idem, p. 84.

[6] Para Feijóo Sánchez, os casos analisados por meio do juízo hipotético de um comportamento alternativo conforme o direito costumam se produzir no marco das atividades com riscos especiais permitidos (indústria, transporte viário, medicina) que possuem regras gerais de conduta, seja por meio de regras jurídicas (segurança e higiene do trabalho, transporte viário, atividades farmacêuticas) ou da lexartis (medicina). São exemplos em que há dúvidas se as regras gerais de cuidado teriam alguma utilidade na situação concreta (Feijóo Sánchez, Bernardo. Teoria da imputação objetiva: estudo crítico e valorativo sobre os fundamentos dogmáticos e sobre a evolução da teoria da imputação objetiva. Trad. Nereu José Giacomolli. Barueri-SP: Manole, 2003. p. 12).

[7] Feijóo Sánchez, Bernardo. Teoria da imputação objetiva cit., p. 15.

[8] Idem, p. 18.

[9] Idem, p. 21.

[10] D’Ávila, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva cit., p. 60.

[11] Nesses casos, Roxin sustenta que essa dúvida deve ser solucionada pela avaliação pericial, tendo por base critérios científicos, não sendo necessária a utilização de processos causais hipotéticos (Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3 ed. Coimbra: Vega, 2004. p. 259).

[12] Sobre o “caso do ciclista” assim refere Roxin: “Se se puder constatar de modo geral que alguns ciclistas, quando embriagados, se lançam contra os camiões que os ultrapassam, devido a reacções anómalas provocadas pela bebida e se, além disso, se puder constatar que é totalmente irrelevante, quanto a essas reacções e suas consequências, que o condutor do camião mantenha uma distância de 75 cm, que é proibida, ou uma separação de 1m, que é permitida, não se poderá considerar como uma violação do dever de cuidado nos termos do § 222 do StGB a ultrapassagem feita deixando apenas 75 cm de distância, nem, portanto, como tendo existido negligência no respeitante a esse concreto resultado da morte” (Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal cit., p. 258).

[13] D’Ávila, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva cit., p. 59 e ss.

[14] Spendel e Eb. Schmidt propõe uma solução diferente da de Roxin. Para eles, estaríamos diante de um homicídio negligente, quando o autor provocou o resultado, e a sua conduta, a qual ocasionou a morte, infringia todos os deveres legais de cuidado, pois nesse caso não faltaria nem a previsibilidade objetiva, nem a subjetiva do processo causal. Roxin, no entanto, tem essa solução como pouco satisfatória, pois, de acordo com ele, faltaria, ainda, provar que a conjugação da infração do dever legal de cuidado com um resultado típico produziria, necessariamente, um crime negligente. Aceitar essa conclusão seria regressar à antiga, e já superada, teoria da versari in reillicita, segundo a qual, se fazemos algo proibido, serão eo ipso imputadas como negligentes todas as consequências que daí advêm (Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal cit., p. 257.)

[15] Idem, p. 257 e ss.

[16] Cavalcante de Souza, Luyla. O nexo de aumento do risco na teoria da imputação objetiva cit., p. 97.

[17] Rusconi, Maximiliano Adolfo. La relevancia del comportamiento alternativo conforme a derecho en la imputación objetiva del delito imprudente. Cuaderno de Doctrina y Jurisprudência Penal, n. 3, v. 2, p. 63, 1996.

[18] Feijóo Sánchez, Bernardo. Teoria da imputação objetiva cit., p. 42 e ss.

[19] Idem, p. 41 e ss.

[20] Idem, p. 20 e ss.

[21] No que tange a esta crítica, Santos entende que ela não resiste, pois, segundo ele, a imputação ao tipo objetivo sempre se produz apenas mediante uma colocação em perigo criada pelo autor. A diferença entre os delitos de lesão e os delitos de perigo, é que naquele o rico não permitido se realiza no resultado típico, enquanto neste o perigo se realiza em um resultado de colocação em perigo, o qual é determinado de acordo com diversas exigências. Nos casos de conduta alternativa conforme o direito, concorrendo um incremento do risco, se terá plasmado um risco proibido em um resultado lesivo (Santos, Humberto Souza. Co-autoria em crime culposo e imputação objetiva. Barueri-SP: Manoele, 2004. p. 129).

[22] Frisch, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado. Madrid-Barcelona: Marcial Pons; Ediciones Jurídicas y Sociales, 2004. p. 572.

[23] Araújo, Marina Pinhão Coelho. Tipicidade penal – Uma análise funcionalista. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 113.

[24] Jakobs, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2 ed. corregida. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Juridicas, 1997. p. 285.

[25] Roxin, Claus. Derecho penal. t. I. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Madrid: Civitas, 1997. p. 363 e ss.

[26] Assim, pelos critérios da teoria da imputação objetiva, se o resultado fosse produzido de qualquer maneira, ainda que o sujeito houvesse empregado o cuidado requerido, não poderia haver imputação objetiva, uma vez que o resultado não é precisamente a concreção da lesão de cuidado (Bustos Ramirez, Juan. Manual de derecho penal: parte geral. 3. ed. aum. Barcelona: Ariel, 1989. p. 238).

[27] Roxin, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 343 e ss.

[28] Frisch, Wolfgang. Comportamiento típico e imputación del resultado cit., p. 576 e ss.

[29] Rusconi, Maximiliano Adolfo. La relevancia del comportamiento alternativo conforme a derecho en la imputación objetiva del delito imprudente cit., p. 66.

[30] Mascarenhas Júnior, Walter Arnaud. Aspectos gerais do risco na imputação objetiva. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 176.

[31] O fato de o autor ter ultrapassado o risco permitido em 3 km/h pode ser considerado um incremento do risco considerável? Segundo Feijóo Sánchez, nesses casos de infrações leves, em âmbitos bem regulamentados, como o tráfego viário, a teoria do incremento do risco converteria a imputação do resultado em algo automático, pois aquele que cria um risco não permitido pratica todos os atos que objetivamente deveriam produzir o resultado, mas não mata ou não causa uma lesão (Feijóo Sánchez, Bernardo. Teoria da imputação objetiva cit., p. 41 e ss.).

[32] Prado, Luiz Regis. A imputação objetiva no direito penal brasileiro. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, n. 3, v. 2, p. 3, jul. 2005.

[33] Welzel, Hans. Direito penal. Campinas: Romana, 2003. p. 89.

[34] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal: parte geral. t. I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: RT; Portugal: Coimbra Ed., 2007. p. 320.

[35] Jakobs, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación cit., p. 286.

[36] Cavalcante de Souza, Luyla. O nexo de aumento do risco na teoria da imputação objetiva cit., p. 104.

[37] D’Ávila, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva cit., p. 64.

[38] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 1: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 288.

[39] Martinelli, João Paulo Orsini. A teoria da imputação objetiva e o Código Penal brasileiro: ainda faz sentido a teoria das concausas. In: Direito penal: aspectos jurídicos controvertidos, p. 223.

[40] Almeida, Felipe Lima de. Causalidade e imputação no direito penal: análise crítica da moderna teoria da imputação objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2013. p. 69

[41] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 289.

[42] Noronha, Edgard Magalhães. Direito penal. Introdução e parte geral. 33. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 1, p. 121.

[43] Roxin, Claus. Problemas fundamentais de direito penal cit., p. 259.

[44] Cavalcante de Souza, Luyla. O nexo de aumento do risco na teoria da imputação objetiva cit., p. 97.

[45] Greco, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2013. p. 123.

[46] A teoria da evitabilidade defende que não se pode imputar um resultado quando a lesão é inevitável mediante uma conduta alternativa conforme o direito (Feijóo Sánchez, Bernardo. Teoria da imputação objetiva cit., p. 13). Segundo essa teoria, aquele que provoca um resultado imprudente não deverá responder quando não for possível provar, com uma probabilidade próxima à certeza, que o dano não teria sido produzido se o agente estive dentro do risco permitido. Ou seja, o autor somente será punido se houver certeza de que o comportamento correto correspondente salvaria o bem jurídico afetado (Cavalcante de Souza, Luyla. O nexo de aumento do risco na teoria da imputação objetiva cit., p. 90).

[47] Greco, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva cit., p. 123.

[48] Zaffaroni, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. 4. ed. rev. São Paulo: RT, 2002. p. 510 e ss.

[49] Bruno, Anibal. Direito penal: parte geral. Tomo I: introdução, norma penal, fato punível. 5. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 199 e ss.

[50] Muñoz Conde, Francisco. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 75.

[51] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., 13. ed., 2008,  p. 280.

[52] Welzel, Hans. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Roque Depalma, 1956. p. 135.

[53] Cerezo Mir, José. Curso de derecho penal español. Parte general. t. II. Teoría jurídica del delito. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1997. p. 150.

[54] Luisi, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: Fabris, 1987. p. 83

[55] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 281.

[56] Cerezo Mir, José. Curso de derecho penal español cit., p. 153.

[57] Muñoz Conde, Francisco; Arán, Mercedes García. Derecho penal: parte general. 2ª Ed. Valência: Tirant lo Blanch, 1996, p. 302.

[58] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 864.

[59] Muñoz Conde, Francisco; Arán, Mercedes García. Op. cit. p. 302. Explica Cerezo Mir que o cuidado devido é determinado por normativas de caráter administrativo e outras referências de caráter técnico proveniente de determinadas profissões. “El ejercicio de las actividades profesionales está sometido asimismo a ciertas reglas técnicas (Lex artis) que fijan el cuidado objetivamente debido em el desempeño de la profesión. Estas normas de cuidado, así como otras derivadas de La común experiencia, rigen, sin embargo, únicamente para las situaciones típicas em el desarrollo de uma actividad social determinada”. Expõe o autor que nos casos de uma atividade sem regras ou padrões estabelecidos pela norma, atividade ou profissão, deve-se averiguar, pelo caso concreto, como uma pessoa sensata e média deveria agir (Cerezo Mir, José. Curso de derecho penal español cit., p. 159).

[60] Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 2. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 220.

[61] Para o autor, “o padrão em si é inalcançável, e, se o próprio padrão torna-se de impossível apreensão, como falarmos em segurança jurídica, decorrência primária da legalidade lata, quiçá ambicionarmos a sua subsunção ao ideal de legalidade estrita? Tal conceito é, por natureza equivocado. Afinal, o que seria um homem razoável? O que seria um homem prudente? (...) Certamente o direito nunca o conheceu. Este homem, idealizado pela dogmática, apenas não está morto, porque nunca existiu. Ademais nossa própria identidade há muito parece haver-se desenganado” (D’Ávila, Fabio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva cit., p. 92-93).

[62] Tavares, Juarez. Direito penal da negligência. Uma contribuição à teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 276.

[63] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 882.

[64] Cerezo Mir, José. Curso de derecho penal español cit., p. 158-162. Expõe o autor acerca da possibilidade de aplicação do princípio da confiança nos casos não externos ao trânsito, como nas atividades exercida “por un equipo de personas, de acuerdo com el principio de división del trabajo, por ejemplo, las intervenciones quirúrgicas”. Pode-se aplicar, também, tal princípio nas condutas que “favorezcan la comisión de un delito doloso, mientras el sujeito no conociera o pudiera conocer la inclinación del autor a la comisión del delito. El que vende a otro un cuchillo, un hacha, una sustancia venenosa, no infringe el cuidado objetivamente debido si no conocía ni podía conocer la inclinación del comprador a la comisión de um delito” (idem, p. 162). Roxin, ao tratar do princípio da confiança nas relações envolvendo tráfego de veículos, expõe que “el principio de confianza hoy reconocido sobre todo en el Derecho penal de la circulación es un principio que sirve para la negación de un incremento del peligro inadmisible. En su forma más general afirma que quien se comporta debidamente en la circulación puede confiar en que otros también lo hagan, siempre y cuando no existan indicios concretos para suponer lo contrario” (Roxin, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. 2ª Ed. Madri: Civitas, 1997, p. 1004). Nesse sentido também Dias, que expõe: “como regra geral não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie em que os outros cumprirão os deveres de cuidado” (Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 882). Da mesma forma, Tavares: “O princípio da confiança foi desenvolvido pela jurisprudência, especialmente no direito de trânsito. Hoje tem aplicação mais ampla, estendendo-se a todos os setores onde haja uma atuação conjunta, ou seja, atividades comunitárias ou em divisão de trabalho” (Tavares, Juarez. Direito penal da negligência cit., p. 293.

[65] Roxin, Claus. Derecho penal cit., p. 1006.

[66] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 884. Expõe Tavares que esse critério de exclusão da aplicação do princípio da confiança é aplicado a toda circunstância que envolva a sua possível invocação. I.e,, não é possível utilizar esse princípio em situações nas quais era possível/previsível, em “circunstâncias especiais, resultar absolutamente provável, segundo a experiência da vida diária, que a conduta de outrem lesará o dever de cuidado”. O exemplo que o autor traz consiste na hipótese de, “em localidades onde não se atende à preferência dos veículos vindos da direita”, como é o caso do Brasil, “é indispensável que o condutor cuidadoso não confie em que os outros motoristas executarão, também, condutas cuidadosas”. Outro exemplo exposto pelo autor refere-se ao médico-assistente que embriagado realiza um procedimento médico. Não pode, nesta hipótese, esperar o médico-chefe que o assiste realize os procedimentos com o devido cuidado (Tavares, Juarez. Direito penal da negligência cit., p. 295).

[67] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 882.

[68] Nesse sentido, Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 283; Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 2. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 223, Reale Júnior, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1, p. 240 e Tavares, Juarez. Direito penal da negligência cit., p. 296.   

[69] Tavares, Juarez. Direito penal da negligência cit., p. 296-297.

[70] Muñoz Conde, Francisco; Arán, Mercedes García. Op. cit. p. 314.

[71] Roxin, Claus. Derecho penal cit., p. 1006.

[72] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 885.

[73] Idem, ibidem.

[74] Roxin, Claus. Derecho penal cit., p. 1006

[75] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 886.

[76] Tavares, Juarez. Direito penal da negligência cit., p. 296.

[77] Cerezo Mir, José. Curso de derecho penal español cit., p. 158.

[78] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 286. Para Welzel, o “critério da previsibilidade objetiva é idêntico ao da causalidade adequada” (Welzel, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: RT, 2001. p. 78).

[79] Roxin, Claus. Derecho penal cit., p. 997-1001.

[80] Santos utiliza a terminologia imprudência consciente e imprudência inconsciente na sua obra (Santos, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Barros, 2000. p. 120). Bitencourt elenca uma terceira modalidade de culpa, chamada culpa imprópria que, segundo o autor, ocorre quando o agente agiu em “erro culposo sobre a legitimidade da ação realizada”. Não se confundindo, entretanto, erro culposo e crime culposo, pois a culpa imprópria consistiria no “erro de tipo evitável nas descriminantes putativas ou do excesso nas causas de justificação”. Explica o autor que nesse caso o “agente quer o resultado em razão de a sua vontade encontrar-se viciada por um erro que, com mais cuidado, poderia ser evitado” (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 289).

[81] Nesse sentido, Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 288. Para Roxin, “La distinción entre imprudencia consciente e inconsciente no posee en cambio gran relevancia, pues el legislador nunca vincula a ella diferentes consecuencias jurídicas. Sin embargo la imprudencia consciente resulta, ceteris paribus, más merecedora de pena que la inconsciente, de modo que la diferencia repercutirá en la medición de la pena” (Roxin, Claus. Derecho penal cit., p. 1019).

[82] Reale Júnior, Miguel. Instituições de direito penal cit., p. 243.

[83] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal cit., p. 289.

[84] Idem, p. 290.

[85] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal cit., p. 888-889.

Artigos
O princípio da não autoincriminação
Data: 24/11/2020
Autores: Leandro Ayres França e Maira da Silveira Marques

Resumo: Este artigo aborda a proibição do uso de máscaras e afins em manifestações públicas, assim como o poder conferido às polícias para reprimir essa conduta, nos termos da correlacionar a cogitada Lei estadual 15.556/2014. Sob o fio condutor da preeminência dos direitos fundamentais, tônica do Estado Democrático de Direito, e de considerações com pretensão crítica, procura correlacionar a cogitada vedação com a perspectiva do garantismo penal de Ferrajoli, notadamente a diretriz que preconiza a minimização do poder punitivo estatal e a maximização da liberdade dos cidadãos.

Palavras-chave: máscaras; manifestações; Lei 15.556/2014; garantismo.

Abstract: This paper discusses a ban on the use of masks in public demonstrations, as well as the power given to the police to suppress such conduct under State Law 15.556 /2014. Under the guiding principle of the primacy of fundamental rights, main characteristic of democratic state of law, and supposed critical point of view, this paper seeks to correlate the ban of use of masks with the prospect of so called ‘Legal Garantism Theory’, formulated by Ferrajoli, notably the theoric guideline that calls for the minimization of state punitive power and maximizing the freedom of citizens.

Key-words: masks; public demonstrations; Law 15.556/2014; garantism theory.

Sumário:Introdução – 1. A Lei 15.556/2014: crônica de uma morte anunciada – 2. A conduta – 3. Novas velhas incumbências das polícias – 4. Vedar para garantir? 5. Punitivismo: quosque tandem? (até quando?) – 6. Garantismo penal – Conclusão – Referências bibliográficas.

Introdução

Manifestações públicas ocorridas no Brasil a partir de junho de 2013 firmaram, muitos quiseram crer, salutar início de nova era no exercício da cidadania brasileira, talvez a da efetivação dos direitos, de acordo com Bobbio.[1] De um panorama de difuso descompromisso com os assuntos políticos, por generalizada negligência quanto à res publica, muitos brasileiros passaram a agir de forma inédita, ao menos na história recente deste país. Milhares às ruas a gritar, a plenos pulmões, que as coisas não iam bem.

Na multidão, também, apresentaram-se mascarados, pessoas que logo passaram a ser associadas às práticas de crimes no desenrolar das manifestações públicas, mote para toda a sorte de críticas.

Entre elas, apresentaram-se, é claro, punitivistas, reunidos por discursos de senso comum teórico, a clamar, segundo a praxe, punições; punições penais. Perspectiva que não se compadece com diretrizes do Estado Democrático de Direito, que preza substancialmente o valor superior liberdade.

Esse é o assunto que anima este breve articulado: a correlação entre liberdade e poder punitivo estatal, no contexto da proibição do uso de máscaras e afins em manifestações públicas.

1. A Lei 15.556/2014: crônica de uma morte anunciada

Em 29 de agosto de 2014, deu-se a publicação da Lei estadual 15.556:[2]

“Art. 1.º O Estado garantirá, nos termos dos incisos IV e XVI do art. 5.º da Constituição Federal, a qualquer pessoa o direito à manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, e a reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente, na forma desta lei.

Art. 2.º Na manifestação e reunião a que se refere o art. 1.º, com o objetivo de assegurar que ninguém a faça no anonimato, fica proibido o uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça a sua identificação.

Parágrafo únicoA proibição a que se refere o “caput” deste artigo não se aplica às manifestações e reuniões culturais incluídas no Calendário Oficial do Estado.

Art. 3.º À proibição constitucional de portar armas nas manifestações e reuniões públicas, incluem-se as de fogo, as armas brancas, objetos pontiagudos, tacos, bastões, pedras, armamentos que contenham artefatos explosivos e outros que possam lesionar pessoas e danificar patrimônio público ou particular.

Art. 4.º As manifestações e reuniões em locais e vias públicas, inclusive organizadas através das redes sociais, na Internet, conforme previsão constitucional, deverão ser previamente comunicadas às Polícias Civil e Militar, na forma de regulamento expedido pela Secretaria da Segurança Pública.

Art. 5.º Para a preservação da ordem pública e social, da integridade física e moral do cidadão, do patrimônio público e particular, bem como para a fiel observância do cumprimento desta lei, as Polícias Civil e Militar efetuarão as devidas intervenções legais.

Art. 6.º Esta lei deverá ser regulamentada até 180 (cento e oitenta) dias após a sua publicação.

Art. 7.º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Do que de imediato interesse ao presente estudo, destacam-se dois dados da Lei estadual 15.556/2014: 1) a proibição de uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça sua identificação – art. 2.º – e 2) a incumbência das polícias civil e militar de efetuar as devidas intervenções legais para o cumprimento da lei – art. 5.º.

Antes, porém, de examiná-los, necessário apontar circunstâncias que antecederam sua edição.

A aprovação dessa Lei esteve intimamente ligada a manifestações públicas ocorridas em vários Estados do Brasil a partir de junho de 2013, motivadas, de início, contra o aumento dos valores das tarifas do transporte público.

Agregaram-se, após, outras demandas sociais, adstritas à efetivação de políticas públicas, com a repressão, em regra, das polícias. Truculência, violência e violação de direitos humanos constituíram respostas imediatas ofertadas pelo Estado às palavras de ordem que ecoaram pelas ruas deste País, verdadeira “estratégia do medo”, segundo relatório da Anistia Internacional.[3]

Apesar da larga repressão à sociedade civil como um todo, as manifestações prosseguiram, até o momento em que a mídia passou a noticiar a prática de crimes no desenrolar das manifestações, por indivíduos mascarados:

“Mascarados depredam ônibus e entram em confronto com a PM de Salvador” – Folha de S. Paulo, 07.09.2013;[4]

“Mascarados aterrorizam centro com saques e ataques a policiais” – Estadão, 19.06.2013;[5]

“Mascarados entram em confronto com a PM após ato de professores” – O Globo, 15.10.2013;[6]

“Sem policiamento, grupo mascarado promove onda de vandalismo em BH” – O Estado de Minas, 18.06.2013.[7]

Vale observar que, até então, havia discurso das autoridades públicas mais ou menos homogêneo no sentido de concordarem com a legitimidade das pautas das manifestações, talvez por anteverem oportunas plataformas eleitorais para a campanha seguinte.

Todavia, com o suposto atuar dos mascarados, despontou, no horizonte político, raio oportuno, a sobrepujar a urgência de um debate sincero de toda a sociedade brasileira sobre tudo o que acontecia, pela busca da criminalização de um novo inimigo, o mascarado, ou, por via reflexa, o movimento social.[8] Como dizia a vinheta de aclamado filme brasileiro, “o inimigo, agora, é outro”.

Em jogo, direitos e garantias fundamentais:

“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[...]

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

[...]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

[...]

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”

Em breve resumo, algo absolutamente inócuo como o uso de máscaras, em certo sentido até jocoso, tal qual o “porte de vinagre”, no específico lócus das manifestações públicas passou a ser associado à prática de condutas criminosas. Um ideal, mais ou menos velado, de que o mascarado ou praticou ou praticará crimes.

Nada que o delírio legislativo não resolva. Então, fruto de paulatino endurecimento do poder punitivo respeitante ao problema sociopolítico que subjazia as manifestações públicas, foi editada a Lei 15.556/2014, crônica de morte anunciada, destinada à repressão desse sujeito perigoso, o mascarado, alvo, igualmente, de outros Projetos de Lei, o 236/2012 e o 508/2013, os quais propõem a criminalização do “terrorismo”, atos de “vandalismo” e afins, mediante preceitos primários lacunosos, expressivos exemplos de retrocesso democrático.[9]

2. A conduta

Isso recuperado, reinveste-se nos pontos suspensos. O primeiro deles é a conduta, a proibição de uso de máscara ou objeto afim, apto a dificultar a identificação da pessoa. Tudo sob ambivalente propósito de garantir o exercício de liberdades públicas, desde que não se faça sob anonimato.

De plano, saltam aos olhos a inexistência, ao menos declarada, de sanção, lei imperfeita, segundo classificação proposta por Franco Montoro;[10] preceito ético, talvez, cujo adimplemento requer espontânea adesão, de acordo com Reale,[11] ou, diria Thoreau, em tom de desobediência civil, irresistível convite ao “direito de revolução”.[12]

Consequência, quem sabe, da rapidez na tramitação do Projeto, o 50/2014, outro exemplo de singular atecnia jurídica, fundamentado, entre outros, na busca de vedar o anonimato, dito “ato preparatório para a prática de crimes”,[13] dado, por si só, de lamentável carência dogmática, afinal, em nossa tradição jurídica, tais atos, em regra, são impuníveis.

Por isso, senão pela estrutura, a perspectiva – seria oportuno escrever “o ranço” – que presidiu a edição da lei, ao cercear direitos fundamentais, é de evidente caráter penal.

Daí ser oportuno desde já situá-la distante daquela “relação de mútua referência” entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal, referida por Figueiredo Dias, para a aferição do bem jurídico, cerne da tutela jurídico-penal. Ao menos em um país com pretensão democrática.[14]

Com efeito, tem-se evidente objeção a um estilo, ou modo de ser, dos indivíduos que usam máscaras, quadro que não se compadece, agora, sob viés dogmático, com o “caráter limitado do Direito Penal”, fragmentário, subsidiário e de intervenção mínima.[15]

Parece, assim, haver inequívoca aposta na ideia de que o “ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso”,[16] característica do Direito Penal do autor, repressivo e estigmatizador, forjado em (pres)suposta periculosidade do agente.

Quadro apresentado à sociedade, aliás, por um discurso que se encarrega de disfarçar nossa práxis: “o principal expediente é proclamar, nas leis e nas teorias jurídicas, que as pessoas são punidas pelo que fazem e não pelo que são”.[17]

Então, com algum jogo de palavras, afirma-se destinar a proibição à garantia do exercício de direitos fundamentais, notadamente liberdade de expressão, desde que não se faça sob anonimato. Como se o exercício deles dependesse da intermediação do legislador estadual para “regulamentá-los”, quando a mera enunciação “é livre...”, intuitivamente demarca limite, um dever geral de abstenção, de não ingerência, do Estado.

Assim, o mascarado, vândalo, “representado como potencialmente capaz de desenvolver práticas de dilapidação do patrimônio público e privado, para o qual se tornarão igualmente necessárias ações repressivas, particularmente da polícia militar brasileira”,[18] passou a ser considerado inimigo da sociedade brasileira, perseguido pela polícia antes mesmo de lei legitimar o ilegitimável.

3. Novas velhas incumbências das polícias

Se não bastasse a duvidosa constitucionalidade do art. 2.º da Lei estadual 15.556/2014, no art. 5.º o legislador conferira às polícias civil e militar o poder de efetuar as “devidas intervenções legais”.

Sem esclarecer o que elas seriam, legitimou, por via oblíqua, a possibilidade de policiais efetuarem conduções de “suspeitos” a delegacias de polícia, para averiguações, prática que afronta a Constituição Federal, mas suficiente à temporária neutralização de seus alvos.

Ponto que se aproxima de todo o simbolismo da ameaça ínsita à pena restritiva de liberdade, ápice da sanha punitivista, com a difusa possibilidade de contenção inconstitucional/ilegal/ilegítima de práticas mal vistas por autoridades públicas, as quais, entretanto, não encontram amparos constitucional e legal.

Basta cogitar dos episódios insistentemente noticiados pela imprensa de violência e de truculência de policiais contra mascarados e não mascarados em manifestações públicas, entre as quais o do dia 14.06.2013, referido no Editorial n. 249 do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que culminara em 232 pessoas conduzidas a delegacias de polícia, resultando, ao cabo, em apenas 4 prisões.[19]

Nada muito distante de conhecida política seletiva do sistema penal, ao vedar determinadas práticas que, realizadas em espaços públicos, são sobranceiramente reprimidas pelas polícias. Eis o fator “visibilidade da infração”, referido por Augusto Thompson, a concorrer para o reconhecimento formal, ou não, da ocorrência de dado delito pelas polícias.[20]

Isso se dá, também, com o tráfico de drogas, outro significativo exemplo de infração penal orientada pela seletividade, conforme pesquisa empírica levada a efeito por Orlando Zaccone, delegado de polícia no Rio de Janeiro.

É que a traficância, nos bairros pobres, ocorre a céu aberto, em vias públicas, distinta daquela realizada em bairros ricos, restrita a espaços privados, não sujeita à atividade policial. Dado a concorrer para o entendimento do papel fundamental das polícias na criminalização secundária dessa conduta,[21] à semelhança do cogitado uso de máscaras.

Retomando-o, certo é que, na prática, antes mesmo da aprovação da Lei 15.556/2014, a situação já havia alcançado contornos dramáticos, com a aplicação da Lei federal 7.170/1983, a Lei de Segurança Nacional, aos indivíduos mascarados surpreendidos em supostas atividades ilícitas (rectius: subversivas) em manifestações públicas.

Essa temática, aliás, foi objeto de Mesa de Debate do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, com a participação dos professores Alexis Couto de Brito e Carlos Alberto Corrêa de Almeida, em que este, ao contrário daquele, referiu entender a plena aplicabilidade dessa autoritária legislação nos dias atuais.[22]

4. Vedar para garantir?

Sem grandes esforços, então, conclui-se que os parlamentares de São Paulo, premidos por circunstâncias político-sociais a que não estão acostumados, isto é, explicitações, quase que em todos os dias do mês de junho de 2013, da desconformidade de considerável parcela da população, decidiram, conforme expuseram no Projeto de Lei 50/2014, não embaciar preceitos fundamentais:

“Não obstante os louvados propósitos que levaram milhões de pessoas às ruas em todo o País no mês de junho de 2013, entendemos que esse direito individual e coletivo de manifestar-se e reunir-se deve ser regulamentado, dentro dos próprios limites estabelecidos pela Constituição da República – que no mesmo sentido impõe deveres individual e coletivo –, com o intuito de combater excessos no uso de tal direito, que possa, eventualmente, prejudicar a esfera de direitos de um número muito maior de cidadãos.

Com efeito, nos últimos meses, as manifestações tornaram-se palco quase que exclusivo de grupos autodenominados radicais, cuja plataforma principal de reivindicação é destruir, danificar, explodir, queimar, saquear e aterrorizar. Esses grupos costumam utilizar-se de máscaras ou outros paramentos que dificultam a identificação individual. Tal comportamento, por fim, tem esvaziado as legítimas manifestações e prejudicado o direito dos demais cidadãos de bem de se manifestarem. Além, por óbvio, de deixarem rastros de pânico e destruição e, consequentemente, causando prejuízos ao erário público.”[23]

Não. Deputados estaduais, assumindo papel de intérpretes de anseios de parcela de cidadãos “de bem”, provavelmente por que se consideram também cidadãos “de bem”, enunciaram necessidade de conter excessos de outros, os “de mal”; vedar para garantir (“[...] tal comportamento, por fim, tem esvaziado as legítimas manifestações e prejudicado o direito dos demais cidadãos de bem de se manifestarem [...]”).

Perspectiva muito próxima àquilo que Giorgio Agamben expôs sobre dada tendência de se considerar o estado de exceção, pela supressão, efêmera, do ordenamento jurídico (anomia), para sua manutenção, “um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde pura violência sem ‘logos’ pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real”.[24]

5. Punitivismo: quosque tandem? (até quando?)

De fato, mediante discurso de baixa, baixíssima densidade crítica, sedimenta-se, em nossa margem periférica, conforme Zaffaroni, a perpetuação de uma tradição de desrespeito a direitos comezinhos no Estado Democrático de Direito.[25]

Com isso, por evidente, não se quer descaracterizar a necessidade do Direito Penal em um país como o Brasil, de dimensões continentais, em que problemas estruturais, não raro, deságuam no grande rio da violência.

Sustentar essa perspectiva, para além de negar, em larga medida, a capacidade de autodeterminação das pessoas, elemento fundamental de nossa tradição jurídico-penal – rotineiramente referido nas reuniões do Grupo de Estudos Avançados – GEA – seria um sonho. Um sonho como pretender aplicar, a palo seco, em terrae brasilis, o programa do abolicionismo penal, concebido em longínqua realidade social.[26]

Esse modo de examinar o problema, entretanto, não deslegitima discurso que indica a consolidação de um processo de policização por que passa a sociedade brasileira, algo muito claro, noticiado diariamente pela mídia, mas que escapa ao cidadão do vulgo, embevecido na falácia do êxito da ameaça da pena restritiva de liberdade, a prisão, “história de 200 anos de fracasso, reforma, novo fracasso e assim por diante”.[27]

De fato, “como se uma cultura punitiva de longa duração se metamorfoseasse indefinidamente”,[28] com o paulatino aumento do poder punitivo, inversamente proporcional ao âmbito de liberdade do indivíduo.

Pondera-se, então, a necessidade de se divisar uma abordagem teórica apta a ofertar, no panorama brevemente exposto, legítima correlação entre o poder punitivo estatal e a liberdade dos cidadãos. Daí a urgência de se falar em garantismo penal.

6. Garantismo penal

Como se sabe, a teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli, forjada, entre outros, na preeminência da dignidade da pessoa, propõe a diretriz de maximização dos direitos fundamentais e a minimização do poder restritivo do Estado.[29]

Notadamente no Direito Penal, âmbito no qual o “direito formal em jogo é a imunidade do cidadão a proibições e punições arbitrárias”,[30] os direitos fundamentais constituem, assim, limites substanciais à atuação estatal: “uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do bem comum”,[31] ainda que, por exemplo, consubstanciada em lei.

Daí corriqueira a menção a esferas, no Estado Democrático de Direito, do decidível e do não decídivel, enquadrando-se nesta “os direitos fundamentais, funcionando como ‘verdadeiro marco divisório, impeditivo do avanço do legislativo’”.[32]

Oportuno, agora, correlacionar tais diretrizes teóricas à vedação do uso de máscaras, prevista na Lei estadual 15.556/2014.

Consoante referido no item anterior, a proibição do uso de máscaras em manifestações públicas proporciona minimização de direitos fundamentais – como liberdade e liberdade de expressão – e a maximização do poder repressivo do Estado, subversão do programa garantista.

De fato, pela enunciação de suposto objetivo declarado de propiciar o exercício de liberdades públicas, o legislativo de São Paulo aprovou lei que constitui claro exemplo de uma política criminal punitivista, orientada para a contenção de nicho específico da sociedade brasileira, o “mascarado”.

Dando-lhe o predicativo de inimigo, possibilita intervenções das polícias, deixa para a prática das famigeradas conduções para averiguação, evidente retrocesso jurídico-legal, ainda mais em um país que passou por recente período de ditadura militar.

Não há pretensão de democracia na contemporaneidade que se mantenha diante de atuações estatais as quais, paulatinamente, derrocam direitos fundamentais, no caso em voga, sob a alegação de proteção de preceito constitucional outro, a vedar o anonimato, mas que não encontra amparo, como visto, em premissa essencial do Estado Democrático de Direito, logo, do garantismo penal, a contenção do poder punitivo estatal.

Conclusão

Este pequeno artigo teve como mote a Lei 15.556/2014, do estado de São Paulo, que proibiu o uso de máscaras e afins em manifestações públicas, assim como conferiu às polícias o dever de realizar as ditas intervenções necessárias.

Vedação levada a efeito sob argumentos diversos, oportunamente abordados, convergentes, consoante se referiu, para a punibilidade de um modo de ser, ou, por via reflexa, de movimentos sociais, muito distantes do postulado essencial do bem jurídico-penal.

Houve também ensejo para referência a certa perspectiva de estado de exceção, proposta por Agamben, em que há subversão do Estado Democrático de Direito, sob subterfúgio de alcançar-se sua manutenção. Um descalabro, ao qual, de certa forma, não se está distante.

Após, foram declinadas, em continuidade, nuanças do punitivismo que grassa o Brasil, país periférico em que há larga tradição do aumento do poder punitivo do Estado, à proporção que é mitigada a liberdade dos indivíduos.

Então, deu-se correlação desse panorama com premissa do garantismo penal, na proposta de Ferrajoli, que prega justamente o contrário: a maximização da liberdade dos cidadãos e a minimização da ingerência estatal na vida das pessoas, ainda mais mediante o gravoso instrumental das agências criminais, tônica de verdadeiro estado policialesco.

Ao fim, conclui-se pela total desconformidade da Lei 15.556/2014 do estado de São Paulo com proposta do garantismo penal, eis que atentatória a liberdades públicas, ínsitas ao âmbito do não decidível, impassível de ser agravada pela atividade estatal da forma como proposta.

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Bruno Almeida de Oliveira

Pós-graduando em Direito Penal Econômico e em Direitos Fundamentais - IBCCRIM/Universidade de Coimbra. Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia - Instituto de Criminologia e de Política Criminal – ICPC/ UNINTER.

[1] Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 64.

[2] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2014/lei-15556-29.08.2014.html>.

[3] Disponível em: <http://www.amnesty.org/fr/library/asset/AMR19/005/2014/fr/a24cd3fa-c32f-4e28-984a-d57dab154532/amr190052014pt.pdf>.

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[5] Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,mascarados-aterrorizam-centro-com-saques-e-ataques-a-policiais-imp-,1044082>.

[6] Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mascarados-entram-em-confronto-com-pm-apos-ato-de-professores-10369804>.

[7] Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/06/18/interna_gerais,408266/sem-policiamento-grupo-mascarado-promove-onda-de-vandalismo-no-centro-de-bh.shtml>.

[8] Gohn, Maria da Glória. As manifestações de junho de 2013 no Brasil no contexto da democracia. MPD Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, n. 41, p.25-26, fev. 2014.

[9] IBCCRIM. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Editorial – Manifestações, legislação penal e Constituição. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 22, n. 258, p.1, maio 2014.

[10] Montoro, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: RT, 2008. p. 392.

[11] Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 44.

[12] Thoreau, Henry David. A desobediência civil. Trad. Sérgio Karam. São Paulo: L&PM, 2010. p. 11.

[13] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1188705>.

[14] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal. São Paulo: RT, 2007. t. I, p. 120.

[15] Toledo, Francisco Assis de. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 14.

[16] Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2011, p. 110.

[17] Batista, Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 169.

[18] Lima, Roberto Kant de. Manifestações populares e as recorrentes formas de administrar conflitos entre juridicamente desiguais. MPD Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, n. 41, p.31-32, fev. 2014.

[19] IBCCRIM. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Editorial – As manifestações da sociedade civil e a repressão policial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 21, n. 249, p.1, ago. 2013.

[20] Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 60/64.

[21] D’Elia Filho, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 11-26.

[22] Mesa de Estudos e Debates “movimentos sociais e a lei de segurança nacional: análise crítica”, em 08.04.2014. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/tv_ibccrim_video/145-Movimentos-sociais-e-a-Lei-de-Segurana-Nacional-Anlise-Crtica> – V. a partir de 28’ 41’’.

[23] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1188705>.

[24] Agamben, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 63.

[25] Zaffaroni, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: 1988. p. 61.

[26] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Rio de Janeiro: Revan, 1993. p. 90.

[27] Santos, Juarez Cirino dos. 30 anos de vigiar e punir (Michel Foucault). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, p. 289-298, jan.-fev. 2006.

[28] Batista, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 113

[29] Ticami, Danilo. Breves delineamentos acerca do garantismo penal. In: Brito, Alexis Augusto Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (Org.). Cadernos de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012.

[30] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p. 688.

[31] Carvalho, Salo de; Carvalho, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 19.

[32] Rosa, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como “bricolage” de significantes. Tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do Paraná, 2004. p. 92.

Escolas Penais
Análise crítica do sistema garantista de Luigi Ferrajoli ante o abolicionismo de Louk Hulsman
Data: 24/11/2020
Autores: Andrea Sangiovanni Barretto

Resumo: O objetivo deste artigo é identificar os principais elementos do sistema garantista criado por Luigi Ferrajoli, bem como analisar os pontos mais relevantes da corrente abolicionista apresentada por Louk Hulsman. Para tanto, far-se-á uma síntese de ambas as correntes, ressaltando as possíveis críticas e apontamentos acerca de cada um dos modelos. Por fim, verificar-se-ão as críticas do abolicionismo com relação ao garantismo, e vice-versa, a fim de se compreender com maior profundidade ambos os sistemas.

Palavras-chave: Garantismo; abolicionismo; justificação do sistema penal.

Abstract: This article aims to recognize the main elements of the due process in criminal law (garantismo penale) system built by Luigi Ferrajoli, as well purpose to analyze the most relevant aspects of the abolitionism theory, pointing out possible gaps among each one of these models. It will also check out abolitionism critics towards “garantismo” and vice versa, in order to deeply understand both systems.

Keywords: garantismo, abolitionism, justification of criminal law

Sumário: Introdução. 1. Um breve estudo sobre o garantismo penal. 2. Breves considerações sobre o abolicionismo. 3. Análise crítica do garantismo e do abolicionismo. 3.1. Análise crítica ao modelo de Ferrajoli. 3.2. Análise crítica ao modelo abolicionista de Hulsman. 3.3. Análise crítica conjunta do garantismo e abolicionismo. Conclusão. Referências Bibliográficas – Conclusão – Bibliografia.

Introdução

O presente artigo tem por escopo abordar o sistema garantista proposto por Luigi Ferrajoli e o abolicionismo de Louk Hulsman. Para tanto, é importante iniciar a abordagem apresentando uma síntese de ambas as correntes de pensamento, apontando suas principais proposições e críticas. A verificação prévia de ambos os modelos é relevante para a compreensão do leitor acerca das falhas argumentativas e méritos presentes no garantismo e no abolicionismo, a fim de que se possam propiciar as bases necessárias a uma reflexão crítica.

O aparato garantista proposto por Ferrajoli, como se verá adiante, não possui como extremo oposto a proposição abolicionista. Representa, na verdade, uma ferramenta imprescindível para a existência do Estado Democrático de Direito. Contudo, apresenta algumas limitações que podem ser superadas quando o aparelho de punição estatal é colocado em direção à extinção..

1. Um breve estudo sobre o garantismo penal

A teoria do garantismo penal tem como principal característica a defesa de direitos fundamentais que delimitariam a atuação do poder estatal.

Antônio Alberto Machado,[1] no artigo Minimalismo penal: retórica e realidade, aponta o garantismo como teoria integrante do movimento do minimalismo penal, intensificado a partir das décadas de 1960 e 1970, centrando-se nos princípios da insignificância e da intervenção mínima.

Esse movimento, segundo o autor, teria surgido por conta de três razões: “(1) a crise ou deslegitimação do sistema penal; (2) a percepção dos vínculos entre sistema penal e sistema econômico; (3) a insuperável contradição entre o sistema jurídico liberal e os seus processos de encarceramento”.[2]

As principais delineações do garantismo se encontram na obra de Ferrajoli, Direito e razão: teoria do garantismo penal, incluindo seus elementos mínimos, axiomas constitutivos, bem como as justificativas para a imposição da punição, entre outros aspectos relevantes.

O jurista italiano forja o seu sistema garantista utilizando-se da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo, empregando para tanto teorias contratualistas, concepções utilitaristas do direito e da pena, entre outros, a partir de uma visão crítica, a fim de chegar a um resultado ideal no qual se extirpam tecnologias penais autoritárias e antigarantistas, assegurando “o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade”.[3]

Nesse sentido, explicita Danilo Ticami, afirmando que Ferrajoli, em seu discurso:

“busca a elaboração de todo um novo sistema geral de Garantismo com a finalidade de construir os alicerces fundamentais para um Estado de Direito que estabelece a proteção do direito de liberdade do indivíduo contra todas as formas de exercício arbitrário do poder, sob um ponto de vista racional, com enfoque especializado no Direito Penal e Processo Penal. (...) Na realidade, o esquema montado por Ferrajoli não se apresenta em todo original. O autor não oculta o fato de todo o Sistema Garantista estar fundamentado nas ideias iluministas, de autores como Beccaria, Locke, Montesquieu, Rousseau e outros, mas tenta não incidir nos mesmos equívocos que provocaram a bancarrota do pensamento ilustrado”.[4]

Ferrajoli constrói um sistema que atua em três sentidos: o epistemológico, o axiológico e o normativo, apresentando três significados distintos de garantismo, que se conectam entre si.

O primeiro significado diz respeito a um modelo normativo de direito, que seria o modelo de estrita legalidade, que atua nos planos epistemológico, político e jurídico, sob a máxima de minimizar a violência e maximizar a liberdade. Nesse primeiro sentido, é garantista o sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e o satisfaz efetivamente.[5]

O segundo significado diz respeito a uma teoria jurídica, formando uma teoria da divergência na qual deve haver uma aproximação entre norma e realidade. Aqui o foco é a efetividade da norma garantista no plano de sua aplicação. Ferrajoli aponta que a coerência entre a efetividade e a normatividade no garantismo exige constantemente do julgador o espírito crítico, a dúvida, a incerteza a respeito da validade das leis e de suas aplicações.[6]

Por fim, o jurista estabelece como terceiro significado do garantismo uma filosofia política, que designa uma doutrina laica da separação entre o direito e a moral. Nesse sentido, consolida-se a importância da diferenciação do plano externo ou político e um plano interno ou jurídico. O autor alerta para o fato de que um plano externo atrofiado em sua autonomia com relação ao plano interno ou a confusão entre os dois é a raiz da formação das culturas políticas autoritárias.[7]

No plano epistemológico, o jurista aponta os dois elementos constitutivos essenciais desse sistema: um relativo à definição legislativa (referente a garantias penais) e outro à comprovação jurisdicional do desvio punível (referente a garantias processuais).

O convencionalismo penal é o primeiro elemento da definição legislativa e, portanto, referente às garantias penais, traduzindo-se no princípio da legalidade estrita. Para Ferrajoli, a legalidade estrita se refere tanto ao critério de definição do desvio como à maneira na qual o desvio é descrito. Com relação ao primeiro aspecto, propõe que o delito não seja definido a partir dos conceitos do que venha a ser imoral em determinada época, mas, sim, daquilo que é objetivamente indicado pela lei como pressuposto para aplicação de uma pena:

“O desvio punível, segundo a primeira condição, não é o que, por características intrínsecas ou ontológicas, é reconhecido em cada ocasião como imoral como naturalmente anormal, como socialmente lesivo ou coisa semelhante. É aquele que é formalmente indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena, segundo a clássica fórmula nulla poena et nullum crimen sine lege. (...) A primeira condição equivale ao princípio da reserva legal em matéria penal e da consequente submissão do juiz à lei: o juiz não pode qualificar como delitos todos (ou somente) os fenômenos que considere imorais ou, em todo caso, merecedores de sanção, mas apenas (e todos) os que, independentemente de sua valoração, venham formalmente designados pela lei como pressupostos de uma pena”.[8]

Dessa forma, conclui Ticami que:

“Em outros termos, o desvio punível, no primeiro caso, não é o imoral em cada período histórico, mas sim o que foi definido em lei prévia pelo legislador (equivaleria ao princípio da reserva legal e a submissão do juiz à lei); no segundo caso, a definição legal do crime deve ser fabricada com base em figuras empíricas, objetivas e precisas de comportamento, sem referências subjetivas ao status do autor. Ferrajoli denomina o primeiro caso (reserva legal) como Princípio da mera legalidade (norma dirigida aos juízes, escravos aplicadores da lei formulada) e o segundo como Princípio da Estrita legalidade (destinada ao legislador, incumbido de prescrever de maneira taxativa as formulações legais, com apoio em conhecimentos experimentados). O Princípio da Legalidade Estrita funcionaria como uma técnica legislativa específica, com a função de excluir as convenções penais discriminatórias e arbitrárias que perseguem os ‘inimigos do momento’, de modo que são cabíveis somente normas que proíbem determinados comportamentos”.[9]

A segunda condição da estrita legalidade importa em uma definição do delito que não implique referências a figuras subjetivas de status ou de autor, delimitando-se sempre por contornos objetivos. Ou seja, com tal adução, Ferrajoli exclui do sistema garantista qualquer “norma constitutiva”, ou seja, aquelas que estabelecem não a proibição de uma ação, mas se direcionam a pessoas, como, por exemplo, “vagabundos”, “desocupados”, “pessoas propensas a delinquir” etc.[10] Dessa forma, o sistema garantista proíbe qualquer manifestação do que vem a ser o direito penal do autor, primando por um mandamento de igualdade de todos perante a lei penal.

Assim conclui Ticami:

“Desta forma, podem ser obtidos dois efeitos fundamentais da teoria clássica do direito penal ilustrado: 1) a garantia de uma esfera de liberdade intocável, pois somente é proibido o que consta na lei e; 2) a igualdade jurídica dos cidadãos perante a lei, pois os tipos objetivos descrevem ações e não consideram como crimes as características intrínsecas dos indivíduos”.

No campo das garantias processuais, Ferrajoli aponta o princípio da estrita jurisdicionariedade, elencando duas condições para a sua concretude: a verificabilidade ou refutabilidade das hipóteses acusatórias e a sua comprovação empírica.

O sistema garantista rechaça qualquer delito que esteja pré-configurado por normas de comportamento, que não possibilitariam uma verificação objetiva da hipótese acusatória, resultando em um julgamento que se utiliza apenas da discricionariedade do julgador para se concretizar.

Ou seja, se existirem normas de caráter constitutivo no direito material, estas exercerão influência negativa nas garantias processuais, atingindo não apenas o princípio da estrita legalidade, mas também afetando a estrita jurisdicionalidade, uma vez que, ao julgar de forma puramente discricionária, sem embasamento em provas objetivamente verificáveis, afasta-se o contraditório e a ampla defesa, maculando-se o princípio da estrita jurisdicionalidade.

Assim, para que o garantismo seja alcançado em sua plenitude, a lei deve determinar tudo o quanto for possível, deixando o mínimo possível para definição do julgador.[11]

No sistema garantista ideal, a valoração só é admitida quando servir para atenuar as penas ou excluir a responsabilidade do réu. Nesse momento o julgador deixa de ser a “boca da lei”, afastando o garantismo de uma ideologia de aplicação mecânica da lei.

Destaca-se, contudo, que o autor admite que o esquema epistemológico por ele demonstrado traduz-se em um modelo idealista, jamais plenamente realizável, aduzindo ser impossível retirar integralmente do julgador a discricionariedade. Da mesma forma, aponta para os espaços de poder específico que são, em parte, irredutíveis.[12]

No plano axiológico, a reflexão acerca do que seria o sistema garantista e suas possíveis ameaças e máculas leva o jurista a determinar 10 axiomas, que hoje estão incorporados no ordenamento jurídico penal e processual penal.[13]

Ferrajoli emprega 11 termos para a criação dos axiomas: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa. Os 10 últimos termos constituem uma condição necessária para a atribuição de pena. Ou seja, os axiomas formam uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido punir:

A1 Nulla poena sine crimine (Princípio da retributividade)

A2 Nullum crimen sine lege (Princípio da legalidade)

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate (Princípio da necessidade)

A4 Nulla necessitas sine injuria (Princípio da lesividade)

A5 Nulla injuria sine actione (Princípio da materialidade)

A6 Nulla actio sine culpa (Princípio da culpabilidade)

A7 Nulla culpa sine judicio (Princípio da jurisdicionariedade)

A8 Nullum judicium sine accusatione (Princípio acusatório)

A9 Nulla accusatio sine probatione (Princípio do ônus da prova)

A10 Nulla probatio sine defensione (Princípio do contraditório)

A partir deles se estabelece a função do sistema de garantias de condicionar deslegitimando a atuação absoluta do poder punitivo.

Os princípios A1, A2 e A3 respondem às perguntas “quando e como punir”, expressando garantias com relação à pena. Já os princípios A4, A5 e A6 respondem às perguntas “quando e como proibir”, expressando garantias referentes ao delito. Por fim, os princípios A7, A8, A9 e A10 respondem às perguntas “quando e como julgar”, expressando garantias referentes ao processo.

A partir da combinação dos axiomas é possível gerar 45 teoremas diferentes, por exemplo: nullun crimen sine actione (T22) e nullun crimen sine culpa (T23).

De todos os princípios expressos pelos axiomas e teses, o que ocupa lugar central no SG (sistema de garantias) é o princípio da legalidade estrita, enunciado pelo axioma A3, pelas Teses T28-T34 e, resumidamente, pela tese T58.

Desenvolve-se, então, uma tipologia dos sistemas punitivos, sendo possível, assim, subtrair um ou mais axiomas quaisquer e originar uma quantidade inumerável de sistemas penais de diversas espécies. Contudo, ao se extrair uma ou mais garantias, as mantidas podem ser afetadas, uma vez que os axiomas são interligados.

Assim, podem ser enumerados outros nove sistemas, em nível de autoritarismo crescente, conforme são retirados os axiomas:

Sistema S1 – Sem prova e defesa (em sentido estrito);

Sistema S2 – Sem acusação separada;

Sistema S3 – Sem culpabilidade;

Sistema S4 – Sem ação;

Sistema S5 – Sem ofensa;

Sistema S6 – Sem necessidade;

Sistema S7 – Sem delito;

Sistema S8 – Sem juízo;

Sistema S9 – Sem lei.

Cada um desses sistemas se caracteriza pela falta ou enfraquecimento de uma garantia, descrevendo as composições reais dos ordenamentos penais positivos ou de seus institutos específicos, que carecem de garantias acerca de seus modelos normativos de nível jurídico superior.[14]

Outro aspecto relevante do garantismo apresentando por Ferrajoli diz respeito à separação entre moral e direito.

A concepção cognitiva de jurisdição, apresentada no eixo epistemológico da obra do jurista, é responsável por construir as bases nas quais será operada essa separação.

Ferrajoli se filia à doutrina de separação entre direito e moral, formulada pelo pensamento iluminista moderno e, posteriormente, recepcionada pelo positivismo jurídico enquanto fundamento do princípio de legalidade no Estado de direito moderno.[15]

Tal separação se dá pela concepção do princípio assertivo ou teórico, que orienta o problema jurídico da legitimidade interna ou da validade; e do princípio prescritivo, que orienta o problema político da justificação externa ou da justiça.

O princípio assertivo emoldura três significados: de tese meta-lógica, na qual a não separação do direito válido (como é) com relação ao direito justo (como deve ser) constiui uma “falácia naturalista”, denominando de “ideologias” todas as doutrinas que trocam ou confundem o “ser” com o “dever ser”; de tese científica, que rechaça a ideia de que a justiça seja uma condição necessária ou suficiente para a validade das normas jurídicas; e de tese meta-científica, que diz respeito à autonomia do ponto de vista interno (ou jurídico) e do ponto de vista externo (ético-político ou sociológico) no estudo do direito.

Explica o jurista italiano:

“É realmente evidente que somente o abandono de qualquer moralismo jurídico consente à ciência do direito a possibilidade de reconhecer a validade das normas jurídicas com base em parâmetros internos ao ordenamento questionado, independentemente das suas adesões a parâmetros de avaliação externa. Inversamente, somente o abandono de qualquer legalismo ético – ou seja, a negação de qualquer valor apriorístico das normas jurídicas bem como o reconhecimento de seu caráter puramente convencional –, consente à análise política e sociológica de identificar e criticar, com parâmetros externos e não jurídicos, os aspectos de injustiça ou de irracionalidade do direito positivo”.[16]

Já sob a ótica do sentido prescritivo ou axiológico da separação entre moral e direito, essa doutrina se expressa por meio de três princípios axiológicos diversos: aplicado ao delito ou aos problemas de justificação da legislação, propugna que o direito penal não possui a tarefa de impor ou de reforçar a moral, mas, sim, somente de impedir o cometimento de ações danosas a terceiros; aplicado ao processo e aos problemas da jurisdição, implica que o julgamento não verse sobre a moralidade, caráter ou outros aspectos da personalidade do réu, mas apenas sobre os fatos proibidos que lhe são imputados; aplicado à justificação da pena e aos seus modos de execução, impondo que a sanção penal não deve possuir nem conteúdos nem finalidades morais.

Nesse sentido:

“O Estado, além de não ter o direito de obrigar os cidadãos a não serem ruins, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui, igualmente, o direito de alterar – reeducar, redimir, recuperar, ressocializar etc. – a personalidade dos réus. O cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é. As penas, consequentemente, não devem perseguir finalidades pedagógicas ou correcionais, devendo consistir em sanções taxativamente preestabelecidas, não agraváveis por meio de tratamentos diferenciados e personalizados de tipo ético ou terapêutico”.[17]

Portanto, é a partir da separação entre direito e moral que Ferrajoli consegue extirpar da finalidade da pena qualquer função ética, terapêutica ou pedagógica da pena, devendo a punição ser desvinculada de qualquer julgamento de imoralidade ou anormalidade.

Assim, o garantismo comporta a justificativa da prevenção geral negativa para a aplicação da pena, uma vez que é a única que possui o mérito de não confundir o direito com a moral. Isso porque as doutrinas da prevenção geral negativa não possuem como escopo o delinquente.

Na sua formulação iluminista, a finalidade da prevenção geral negativa pode ser distinguida em dois subgrupos:

a) as doutrinas da intimidação exercidas sobre a generalidade dos associados por meio do exemplo fornecido pela aplicação da pena que se dá com a condenação; b) aquelas da intimidação também voltada para a generalidade, mas, por seu turno, por meio da ameaça contida na lei.[18]

Contudo, Ferrajoli alerta para o fato de que as doutrinas da prevenção geral negativa são idôneas a fundar modelos de direito penal máximo, possibilitando penas exemplares e até mesmo punição de inocentes.

Ademais, aponta para o desrespeito à objeção kantiana, segundo a qual nenhuma pessoa pode ser utilizada como meio para fins a ela estranhos, ainda que esses fins sejam sociais e elogiáveis,[19] o que tornaria a justificação das doutrinas de prevenção geral negativa completamente imorais.

Já a proposição mais moderna da doutrina de prevenção negativa proposta por Feuerbach, Romagnosi e Schopenhauer tenta corrigir esses problemas defendendo que tal doutrina deveria estar vinculada à função em relação à generalidade dos associados, e não ao caráter exemplar de punição da pena.

Porém, o autor italiano também enxerga problemas nessa corrente, uma vez que a pena teria a mesma função preventiva de qualquer efeito normativamente disposto como consequência de um ato jurídico.[20] A punição penal, como a consequência mais grave em decorrência de um fato, prevista pelo direito, não pode sustentar a mesma tese de legitimação que o direito como um todo.

Entretanto, em razão de seu caráter formal, a prevenção geral negativa seria a única capaz de assegurar um fundamento racional aos princípios garantistas, delimitando a atuação do poder punitivo estatal.

No entanto, a fim de integrar tal fundamento, e corrigir seus problemas já explicitados, que poderiam conduzir a um direito penal máximo, com aumento progressivo da repressão estatal e das penas cominadas, Ferrajoli embute uma outra finalidade no sistema garantista que seria a de penalizar injustas punições que seriam perpetradas pela vítima, caso o direito penal não atuasse:

“Tutela não apenas a pessoa do ofendido, mas, do mesmo modo, o delinquente contra reações informais, públicas ou privadas. (...) Dos dois objetivos, é o segundo, normalmente negligenciado, o mais característico e que mais merece ser evidenciado. Em primeiro lugar porque enquanto dúbia a idoneidade do direito penal em satisfazer eficazmente o primeiro – não se podendo desconhecer as complexas razões sociais, psicológicas e culturais dos delitos, certamente, não neutralizáveis apenas com o temor das penas (em vez das vinganças) – é, ao contrário, muito mais certa a sua idoneidade para satisfazer o segundo, mesmo se somente por meio de penas modestas pouco mais que simbólicas”.[21]

2. Breves considerações sobre o abolicionismo

O abolicionismo começa a se expandir nos anos 1970 a partir principalmente da Holanda e da Escandinávia, surgido da corrente da criminologia crítica que tem como seu principal alicerce o novo paradigma criminológico do labeling approach, teoria do etiquetamento ou enfoque da reação social.

É com o labeling approach que se tem uma viragem criminológica que entende não ser determinante o estudo do indivíduo que comete o crime, sua socialização ou mesmo as motivações da pessoa que delinque, se antes não for realizado um exame do problema da definição do delito.

Nesse sentido, ensina Alessandro Baratta:

“O que distingue a criminologia tradicional da nova sociologia criminal é visto, pelos representantes do labeling approach, principalmente na consciência crítica que a nova concepção traz consigo, em face da definição do próprio objeto da investigação criminológica e em face do problema gnosiológico e de sociologia do conhecimento que está ligado a este objeto (a ‘criminalidade’, o ‘criminoso’), quando não o consideramos como um simples ponto de partida, uma entidade natural para explicar, mas como uma realidade social que não se coloca como pré-constituída à experiência cognoscitiva e prática, mas é construída dentro desta experiência, mediante os processos de interação que a caracterizam. Portanto, esta realidade deve, antes de tudo, ser compreendida criticamente em sua construção”.[22]

A partir da teoria da reação social, a corrente da criminologia crítica passa a definir o sistema penal como um produto da estrutura classista e patriarcal da sociedade burguesa, resultando em um etiquetamento que seleciona indivíduos a partir da definição do que venha a ser crime e da atuação dos entes oficiais perante a criminalização de uma conduta.[23]

Ante essa problematização do sistema penal, o abolicionismo defende a abolição da pena de prisão ou, em correntes mais radicais, a abolição do sistema penal como um todo.

O abolicionismo pode ser classificado em duas subcorrentes principais:

a) O abolicionismo fenomenológico de Louk Hulsman, que, ao entender que o sistema penal é um problema em si mesmo, defende a sua abolição. Hulsman advoga três razões principais para a abolição do sistema penal: causa de sofrimentos desnecessários que se repartem socialmente de modo injusto, não possui efeito positivo sobre as pessoas envolvidas nos conflitos e por ser extremamente difícil de mantê-lo sob controle. Propõe, então, a substituição do sistema penal por instâncias intermediárias ou individualizadas de solução de conflitos, a fim de atender às necessidades reais das pessoas envolvidas. Defende a redefinição das soluções para as “situações problemáticas”, a partir de modelos compensatórios, terapêuticos, educativos, assistenciais etc.[24]

b) O abolicionismo de Thomas Mathiesen, que, vinculado ao marxismo, relaciona a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista, defendendo não apenas a abolição do sistema penal, mas também a abolição de todas as estruturas repressivas da sociedade. Essa visão de Mathiesen vem de uma estratégia traçada a fim de evitar retrocessos, como pode se dar com as descriminalizações, as penas alternativas à prisão etc.[25]

O presente trabalho se fixará na primeira subcorrente, que posteriormente será analisada em contraposição aos postulados garantistas formulados por Ferrajoli.

Na sua obra Penas perdidas,Louk Hulsman, com foco no que denomina de “criminalidade convencional” (assim compreendida pelos crimes que afetam o patrimônio, como roubo, furto; a segurança das pessoas contra atentados físicos, como lesões corporais; segurança da moradia, como arrombamentos; excluídos os crimes de trânsito, crimes políticos e econômicos), delineia os principais aspectos da sua teoria abolicionista.[26]

O autor primeiramente aponta uma série de problemas presentes no sistema penal atual. Constata o problema das manipulações midiáticas que criaram a figura do “homem comum”, indivíduo obtuso que imagina que a prisão seja um local cheio de assassinos perigosos; bem como as produções dramáticas que polarizam os “bons” com relação aos “maus”.[27]

Essas duas falácias midiáticas desencadeariam uma série de ilusões e preconceitos que levamà manutenção do status quo do direito penal.  Isso porque, ao criar a figura que vê o sistema penal com superficialidade, desconhecimento e preconceito (“homem médio”), acaba por manipular as pessoas que não têm conhecimento do sistema penal, criando uma cômoda abstração para legitimar o sistema existente e reforçar suas práticas.

As garantias instituídas pelo ordenamento penal (como igualdade perante a lei penal e intervenção mínima) são questionadas com relação à sua real efetividade, na medida em que Hulsman denuncia um sistema penal burocrático no qual as instituições estão compartimentalizadas em estruturas independentes, encerradas em mentalidades voltadas para si mesmas; não é possível estabelecer uma responsabilização individual pelo encarceramento de um indivíduo, uma vez que o prisioneiro é “confeccionado” a partir de uma linha de montagem, na qual cada agente oficial possui uma função específica e mínima.[28]

Nessa espiral crítica do sistema penal, Hulsman se aproxima em vários momentos do labeling approach, questionando o porquê de alguns fatos serem puníveis e outros não, demonstrando que o conceito de crime não é operacional, uma vez que é volátil, incerto, indefinido, se modificando ao longo do tempo.[29]

Nesse sentido, também menciona a estigmatização do delinquente, entendendo que é o sistema penal que cria o delinquente a partir da interiorização da pessoa afetada pela etiqueta legal e social.[30]

A pré-seleção também é colocada em cheque, uma vez que só alguns vão para a prisão (os despossuídos), exercendo o sistema penal um processo de criação e reforço das desigualdades sociais.[31]

A culpabilidade é tema de questionamento no abolicionismo de Hulsman, que advoga a adoção de regras civis de indenização para as condutas entendidas como delitos, assim como ocorre nos acidentes. Assim, o autor traça o alicerce para rechaçar o sistema penal e empregar sistemas coercitivos alternativos, uma vez que Hulsman não rejeita qualquer medida coercitiva ou mesmo defende a supressão da responsabilidade pessoal.

Dessa forma, se rejeita um moralismo intrínseco do direito penal, que constrói uma aura de negatividade ao redor do fato ao classificá-lo como crime. Ao defender formas alternativas de coerção e responsabilização pessoal, a intenção é promover uma aproximação das motivações do autor, da visão da vítima e dos outros envolvidos que o direito penal parece afastar. Nesse contexto, afirma Hulsman, em exíguas situações seria possível se atribuir a culpabilidade, pelo menos em nível individual:

“Quando se coloca um ato em seus ambientes próximo e distante e no significado que tem para o autor, torna-se bastante difícil – e parece injusto – apontar um culpado, para fazê-lo suportar sozinho uma situação que, geralmente, lhe transcende”.[32]

Assim, extrai-se do abolicionismo de Hulsman que o que se defende é a abolição do sistema penal, contudo, com a adoção de outras medidas coercitivas e de responsabilidade pessoal:

“É preciso pesquisar em que condições determinados constrangimentos – como a internação, a residência obrigatória, a obrigação de reparar e restituir, etc... – têm alguma possibilidade de desempenhar um papel de reativação pacífica do tecido social, fora do que constituem uma intolerável violência na vida das pessoas”.[33]

Devem-se estabelecer modelos alternativos ao direito penal pela problemática que a pena apresenta na sociedade. São dois elementos, segundo Hulsman, que constituiriam a pena: (1) relação de poder entre quem pune e outro, aceitando que o seu comportamento seja assim condenado porque reconhece a autoridade do primeiro; (2) a condenação é reforçada por elementos de penitência e sofrimento impostos em virtude da relação de poder.

Assim, para que seja legítima, a pena deveria pressupor a concordância das duas partes envolvidas (condenador e condenado). Ocorre que, pelo funcionamento burocrático, compartimentalizado, no formato “linha de produção” do sistema penal não é possível que se estabeleça um acordo satisfatório entre as partes. Assim, os riscos de uma punição desmedida são extraordinariamente elevados.[34]

Nessas bases, o abolicionismo defendido pelo autor rejeita qualquer forma de centralização e institucionalização inerentes, conforme explicitado supra, ao sistema penal. Assim, são igualmente rechaçadas propostas de humanização do cárcere, penas alternativas etc., uma vez que estariam estruturadas dentro da sistemática deficiente do direito penal, não se livrando das máculas que formam os aspectos negativos desse sistema punitivo.[35]

3. Análise crítica do garantismo e do abolicionismo

A partir dos modelos propostos pelos dois autores analisados, de rigor a análise das falhas e dos méritos de cada sistema, a fim de que se possa posteriormente analisar o garantismo diante do abolicionismo, uma vez que o primeiro se apresenta como alternativa ao segundo.[36]

3.1 Análise crítica ao modelo de Ferrajoli

Em que pese a complexa e detalhada construção do modelo garantista de direito penal realizada por Ferrajoli, algumas ponderações devem ser realizadas.

Conforme visto, o jurista italiano estabelece uma dual função do direito penal mínimo: a prevenção geral negativa e a prevenção a penas arbitrárias exercidas por particulares.

Com relação à primeira função, importante destacar que se trata de um fim sem qualquer comprovação estatística, uma vez que não há demonstração de que a ameaça da punição levaria a um menor cometimento de crimes:

“No tocante a primeira finalidade, a prevenção geral negativa dos delitos por meio da ameaça parte de um pressuposto empírico indemonstrável”.[37]

A segunda função determinada por Ferrajoli é ainda mais polêmica, pois a prevenção da vingança privada é um postulado que justifica o direito como um todo, constituindo, tal função do direito penal, portanto, uma violação ao princípio da ultima ratio, uma vez que, por ser o direito penal o ramo do direito que mais afronta a liberdade do indivíduo, deveria ser utilizado em último caso, diante de situações extraordinárias. Se a justificativa penal for a mesma justificativa do direito como um todo, estar-se-ia autorizando a utilização do direito penal para toda e qualquer situação.

Nesse sentido:

“Mas, o ponto de maior debate reside exatamente na finalidade chave do Direito Penal Mínimo, na prevenção de penas arbitrárias. Em um pensamento simplista, basta pensar que as referidas reações vingativas configurariam, na maior parte dos casos, em delitos, de modo que a prevenção de reações arbitrárias e prevenção de delitos seriam iguais. A prevenção de reações vingativas também não pertence unicamente ao Direito Penal. (...) Ao justificar o Direito Penal, Ferrajoli acabou por fundamentar todo o Direito, especialmente o presente em um Estado Democrático, afinal seu escopo fundamental é a proteção dos direitos individuais”.[38]

Ademais, se trata de uma função inconsistente, uma vez que, considerando-se as cifras negras, o sistema penal é uma máquina deficiente, deixando inúmeras situações classificadas como crimes à sua margem, sem qualquer interferência estatal. Contudo, esses delitos não gerariam, na maioria dos casos, uma atuação da vingança privada.

Também é forçoso reconhecer que muitas vezes as reações arbitrárias são causadas pela própria criminalização de uma conduta:

“Também há ocasiões em que as reações arbitrárias decorrem exatamente da ingerência criminógena, do sistema penal, como, por exemplo, na repressão arbitrária ao tráfico ilícito de entorpecentes, em que a disputa pelo monopólio do comércio clandestino tem provocado a morte de muitas pessoas. Se o escopo é evitar reações privadas, possivelmente, seria melhor que o direito penal não buscasse prevenir, neste caso. Cumpre frisar também que o sistema penal somente atua em um número reduzido de casos, produzindo um número alto de supostos impunes. Entretanto, isso não provoca uma onda vingativa”.[39]

Nesse sentido, também aponta Zaffaroni:

“El argumento iluminista de la necesidad del sistema penal para evitar la venganza corresponde a un programa minimo propuesto por el Iluminismo y nunca realizado. En el plano real o social, la experiencia indicaria que ya parece estar bien demostrada la innecesariedad del ejercicio de poder del sistema penal para evitar la generalizacion de la venganza, porque el sistema penal solo opera en un reducidisimo numero de casos y, por ende, la inmensa mayoria de supuestos impunes no generaliza venganzas ilimitadas. Ademas, em America Latina se han cometido crueles genocidios que han quedado practicamente impunes, sin que haya habido episodios de venganza masiva”.[40]

Essas falhas presentes nas funções apresentadas por Ferrajoli acabam por prejudicar o importante postulado da separação entre direito e moral. Ocorre que, ao não ser possível justificar de maneira coerente o sistema penal, seu funcionamento ficaria, então, vulnerável a uma função moral.

Outrossim, importante apontar que mesmo justificativas completamente idôneas para o sistema penal e à prova de quaisquer críticas não seriam capazes de afastar um modelo estigmatizador e seletivo.

Tal afirmação é exposta pela teoria do labeling approach, que, ao voltar suas atenções à maneira como um crime é definido e às implicações dessa definição, demonstra a necessidade de uma reflexão mais profunda, para que se vá além de postulados defendidos desde a escola clássica (e que até hoje têm dificuldade em sua concretização) e se alcance um princípio da estrita legalidade, que é apresentado como garantia central no modelo garantista, em sua total e irrestrita amplitude e efetividade.

Nesse sentido:

“Todavia, é preciso lembrar que a simples redução do sistema penal não é sinônimo de democratização da justiça nem tampouco representa uma postura progressista ou revolucionária. Quando o marquês de Beccaria revolucionouo direito penal no século XVIII, o fez no âmbito de uma revolução social e política e não se limitou a propor simplesmente o controle do sistema punitivo!”.[41]

Críticas à parte, o modelo garantista de Ferrajoli apresenta uma complexa sistematização de direitos e garantias que consubstanciam a atuação estatal no ramo do direito penal, proporcionando, por meio de seus axiomas e outros postulados, um filtro pelo qual devem passar as práticas penais, fazendo frente, dessa forma, às correntes autoritárias:

“É pertinente ressaltar que a narrativa minimalista de um direito penal reduzido e limitado por garantias constitucionais do processo tem feito uma saudável oposição ideológica ao discurso do chamado ‘direito penal de terceira velocidade’, que se expressa em doutrinas e movimentos como, por exemplo, ‘direito penal do inimigo’, ‘movimento lei e ordem’, ‘tolerância zero’ etc.”.

3.2 Análise crítica ao modelo abolicionista de Hulsman

Em que pesem as ousadas proposições do modelo abolicionista de Louk Hulsman, algumas observações devem ser realizadas.

Primeiramente, destaca-se que há objeções ao abolicionismo no sentido de que se trataria de uma postura utópica e ingênua, uma vez que as proposições apresentadas não seriam capazes de lidar com as complexidades de uma sociedade moderna.

Bem como se afirma que o abolicionismo foi construído em sociedades simples e com problemas criminais reduzidos, levando em consideração apenas crimes de baixa gravidade.[42]

Essa ingenuidade e aplicação das proposições do abolicionismo a delitos menos graves e violentos é, por exemplo, atribuída a uma situação hipotética proposta por Hulsman em sua obra a fim de evidenciar  diferentes padrões de reações  diante de situações conflituosas:

“Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arremessa contra a televisão e a danifica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas, cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O estudante número 2, furioso, diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: ‘o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague’. O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: ‘ele está evidentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc...’. O último, enfim, sussurra: ‘a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse... vamos juntos fazer um exame de consciência’.

Aqui se tem quase toda a gama de reações possíveis diante de um acontecimento atribuível a uma pessoa: o estilo punitivo, os estilos compensatórios, terapêutico, conciliador... Se deixarmos as pessoas diretamente envolvidas manejarem seus próprios conflitos, veremos que, ao lado da reação punitiva, frequentemente vão aparecer outros estilos de controle social: medidas sanitárias, educativas, de assistência material ou psicológica, reparatórias etc.

Chamar um fato de crime significa excluir de antemão todas estas outras linhas; significa se limitar ao estilo punitivo e ao estilo punitivo da linha socioestatal, ou seja, um estilo punitivo dominado pelo pensamento jurídico, exercido com uma distância enorme da realidade por uma rígida estrutura burocrática. Chamar um fato de ‘crime’ significa se fechar de antemão nesta opção infecunda”.[43]

No tocante ao argumento da ingenuidade, pela proposição de um modelo conciliador, destaca-se que se trata de uma distorção do sistema proposto por Hulsman, pois, como se pode extrair do excerto supra, não há a defesa de um modelo específico substitutivo ao penal, mas, sim, de um contexto de crítica à exclusão que a denominação “crime” gera com relação a outras formas de resolução de situações problemáticas.

A esse respeito importante asseverar que o direito penal é visto por Hulsman como um limitador e ferramenta excludente das mais diversas formas de resolução de conflitos, muitas das quais só poderiam ser vislumbradas a partir da exclusão do direito penal, traduzindo-se em uma das mais importantes proposições do modelo abolicionista, como será adiante explicitado.

3.3 Análise crítica conjunta do garantismo e abolicionismo

Destacam-se nessa análise dois principais pontos de divergência entre os modelos propostos por Ferrajoli e Hulsman:

a) Do garantismo com relação ao abolicionismo: a extinção do direito penal seria substituída por soluções piores ou mais prejudiciais, uma vez que o abolicionismo não emprega uma sistematização organizada a respeito de quais seriam seus substitutos.

b) Do abolicionismo com relação ao garantismo: na defesa pelo abolicionismo de que um direito penal reduzido não seria capaz de mitigar os seus problemas, uma vez que é na estrutura do direito penal que se encontram suas máculas.

Com relação à oposição do garantismo ao abolicionismo, Ferrajoli, criticando a deficiente estrutura de modelos substitutivos ao direito penal, afirma que sua extinção se traduziria em uma sociedade selvagem, na qual prevaleceria a lei do mais forte, ou em uma sociedade disciplinar, descrevendo um modelo social digno de comparação com a sociedade descrita na obra de Aldous Huxley, Admirável mundo novo:

“Todas essas doutrinas possuem um duplo efeito. Primeiramente, os modelos de sociedade por elas perseguidos são aqueles pouco atraentes de uma sociedade selvagem, sem qualquer ordem e abandonada à lei natural do mais forte, ou, alternativamente, de uma sociedade disciplinar, pacificada e totalizante, onde os conflitos sejam controlados e resolvidos, ou, ainda, prevenidos, por meio de mecanismos ético-pedagógicos de interiorização da ordem, ou de tratamentos médicos, ou de onisciência social e, talvez, policial”.[44]

Em observação à concepção de Ferrajoli do abolicionismo, Zaffaroni afirma que a crítica do autor italiano com relação à falta de sistematização do abolicionismo esbarra na própria proposta de função do direito penal do garantismo. Ademais, advoga com relação às possíveis sociedades geradas pela ausência do direito penal que o modelo abolicionista estaria propondo não apenas a extinção do mesmo, mas sim o surgimento de uma nova sociedade que emergiria a partir da libertação com relação ao punitivismo estabelecido:

“La justificacion que Ferrajoli encuentra para su ‘derecho penal minimo’ nos parece que entra en contradiccion – al menos parcialmente – con las mismas pautas que senala cuando afirma que no pueden rechazarse los ‘fines’ de las penas que se establecen preceptivamente apelando a argumentos empiricos, puesto que la critica a la que somete al abolicionismo se basa, justamente, en la experiencia empirica que ofrece la operatividad real de los sistemas penales vigentes.

Esta critica parece pasar por alto que el abolicionismo, aunque no lo exprese claramente y aunque algunos de suspartidarios lo nieguen, tambien esta proponiendo un nuevo modelo de sociedad. En tal sentido, no vemos cual es la razon por la cual no pueda concebirse una sociedad, por lejana que sea, en que los conflictos puedan resolverse – o no resolverse, si es que no hace falta – sin apelar a penas y a la instancia punitiva formalizada y sin que esto, necesariamente, deba traducirse en una mayor represion. El mismo Ferrajoli reconoce que las penas no resuelven los conflictos, por lo cual, en su propuesta minima, el unico criterio de subsistencia seria la utilidad para evitar una hipotetica venganza”.[45]

Por sua vez, Hulsman rechaça toda e qualquer forma reduzida de direito penal:

“Diferentes escolas de pensamento tentaram limitar as consequências desumanas do sistema penal. Umas, preconizando a limitação das penas privativas de liberdade, tentaram influir também em sua aplicação, quando esta se mostrasse inevitável. Acreditavam que, transformando os fins da pena, ao fazer, notadamente da pena privativa de liberdade, uma medida de reeducação ao invés de um castigo, operar-se-ia uma metamorfose nos sistemas penal e penitenciário, imaginando que este pudesse se tornar uma espécie de escola de readaptação onde o preso se prepararia para uma melhor inserção social.

(...) Ora, a prática demonstra que não basta procurar uma solução mais social do que jurídica para o conflito; o que é preciso sim é questionar a noção mesma de crime, e como ela, a noção de autor. Se não deslocarmos esta pedra angular do sistema atual, se não ousarmos quebrar este tabu, estaremos condenados, quaisquer que sejam nossas boas intenções, a não sair do lugar”.[46]

Destaca-se que se trata de crítica demasiada radical ao se considerar a grande transformação que propõe o abolicionismo. A mudança da sociedade proposta por essa corrente não se daria da noite para o dia, sendo necessário que, considerando que a sociedade pudesse caminhar para a extinção do sistema penal, fossem resguardadas as garantias dos jurisdicionados perante a atuação estatal.

Observa-se nesse sentido que o modelo proposto por Ferrajoli é, antes de tudo, um compêndio de direitos constitucionais que jamais deveriam ser extintos, pois o seu desaparecimento poria fim ao Estado Democrático de Direito.

Diante de tal embate, propõe-se um novo ângulo diverso da polarização entre abolicionismo e garantismo, conjugando-se as proposições mais fortes de ambas as correntes.

Se o garantismo não consegue completar satisfatoriamente a tarefa de atribuir uma função legítima à pena e ao direito penal como um todo, propõe-se a apropriação da assertiva do abolicionismo no sentido de que o direito penal atuaria como uma venda, cegando qualquer vislumbre de soluções a ele diversas para a resolução dos conflitos.

Dessa forma, essa lógica abolicionista atuaria na raiz da determinação das condutas que seriam penalizadas, sempre provocando uma reflexão da possibilidade de outras soluções para a situação problemática.

Ou seja, o postulado abolicionista deveria estar na ponta inicial do surgimento do direito penal, impedindo a criminalização da grande maioria das condutas, enquanto que aquelas que irremediavelmente tivessem que ser tuteladas pelo direito penal, estariam asseguradas a uma incidência reduzida, sempre tutelada pelo garantismo.

Conclusão

O sistema garantista apresentado por Ferrajoli sustenta uma separação entre o direito e a moral que pretende se irradiar por todo o sistema penal. Contudo, tal divisão encontra algumas dificuldades na função dual da pena apresentada pelo autor italiano.

Primeiramente, porque não consegue justificar a prevenção geral negativa da pena, que não encontra nenhum parâmetro empírico que a comprove, ensejando tal função, inclusive, um aumento do poder repressivo, a fim de efetivar o peso ameaçador da pena.

A segunda função da punição apresentada no garantismo também padece de uma série de deficiências, não se comprovando no plano dos fatos que a ausência do direito penal provocaria vingança privada, havendo inclusive situações contempladas pelas cifras negras que rechaçam tal afirmação.

De outra monta, a justificativa da função da pena como um aparato capaz de impedir práticas vingativas é fundamento do direito penal como um todo, provocando tal coincidência de justificativas um abalo no princípio da ultima ratio, uma vez que o direito penal necessita de especial justificativa para incidir, ante a gravidade de suas consequências.

Mais uma vez, a justificativa da punição poderia levar a um aumento da incidência do direito penal por meio da penalização de quaisquer condutas.

Já o sistema abolicionista defendido por Hulsman apresenta a tese de que o direito penal é reflexo de uma seletividade e segregação de determinadas camadas da população, gerando consequências deletérias e prejudiciais, além de ineficazes.

Assim Hulsman advoga a extinção do direito penal, a fim de que se devolva às partes concernentes a possibilidade de redirecionarem a solução de conflitos.

Contudo, o abolicionismo é criticado pela falta de sistematização das suas proposições, bem como de ingenuidade para lidar com o problema criminológico.

Entretanto, apontou-se que se entende que o principal problema do abolicionismo não está na ingenuidade, mas no risco em que se colocaria as garantias já estabelecidas ao longo jornada em direção ao abandono do sistema punitivo.[47]

Dessa forma, conclui-se por uma visão do garantismo não como uma meta insuperável, mas como uma transição obrigatória para o abolicionismo. Nesse sentido, Zaffaroni:

“Es incuestionable, a nuestro juicio, que el derecho penal minimo es una propuesta que debe ser apoyada por todos los que deslegitiman el sistema penal, pero no como meta insuperable, sino como paso o transito hacia el abolicionismo, por lejano que hoy parezca, como un momento dei ‘unfimshed’; de Mathiesen, y no como un objetivo ‘cerrado’ o ‘acabado’. Nos parece que el sistema penal se halla deslegitimado tanto en terminos empiricos como preceptivos, puesto que no vemos obstaculo a la concepcion de una estructura social em que sea innecesario el sistema punitivo abstracto y formalizado, tal como lo demuestra la experiencia historica y antropologica”.[48]

Nessa transição, propõe-se um modelo que adote na origem da determinação de condutas como criminosas a reflexão abolicionista, que ao demonstrar ser impossível a tarefa de se estabelecer uma função do direito penal que seja vedada a críticas, conduz à adoção da ultima ratio como postulado central, a fim de que se descortinem novas formas de solução de conflitos.

Ao mesmo tempo, propugna-se a manutenção do sistema de garantias nessa caminhada, com o objetivo de blindar (pelo menos minimamente) o arbítrio e o abuso de práticas estatais repressoras.

Referências bibliográficas

Barratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013.

Borges, Paulo César Corrêa. Leituras de um realismo jurídico-penal marginal: homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica, 2012.

Brito, Alexis Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (org.). Caderno de Ciências Penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político criminais. São Paulo: Plêiade, 2012.

Carvalho, Salo de; Wunderlich, Alexandre (org.). Diálogos sobre a justiça dialogal – teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002.

Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993.

Kant, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003.

Peluso, Vinícius de Toledo Piza. Abolicionismo e terceira velocidade do direito penal: conclusões possíveis. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, n. 13, v. 7, 2010.

Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima, 1998.

Andrea Sangiovanni Barretto

Bacharel em direito pela Universidade Mackenzie

Advogada

[1] Borges, Paulo César Corrêa. Leituras de um realismo jurídico-penal marginal: homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica, 2012. p. 95.

[2] Idem, p. 97.

[3] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 30.

[4] Brito, Alexis Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (org.). Caderno de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012. p. 184.

[5] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 684.

[6] Idem, p. 685.

[7] Idem, ibidem.

[8] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 38.

[10] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 39.

[11] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 41.

[12] Idem, p. 42.

[13] “Estes dez princípios estabelecem as regras do jogo fundamental do direito penal e são provenientes do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, que estabeleceu tais diretrizes de cunho político, moral ou natural para limitar o poder penal ‘absoluto’. Pode-se dizer que sua adoção nos sistemas modernos é praticamente completa, convertendo-se em princípios jurídicos do moderno Estado de direito” (Brito, Alexis Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (org.). Caderno de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012. p. 197).

[14] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 79.

[15] Idem, p. 175.

[16] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 177.

[17] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 179.

[18] Idem, p. 222-223.

[19] Kant, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003. p. 174-175.

[20] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 224.

[21] Idem, p. 268-269.

[22] Barratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2013. p. 86-87.

[23] Peluso, Vinícius de Toledo Piza. Abolicionismo e terceira velocidade do direito penal: conclusões possíveis. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, n. 13, v. 7, 2010, p. 352.

[24] Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima, 1998. p. 103-104.

[25] Idem, p. 104.

[26] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 55.

[27] Idem, p. 55 e 70.

[28] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 58 e ss.

[29] Tal conclusão pode ser traduzida pela seguinte frase de Hulsman: “Um belo dia, o poder político pára de caçar as bruxas e aí não existem mais bruxas” (Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 64).

[30] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 69.

[31] Idem, p. 74.

[32] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 73-74.

[33] Idem, p. 86-87.

[34] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 87.

[35] Idem, p. 94 e ss.

[36] “O garantismo jurídico-penal, entendido desde a perspectiva crítica do direito, não se apresenta apenas como alternativa viável aos modelos de criminalização excessiva e punição desproporcional, mas, também, como modelo alternativo ao proposto pela teoria abolicionista” (Carvalho, Salo de Carvalho; Wunderlich, Alexandre (org.). Diálogos sobre a justiça dialogal – teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 143).

[37] Brito, Alexis Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (org.). Caderno de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012. p. 210.

[38] Idem, p. 211.

[39] Brito, Alexis Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (org.). Caderno de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012. p. 213.

[40] Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima, 1998. p. 111.

[41] Borges, Paulo César Corrêa (org.). Leituras de um realismo jurídico-penal marginal: homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica, 2012. p. 99.

[42] Peluso, Vinícius de Toledo Piza. Abolicionismo e terceira velocidade do direito penal: conclusões possíveis. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, n. 13, v. 7, 2010, p. 354-355.

[43] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 100.

[44] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 203.

[45] Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima, 1998. p. 108-109.

[46] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993. p. 94-95.

[47] Hulsman defende que o direito penal poderia ser facilmente abolido, uma vez que as organizações sociais que dele se ocupam, tais como magistratura, polícia, Ministério Público, poderiam facilmente tranferir suas atividades para outras searas (Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam Ed., 1993, p. 90).

[48] Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas – deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima, 1998. p. 110-111.

Escolas Penais
A proibição do uso de máscaras em manifestações públicas: subversão do programa garantista no país da pretensão democrática
Data: 24/11/2020
Autores: Bruno Almeida de Oliveira

Resumo: Este artigo aborda a proibição do uso de máscaras e afins em manifestações públicas, assim como o poder conferido às polícias para reprimir essa conduta, nos termos da correlacionar a cogitada Lei estadual 15.556/2014. Sob o fio condutor da preeminência dos direitos fundamentais, tônica do Estado Democrático de Direito, e de considerações com pretensão crítica, procura correlacionar a cogitada vedação com a perspectiva do garantismo penal de Ferrajoli, notadamente a diretriz que preconiza a minimização do poder punitivo estatal e a maximização da liberdade dos cidadãos.

Palavras-chave: máscaras; manifestações; Lei 15.556/2014; garantismo.

Abstract: This paper discusses a ban on the use of masks in public demonstrations, as well as the power given to the police to suppress such conduct under State Law 15.556 /2014. Under the guiding principle of the primacy of fundamental rights, main characteristic of democratic state of law, and supposed critical point of view, this paper seeks to correlate the ban of use of masks with the prospect of so called ‘Legal Garantism Theory’, formulated by Ferrajoli, notably the theoric guideline that calls for the minimization of state punitive power and maximizing the freedom of citizens.

Key-words: masks; public demonstrations; Law 15.556/2014; garantism theory.

Sumário:Introdução – 1. A Lei 15.556/2014: crônica de uma morte anunciada – 2. A conduta – 3. Novas velhas incumbências das polícias – 4. Vedar para garantir? 5. Punitivismo: quosque tandem? (até quando?) – 6. Garantismo penal – Conclusão – Referências bibliográficas.

Introdução

Manifestações públicas ocorridas no Brasil a partir de junho de 2013 firmaram, muitos quiseram crer, salutar início de nova era no exercício da cidadania brasileira, talvez a da efetivação dos direitos, de acordo com Bobbio.[1] De um panorama de difuso descompromisso com os assuntos políticos, por generalizada negligência quanto à res publica, muitos brasileiros passaram a agir de forma inédita, ao menos na história recente deste país. Milhares às ruas a gritar, a plenos pulmões, que as coisas não iam bem.

Na multidão, também, apresentaram-se mascarados, pessoas que logo passaram a ser associadas às práticas de crimes no desenrolar das manifestações públicas, mote para toda a sorte de críticas.

Entre elas, apresentaram-se, é claro, punitivistas, reunidos por discursos de senso comum teórico, a clamar, segundo a praxe, punições; punições penais. Perspectiva que não se compadece com diretrizes do Estado Democrático de Direito, que preza substancialmente o valor superior liberdade.

Esse é o assunto que anima este breve articulado: a correlação entre liberdade e poder punitivo estatal, no contexto da proibição do uso de máscaras e afins em manifestações públicas.

1. A Lei 15.556/2014: crônica de uma morte anunciada

Em 29 de agosto de 2014, deu-se a publicação da Lei estadual 15.556:[2]

“Art. 1.º O Estado garantirá, nos termos dos incisos IV e XVI do art. 5.º da Constituição Federal, a qualquer pessoa o direito à manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, e a reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente, na forma desta lei.

Art. 2.º Na manifestação e reunião a que se refere o art. 1.º, com o objetivo de assegurar que ninguém a faça no anonimato, fica proibido o uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça a sua identificação.

Parágrafo únicoA proibição a que se refere o “caput” deste artigo não se aplica às manifestações e reuniões culturais incluídas no Calendário Oficial do Estado.

Art. 3.º À proibição constitucional de portar armas nas manifestações e reuniões públicas, incluem-se as de fogo, as armas brancas, objetos pontiagudos, tacos, bastões, pedras, armamentos que contenham artefatos explosivos e outros que possam lesionar pessoas e danificar patrimônio público ou particular.

Art. 4.º As manifestações e reuniões em locais e vias públicas, inclusive organizadas através das redes sociais, na Internet, conforme previsão constitucional, deverão ser previamente comunicadas às Polícias Civil e Militar, na forma de regulamento expedido pela Secretaria da Segurança Pública.

Art. 5.º Para a preservação da ordem pública e social, da integridade física e moral do cidadão, do patrimônio público e particular, bem como para a fiel observância do cumprimento desta lei, as Polícias Civil e Militar efetuarão as devidas intervenções legais.

Art. 6.º Esta lei deverá ser regulamentada até 180 (cento e oitenta) dias após a sua publicação.

Art. 7.º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Do que de imediato interesse ao presente estudo, destacam-se dois dados da Lei estadual 15.556/2014: 1) a proibição de uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça sua identificação – art. 2.º – e 2) a incumbência das polícias civil e militar de efetuar as devidas intervenções legais para o cumprimento da lei – art. 5.º.

Antes, porém, de examiná-los, necessário apontar circunstâncias que antecederam sua edição.

A aprovação dessa Lei esteve intimamente ligada a manifestações públicas ocorridas em vários Estados do Brasil a partir de junho de 2013, motivadas, de início, contra o aumento dos valores das tarifas do transporte público.

Agregaram-se, após, outras demandas sociais, adstritas à efetivação de políticas públicas, com a repressão, em regra, das polícias. Truculência, violência e violação de direitos humanos constituíram respostas imediatas ofertadas pelo Estado às palavras de ordem que ecoaram pelas ruas deste País, verdadeira “estratégia do medo”, segundo relatório da Anistia Internacional.[3]

Apesar da larga repressão à sociedade civil como um todo, as manifestações prosseguiram, até o momento em que a mídia passou a noticiar a prática de crimes no desenrolar das manifestações, por indivíduos mascarados:

“Mascarados depredam ônibus e entram em confronto com a PM de Salvador” – Folha de S. Paulo, 07.09.2013;[4]

“Mascarados aterrorizam centro com saques e ataques a policiais” – Estadão, 19.06.2013;[5]

“Mascarados entram em confronto com a PM após ato de professores” – O Globo, 15.10.2013;[6]

“Sem policiamento, grupo mascarado promove onda de vandalismo em BH” – O Estado de Minas, 18.06.2013.[7]

Vale observar que, até então, havia discurso das autoridades públicas mais ou menos homogêneo no sentido de concordarem com a legitimidade das pautas das manifestações, talvez por anteverem oportunas plataformas eleitorais para a campanha seguinte.

Todavia, com o suposto atuar dos mascarados, despontou, no horizonte político, raio oportuno, a sobrepujar a urgência de um debate sincero de toda a sociedade brasileira sobre tudo o que acontecia, pela busca da criminalização de um novo inimigo, o mascarado, ou, por via reflexa, o movimento social.[8] Como dizia a vinheta de aclamado filme brasileiro, “o inimigo, agora, é outro”.

Em jogo, direitos e garantias fundamentais:

“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[...]

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

[...]

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

[...]

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”

Em breve resumo, algo absolutamente inócuo como o uso de máscaras, em certo sentido até jocoso, tal qual o “porte de vinagre”, no específico lócus das manifestações públicas passou a ser associado à prática de condutas criminosas. Um ideal, mais ou menos velado, de que o mascarado ou praticou ou praticará crimes.

Nada que o delírio legislativo não resolva. Então, fruto de paulatino endurecimento do poder punitivo respeitante ao problema sociopolítico que subjazia as manifestações públicas, foi editada a Lei 15.556/2014, crônica de morte anunciada, destinada à repressão desse sujeito perigoso, o mascarado, alvo, igualmente, de outros Projetos de Lei, o 236/2012 e o 508/2013, os quais propõem a criminalização do “terrorismo”, atos de “vandalismo” e afins, mediante preceitos primários lacunosos, expressivos exemplos de retrocesso democrático.[9]

2. A conduta

Isso recuperado, reinveste-se nos pontos suspensos. O primeiro deles é a conduta, a proibição de uso de máscara ou objeto afim, apto a dificultar a identificação da pessoa. Tudo sob ambivalente propósito de garantir o exercício de liberdades públicas, desde que não se faça sob anonimato.

De plano, saltam aos olhos a inexistência, ao menos declarada, de sanção, lei imperfeita, segundo classificação proposta por Franco Montoro;[10] preceito ético, talvez, cujo adimplemento requer espontânea adesão, de acordo com Reale,[11] ou, diria Thoreau, em tom de desobediência civil, irresistível convite ao “direito de revolução”.[12]

Consequência, quem sabe, da rapidez na tramitação do Projeto, o 50/2014, outro exemplo de singular atecnia jurídica, fundamentado, entre outros, na busca de vedar o anonimato, dito “ato preparatório para a prática de crimes”,[13] dado, por si só, de lamentável carência dogmática, afinal, em nossa tradição jurídica, tais atos, em regra, são impuníveis.

Por isso, senão pela estrutura, a perspectiva – seria oportuno escrever “o ranço” – que presidiu a edição da lei, ao cercear direitos fundamentais, é de evidente caráter penal.

Daí ser oportuno desde já situá-la distante daquela “relação de mútua referência” entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal, referida por Figueiredo Dias, para a aferição do bem jurídico, cerne da tutela jurídico-penal. Ao menos em um país com pretensão democrática.[14]

Com efeito, tem-se evidente objeção a um estilo, ou modo de ser, dos indivíduos que usam máscaras, quadro que não se compadece, agora, sob viés dogmático, com o “caráter limitado do Direito Penal”, fragmentário, subsidiário e de intervenção mínima.[15]

Parece, assim, haver inequívoca aposta na ideia de que o “ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso”,[16] característica do Direito Penal do autor, repressivo e estigmatizador, forjado em (pres)suposta periculosidade do agente.

Quadro apresentado à sociedade, aliás, por um discurso que se encarrega de disfarçar nossa práxis: “o principal expediente é proclamar, nas leis e nas teorias jurídicas, que as pessoas são punidas pelo que fazem e não pelo que são”.[17]

Então, com algum jogo de palavras, afirma-se destinar a proibição à garantia do exercício de direitos fundamentais, notadamente liberdade de expressão, desde que não se faça sob anonimato. Como se o exercício deles dependesse da intermediação do legislador estadual para “regulamentá-los”, quando a mera enunciação “é livre...”, intuitivamente demarca limite, um dever geral de abstenção, de não ingerência, do Estado.

Assim, o mascarado, vândalo, “representado como potencialmente capaz de desenvolver práticas de dilapidação do patrimônio público e privado, para o qual se tornarão igualmente necessárias ações repressivas, particularmente da polícia militar brasileira”,[18] passou a ser considerado inimigo da sociedade brasileira, perseguido pela polícia antes mesmo de lei legitimar o ilegitimável.

3. Novas velhas incumbências das polícias

Se não bastasse a duvidosa constitucionalidade do art. 2.º da Lei estadual 15.556/2014, no art. 5.º o legislador conferira às polícias civil e militar o poder de efetuar as “devidas intervenções legais”.

Sem esclarecer o que elas seriam, legitimou, por via oblíqua, a possibilidade de policiais efetuarem conduções de “suspeitos” a delegacias de polícia, para averiguações, prática que afronta a Constituição Federal, mas suficiente à temporária neutralização de seus alvos.

Ponto que se aproxima de todo o simbolismo da ameaça ínsita à pena restritiva de liberdade, ápice da sanha punitivista, com a difusa possibilidade de contenção inconstitucional/ilegal/ilegítima de práticas mal vistas por autoridades públicas, as quais, entretanto, não encontram amparos constitucional e legal.

Basta cogitar dos episódios insistentemente noticiados pela imprensa de violência e de truculência de policiais contra mascarados e não mascarados em manifestações públicas, entre as quais o do dia 14.06.2013, referido no Editorial n. 249 do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que culminara em 232 pessoas conduzidas a delegacias de polícia, resultando, ao cabo, em apenas 4 prisões.[19]

Nada muito distante de conhecida política seletiva do sistema penal, ao vedar determinadas práticas que, realizadas em espaços públicos, são sobranceiramente reprimidas pelas polícias. Eis o fator “visibilidade da infração”, referido por Augusto Thompson, a concorrer para o reconhecimento formal, ou não, da ocorrência de dado delito pelas polícias.[20]

Isso se dá, também, com o tráfico de drogas, outro significativo exemplo de infração penal orientada pela seletividade, conforme pesquisa empírica levada a efeito por Orlando Zaccone, delegado de polícia no Rio de Janeiro.

É que a traficância, nos bairros pobres, ocorre a céu aberto, em vias públicas, distinta daquela realizada em bairros ricos, restrita a espaços privados, não sujeita à atividade policial. Dado a concorrer para o entendimento do papel fundamental das polícias na criminalização secundária dessa conduta,[21] à semelhança do cogitado uso de máscaras.

Retomando-o, certo é que, na prática, antes mesmo da aprovação da Lei 15.556/2014, a situação já havia alcançado contornos dramáticos, com a aplicação da Lei federal 7.170/1983, a Lei de Segurança Nacional, aos indivíduos mascarados surpreendidos em supostas atividades ilícitas (rectius: subversivas) em manifestações públicas.

Essa temática, aliás, foi objeto de Mesa de Debate do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, com a participação dos professores Alexis Couto de Brito e Carlos Alberto Corrêa de Almeida, em que este, ao contrário daquele, referiu entender a plena aplicabilidade dessa autoritária legislação nos dias atuais.[22]

4. Vedar para garantir?

Sem grandes esforços, então, conclui-se que os parlamentares de São Paulo, premidos por circunstâncias político-sociais a que não estão acostumados, isto é, explicitações, quase que em todos os dias do mês de junho de 2013, da desconformidade de considerável parcela da população, decidiram, conforme expuseram no Projeto de Lei 50/2014, não embaciar preceitos fundamentais:

“Não obstante os louvados propósitos que levaram milhões de pessoas às ruas em todo o País no mês de junho de 2013, entendemos que esse direito individual e coletivo de manifestar-se e reunir-se deve ser regulamentado, dentro dos próprios limites estabelecidos pela Constituição da República – que no mesmo sentido impõe deveres individual e coletivo –, com o intuito de combater excessos no uso de tal direito, que possa, eventualmente, prejudicar a esfera de direitos de um número muito maior de cidadãos.

Com efeito, nos últimos meses, as manifestações tornaram-se palco quase que exclusivo de grupos autodenominados radicais, cuja plataforma principal de reivindicação é destruir, danificar, explodir, queimar, saquear e aterrorizar. Esses grupos costumam utilizar-se de máscaras ou outros paramentos que dificultam a identificação individual. Tal comportamento, por fim, tem esvaziado as legítimas manifestações e prejudicado o direito dos demais cidadãos de bem de se manifestarem. Além, por óbvio, de deixarem rastros de pânico e destruição e, consequentemente, causando prejuízos ao erário público.”[23]

Não. Deputados estaduais, assumindo papel de intérpretes de anseios de parcela de cidadãos “de bem”, provavelmente por que se consideram também cidadãos “de bem”, enunciaram necessidade de conter excessos de outros, os “de mal”; vedar para garantir (“[...] tal comportamento, por fim, tem esvaziado as legítimas manifestações e prejudicado o direito dos demais cidadãos de bem de se manifestarem [...]”).

Perspectiva muito próxima àquilo que Giorgio Agamben expôs sobre dada tendência de se considerar o estado de exceção, pela supressão, efêmera, do ordenamento jurídico (anomia), para sua manutenção, “um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde pura violência sem ‘logos’ pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real”.[24]

5. Punitivismo: quosque tandem? (até quando?)

De fato, mediante discurso de baixa, baixíssima densidade crítica, sedimenta-se, em nossa margem periférica, conforme Zaffaroni, a perpetuação de uma tradição de desrespeito a direitos comezinhos no Estado Democrático de Direito.[25]

Com isso, por evidente, não se quer descaracterizar a necessidade do Direito Penal em um país como o Brasil, de dimensões continentais, em que problemas estruturais, não raro, deságuam no grande rio da violência.

Sustentar essa perspectiva, para além de negar, em larga medida, a capacidade de autodeterminação das pessoas, elemento fundamental de nossa tradição jurídico-penal – rotineiramente referido nas reuniões do Grupo de Estudos Avançados – GEA – seria um sonho. Um sonho como pretender aplicar, a palo seco, em terrae brasilis, o programa do abolicionismo penal, concebido em longínqua realidade social.[26]

Esse modo de examinar o problema, entretanto, não deslegitima discurso que indica a consolidação de um processo de policização por que passa a sociedade brasileira, algo muito claro, noticiado diariamente pela mídia, mas que escapa ao cidadão do vulgo, embevecido na falácia do êxito da ameaça da pena restritiva de liberdade, a prisão, “história de 200 anos de fracasso, reforma, novo fracasso e assim por diante”.[27]

De fato, “como se uma cultura punitiva de longa duração se metamorfoseasse indefinidamente”,[28] com o paulatino aumento do poder punitivo, inversamente proporcional ao âmbito de liberdade do indivíduo.

Pondera-se, então, a necessidade de se divisar uma abordagem teórica apta a ofertar, no panorama brevemente exposto, legítima correlação entre o poder punitivo estatal e a liberdade dos cidadãos. Daí a urgência de se falar em garantismo penal.

6. Garantismo penal

Como se sabe, a teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli, forjada, entre outros, na preeminência da dignidade da pessoa, propõe a diretriz de maximização dos direitos fundamentais e a minimização do poder restritivo do Estado.[29]

Notadamente no Direito Penal, âmbito no qual o “direito formal em jogo é a imunidade do cidadão a proibições e punições arbitrárias”,[30] os direitos fundamentais constituem, assim, limites substanciais à atuação estatal: “uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do bem comum”,[31] ainda que, por exemplo, consubstanciada em lei.

Daí corriqueira a menção a esferas, no Estado Democrático de Direito, do decidível e do não decídivel, enquadrando-se nesta “os direitos fundamentais, funcionando como ‘verdadeiro marco divisório, impeditivo do avanço do legislativo’”.[32]

Oportuno, agora, correlacionar tais diretrizes teóricas à vedação do uso de máscaras, prevista na Lei estadual 15.556/2014.

Consoante referido no item anterior, a proibição do uso de máscaras em manifestações públicas proporciona minimização de direitos fundamentais – como liberdade e liberdade de expressão – e a maximização do poder repressivo do Estado, subversão do programa garantista.

De fato, pela enunciação de suposto objetivo declarado de propiciar o exercício de liberdades públicas, o legislativo de São Paulo aprovou lei que constitui claro exemplo de uma política criminal punitivista, orientada para a contenção de nicho específico da sociedade brasileira, o “mascarado”.

Dando-lhe o predicativo de inimigo, possibilita intervenções das polícias, deixa para a prática das famigeradas conduções para averiguação, evidente retrocesso jurídico-legal, ainda mais em um país que passou por recente período de ditadura militar.

Não há pretensão de democracia na contemporaneidade que se mantenha diante de atuações estatais as quais, paulatinamente, derrocam direitos fundamentais, no caso em voga, sob a alegação de proteção de preceito constitucional outro, a vedar o anonimato, mas que não encontra amparo, como visto, em premissa essencial do Estado Democrático de Direito, logo, do garantismo penal, a contenção do poder punitivo estatal.

Conclusão

Este pequeno artigo teve como mote a Lei 15.556/2014, do estado de São Paulo, que proibiu o uso de máscaras e afins em manifestações públicas, assim como conferiu às polícias o dever de realizar as ditas intervenções necessárias.

Vedação levada a efeito sob argumentos diversos, oportunamente abordados, convergentes, consoante se referiu, para a punibilidade de um modo de ser, ou, por via reflexa, de movimentos sociais, muito distantes do postulado essencial do bem jurídico-penal.

Houve também ensejo para referência a certa perspectiva de estado de exceção, proposta por Agamben, em que há subversão do Estado Democrático de Direito, sob subterfúgio de alcançar-se sua manutenção. Um descalabro, ao qual, de certa forma, não se está distante.

Após, foram declinadas, em continuidade, nuanças do punitivismo que grassa o Brasil, país periférico em que há larga tradição do aumento do poder punitivo do Estado, à proporção que é mitigada a liberdade dos indivíduos.

Então, deu-se correlação desse panorama com premissa do garantismo penal, na proposta de Ferrajoli, que prega justamente o contrário: a maximização da liberdade dos cidadãos e a minimização da ingerência estatal na vida das pessoas, ainda mais mediante o gravoso instrumental das agências criminais, tônica de verdadeiro estado policialesco.

Ao fim, conclui-se pela total desconformidade da Lei 15.556/2014 do estado de São Paulo com proposta do garantismo penal, eis que atentatória a liberdades públicas, ínsitas ao âmbito do não decidível, impassível de ser agravada pela atividade estatal da forma como proposta.

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Bruno Almeida de Oliveira

Pós-graduando em Direito Penal Econômico e em Direitos Fundamentais - IBCCRIM/Universidade de Coimbra. Pós-graduando em Direito Penal e Criminologia - Instituto de Criminologia e de Política Criminal – ICPC/ UNINTER.

[1] Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 64.

[2] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2014/lei-15556-29.08.2014.html>.

[3] Disponível em: <http://www.amnesty.org/fr/library/asset/AMR19/005/2014/fr/a24cd3fa-c32f-4e28-984a-d57dab154532/amr190052014pt.pdf>.

[4] Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/09/1338690-mascarados-depredam-onibus-e-entram-confronto-com-a-pm-em-salvador.shtml>.

[5] Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,mascarados-aterrorizam-centro-com-saques-e-ataques-a-policiais-imp-,1044082>.

[6] Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mascarados-entram-em-confronto-com-pm-apos-ato-de-professores-10369804>.

[7] Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/06/18/interna_gerais,408266/sem-policiamento-grupo-mascarado-promove-onda-de-vandalismo-no-centro-de-bh.shtml>.

[8] Gohn, Maria da Glória. As manifestações de junho de 2013 no Brasil no contexto da democracia. MPD Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, n. 41, p.25-26, fev. 2014.

[9] IBCCRIM. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Editorial – Manifestações, legislação penal e Constituição. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 22, n. 258, p.1, maio 2014.

[10] Montoro, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: RT, 2008. p. 392.

[11] Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 44.

[12] Thoreau, Henry David. A desobediência civil. Trad. Sérgio Karam. São Paulo: L&PM, 2010. p. 11.

[13] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1188705>.

[14] Dias, Jorge de Figueiredo. Direito penal. São Paulo: RT, 2007. t. I, p. 120.

[15] Toledo, Francisco Assis de. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 14.

[16] Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2011, p. 110.

[17] Batista, Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 169.

[18] Lima, Roberto Kant de. Manifestações populares e as recorrentes formas de administrar conflitos entre juridicamente desiguais. MPD Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, n. 41, p.31-32, fev. 2014.

[19] IBCCRIM. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Editorial – As manifestações da sociedade civil e a repressão policial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 21, n. 249, p.1, ago. 2013.

[20] Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 60/64.

[21] D’Elia Filho, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 11-26.

[22] Mesa de Estudos e Debates “movimentos sociais e a lei de segurança nacional: análise crítica”, em 08.04.2014. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/tv_ibccrim_video/145-Movimentos-sociais-e-a-Lei-de-Segurana-Nacional-Anlise-Crtica> – V. a partir de 28’ 41’’.

[23] Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1188705>.

[24] Agamben, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 63.

[25] Zaffaroni, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: 1988. p. 61.

[26] Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Rio de Janeiro: Revan, 1993. p. 90.

[27] Santos, Juarez Cirino dos. 30 anos de vigiar e punir (Michel Foucault). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, p. 289-298, jan.-fev. 2006.

[28] Batista, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 113

[29] Ticami, Danilo. Breves delineamentos acerca do garantismo penal. In: Brito, Alexis Augusto Couto de; Smanio, Gianpaolo Poggio; Fabretti, Humberto Barrionuevo (Org.). Cadernos de ciências penais: reflexões sobre as escolas e os movimentos político-criminais. São Paulo: Plêiade, 2012.

[30] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p. 688.

[31] Carvalho, Salo de; Carvalho, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 19.

[32] Rosa, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como “bricolage” de significantes. Tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do Paraná, 2004. p. 92.

Direitos Humanos
Tortura e violência sexual durante a ditadura militar: uma análise a partir da jurisprudência internacional
Data: 24/11/2020
Autores: Julia Melaragno Assumpção

Resumo: Este artigo busca compreender, a partir dos relatos de vítimas e da jurisprudência internacional, se as condutas de violência sexual durante a Ditadura Militar brasileira podem ser reconhecidas como uma forma de tortura.

Palavras-chave: Violência sexual; Ditadura Militar; tortura; gênero; jurisprudência internacional.

Abstract: This article seeks to understand, based on victim’s reports and international jurisprudence, if the conducts of sexual violence during the Brazilian military dictatorship can be recognized as a form of torture.

Keywords: Sexual violence; military dictatorship; torture; gender; international jurisprudence.

Sumário: Introdução – 1. Legislações e definições legais sobre tortura –  2.  Definição de violência sexual – 3. Relatos da violência sexual sofrida durante o período da ditadura militar – 4. Tortura e violência sexual: 4.1 Jurisprudência Internacional; 4.2 Tratamento dado pela Comissão Nacional da Verdade à violência sexual e à tortura – Conclusão – Referências bibliográficas.

Introdução

O Brasil passou por 21 anos de uma Ditadura Militar marcada por perseguições, tortura e graves violações de direitos humanos. Nossa democracia ainda é bastante frágil e somente depois de 29 anos do fim da Ditadura Militar foram concluídos os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

O cerne deste artigo é verificar se, durante o período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), a violência sexual pode ser classificada como uma forma de tortura, conforme os parâmetros do direito internacional.

A tortura e a violência sexual eram práticas rotineiras em diversos locais oficiais e não oficiais de aprisionamento de presos políticos durante o regime militar brasileiro. Assim, no presente artigo, discutir-se-á a possibilidade de a violência sexual ser reconhecida como forma de tortura. O núcleo problemático a ser abordado é: (i) Qual é o conceito de tortura e de violência sexual de acordo com o ordenamento internacional? (ii) O que ambos têm em comum? (iii) Como as vítimas da repressão vivenciaram a tortura e a violência sexual? (iv) Havia diferenças entre elas?

1. Legislações e definições legais sobre tortura

As Convenções de Haia de 1899 e 1907 foram umas das primeiras legislações específicas de direito internacional humanitário que proibiam a tortura ou quaisquer atos desumanos ou cruéis, regras que já eram impostas pelo direito consuetudinário. A partir dessas informações, a Cruz Vermelha apresentou um projeto de convenção específico para regular o tratamento de prisioneiros de guerra.

Em 1929, esse texto converteu-se na primeira Convenção de Genebra relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra, a qual determinava que os prisioneiros de guerra fossem tratados de maneira humana, sendo proibida a tortura ou quaisquer atos de pressão física ou psicológica.

Após o terrível desenrolar da Segunda Guerra Mundial, em 1949 foi feita uma nova Convenção em Genebra, a qual expandiu ainda mais os direitos dos presos a serem respeitados em situações de conflitos armados.

O art. 3 foi comum a todas as Convenções de Genebra, aplicando-se aos conflitos armados sem caráter internacional de forma que proíbe: “As ofensas contra a vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios” (Comitê Internacional da Cruz Vermelha).

Essas normas de proteção do direito humanitário são consideradas de jus cogens, e aplicáveis erga omnes. Como normas de jus cogens, são inderrogáveis, de forma que adquirem um caráter universal de proteção do direito internacional humanitário, que cria para os Estados obrigações erga omnes (Steiner apud Trindade).[1] Isso significa que, diante da gravidade de tais condutas, mesmo os Estados que não estejam vinculados aos tratados sobre a matéria devem respeitar essa proibição.

Outrossim, a vedação à tortura no direito internacional é reconhecida como completa e absoluta, ou seja, não derrogável em qualquer circunstância, nem mesmo em caso de guerras ou ameaças a uma nação, instabilidade política interna ou estado de emergência.

Paralelamente às normas de direito humanitário internacional, foi desenvolvida a legislação penal internacional, que, de acordo com Steiner, possui aplicação mais ampla, uma vez que representa um conjunto de normas de caráter geral.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pela ONU em 1948 estabelece em seu art. 5.º que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Na mesma linha, tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (arts. 4.º e 7.º) como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969 (art. 5.º, 2), repetem a literalidade da norma de 1948.

Em 1984, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis[2] foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU e promulgada pelo Brasil em 1991. Ela traz a seguinte definição de tortura:

“Art. 1.º (...) qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência” (g.n.).

A Uncat foi o marco para a compreensão conceitual do crime de tortura, pois até então não havia uma construção jurídica sobre esse conceito (Carvalho; Oliveira, p. 5).

Vale ressaltar que a Convenção determinou uma particularidade ao sujeito ativo, isto é, que fosse agente público ou pessoa no exercício de funções públicas. Isso tem origem na própria história da tortura, que sempre esteve relacionada aos abusos do Poder Estatal na apuração das infrações penais.

Por sua vez, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1985, e promulgada pelo Brasil em 1989, dispõe que tortura é:

“Art. 2.º (...) todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo corporal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. [Entende-se] também por tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica” (g.n.).

Ademais, no direito brasileiro, a Lei 9.455/1997 define o crime de tortura da seguinte forma:

“Art. 1.º Constitui crime de tortura:

I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo” (g.n.).

Percebe-se que a legislação brasileira ampliou o conceito de tortura, uma vez que não a tratou como crime especial, mas sim como crime comum, que pode ser cometido por qualquer pessoa, podendo, assim, ser cometido por agente privado.

Vale ressaltar algumas peculiaridades trazidas ao crime de tortura pelo Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional.[3] No rol de crimes de guerra perpetrados em conflitos armados de caráter não internacional, o Estatuto elenca:

“Art. (8(2)(c)(i)): Atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura;

Art. (8(2)(c))(ii): Ultraje à dignidade da pessoa, em particular por meio de tratamentos humilhantes e degradantes;

Art. (8(2)e)(vi)): cometer atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência sexual que constitua uma violação grave do art. 3 comum às quatro Convenções de Genebra (...)” (g.n.).

Ademais, a tortura, além de constituir grave violação de direitos humanos, quando é praticada no âmbito de um ataque generalizado (com grande número de vítimas) ou sistemático (de maneira planejada, não acidental) contra uma população civil, caracteriza crime contra a humanidade, nos termos do art. 7.º do Estatuto de Roma.

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (p. 284-285), de maneira geral, a configuração de um ato como tortura exige três principais requisitos:

“(i) A ação ou omissão intencional de um agente de estado que atue com o consentimento estatal. O fato de a conduta do agente seja baseada em ordens superiores, isso não o exime das responsabilidades correspondentes. O Estado é responsável tanto por atos de tortura cometidos diretamente como pelos instigados, fomentados ou tolerados por autoridades e por outras pessoas. (...). A negligência do Estado em intervir, sancionando os autores e reparando as vítimas, facilita e torna possível que os agentes não estatais cometam impunemente atos de tortura, motivo pelo qual a indiferença ou inação do Estado constituem uma forma de incitação e/ou autorização de tortura.

(ii) Sofrimento, aflição física ou psíquica infligida à vítima, ou diminuição de sua capacidade física ou mental (mesmo que esta não cause dor física ou angústia psíquica). Nesse caso, devem ser considerados tanto elementos objetivos (como o período de tempo em que a vítima foi submetida a sofrimento, o método utilizado para produzir dor, as condições sociopolíticas gerais que motivaram os atos e a arbitrariedade da medida) como elementos subjetivos (por exemplo a idade, o gênero e a vulnerabilidade da vítima).

(iii) Um fim qualquer que motive a conduta – como a realização de investigação criminal, a intimidação da vítima, a imposição de castigo corporal, de medida preventiva ou de pena, bem como a anulação da personalidade da vítima. O uso sistemático da tortura pode também objetivar a intimidação da sociedade em seu conjunto”.

A Uncat determina em seu art. 2.º (2) que a vedação a tortura é completa e absoluta, de forma que nenhum caráter excepcional poderá ser invocado a fim de justificá-la, nem mesmo em caso de guerras ou ameaças a uma nação, instabilidade política interna ou estado de emergência.

Com base nesse dispositivo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sentença histórica sobre a Ditadura Militar brasileira (Guerrilha do Araguaia),[4] diz categoricamente que a tortura e outras formas de tratamento degradante são insuscetíveis de anistia, prescrição e excludentes de responsabilidade.

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos:

“As anistias e outras medidas análogas contribuem para a impunidade e constituem um obstáculo para o direito à verdade, ao opor-se a uma investigação aprofundada dos fatos, e são, portanto, incompatíveis com as obrigações que cabem aos Estados, em virtude de diversas fontes de Direito Internacional”.

Assim, leis de anistias que, como a do Brasil, impeçam a investigação de atos de tortura, bem como o julgamento e a eventual sanção dos responsáveis, violam a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradante, além de outras legislações de direito humanitário.

Atualmente, no direito interno brasileiro, a tortura é proibida pela Constituição Federal, que a considera um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, pelo qual devem responder os mandantes, os executores e os que, podendo evitar a prática desse crime, se omitirem (art. 5.º, III, XLIII e XLIX).

Ainda que somente com a Lei 9.455/1997 a tortura tenha recebido uma definição legal enquanto delito autônomo, durante o período da Ditadura Militar sua prática já constituía crime não apenas conforme o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas também sob a ótica do Código Penal, que previa os crimes de lesão corporal, perigo para a vida ou saúde de outrem, a omissão de socorro e os maus-tratos.

2. Definição de violência sexual

Violência, palavra de origem latina, possui o prefixo vis, que quer dizer força e se refere às noções de constrangimento e uso de superioridade física sobre o outro (Minayo, 1997, p. 10). Segundo a autora, o termo se refere a conflitos de autoridade, a luta pelo poder, a vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro ou de seus bens.

Assim, a violência diz respeito ao uso arbitrário e discricionário da força e do poder pessoal, coletivo e/ou institucional, de modo a violar a dignidade humana, com a finalidade de ferir e causar danos físicos, psicológicos, morais e/ou de dominação sobre suas vítimas.

A violência sexual, por sua vez, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, compreende:

“quaisquer atos sexuais ou tentativas de realizar um ato sexual, comentários ou investidas sexuais não consentidos, atos para comercializar ou de outra forma controlar a sexualidade de uma pessoa através do uso da coerção, realizados por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer ambiente, incluindo, sem estar limitados, a residência e o trabalho. Abrange toda ação praticada em contexto de relação de poder, quando o abusador obriga outra pessoa à prática sexual ou sexualizada contra a sua vontade, por meio da força física, de influência psicológica (intimidação, aliciamento, indução da vontade, sedução) ou do uso de armas e drogas”.

Percebe-se que a OMS não adotou um conceito restrito de violência sexual, de modo que o estupro é somente uma das formas possíveis de agressão contra a pessoa. Assim, a violência sexual se caracteriza como os atos de natureza sexual cometidos contra uma pessoa sem seu consentimento. Ela abrange tanto a violação física do corpo humano (a penetração vaginal, anal ou oral, com partes do corpo do agressor, com objetos ou até animais) quanto os atos que não imponham penetração ou sequer contato físico (como o desnudamento forçado e a revista íntima).

Alguns exemplos de violência sexual relatados durante a Comissão da Verdade foram golpes nos seios; golpes no estômago para provocar aborto ou afetar a capacidade reprodutiva; introdução de objetos e/ou animais na vagina, pênis e/ou ânus; choque elétrico nos genitais; sexo oral; atos físicos humilhantes; andar ou desfilar nu ou seminu diante de homens e/ou mulheres; realizar tarefas nu ou seminu; maus-tratos verbais e xingamentos de cunho sexual; obrigar as pessoas a permanecer nuas ou seminuas e expô-las a amigos, familiares e/ou estranhos; ausência de intimidade ou privacidade no uso de banheiros; negar às mulheres artigos de higiene, especialmente durante o período menstrual, dentre outros.

3. Relatos da violência sexual sofrida durante o período da Ditadura Militar

Com o intuito de demonstrar algumas das violências sexuais sofridas por diversas vítimas durante a Ditadura Militar brasileira, foram selecionados depoimentos que demonstram que essa prática era reiterada, cruel, visava desumanizar o preso e a presa política e estava integrada às demais técnicas de tortura utilizadas.

Tamanho é o trauma sofrido por suas vítimas que, conforme diversos relatos, muitas pessoas somente reconheceram ter sofrido violência sexual depois de anos. Ana de Miranda Batista relata:

“[Até] poucos anos atrás eu achava que não tinha sofrido [violência sexual]. Porque eu achava que violência sexual era assim: estupro direto, violência direta (...) Tem tanta gente que sofreu né? Companheiras que foram tão violentadas, então eu não sofri. Mas, não é bem assim (...). Eu fui estuprada com um cassetete no 1.º Distrito” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 418).

A lógica sexista e homofóbica, de papéis sociais definidos de acordo com o gênero e de construção do feminino como inferior, aparece nas narrativas das torturas sofridas pelas mulheres, por exemplo, por meio de relatos de humilhações e maus-tratos acompanhados de referências explícitas ao fato de que haviam se afastado de seus papéis sociais como esposas e mães e ousado participar do mundo político, entendido tradicionalmente como masculino.

Rose Nogueira sofreu especificamente com esse tipo de conduta. Seus algozes lhe diziam:

“Onde já se viu! Acabou de parir e tem esse corpo! É porque é uma vaca terrorista”. (...) Aí começaram a me chamar de Miss Brasil, porque tinha uma vaca de verdade, leiteira, que ganhou um prêmio (...) Uma vaca chamada Miss Brasil, a vaca ganhou um prêmio. Um daqueles caras, o Tralli, trouxe um jornal que mostrava a vaca e rasgava o jornal e passava em mim. Outra coisa é que eles me tiravam a roupa (...) tinha uma escrivaninha e eles me debruçavam nua com o bumbum para cima e eles ficavam enfiando a mão. Penetração, não tive (...). Ele me beliscou inteira, esse Tralli. Ele era tarado” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, g.n.).

Essa mesma lógica patriarcal perpassa por diversos relatos de violências verbais e físicas que rotulavam a mulher, não como ativista política, mas sim como “prostituta” e, portanto, merecedora de violações de cunho sexual, como no caso de Maria Dalva Leite Castro de Bonet:

“Até que chega de novo o Magalhães com esta pérola da vida. Eu quero que vocês botem exatamente como ele falou, que eu nunca esqueci: sua puta, esta corna nunca mais vai ver piroca na vida! Aos gritos. E repetia. Nossa, isso eu senti como uma violação. (...) Sempre havia uma marca machista” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 405-406, g.n.).

A maternidade, a amamentação e a capacidade de dar à luz constituíram uma carga especialmente forte de sofrimento para as mulheres, conforme evidencia a narrativa de Maria Amélia de Almeida Teles:

“Numa dessas sessões, um torturador da Operação Bandeirantes que tinha o nome de Mangabeira ou Gaeta (...) eu amarrada na cadeira do dragão, ele se masturbando e jogando a porra em cima do meu corpo. Eu não gosto de falar disso, mas eu vejo a importância desse momento de tratar a verdade e gênero pensando nessas desigualdades entre homens e mulheres, em que os agentes do Estado, os repressores usaram dessa desigualdade para nos torturar mais, de certa forma. De usar essa condição nossa. Nós fomos torturadas com violência sexual, usaram a maternidade contra nós. Minha irmã acabou tendo parto, tendo filho na prisão. (...) Nós sabemos o quanto a maternidade, o ônus da maternidade, que nós carregamos” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 407- 408, g.n.).

Sua irmã, Criméia Schmidt de Almeida, foi presa quando estava grávida de seis meses e seu filho nasceu no Hospital da Guarnição do Exército, em Brasília:

“É claro que, psicologicamente, na hora que você é preso, você é afetado. (...) através do serviço de análise da repressão, que começa a tentar detectar onde você é mais forte. E aí, óbvio, a maternidade pesa. Tanto quando eu estava grávida, como para as pessoas que tinham filhos. E se ameaçavam os filhos, como forma de abater o ânimo, a disposição daquela pessoa” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 408, g.n.).

Outrossim, em relação à questão da amamentação, vale ressaltar o caso de Rose Nogueira. Presa após um mês de dar à luz, recebeu uma injeção para que parasse de produzir o leite: “Então, essa foi também uma das coisas horríveis, porque enquanto você tem o leite, você está ligada com o seu filho, né?” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 408).

Outras formas de violência sexual sofridas foram mutilações nos seios, que privaram as mães de amamentar seus bebês, úteros queimados com choques elétricos, que tornaram muitas mulheres incapazes de engravidar, de levar adiante uma gestação ou provocaram abortos.

Com apenas 22 anos à época, Lucia Murat foi vítima de uma forma particularmente perversa de violência sexual, chamada por seu algoz de tortura sexual científica:

“Quando voltei ao DOi-Codi, de Salvador, a tortura seria um pouco diferente. Em 1971, eles já conheciam bem o funcionamento das organizações clandestinas e a tortura era dirigida para o seu aniquilamento. Assim, eles sabiam do esquema de pontos que tínhamos e a tortura quando éramos presos, era violenta e brutal para que entregássemos os encontros com nossos companheiros o mais rápido possível. (...)

Foi nesse quadro, na volta, que o próprio Nagib, fez o que ele chamava de tortura sexual científica. Eu ficava nua, com um capuz na cabeça, uma corda enrolada do pescoço passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meios seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois se eu movimentasse meus braços para me proteger eu me enforcava e instintivamente voltava atrás. Ou seja, eles inventaram um método tão perverso em que aparentemente nós não reagíamos, como se fôssemos cúmplices de nossa dor. Isso durava horas ou noites, não sei bem.

Era considerado um método de aniquilamento progressivo. E foi realmente o período em que eu mais me senti desestruturada, mais do que em toda a loucura dos primeiros dias. Porque você já sabe o que é a tortura, e ela parece que nunca terá fim. Nessa época, a rotina estava implantada” (Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, 2013, g.n.).

Outro caso bastante emblemático é o da Irmã Maurina, diretora do orfanato Lar Santana em Ribeirão Preto, presa sob o pretexto de que teria cedido uma sala no lar para depósito de material do grupo Forças Armadas de Libertação Nacional, a qual, na realidade, havia sido utilizada sem o seu conhecimento. Conforme relato de Áurea Moretti Pires, em depoimento à CNV, a freira teria sido vítima de violência sexual:

“Eu penso na irmã Maurina. Porque aquele militar era um ser imundo, imundo, sabe. Não tanto fisicamente, mas espiritualmente, no deboche, em tudo, no descaso. (...) A maioria deles ia ao Lar Santana nas missas e conhecia a irmã Maurina. Então eles ficavam assim. Ele agarrava ela, mas à tardezinha, à noite, quando todo mundo tinha ido embora, entendeu? Ele ia na cela e tirava ela. E aí, uns meninos que estavam de plantão, um olhava pro outro, é agora mesmo. Eles entravam na cela, abriam a porta. Até comigo e a Nanci Marieto, uma vez, atrapalhando tudo. (...) Assim, um cara agarrando a irmã Maurina, beijando ela, passando a mão no seio, no que ele queria, e eu a Nanci armando confusão.

(...) só que teve um momento que levaram a Nanci e me levaram de volta pra sala da banda. E foi a noite que a irmã Maurina demorou muito pra chegar. Muito machucada. Com a roupa dela não dava pra ver, sabe, mas este machucado é uma coisa muito triste, sabe, naquilo que mais dói numa mulher, que é ser violentada. Não é só a penetração do pênis na vagina. A violência sexual, ela envolve um monte de coisa. Veio de madrugada, chorando, chorando. Estavam a Lázara, a Leila e eu. Nós não perguntamos em respeito a ela. Se teve realmente foi aquela noite. (...)”(Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 406-407, g.n.).

Contudo, a violência sexual não se limitou a violar as mulheres. Porém, ocorria de forma diferente contra os homens. Buscava-se “a tradicional humilhação do inimigo homem, através da profanação de suas companheiras” (Joffily, p. 6). Ademais, conforme ressalta o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, aos homens eram constantes as ameaças de estupro de suas filhas e mulheres. Isso se evidencia em diversos depoimentos em que parceiros eram torturados junto de suas companheiras e as presas políticas eram violadas diante deles.

De acordo com depoimento de Eliete Lisboa Martella, presa no DOPS de São Paulo, em junho de 1969, João Leonardo da Silva Rocha, desaparecido desde junho de 1975, “(...) estava bem fora de si porque violentaram a mulher dele lá naquela sala que me despiram, ele ficou no pau de arara com bastão elétrico no ânus e violentaram a mulher dele, que era professora de inglês (...) Violentaram na frente dele, ele ficou bulido da ideia” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 404).      

Ademais, os constrangimentos verbais dirigidos aos homens buscavam a feminilização e a homossexualização simbólica do corpo torturado. A violência física, por sua vez, ocorria com a prática do empalhamento, conforme narra Miguel Gonçalves Trujillo Filho, preso no DOI-CODI de São Paulo, em outubro de 1975:

“O empalamento era um cassetete de borracha com fio elétrico dentro que se introduzia na vagina das mulheres ou no ânus das mulheres, dos homens. Eu não passei por essa coisa (...) Um conhecido meu, ele sofreu esse empalamento e os caras deram choque nele, e acontece que pelo cassetete, a posição e tal afetou a próstata e ele teve uma ejaculação. Esse torturador, ele viu aquilo, levantou − isso o meu amigo me contou − viu aquilo, levantou, passou a mão no esperma no chão, passou a mão no rosto, tal... lambeu, (...) é um degenerado, psicopata, misógino, muito violento com as mulheres”(Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 414, g.n.).

Outra forma de tortura extremamente violenta é a mutilação sexual ou castração, os golpes e cortes nos testículos. Manoel Conceição Santos, preso em oito ocasiões, relata a violência sexual a que foi submetido no DOI- CODI e no Cenimar, no Rio de Janeiro:

“Eu, quando fui preso, eu passei nove meses desaparecido (...) Eles pegaram meus testículos, puseram umas fivelas de agulha e costuraram meus testículos, virou um ralo pá pá pá furando. E o meu pênis também. Eles furaram todinho, virou um ralo. Era como se fosse só uma coisa morta, eu quase morri de dor, companheiro, era uma dor! Sabe o que é isso? Sabe o que é pegar o pênis de uma pessoa e furar com uma fivela o tempo todo? Costurar? (...) Deixar só um ralo? Isso não pode, não.

Amarraram uma corda nos meus testículos e arrastaram-me pelo terraço de um salão. Depois me penduraram com quartos para cima, amarrado pelos testículos, com poucos minutos deu desmaio. (...) Derrubaram-me no terrão e ameaçaram arrancar minhas tripas pelo reto, com um ferro de três carreiras de dentes.

Levantaram meus braços com cordas amarradas ao teto, colocaram meu pênis e os testículos em cima da mesa e com uma sovela fina de agulhas de costurar pano deram mais de trinta furadas. Depois bateram um prego no meu pênis e o deixaram durante horas pregado na mesa” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 414, g.n.).

Percebe-se que a violência sexual afetou tanto homens quanto mulheres, porém de forma particular a cada gênero. Aos homens, buscou-se a sua desmasculinização, enquanto buscou-se castigar as mulheres por terem saído de um papel social que lhes era imposto.

4. Tortura e violência sexual

4.1 Jurisprudência internacional

A fim de entender se os diversos tipos de violência sexual sofridos pelos presos e presas políticas durante a Ditadura Militar consistiram em uma forma de tortura, é necessário verificar como os tribunais internacionais têm entendido essa questão.

A tortura é um crime contra a humanidade, conforme previsto no art. 7 (1), f, do Estatuto de Roma, no art. 5 (f) do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia e no art. 3 (f) do Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

Como elementos do crime de tortura, o TPI compreende que é necessário causar dor intencionalmente à pessoa sob sua custódia, sem previsão legal, de forma disseminada ou sistemática contra a população civil e com ciência do algoz.

Esses três tribunais têm entendido que estupro pode ser processado como uma forma de tortura. Os tribunais ad hoc argumentam que uma dor severa deve ter sido imposta com um dolo específico de obter informações, confissões, punições ou coerções. Essa finalidade específica não é necessária para o TPI.

Cumpre ressaltar trecho de decisão do Tribunal de Ruanda que compara as especificidades entre estupro e tortura:

“A Câmara considera estupro uma forma de agressão e que os elementos centrais do crime de estupro não podem ser contemplados em um rol taxativo de objeto e partes do corpo. A Uncat não pode catalogar atos específicos para a definição de tortura, focando-se em um enquadramento conceitual da violência. Essa abordagem é mais útil para o Direito Internacional. Assim como a tortura, o estupro é usado para intimidar, degradar, humilhar, discriminar, punir, controlar ou destruir o indivíduo. Assim como a tortura, o estupro é a violação da dignidade humana e o estupro constitui tortura quando praticado para, por instigação ou com o consentimento de um funcionário público ou outra pessoa em capacidade oficial” (Prosecutor vs. Akayesu, Tribunal Penal Internacional para Ruanda, 1996, parágrafo 596).

No caso de tortura como um crime contra a humanidade, os tribunais ad hoc concluíram que estupro e outras formas de violência sexual podem constituir tortura como um forma de violação ao art. 3 das Convenções de Genebra, se os elementos da tortura estiverem presentes,[5] conforme percebe-se no caso Furundzija:

“Conforme evidenciado pela jurisprudência internacional, pelos relatórios do Comitê de Direito Humanos da ONU, pelo Comitê contra a Tortura da ONU e pelas declarações do Comitê Europeu para Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes, essa cruel e infame prática pode assumir diversas formas. Jurisprudência internacional e o relatório do Relator Especial evidenciam o momento no sentido de abordar, através de um processo legal, o uso de estupro no decurso de detenção e interrogatório como meio de tortura e, portanto, como uma violação do direito internacional. Recorre-se ao estupro seja na pessoa do interrogado, como a pessoa associadas a ele, como uma forma de punição, intimidação, coerção ou humilhação da vítima, ou para obter informações ou uma confissão da vítima ou de terceiro. Em matéria de direitos humanos, nessas situações, estupro pode ascender a tortura, conforme demonstrado na Corte Europeia de Direitos Humanos no Caso Aydin e na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Meijia” (Prosecutor vs. Anto Furundzija, 1998, parágrafo 163, g.n.).

Vale ressaltar que a Comissão Nacional da Verdade assevera que:

“Conforme a jurisprudência de tribunais internacionais, a violência sexual constitui uma forma de tortura quando cometida por agente público, ou com sua aquiescência, consentimento ou instigação, com a intenção de obter informação, castigar, intimidar, humilhar ou discriminar a vítima ou terceira pessoa” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 432, g.n.).

Importante frisar que não é necessário que o estupro vise somente torturar, podendo, inclusive, haver motivação inteiramente sexual, sem com que isso não desconfigure o crime de tortura. Ademais, diversos casos dos tribunais ad hoc[6] estenderam a definição de tortura para que esta pudesse ser configurada quando praticada por qualquer pessoa e não só por agentes estatais.

O desenvolvimento dessa normativa internacional[7] tem influenciado distintos arcabouços jurídicos, sendo consistente a jurisprudência construída nos últimos anos por tribunais ad hoc, como o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que condenaram, por crimes contra a humanidade e crimes de guerra, autores de diversos atos de violência sexual, inclusive estupro e escravidão.

Steiner reconhece que, ainda que sejam reconhecidas as diferenças entre condutas consideradas tipicamente como torturaou tratamentos desumanos, cruéis ou degradantes, e as definidas como crimes sexuais, estas podem ser enquadradas no rol descritivo do que configura tortura, uma vez que há precedentes na jurisprudência internacional que qualificam alguns atos de violência sexual como tortura.

No que toca à Corte Interamericana de Direitos Humanos, vale ressaltar o caso Fernández Ortega e outros vs. México. Em um contexto de intervenções militares no Estado de Guerrero, a Senhora Fernández Ortega, mulher de comunidade indígena, foi estuprada por três membros do exército mexicano.

De acordo com a Comissão Interamericana, um estupro, além de afetar a integridade física, psíquica e moral da vítima, viola sua dignidade, invade uma das esferas mais íntimas de sua vida, seu espaço físico e sexual e a despoja de sua capacidade para tomar decisões a respeito de seu corpo em conformidade com sua autonomia. Além disso, o estupro, na presença de um familiar, tem um significado particularmente grave, sendo ainda mais humilhante para a vítima e traumático para ambos.

Segundo alegações da vítima e da Comissão:

“O estupro é um tipo especialmente grave de violência sexual que ‘foi utilizado como uma forma de manifestar dominação por parte dos militares’. Ademais, o estupro ‘foi uma manifestação profunda de discriminação (...) por sua condição de indígena e por sua condição de mulher’ e buscava ‘humilhar, causar terror e mandar uma mensagem de advertência à comunidade’. Estes fatores ‘afetaram profundamente a integridade física e psicológica [da suposta vítima, e] constituíram claros atos de violência contra a mulher’” (Fernández Ortega e outros vs. México, parágrafo 92, g.n.).

O Estado mexicano, em relação à qualificação do estupro como tortura, manifestou que, por não terem sido identificados os responsáveis pelo estupro da Senhora Ortega, não era possível assegurar que houve a participação de elementos do Estado. Acrescentou que se “pretend[e] confundir [a] Corte, afirmando que um estupro, por si mesmo, constitui tortura” (Fernández Ortega e outros vs. México, parágrafo 97). Segundo o México, para poder qualificar um ato como tortura, é necessária uma minuciosa análise das circunstâncias nas quais se gera a conduta, seu objeto, seu grau de severidade e suas consequências reais.

Contudo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o alegado estupro sofrido pela senhora Fernández Ortega “deve ser considerado como um ato de tortura”, já que concorrem os três elementos que o caracterizam: (i) é um ato intencional; (ii) que causa graves sofrimentos físicos e mentais, e (iii) que é cometido com um fim ou propósito. O fato de que fossem militares os perpetradores do alegado estupro afetou particularmente a senhora Fernández Ortega, como também a afetou a presença de seus filhos no momento de ser agredida. Além de viver “com temor de que o ocorrido possa ocorrer novamente a ela ou a sua filha, em vista de que as forças militares permanecem na região onde ela reside”, culpa-se pelos fatos. A Corte também afirmou que as irregularidades e a impunidade em que se mantém o caso demonstram o descumprimento, por parte do México, de seu dever de garantir o direito da vítima a uma investigação séria e efetiva dos atos de violência e tortura de que foi objeto.

4.2 Tratamento dado pela Comissão Nacional da Verdade à violência sexual e à tortura

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ao longo de todo o seu texto, afirma categoricamente que violência sexual é uma forma de tortura:

“A segunda refere-se à prática de violência sexual. A realidade dos centros de tortura da ditadura demonstrou a banalização dessa conduta em detrimento da integridade de homens e mulheres. Considerada a utilização desse tipo de violência como método tendente a anular a personalidade da vítima, a CNV entende que a violência sexual pode constituir uma forma de tortura quando cometida por agente público, ou com sua aquiescência, consentimento ou instigação, com a intenção de obter informação, castigar, intimidar, humilhar ou discriminar a vítima ou terceira pessoa” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 279, g.n.).

Ademais, o relatório classifica como tortura condutas como: (i) intimidação como ameaça de atos violentos; (ii) violência física contra a vítima; (iii) exibição do preso nu ou em trajes que o exponham; e (iv) ameaça de uma dessas condutas, dentre outras. Por sua vez, o relatório define como violência sexual condutas como (i) desnudamento forçado e (ii) revista íntima. Percebe-se que a exibição de um preso nu e o desnudamento forçado são condutas muito próximas e que dificilmente ocorrem de forma separada.

Importa registrar que os relatos referentes às torturas sofridas mesclam os vários tipos de suplícios, por isso é difícil o enquadramento em apenas uma das modalidades de tortura. O depoimento de Maria Amélia Teles deixa extremamente clara a forma como a violência sexual e outras formas de tortura estavam interligadas:

“A primeira forma de torturar foi me arrancar a roupa. Lembro-me que ainda tentava impedir que tirassem a minha calcinha, que acabou sendo rasgada. Começaram com choque elétrico e dando socos na minha cara. Com tanto choque e soco, teve uma hora que eu apaguei. Quando recobrei a consciência, estava deitada, nua, numa cama de lona com um cara em cima de mim, esfregando o meu seio. Era o Mangabeira [codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta], um torturador de lá. A impressão que eu tinha é de que estava sendo estuprada. Aí começaram novas torturas. Me amarraram na cadeira do dragão, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no umbigo, no seio, na boca, no ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se esfregavam em mim, se masturbavam em cima de mim. A gente sentia muita sede e, quando eles davam água, estava com sal. Eles punham sal para você sentir mais sede ainda” (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007, Luta Substantivo Feminino, p. 162).

Outrossim, importante trazer à baila o depoimento de Ieda Akselrud de Seixas, uma vez que esta minimizou a violência sexual sofrida, demorando a reconhecê-la como tal. Ademais, fica claro que o seu algoz escolheu a violência sexual, pois percebeu que essa conduta iria desestruturá-la mais do que métodos de tortura tradicionais como o pau de arara ou a cadeira do dragão:

“Cabe dizer que a gente [a irmã e a mãe] não foi torturada fisicamente... eu levei uns tapas, apanhei... quer dizer, isso também é uma coisa engraçada... Eu sofri abuso sexual dentro do banheiro. Todo mundo já sabe. Eu posso contar essa história porque há depoimentos e depoimentos. Mas eu levei muito tempo para me tocar que aquilo era abuso sexual, sabe por quê? Eu minimizava aquele episódio porque, afinal, não era pau de arara, não era choque e não era cadeira do dragão. É muito louco isso! É muito louco!

(...) Me lembro até que o Paulo de Tarso Vannuchi, Paulinho Vannuchi, escreveu para mim na prisão e disse que estava fazendo uma denúncia da tentativa de estupro. Eu falei: ‘Ah! Esquece isso!’. Porque para mim aquilo não tinha importância. Quem era eu? Que importância tinha aquilo se não sei quem tinha ido para o pau de arara, não sei quem para a cadeira do dragão? É uma bobagem, mas eu levei muito tempo... Porque para mim era o seguinte: ‘Ainda bem que eu não fui para a cadeira do dragão, ainda bem que eu não fui para o pau de arara’.

(...) E eu estava ali estava vulnerável, completamente vulnerável. Aí o cara entrou com a mão dentro da minha roupa e aí, bom, como qualquer outro abuso sexual, eu não vou ficar descrevendo detalhes, mas foi isso que aconteceu. A mão dele passou por tudo e não sei o quê. Ele dizia assim: ‘Não, ela vai gozar, comigo ela vai gozar e ela vai falar’. Eu entrei num pânico tão grande que eu dizia assim: ‘Me bota no pau de arara’. Olha se isso é coisa de gente normal. Aí foi uma burrice minha, mas eu acho que é a reação natural de qualquer pessoa nessa situação. ‘Não faz isso comigo! Me bate, me põe no pau de arara!’, quer dizer, o cara percebeu que se ele fizesse aquilo, aquilo que ia me desestruturar. Não era o pau de arara ou sei lá, porque eu não tinha tido a experiência. Aí ficou naquela história e ele vinha e beijava o meu pescoço. (...) o que estava sentado aqui ao lado eu absolutamente não lembro porque eu me fixei nesse porque esse me apertava e me apertava e quem abusou de mim foi, realmente, o David dos Santos Araujo. Aí começou um papo de que ‘ela vai gozar, o que nós vamos fazer agora?’. Aí foi a hora que eu mais tive medo, porque eu não tive medo de morrer nenhum minuto. Não que eu fosse valente, mas porque não tinha importância. Se eu morresse até seria melhor para mim, mas disso eu tinha medo” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 418-419, g.n.).

Outro fato relevante para que a violência sexual seja interpretada como tortura é que a Justiça Militar tinha conhecimento desde aquela época de que crimes de natureza sexual estavam sendo cometidos contra os presos dentro do aparato repressivo estatal a fim de obter confissões. Os registros aparecem em diversos processos do Superior Tribunal Militar, a partir de denúncias dos próprios sobreviventes, e em pelo menos 24 casos analisados pelo Tribunal Russell II, realizado em Roma, no primeiro semestre de 1974.

De acordo com os registros da prática de violência sexual por agentes públicos, esta ocorria de forma disseminada em praticamente toda a estrutura repressiva. Nos testemunhos analisados pelo grupo de trabalho “Ditadura e Gênero” são citados Deic, DOI-CODI, Dops, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, Cisa, delegacias de polícia, Oban, hospitais militares, presídios e quartéis.

Por fim, bastante relevante citar o posicionamento da Comissão Nacional da Verdade sobre a violência sexual como forma de tortura, por ter sido uma prática disseminada durante a Ditadura Militar e por buscar afetar a dignidade humana:

“A violência sexual, exercida ou permitida por agentes de Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, a normativa e a jurisprudência internacionais consideram que a violência sexual representa grave violação de direitos humanos e integra a categoria de ‘crimes contra a humanidade’. No cumprimento de seu mandato, ao buscar promover o esclarecimento circunstanciado de casos de tortura ocorridos durante a ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) pôde constatar que a violência sexual constituiu prática disseminada do período, com registros que coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado. Assim, este capítulo é dedicado à violência estruturada pela hierarquia de gênero e sexualidade, que busca anular a dignidade dos indivíduos violados, impedindo-os de viver como querem, de viver bem e sem humilhações. Tal violência atinge de forma diversa mulheres e homens, como mostram as investigações e os testemunhos realizados pelo grupo de trabalho ‘Ditadura e Gênero’” (Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 400, g.n.).

Conclusão

A prática da tortura implica inequivocamente a coisificação e degradação de sua vítima, transformando-a em mero objeto da ação arbitrária de terceiros, sendo, portanto, incompatível com a dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, a violência sexual, quando utilizada por agentes de Estado para anular a personalidade da vítima, tem os mesmo efeitos perversos sobre sua vítima.

A jurisprudência internacional tem consolidado entendimento de que a violência sexual é uma forma de estupro. Há entendimentos diversos acerca da necessidade de o agente violador ser estatal para que se constitua tortura, porém a jurisprudência caminha para um conceito mais abrangente da violência sexual como tortura, podendo ser cometida por particular.

Durante o período da Ditadura Militar no Brasil, a violência sexual foi praticada na forma de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil e caracterizou, de fato, crime contra a humanidade. Ela era cometida em todos os âmbitos do aparato estatal, por diversos agentes e com conhecimento dos governantes.

Dessa forma, resta concluir que as diversas formas de violência sexual sofridas tanto por homens quanto por mulheres foram uma modalidade de tortura que integrou o aparato repressivo a fim de desumanizar suas vítimas.

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_____. Prosecutor vs. Miroslav Kvocka. Caso IT-98-30/1-T. Julgamento em 2005. Disponível em: [http://www.icty.org/x/cases/kvocka/acjug/en/kvo-aj050228e.pdf]. Acesso em: 19.01.2015.

Tribunal Penal Internacional para Ruanda. The Prosecutor vs. Jean-Paul Akayesu. Caso ICTR-96-4-T. Julgamento em 1998. Sentença de 2 de setembro, n. ICTR-96-4. Disponível em: [http://www1.umn.edu/humanrts/instree/ICTR/AKAYESU_ICTR-96-4/Judgment_ICTR-96-4-T.html#7_1]. Acesso em: 19.01.2015.

SÍTIOS ELETRÔNICOS

Depoimento de Maria Amélia Teles. Disponível em: [http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3819:tortura-durante-a-ditadura-relato-de-maria-amelia-de-almeida-teles&catid=64:ditadura].

http://culturadoestupro.blogspot.com.br/2013/03/ditadura-e-as-mulheres-de-mae-e-santa.html

http://apatotadopitaco.blogspot.com.br/2012/06/sobrevivente-da-casa-da-morte-relata.html

http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/12/12/fundador-do-pt-torturado-na-ditadura-foi-solto-a-pedido-do-papa.htm

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/26400-as-mulheres-e-a-ditadura-militar-no-brasil-entrevista-especial-com-margareth-rago

Julia Melaragno Assumpção

Graduada pela Pontifícia Universidade Católica (2013).

Advogada.

[1] Cançado Trindade, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 11.

[2] A seguir será mencionada como Uncat.

[3] Adiante mencionado como TPI.

[4] A CIDH também se pronunciou sobre a incompatibilidade de leis de anistia nos casos Peru (Barrios Altos e La Cantuta)e Chile (Almonacid Arellano e outros), dentre outros.

[5] Ver Julgamento Furundzija, parágrafo 172 – Estupro também pode constituir uma violação das Convenções de Genebra, uma violação de leis ou costumes de guerra ou um ato de genocídio, se os elementos estão presentes e poderá ser processado dessa forma; Kvočka Trial Judgment, parágrafo 140 – Espancamentos, violência sexual, negação de sono, comida, higiene e assistência médica, assim como ameaças de tortura, estupro ou de morte de parentes, estavam entre os atos mais comumente mencionados como os que constituíam tortura.

[6] Julgamento Foca, parágrafos 496-497; Julgamento Kvočka, parágrafos 137-141; Julgamento Semanza, parágrafo 342.

[7] Por exemplo, ICTY, Appeal Chamber, Prosecutor v Kunarac et. al, 12 June 2002, parágrafos 151-152. O Tribunal de Apelação, portanto, defende que dor física ou sofrimento severos, físicos ou mentais, das vítimas não podem ser contestados e que o Tribunal de Julgamento concluiu com bom senso que a dor ou o sofrimento era suficiente para caracterizar os atos dos apelantes como atos de tortura, violação das leis ou como costumes de guerra (tortura e estupro), além de crimes contra a humanidade (tortura, estupro e escravização). Disponível em: [http://www.icty.org/x/cases/kunarac/acjug/en/kun-aj020612e.pdf].

Direitos Humanos
A revisão da Lei de Anistia como uma forma de superarmos a ditadura: uma análise comparativa com as experiências na Argentina e no Uruguai
Data: 24/11/2020
Autores: Nathália Regina Pinto

Resumo: O presente trabalho analisa a questão da (ausência de) justa causa no âmbito do procedimento de apuração de ato infracional, a partir do que dispõe o § 2.º do art. 182 do ECA. Tendo como paradigma as garantias processuais constitucionais bem como o sistema processual penal adulto, pretende-se discutir a inconstitucionalidade do dispositivo, além dos seus efeitos na prática judiciária. Da natureza híbrida da medida socioeducativa ao controle social formal destes sujeitos, apresentam-se algumas hipóteses sobre as razões da ausência da justa causa do processo infracional. Nesse sentido, entende-se que é somente a partir da leitura crítica da legislação que se possibilita, ao mesmo tempo em que visibilizar sujeitos comumente marginalizados, propiciar os elementos necessários à construção de um debate que ultrapasse as fronteiras da academia.

Palavras-chave: adolescentes; ato infracional; justa causa; direito penal juvenil; processo penal.

Abstract: The following paper aims to develop the issue of the absence of probable cause juvenile justice system, from what is provided in § 2 of art. 182 the Child and Adolescent Statute. Taking as a model the adult criminal justice system, and the rights guaranteed to criminal defendants by the Constitution, we pretend to discuss the unconstitutionality of the device, in addition to its effects on judicial practice. From the hybrid nature of socio-educational measures to formal social control of these adolescents, we present some hypotheses about the reasons for the absence of probable cause of the infraction process. In this sense, we believe it is only from the critical reading of the legislation that allows, while visualize invisible adolescents, provide the elements needed to build a debate extending beyond the boundaries of academia.

Keywords: adolescent; juvenile offenses; probable cause; juvenile criminal law; criminal procedure

Sumário: Introdução – 1. O poder de acusação e a justa causa: comparações entre o direito penal adulto e juvenil: 1.1 A necessária garantia da justa causa no processo penal adulto; 1.2 A (ausência de) justa causa no processo penal juvenil – 2. Por que não há justa causa no processo infracional?: 2.1 A natureza da medida socioeducativa: entre o educar e o punir; 2.2 O processo infracional como controle social dos adolescentes – Conclusão.

Introdução

A partir da vivência no grupo de Assessoria a Adolescentes Selecionados pelo Sistema Penal Juvenil (G10) do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU/UFRGS), o contato cotidiano na defesa de adolescentes acusados de cometer algum ato infracional produziu a necessidade de pesquisar sobre o sistema socioeducativo e os procedimentos que o envolvem. O trabalho na defesa jurídica dos adolescentes implicou perceber o quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente e o seu sistema de garantias processuais ainda estão longe de concretizar a Doutrina da Proteção Integral, bem como estão em desacordo com a Constituição Federal. Um dos exemplos desta problemática – que é extensa – traduz-se por meio do art. 182, § 2.º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual será objeto de análise crítica no presente trabalho.

A série de encontros proporcionados pelo Evento Colóquio VIVO, organizado sob coordenação da Professora Ana Paula Motta Costa, tem produzido importantes debates entre estudantes e pesquisadores de diferentes áreas, bem como entre profissionais do sistema socioeducativo e operadores do direito. Foi no âmbito dessas discussões que surgiu a necessidade de escrever o presente artigo, o qual abordará, em linhas gerais, o procedimento de ato infracional e suas ilegalidades, ainda extremamente misteriosa aos olhos do Direito. [1]

Em relação ao objeto específico deste trabalho, pretende-se realizar uma análise do que dispõe o art. 182, § 2.º, do ECA, o qual estabelece que a denúncia por ato infracional não necessita ser instruída com provas pré-constituídas de materialidade, tampouco com indícios de autoria. Este será, portanto, nosso ponto de partida para discutir por que, afinal, o legislador decidiu que a justa causa não é condição para ação infracional. Uma vez que há considerável aparato legal (Constituição Federal, ECA, Sinase [2] ) no sentido de afirmar o adolescente enquanto sujeito de direito e prioridade absoluta do Estado, questionamos: se é vedado o tratamento mais gravoso ao adolescente do que aquele conferido ao adulto em semelhante situação, [3] o que justifica a possibilidade de acusar um adolescente sem os elementos exigidos pelo processo penal adulto, no caso de acusação de um imputável? As hipóteses que serão levantadas perpassam desde a confusa natureza da medida socioeducativa, que pendula entre seu caráter simultaneamente pedagógico e sancionatório, perpassando os resquícios tutelares advindos da Doutrina da Situação Irregular, até a discussão sobre o controle social que se pretende realizar a partir das “lacunas” da legislação.

Dessa forma, o que se pretende com o presente trabalho, além de dar visibilidade à temática e propor o debate em relação a ele, é o lançamento de hipóteses que permitam a reflexão sobre o assunto para além de questões meramente legalistas. Ou seja, mais do que refletir sobre a ilegalidade contida no § 2.º do art. 182 do ECA, queremos entender quais as razões que efetivamente justificam uma prática inconstitucional, não só do legislador, mas do Poder Judiciário, de permitir que se acusem adolescentes – sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento – sem a existência de indícios probatórios que justifiquem a submissão a um processo de apuração de ato infracional.

1. O poder de acusação e a justa causa: comparações entre o Direito Penal adulto e juvenil

1.1 A necessária garantia da justa causa no processo penal adultoA Constituição Federal de 1988 assegurou amplamente a todas as pessoas o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos do art. 5.º, XXXIV. Embora haja discordância doutrinária, um dos entendimentos leciona que, o direito de ação penal decorre, indiretamente, desse direito constitucional. Do gênero “direito de petição”, advém a espécie “direito de provocação jurisdicional”, e do qual resulta o direito de ação penal, especificado na Carta Política em seu art. 5.º, XXXV (Corrêa, 1998).

Necessário, no entanto, perceber que há diferenças significativas entre o direito de petição e o direito de ação penal (ou, ainda, entre o direito de ação civil e o direito de ação penal), pois ambos são utilizados com finalidades bastante distintas, senão opostas. Enquanto o direito de petição é exercido no intuito de que o postulante acesse um benefício para si ou para outrem, no direito de ação penal o acusador imputa um fato delituoso a alguém, requerendo-lhe a imposição de um malefício, a sanção penal (ou, no caso dos adolescentes, a medida socioeducativa). A ação processual penal, portanto, “circunscreve-se a um poder jurídico constitucional de invocação da tutela jurisdicional e que se exterioriza por meio de uma declaração petitória (acusação formalizada)” (Lopes, 2013, p. 353).

Nessa linha, importante destacar que a teoria da ação de Liebman desenvolve a concepção de direito “conexo instrumentalmente com a pretensão material” (Badaró, 2008), cuja conexão é representada pelas condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade das partes e interesse de agir. Dessa forma, apesar de abstrato, o direito de ação deve necessariamente se ligar ao direito material. Se por um lado o direito de petição foi amplamente assegurado, mas ao mesmo tempo submetido às condições da ação, [4] o direito de ação penal foi ainda mais restringido, pois sua existência é condicionada à justa causa, peculiaridade da ação penal em relação à ação civil.

Nesse sentido, a ação penal está necessariamente vinculada a um caso concreto, uma vez que o processo é um instrumento para apuração de um fato, mas que simultaneamente está condicionado a observar o sistema de garantias constitucionais (Corrêa, 1998). Conforme o ordenamento brasileiro, uma vez que não há como impedir o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, estão especificamente no plano processual penal as regras que regulam o exercício da ação penal, a qual só será possível se estiverem presentes as condições da ação. A tutela será ou não efetivada a partir do controle jurisdicional da legalidade do exercício do poder de acusação. Tal exigência decorre da necessidade de impor verdadeiro limite ao direito de ação penal, haja vista a necessidade de se afastar abuso de direito e prevenir lesão à liberdade individual.

Como ensina Lopes (2012), no processo penal é imprescindível que o acusador, seja ele público ou privado, apresente desde o início a justa causa, onde também estão inclusos os elementos probatórios mínimos que demonstrem a fumaça da prática de um delito. Não há, diferentemente do processo civil, a possibilidade de deixar a análise da questão de fundo (mérito) para a sentença, pois desde o início o juiz faz juízo provisório de verossimilhança sobre a existência de um delito.                 

Enquanto condição primeira para o exercício da ação penal, a justa causa consiste na prova induvidosa da existência de uma hipótese delitiva e, pelo menos, em indícios idôneos de sua autoria (Corrêa, 1998). A justa causa é, portanto, condição de garantia frente ao uso abusivo que se possa fazer do direito de acusar, servindo como ponto de apoio para toda a estrutura da ação processual penal que venha a se desenvolver após o momento da acusação. Trata-se de uma causa jurídica que deve encontrar respaldo na realidade fática, a fim de legitimar e justificar uma acusação e sua admissibilidade.

Nesse sentido, convém refletir sobre porque, afinal, exige-se daquele que tem o poder de acusar que seja demonstrada a justa causa. Uma das hipóteses para essa reflexão, e com a qual concordamos, é a de que o processo penal representa, em termos práticos na vida de um ser humano, uma pena. Ele se materializa em verdadeiro sofrimento na vida daquele que está sendo acusado em termos de estigmatização e de penas processuais:

“É inegável que a submissão ao processo penal autoriza a ingerência estatal sobre toda uma série de direitos fundamentais, para além da liberdade de locomoção, pois autoriza restrições sobre a livre disposição de bens, a privacidade das comunicações, a inviolabilidade do domicílio e a própria dignidade do réu” (Lopes, 2013, p. 190).

É, portanto, em razão do que representa sentar “no banco do réu”, que a acusação não pode ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu. Conforme os ensinamentos de Carnelutti (2001), a sentença criminal, se absolvitória for, fará remanescer para sempre o sentimento de que a justiça atuou com perdas, constituídas não apenas pelo custo do trabalho realizado, mas, sobretudo “pelo sofrimento daquele a quem se colocou a culpa, e, frequentemente, até que seja encarcerado, quando nada disso devia se fazer com ele. Sem falar que, não raramente, para sua vida isso foi uma tragédia, senão uma ruína” (Carnelutti, 2001. p. 21 apud Boschi, 2010). [5]

Ou seja, Carnelutti (2001), já em sua época, acentuou o quão injusta é a instauração de um processo criminal sem provas aptas à demonstração da responsabilidade do acusado. Nesse sentido, a necessidade de cumprir os requisitos da justa causa realiza um importante filtro, impedindo que se possa imputar a alguém delito sobre o qual não se tem prova de materialidade e que não há indícios idôneos que apontem a autoria. Necessário ainda considerar a realidade da justiça criminal no Brasil, que possui a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 500 mil pessoas presas. [6] É imprescindível, portanto, mesmo em um debate no qual se discuta aspectos processuais da lei, considerar a realidade material sobre a qual se fala. A maior parte daqueles que são encarcerados no Brasil são homens, jovens, negros e de baixa escolaridade, conforme dados do Ministério da Justiça. [7]

Nesse sentido, é necessário considerar que a submissão a um processo penal já caracteriza a vivência de uma situação extremamente opressora por si só, pois envolve, entre outros aspectos, rituais hierárquicos e uma linguagem incompreensível. São inquestionáveis os efeitos danosos práticos e subjetivos produzidos sobre aqueles que respondem a um processo criminal. Considerando que há um recorte populacional específico selecionado por esse sistema, a situação agrava-se na medida em que estes sujeitos percorrem esse momento sem o apoio de uma defesa técnica qualificada ou de um serviço de assistência psicossocial. Tais privilégios são inacessíveis a essa “ralé”, a qual é sistematicamente submetida ao processo penal (Coutinho, 2011).

A necessidade da limitação da acusação por força da justa causa não significa que o estado brasileiro estaria se abstendo do seu poder de acusar, incentivando a impunidade. O que se pretende, na verdade – e é essa a razão de ser da justa causa – é que a acusação seja exercida com cautela, e que possua elementos probatórios que justifiquem a sujeição de alguém a um processo criminal e às consequências inerentes a ele.

Diante do cenário em que o processo penal se insere, deve-se lutar por um sistema de garantias mínimas, em que as regras do jogo representem os direitos do acusado, uma vez que este se encontra sozinho perante a total potência punitiva do Estado. Ensina Carvalho (2015) que para a garantia de um processo penal democrático se faz necessário a sistematização deste baseado nos preceitos do sistema acusatório. Assim, as regras processuais, desde a investigação, passando necessariamente pelas condições da ação, “constituem-se como barreiras de contenção ao transbordar punitivo” (Carvalho, 2015, p 167).

É, portanto, por compartilharmos da noção de que o exercício do poder punitivo é sempre atentório aos direitos humanos, que entendemos que o modelo garantista é uma perspectiva imprescindível a ser perseguida no curso do processo penal enquanto interessante mecanismo de fomento à minimização desse poder (Carvalho, 2015). Mesmo com todas as limitações inerentes ao garantismo jurídico, é nele que nos apoiamos enquanto marco teórico para defender que as regras formais que regulam o jogo processual não podem ser flexibilizadas, sob pena de legitimar ainda mais as violências e as perversidades perpetradas pelo Estado.

Nessa esteira, a busca por um sistema processual penal mais democrático passa, impreterivelmente, pelo distanciamento das práticas inquisitoriais. E é nesse caminho que a justa causa, enquanto condição imprescindível para o exercício do poder de acusação, se apresenta como importante elemento de desvinculação do sistema inquisitório, no qual, “o réu, longe de ser percebido como sujeito, é tratado como objeto de investigação e de intervenção” (Carvalho, 2015, p. 168).

Com esse argumento define-se a importância que a justa causa exerce no processo penal: a de garantir que o imputado não seja simples objeto deste percurso, pois na condição de ser humano, é a sua qualidade de sujeito que deve sobrepor-se no jogo processual, não podendo estar a mercê de um poder acusatório absoluto. Da mesma forma, como será visto no ponto seguinte, o adolescente, muito antes percebido como menor do que propriamente como sujeito, também deve(ria) gozar desta garantia processual que é a justa causa.

1.2 A (ausência de) justa causa no processo penal juvenil

A legislação que trata do direito da criança e do adolescente no país está em vigência desde 1988 e representou um marco de ruptura conceitual daquilo que se entende por “criança e adolescente”, seus direitos e garantias, e a participação da sociedade e do Estado no processo de formação desses sujeitos. A entrada em vigor da Lei 8.069/1990 representa uma evolução em direção a um sistema garantidor de direitos humanos aos adolescentes, conforme nos ensina Méndez (1998). No contexto latino-americano, a tentativa de superação da doutrina da situação irregular, a qual tinha em seu centro de atuação a figura de um juiz de menores, “com competência onímoda e discricional” (Méndez, 1998, p. 26), para uma doutrina da proteção integral – onde o juiz passa a ter “missão específica de dirimir conflitos de natureza jurídica” (Méndez, 1998, p. 33), esteve melhor exemplificada na legislação brasileira: “Pela primeira vez, uma construção de direito positivo vinculada à infância-adolescência rompe explicitamente com a chamada doutrina da situação irregular, substituindo-a pela doutrina da proteção integral (...)” (Méndez, 1998, p. 113).

Nesse contexto de mudança legislativa latino-americana, centrada na adoção gradual por esses países da Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, das Regras de Beijing de 1985, das Diretrizes de Riad de 1990, entre outros documentos e tratados internacionais do mesmo período histórico, o procedimento de apuração de ato infracional atribuído a adolescente, passou a ter contornos mais delimitados com regras processuais específicas. Além disso, a Constituição Federal de 1988 introduziu princípios processuais norteadores do ordenamento jurídico brasileiro, pois nesta nova lógica processual democrática, entende-se modernamente o processo como “não apenas instrumento técnico, mas sobretudo ético” (Cintra; Grinover; Dinamarco, 2013). Dessa forma, os procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, [8] bem como em qualquer legislação ordinária, estão submetidos àqueles princípios.

Além disso, a Constituição Federal também inaugura no seu art. 227 o Princípio da Prioridade Absoluta, conferido somente às crianças e adolescentes, [9] e delineado mais especificamente no art. 4.º do ECA. Embora não vinculado diretamente ao procedimento de apuração de ato infracional, é o pano de fundo que possibilita a efetivação de direitos concernentes a esses sujeitos, entre eles o direito a um processo mais breve que aquele destinado aos adultos. Entre inúmeras justificativas da necessidade deste princípio, fazemos referência ao fato de que “o tempo da adolescência é a urgência, haja vista a notável capacidade de transformação (…)” (Saraiva, 2006, p. 132).

Apesar de todos os avanços decorrentes da incorporação da Doutrina da Proteção Integral, [10] notamos que inúmeras conquistas já cristalizadas no direito penal adulto, de acordo com o visto no ponto anterior, ainda não foram absorvidas pelo sistema socioeducativo. Dentre tantos exemplos que serviriam ao debate sobre a razão dessa não absorção, [11] a justa causa da ação é um ótimo ponto de referência para a reflexão que deve seguir para além dos autos processuais. Parte-se, então, do disposto no § 2.º do art. 182 da Lei 8.069/90:

“Art. 182. Se, por qualquer razão, o representante do Ministério Público não promover o arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação à autoridade judiciária, propondo a instauração de procedimento para aplicação da medida sócio-educativa que se afigurar a mais adequada.

(...)

§ 2.º A representação independe de prova pré-constituída da autoria e materialidade”.

A leitura do dispositivo estabelece que, para ser aceita pelo juiz, a denúncia por ato infracional não necessita ser instruída com provas da existência do fato, tão pouco pelos elementos embasadores da alegação de autoria pelo órgão acusador. Tal redação leva a uma só possível conclusão: a justa causa não é condição da ação de apuração de ato infracional. Como já visto, contrariamente ao direito de petição – amplo e disponível – o direito à ação penal, em relação ao adulto, é restrito e condicionado, e advém primeiramente do princípio constitucional da presunção da inocência, presentes tanto no ordenamento brasileiro (art. 5.º, LVII, da CFRB/1988), quanto internacional (art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

Em suma, a consequência prática da prescindibilidade da justa causa no direito socioeducativo é a permissão à autoridade judiciária de instauração de processo de apuração de ato infracional sem que qualquer prova seja apresentada. Segundo Corrêa (1998), o art. 182 do Estatuto da Criança e do Adolescente seja talvez o caso mais flagrante de ilegalidade no que diz respeito ao tema da justa causa:

“A supra citada representação está equiparada à denúncia, de cujo processo poderá culminar a aplicação das sanções penais enumeradas no art. 112 do ECA, além da pesada pena de sujeitar o adolescente a um processo fictício, que, nos termos desta lei, não precisa assentar-se na prova da materialidade e da autoria, mas em simples suposição, suspeição, presunção – e porque não dizer – na imaginação e na subjetividade de um acusador (…)” (1998).

Em um exercício de ficção, pode-se dizer que o Ministério Público teria todos os instrumentos legais para denunciar um adolescente de nome João, por exemplo, pela prática de ato infracional análogo ao crime de homicídio, tipo penal previsto no art. 121 do CP. Para tanto, bastaria que na representação (peça inicial do processo), contasse uma história fictícia, no qual João era o assassino de seu pai, por exemplo, e que por esse fato deveria cumprir medida socioeducativa de internação. O acusador estaria agindo de acordo com os limites da lei, mesmo se não instruísse esta representação com qualquer prova da existência do fato, ou da autoria do adolescente: não há nem mesmo a necessidade do atestado de óbito da vítima. Significa dizer que poderia João passar por um processo de apuração, acusado de ter matado seu pai, quando o mesmo encontra-se vivo, ou, se de fato morto, seja um completo desconhecido para seu filho.

Como aprofundaremos na segunda parte deste trabalho, o dispositivo em questão, em desacordo não apenas com uma lógica penal já cristalizada, mas principalmente com princípios constitucionais, não foge completamente do que foi estabelecido pelo restante do Estatuto de 1990: não representa um “cochilo” do legislador. O art. 182 é apenas um exemplo de uma legislação que, confusa quanto ao seu objetivo e sua natureza, transfere ao juiz uma amplitude decisional completamente em desacordo com o sistema constitucional acusatório brasileiro. [12] Embora não seja um dispositivo vago (é expresso em sua afirmação), ao permitir a acusação infundada, retira do juiz a obrigação do controle destas representações, possibilitando que este tenha base legal para o recebimento de toda e qualquer acusação realizada pelo Ministério Público. É a legislação que, com o objetivo de modernizar-se, retorna à concepção de um juiz-cidadão (Carvalho, 2010), ou seja, um juiz que no momento do recebimento da representação fará uma análise subjetiva do caso para determinar se aquele adolescente deve ou não passar pelo procedimento de apuração de ato infracional. Não se trata de juiz-magistrado, orientado pela lei e que a ela não pode negar vigência, mas um bom juiz, capaz de consertar os problemas e as lacunas da legislação.

Ocorre que a jurisprudência existente sobre a questão demonstra não haver, pelo Poder Judiciário, um controle externo desta legislação em específico. Em uma breve pesquisa jurisprudencial no Superior Tribunal de Justiça, utilizando-se os termos “ato infracional justa causa”, foram encontrados 10 acórdãos, dos quais 3 não versavam sobre o objeto de pesquisa, enquanto os outros 7 tratavam do trancamento da ação em razão da ausência de justa causa na representação. Embora nenhuma destas decisões utilize na fundamentação da ementa o art. 182 do ECA, todos os recursos foram desprovidos. Significa dizer, portanto, que nunca foi provido recurso pelas Turmas do STJ, em razão da ausência de justa causa na representação por ato infracional. O dado alarmante preocupa ainda mais ao se analisar alguns dos argumentos utilizados pelos Ministros:

“Considerando o próprio espírito do ECA, mister se faz reconhecer que o intuito preponderante da medida socioeducativa, em que pese o seu inegável caráter repressivo, é a reeducação e reinserção do adolescente na sociedade, o que evidencia a necessidade de prosseguimento do feito para a devida elucidação dos fatos imputados pelo Parquet” (RHC 29.184/MG, 5.ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, j. 22.11.2011, DJe 02.12.2011) (destaques nossos).

A natureza da medida aparece como fato justificador do desprovimento do recurso, ou seja, embasa-se a necessidade do prosseguimento do feito a partir do caráter reeducativo da sanção, independentemente da representação conter ou não justa causa. O acórdão supracitado é apenas um exemplo de julgado que traz a natureza híbrida da medida como pano de fundo da decisão, o que é recorrente no sistema jurídico socioeducativo. Tal questão será melhor analisada na segunda parte deste trabalho, mas adiantamos que, de acordo com Konzen (2005), não são os aspectos materiais e formais, ou mesmo as verdades dos fatos, as questões que parecem mais relevantes aos julgadores para o prosseguimento do processo infracional, mas sim “o dever público de tomar alguma providência, providência que sempre será justa e eticamente sustentável, porque concebida e imposta para beneficiar, jamais para prejudicar” (Konzen, 2005, p. 40).

Por fim, necessário atentar para uma particularidade estabelecida pelo legislador na Lei 8.069/90 quando este trata dos critérios para imposição de medida socioeducativa:

“Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a VI do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos do art. 127”.

Ou seja, comparando-se os arts. 182 e 114 do Estatuto, chegamos a seguinte conclusão: o legislador não permite a aplicação de medida socioeducativa (exceto advertência) sem a existência de comprovação da autoria e da materialidade, apesar de permitir a representação sem tais elementos probatórios. Portanto, o adolescente pode passar por um processo de conhecimento para a apuração de ato infracional, sem os elementos que são obrigatórios para a imposição da medida: a ação poderá ser intentada mesmo sem que possa produzir efeitos. Poderia se pensar que a razão para tal contradição seria o fato de que, no decorrer do processo de conhecimento, acredita o legislador que as provas necessárias viessem à tona, embasando a imposição da medida. Ocorre que: (a) há inúmeras situações em que essas provas não poderão ser produzidas em tempo hábil; (b) o tempo da instrução do processo é muito exíguo, em razão da celeridade que se exige no processo de ato infracional. [13]

Desta forma, parece que, para além de dar a oportunidade ao órgão acusador de produzir os elementos necessários no decorrer da instrução, o legislador esta dizendo, entre linhas, que o processo de conhecimento de alguma forma produzirá efeitos, ainda que nenhuma sanção possa ser aplicada. Imagina-se que, na pior das hipóteses (o fato não aconteceu ou não foi cometido pelo acusado), o adolescente passou por um processo necessário de reeducação, de autoconhecimento e de reinserção social. Desconsidera-se completamente o “caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já significa uma grave ‘pena’ imposta ao indivíduo” (Badaró, 2008, p. 71). Se passar por um processo penal é considerado “uma pena” à pessoa adulta, dotada de capacidade e com sua formação completa, os efeitos prejudiciais na pessoa “em desenvolvimento” são ainda mais significativos e preocupantes. Qual seria, então, as razões pelas quais tanto Poder Judiciário quanto Legislativo insistem em legitimar práticas inconstitucionais no processo de apuração de ato infracional? Por que afinal ambos os poderes não atuam no sentido de restringir o processo socioeducativo como ultima ratio?

2. Por que não há justa causa no processo infracional?

2.1 A natureza da medida socioeducativa: entre o educar e o punir

Normalmente tende-se a pensar na natureza híbrida da medida socioeducativa, como resposta única para as dificuldades que se enfrentam diante da problemática infracional. A sua natureza complexa, que não se configura totalmente nem como punição nem como educação, mas em um intermédio entre os dois polos, seria, para alguns autores a questão central a ser entendida. Conforme Teixeira, “esse duplo aspecto constitutivo da MSE se constitui em polêmica desde a promulgação do ECA, em 1990” (Teixeira, 2014, p. 167). Assim, questionamos se reside efetivamente na natureza da medida socioeducativa a justificativa para a ausência de justa causa no procedimento de apuração de ato infracional.

Ainda que existam questões macrossociais que ultrapassem os limites da medida, as quais serão melhor aprofundadas posteriormente, entendemos importante dedicar um espaço para pensar o problema da complexidade da natureza da medida no que tange especificamente à ausência de justa causa no direito processual juvenil. Na realidade, pensar qual é a natureza da medida é esclarecedor no sentido de que, para quem considera que a medida não é sanção, tampouco será o processo. Assim, para este entendimento, não há qualquer efeito negativo para o adolescente em passar pelo procedimento de apuração, o que leva à ideia de que não é necessária a existência de instrumentos restritivos, que filtrem a ocorrência desses processos. Por outro lado, caso se acredite no aspecto punitivo da medida e no do processo, ganha relevância a necessidade da justa causa para a representação destes sujeitos, pois não se está “fazendo um favor” aos adolescentes, muito menos “protegendo-os”, mas sim, impondo determinada punição em razão de fato criminoso.

Como já dito, é com a mudança legislativa de 1990 que se começa a pensar a criança e o adolescente, no contexto brasileiro, não mais como menor em situação irregular – ou “mero objeto do processo” (Saraiva, 2006, p. 18), mas como sujeito de direito, principalmente a partir do princípio constitucional da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. [14] A partir do novo paradigma incorporado, [15] começa-se a distinguir programas para adolescentes autores de ato infracional diversos daqueles previstos para crianças e adolescente em situação de risco.

Assim, as garantias a estes sujeitos estão divididas em três níveis, sendo o nível secundário o responsável pelo direito à proteção especial e o terciário pela determinação das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que cometem ato infracional (Costa, 2004). Embora metodologicamente a legislação se decomponha em duas frentes (medidas protetivas e socioeducativas), a infância, como objeto de estudo, começa a ser vista como um fenômeno completo. Se antes os sujeitos eram bipartidos em “menores versus adolescentes”, agora compõem um mesmo grupo social. Diz-se que o menorismo cede lugar à concepção de uma infância única, integrada, universal (Saraiva, 2005; SCHUCH, 2009).

O paradoxo da tentativa de unificação da infância, a partir da separação dos sujeitos em “crianças perigosas” e “crianças em perigo” (Schuch, 2009, p. 153), merecedores cada grupo de um tipo de atuação (assistencial ou repressiva), só poderia reestabelecer no cerne da legislação a ambiguidade na finalidade da medida socioeducativa. Se o educar esta no nome da sanção, no seu dever-ser, o punir está presente na prática, nos efeitos e na aparência que as medidas vão começar a apresentar para a sociedade a partir da vigência do Estatuto. A ambivalência desta nova categoria jurídica criada juntamente com a responsabilização penal dos adolescentes, é confusa desde o seu princípio e ao irradiar-se, continua a causar interpretações tanto em um sentido quanto em outro. Os técnicos responsáveis pela aplicação destas medidas (sejam juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais ou educadores) lidam com um objeto jurídico-educacional “que ao mesmo tempo deve reabilitar infratores e cultivar cidadãos” (Fonseca et al., 2009, p. 77).

Nota-se, por exemplo, que o legislador, ao determinar o significado da medida de Liberdade Assistida, [16] incumbe ao orientador da medida a promoção social do adolescente e de sua família, a sua supervisão escolar e as diligências necessárias à profissionalização do mesmo. O próprio fim da medida é exposto no sentido de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. [17] Da mesma forma, ao determinar a medida de semiliberdade, o Estatuto a vincula à obrigatoriedade da escolarização e profissionalização, [18] o que também é exemplificado como direito do adolescente em caso de cumprimento de medida de internação. [19]

A necessária escolarização dos adolescentes envolvidos em ato infracional, ao ser reiteradamente retomada pela legislação, passa a figurar como imprescindível no momento da execução das medidas, deixando claro que a intenção é estabelecer uma finalidade pedagógica a esta categoria jurídica, para além da punição por si só. Segundo Craidy e Gonçalves (2005), não se fala em medida socioeducativa apenas como um eufemismo para pena, mas porque se acredita que “educar é possível, mesmo àqueles que apresentam um comportamento divergente” (p. 139).

Os critérios de aplicação da medida também são fatores que fazem emergir a vontade do legislador em trazer a educação para o cerne da medida. Se no direito penal é o grau de culpabilidade o critério mais importante, no infracional (ou penal juvenil), também dialogam a necessidade pedagógica, a capacidade de cumprimento, e a gravidade da infração. Desta forma, se a realização da dimensão pedagógica da sanção encontra diversas dificuldades nas práticas de execução, ao menos parecer estar respaldada pela lei.

Para Rosa, é justamente e existência desse imperativo de “ressocializar” que afasta o Direito Infracional do Direito Penal, mesmo que ligado a uma corrente garantista, uma vez que “para o garantismo não existe possibilidade de o Estado buscar ressocializar” (Rosa, 2007, p. 13). Essa afirmação vem daquilo que Ferrajoli concebia em sua teoria garantista, ao precisar repressão e educação como noções conceituais incompatíveis “como também o são a privação da liberdade e a liberdade em si” (Ferrajoli, 2002, p. 219 apud Konzen, 2005, p. 81 [20] ). Do cárcere, diferentemente daquilo que fantasia o sistema socioeducativo, a única coisa que se pode pretender “é que seja o mínimo possível repressivo e, portanto, o menos possível dissocializante e deseducativo” (Ferrajoli, 2002, p. 219 apud Konzen, 2005, p. 82 [21] ).

Por outro lado, questiona Konzen (2005) qual seria a necessidade da inserção, pela legislação, de institutos de defesa jurídica derivados do garantismo penal, caso se considere a medida como puramente pedagógica. Certamente, se houvesse apenas a intenção de proteger ou tutelar, não haveria a necessidade de tais instrumentos, como não há – ainda que discutível – no exercício do poder familiar pelos pais da criança. Ao citar Garrido de Paula (2002), o autor afirma que o novo ordenamento jurídico apresentou, pela primeira vez, garantias processuais aos adolescentes acusados de cometimento de ato infracional, podendo se dizer que inspirado “no sistema de garantias materiais e processuais do sistema penal, exigindo regularidade no processo de distribuição de justiça” (Paula, 2002, p. 114 apudKonzen, 2005 [22] ).

Para além de elucubrações teóricas, talvez seja no significado da medida para o adolescente – sujeito central de todo esse regime – que devemos voltar nossa atenção. Nesse sentido, disserta Konzen (2005, p. 43): “não importa o sentir do aplicador ou dos demais operadores, porque não são eles os depositários das consequências, notadamente quando as consequências podem ser situadas no âmbito da dor física, moral ou emocional (...)”.

A ambivalência deixada pela mescla punição-educação atinge a significação deste momento na vida destes sujeitos, dificultando muitas vezes o entendimento, não das causas do cumprimento, mas sobretudo da maneira que se deve agir ao experimentar a socioeducação. Afinal, estão sendo punidos e, portanto, devem se deparar com a disciplina, a hierarquia e a coerção ou estão sendo educados, e nesse sentido, tem direito ao acompanhamento, ao aconselhamento e a troca de saberes? Embora exista um discurso muito presente na fala dos pais desses adolescentes de que o ambiente repressivo pode educar – “Minha filha saiu de lá toda arrumada!” (Fonseca; Schuch, 2009, p. 76) –, o caráter sancionatório, impositivo e obrigatório se sobressai quase que na totalidade dos casos, uma vez que “é indiscutível seu caráter aflitivo, especialmente tratando-se da privação de liberdade” (Costa, 2004, p. 87). Além disso, se é o fato criminoso a gênese da medida socioeducativa, difícil pensar que a consequência não é punitiva.

No mesmo sentido, interessante o trabalho de Alves (2005), que ao realizar pesquisa empírica sobre os efeitos da internação na psicodinâmica destes adolescentes constata que a reclusão, mesmo que possua dever-ser educativo, “é uma marca simbólica que “pune” o sujeito, por um crime contra a sociedade, mas, paradoxalmente, acaba por incentivar e reforçar as causas que impulsionaram o ato, ou seja, é uma medida que contribui para o aumento do nível de pressão e revolta interna, tornando insuportáveis os níveis de violência” (Alves, 2005, p. 203).

Ou seja, tem-se que as consequências da internação vão, contrariamente ao que esperançava o ECA, no sentido contrário da educação. Os mesmos efeitos também podem apresentar-se nas medidas em meio aberto, as quais carecem de maiores investimentos, e por vezes restringem-se a tarefas que envolvem atividades de limpeza e serviços gerais (Gandin; Icle; Rickes, 2008). A visão por parte dos adolescentes, seja esta consciente ou não, do significado da medida socioeducativa em suas vidas, aliada aos elementos legais que estabelecem garantias processuais, aos ensinamentos da escola garantista no que tange às possibilidades da repressão e à realidade fática da execução destas medidas só pode levar à afirmação da natureza repressiva/punitiva da medida socioeducativa. Esta não pode ser jamais desconsiderada ou amenizada, mesmo que o conteúdo pedagógico esteja presente em maior ou menor grau. A educação através da repressão, possível na visão de alguns, não pode absorver o caráter eminentemente sacionatório da medida. Neste sentido, nos unimos à concepção de Costa (2004, p. 87): “Coerente é o entendimento que atribui natureza sancionatória às medidas socioeducativas, embora seu conteúdo na execução deva ser predominantemente educativo”.

Para além deste posicionamento ideológico, qualquer que seja a natureza atribuída à medida socioeducativa, seja ela predominantemente pedagógica ou punitiva, certo é que não há qualquer possibilidade de educar a partir de medida injusta. A ausência de justa causa no procedimento infracional, para além de ser símbolo de uma ambiguidade do próprio entendimento quanto à responsabilidade penal dos adolescentes, representa a carência de uma garantia inerente ao processo democrático, qual seja: não passar por um processo de apuração sem que haja embasamento para tal. Se há a possibilidade de fundir pedagogia e repressão em um só instrumento estatal, somente o tratamento justo possibilitará esse acontecimento, pois “nada fere mais um jovem do que a arbitrariedade, sobretudo quando vinda de quem é responsável pelo cumprimento da lei” (Craidy; Gonçalves, 2005, p.140).

Por fim, necessário reforçar a desmistificação de uma máxima comum na fala dos operadores jurídicos, os quais afirmam que haveria mais prejuízo para a sociedade e para o próprio adolescente se este, cometendo ato infracional, não é “selecionado” pelo sistema socioeducativo, do que os danos causados àquele que, inocente, é obrigado a passar pelo processo de acusação. Aqueles que compartilham desse entendimento acreditam que o adolescente que, tendo cometido ato infracional e restando impune, terá sua personalidade comprometida, pois, justamente, a medida socioeducativa está atrelada à ressocialização. Nesse sentido, utiliza-se de todo um aporte teórico neomenorista [23] para estender os efeitos de uma medida que se encontra entre o educar e o punir ao momento do processo infracional. Para essa corrente, passar pelo procedimento de apuração também é pedagógico, ressocializador e pode influir positivamente na subjetividade do adolescente. Ignora-se, todavia, todos os efeitos estigmatizadores deste transcurso, a repressão inerente ao fato de acusar e o controle social realizado neste momento, conforme aprofundaremos a seguir.

Dessa forma, ainda que a natureza híbrida da medida socioeducativa seja aspecto relevante quando nos deparamos com problemas que circundam a temática do sistema socioeducativo, concluímos que ela não é capaz de justificar, por si só, a ausência de justa causa no procedimento de apuração infracional. Afirmar o caráter punitivo da medida e do processo não é suficiente: é preciso que se enxergue para além do binômio punição versus educação. Para a extensão do debate sobre o tema, foi necessário levantar outras hipóteses que pudessem amparar, afinal, alguma explicação para o problema lançado inicialmente. Assim, perguntamos-nos, afinal, quais são os papéis efetivamente exercidos pelos atores envolvidos nesta problemática (Estado, sociedade, adolescente)? Porque, afinal, acusar quando não há razões para tal?

2.2 O processo infracional como controle social dos adolescentes

Somado aos argumentos já expostos, e ainda na tentativa de formular algumas explicações sobre porque razão o Estado brasileiro – especialmente na esfera legislativa e judiciária – decidiu que o poder de acusação em relação aos adolescentes fosse totalmente discricionário, levantam-se novas hipóteses. Os adolescentes selecionados pelo sistema penal juvenil não diferem, em termos de recortes sociais, das características predominantes na população adulta encarcerada. Ainda, os atos infracionais pelos quais respondem os sujeitos menores de 18 anos são, em sua maioria, tráfico e roubo, [24] o que revela que as “condutas criminosas” estão intimamente ligadas a um rápido retorno econômico. Ou seja, a população submetida à legislação do ECA – e à sua arbitrariedades, tal qual a ausência de justa causa – não exerce força política, tampouco possui espaços positivos de visibilidade para reivindicar seus direitos, quiçá uma mudança legislativa nesse sentido.

E o que se quer dizer com isso é bastante simples: não há uma mobilização no país em discutir e modificar a atual situação legislativa, nem por parte dos sujeitos que sofrem suas consequências diretas, nem por parte dos operadores do direito. Costa (2005) observa a existência de uma concepção doutrinária que perpassa muitos processos da Justiça da Infância e da Juventude, de que este assunto não se trata efetivamente de matéria de Direito, ou ainda trata-se de um “Direito menor”, de natureza social, sobre o qual concedem menor importância. Saraiva (2002) reforça esta noção, afirmando que no imaginário de muitos dos operadores do Direito ainda habita uma ideia de que a Justiça da Infância e da Juventude não se ocupa da “nobreza do mundo jurídico”, pois suas questões seriam “ajurídicas”, não científicas, em uma ideia de jurisdição subalterna (Saraiva, 2002, p. 91, apud Costa, 2005, p. 149).

Apesar de muitos profissionais da área militarem pelas pautas pertinentes ao sistema penal adulto, não há o mesmo engajamento político pelas questões relativas ao sistema socioeducativo e suas problemáticas. Além disso, os adolescentes que respondem por atos infracionais não exercem pressão política neste meio, [25] seja pela sua quantidade numérica pouco expressiva comparada ao encarceramento adulto, seja pela classe social a que fazem parte. O que ocorre é que muitos advogados e juristas renomados, tanto na área criminal, quanto na área civil, nunca foram provocados a entrar de forma mais profunda em contato com a matéria, e em decorrência disso o procedimento de ato infracional é verdadeiro mistério para muitos deles.

Há, portanto, pouco ou quase nenhum interesse político em discutir o sistema socioeducativo e principalmente o processo penal juvenil por parte dos operadores do direito. Apesar de haver no país importantes movimentos sociais pelos direitos da criança e do adolescente, os quais foram fundamentais para a implementação do ECA e de suas políticas, os aspectos referentes às questões processuais foram, e ainda são, extremamente relegados a segundo plano. Tal situação decorre também da total ausência de uma formação jurídica a respeito do tema.

Somado ao fato dos adolescentes não acessarem as instâncias recursais superiores – seja pela ausência de defesa técnica, seja pela não análise em tempo hábil dos recursos interpostos – a formação sobre o tema nas faculdades de direito é praticamente inexistente. A título de exemplificação, a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, já considerado pelo Ministério da Educação a melhor Faculdade de Direito do Brasil, [26] não possui em sua grade curricular uma única cadeira obrigatória que lecione sobre o direito da criança e do adolescente, tampouco sobre o direito penal juvenil. A invisibilidade do tema é tamanha que nem as cadeiras de processo civil, nem as cadeiras de processo penal o abordam, pois como é um procedimento de natureza híbrida – e extremamente confuso –, nenhuma delas está disposta a enfrentar a complexidade da questão.

Tanto é notória tal problemática, que Méndez (2008) atribui o isolamento dos estudos acerca dos direitos da infância em geral, a baixa qualidade intelectual da produção teórica e sua escassez à banalização (progressista ou conservadora) do tratamento de temas centrais como a violência juvenil e suas demandas. Assim, vão se agregando diversos fatores que resultam no total desconhecimento sobre o tema e na consequente ausência de debate sobre as ilegalidades que o permeiam. Dessa forma, somente quem conhece os absurdos do procedimento de ato infracional são aqueles que se deparam, na realidade prática e cotidiana, com a defesa dos adolescentes.

O problema do procedimento de ato infracional, aqui concretizado e especificado na não necessidade de justa causa para o exercício da ação, mais do que um problema de âmbito legal, possui importante dimensão política. Na medida em que os operadores do direito não se interessam pelo tema, pois este não possibilita retorno financeiro, e não é fomentado durante a formação acadêmica, as discricionariedades no sistema socioeducativo não são questionadas, o qual segue recheado de ilegalidades.

Por fim, entendemos que atrelado ao desinteresse generalizado em torno do assunto do procedimento de ato infracional, a dimensão política do problema também se relaciona ao amplo controle social facultado ao sistema de justiça sobre os adolescentes, por meio de dispositivos abertos e discricionários, tal como o art. 182, § 2.º, do ECA.

Apesar do conceito de controle social ser atribuído mais recorrentemente às teorias do direito penal e especialmente à criminologia, afirma Zaffaroni (2004) que aquele que pretende analisar um modelo de sociedade sem, contudo, problematizar a pluridimensionalidade do fenômeno de controle, cairá em um simplismo ilusório (p. 62). Segundo o autor, toda sociedade tem uma estrutura de poder com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados deste, e esta “centralização-marginalização” tece um emaranhado de múltiplas e proteicas formas de controle social.

Para Muñoz Conde e Winfred Hassemer (2008) “o controle social é uma condição básica irrenunciável da vida social. Com ele se assegura a todo grupo, a qualquer sociedade, as normas, as expectativas de conduta sem as quais não poderia seguir existindo como grupo ou sociedade” (p. 249). Ele é exercido, portanto, por diversas formas alternativas, as quais se diferenciam em grau de formalização com a qual se impõem (Hassemer; Conde, 2008). Nesse sentido, o Direito Penal – e aqui se inclui o sistema de responsabilização juvenil – é forma de controle social com alto nível de formalização.

Disserta Zaffaroni (2004) especificamente sobre esta espécie de controle, a qual se vale “desde meios mais ou menos ‘difusos’ e encobertos, até meios específicos e explícitos, como é o sistema penal (polícia, juízes, agentes penitenciários, etc.).” (Zaffaroni, 2004, p. 61). No entanto, esse evento não se restringe ao controle formal: “a enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito”. (Zaffaroni, 2004, p. 61).

Méndez ao criticar o tema da distinção entre os mecanismos formais e informais de controle social, afirma que “a dificuldade em definir com certa precisão a formalidade ou a informalidade dos mecanismos de controle social constitui uma constante nos escritos de todos os que se ocuparam com o problema” (1998, p. 42). No entanto, apesar do sistema penal adulto ser historicamente considerado um mecanismo de controle formal, o que se percebe ao analisar o sistema de responsabilização dos adolescentes, na verdade, é, paradoxalmente, um alto grau de informalidade dos mecanismos formais de controle sociopenal dos sujeitos menores de 18 anos. Tal informalidade é exemplificada na possibilidade de se acusar um adolescente sem que existam os elementos pré-constituídos de autoria e materialidade, a qual se caracteriza uma importante flexibilização em relação ao sistema adulto.

Nesse sentido, faz-se necessário perceber de que forma as instituições que compõem o tecido social comportam-se, uma vez que toda e qualquer instituição social possui em seu cerne um elemento de controle social inerente à sua essência. Apesar desse controle se apresentar de forma enraizada, dependendo do funcionamento das diferentes instituições sociais, elas podem ser instrumentalizadas no sentido de potencializar este controle para muito além do que corresponde essa essência, tal como acontece no sistema socioeducativo.

Notamos, assim, que há em todas as instituições sociais um espaço de constante disputa, em que se concorre por mais ou menos controle social. É neste ponto, portanto, que entendemos residir um aspecto fundamental da discussão: o controle social exercido por meio da justiça penal juvenil se intensifica à medida que não se prevê aos adolescentes garantias como a necessidade de justa causa para o exercício do poder acusatório.

“Se nos anos 80, durante o processo de redemocratização no contexto da América Latina, o pensamento crítico revalorizou a cultura garantista conduzindo a uma visão menos ideológica dos mecanismos formais de controle (Méndez, 1998), tais críticas não alcançaram o sistema de controle sociopenal juvenil. Nesse sentido, disserta Méndez: no contexto de recuperação da cultura garantista, que implica de fato na revalorização crítica da função dos mecanismos formais de controle social, torna-se evidente a oportunidade e a urgência em se analisar o sistema penal de menores” (1998, p. 44).

Segundo o autor, a informalidade dos mecanismos formais de controle sociopenal dos adolescentes deve ser posta em evidência para se tirar conclusões que permitam a elaboração de uma política social baseada no respeito absoluto dos direitos humanos (Méndez, 1998).

Indo além, entendemos que a possibilidade de se exercer o poder acusatório contra um adolescente da forma como prevê o ECA, não só aniquila princípios constitucionais, mas também possui uma perversa função de controle irrestrito sobre esses sujeitos, a qual possui significativa dimensão simbólica. A garantia legal de que é possível submeter um jovem a um processo de ato infracional sem quaisquer indícios probatórios que o justifiquem implica submeter essa população a um constante estado de polícia.

Tal situação prevista pelo legislador permite pensar que o que está em questão em um processo de ato infracional não se relaciona exclusivamente ao controle do crime, mas a um conjunto de forças sociais e históricas direcionadas a um grupo populacional que não necessariamente precisa estar envolvida em uma situação de ato infracional. Nesse sentido, inevitável a relação com as teorias do direito penal do inimigo, pois segundo Gunther Jakobs, “para os cidadãos são mantidas as garantias fundamentais da dignidade da pessoa humana, já para o inimigo, tais garantias não necessitam ser asseguradas, pois a própria existência do inimigo já é uma afronta ao direito” (Jakobs, 2010, p. 28 apud David; Oyarzabal, 2011, p. 226 [27] ). Nessa perspectiva, portanto, o adolescente é o inimigo, na medida em que este é desprovido das garantias e prerrogativas processuais de um Estado de Direito, pois “a condição de inimigo supera em muito a qualidade de sujeito de direito” (Coutinho, 2011, p. 333).

A título de conclusão sobre as reflexões expostas, apesar de o sistema penal ser estruturado enquanto um mecanismo formal de controle, o sistema relativo aos adolescentes é permeado por característica que revelam um alto grau de informalidade, na medida em que ele não se reveste de garantias processuais mínimas. Por isso, e seguindo os ensinamentos de Méndez (1998), o qual afirma que, comprovado que um mecanismo formal “de controle social participa, além de seu funcionamento seletivo, de todas as características negativas dos mecanismos informais de controle social, deve-se admitir o estado de profunda crise” (p. 44), crise esta relativa à legislação juvenil e ao sistema socioeducativo.

Assim sendo, ressaltamos que mesmo quando a pena (ou a medida socioeducativa) respeitar os limites da legalidade, ela sempre se constituirá em instrumento reprodutor da estratificação social capitalista (Baratta, 1999, p. 207). Portanto, é necessário assumir as reais funções exercidas pelo direito penal juvenil – e intensificadas por dispositivos discricionários como o § 2.º do art. 182 do ECA –, o qual ainda se reveste de um caráter tutelar para maquiar suas intenções de controle das populações mais pobres, e a conseguinte produção e reprodução das desigualdades sociais.

Conclusão

Após a análise específica do dispositivo legal, concluímos primeiramente pela inconstitucionalidade do § 2.º do art. 182 do ECA, seja pela sua incompatibilidade com o sistema de garantias processuais constitucionais, seja por não estar abarcado em um necessário sistema acusatório. Ainda que evidentemente atentatório aos princípios da presunção da inocência, do devido processo legal, do necessário respeito ao contraditório e da ampla defesa, pretendíamos no presente trabalho, demonstrar, sobretudo que a norma em questão é apenas sintoma de instituições jurídicas responsáveis pelo processo de formalização do estigma, a partir de uma ciência “que dá um ar sério aos estigmas, fortalecendo-os e consolidando-os (…)” (Bacila, 2005, p. 187).  

A ausência de justa causa no processo juvenil, se em um primeiro plano, ofende os direitos da pessoa em desenvolvimento, em uma visão mais ampla, afronta o próprio princípio do respeito à dignidade humana, no sentido de que este é “qualidade intrínseca reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade (…)” (Sarlet, 2005, p. 37 apud Costa, 2012, p. 103 [28] ). Afirmamos, nesse sentido, a necessidade de que o tema alcance o âmbito dos tribunais superiores do país, não só para que tenhamos um posicionamento inédito dos Ministros sobre o assunto, mas para que de fato se possa fazer um controle externo da legislação. Assumir esse posicionamento, todavia, não significa depositar esperanças de que a solução dos problemas aqui expostos estará tão somente no âmbito do Poder Judiciário: a leitura crítica da legislação foi responsável pela emersão de inúmeras outras questões de âmbito político e sociológico.

Conforme aprofundamos no segundo capítulo deste trabalho, a complexidade da natureza da medida socioeducativa surge como uma das hipóteses quando se pensa os motivos que possam justificar a ausência da justa causa, ainda que seja esse um debate de certa forma já esgotado para aqueles envoltos nas problemáticas da socioeducação. Por fim, talvez seja na afirmação do Poder Judiciário como protagonista de um controle formal a partir da informalidade de certas normas, o ponto chave deste trabalho. Nesse sentido, os adolescentes – hoje considerados como sujeitos de direito – são as vítimas de um Direito que, para além de suas questões operacionais a serem resolvidas, possui “desafios fundamentais que não estão ligados a isso. Ao contrário, eles vão além porque são próprios do tipo de sociedade que essa Justiça regula” (Coutinho, 2011, p. 329-330).

Concluímos, portanto, destacando a necessidade de se produzir visibilidade dos dilemas que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu a partir da criação do sistema socioeducativo que vigora na atualidade. Afirmar o caráter penal sancionatório da medida socioeducativa, conforme fizemos, deve ser entendido como uma estratégia de resposta à sociedade punitiva que clama por intervenções cada vez mais violentas (Costa, 2014). Se na época do Código de Menores o controle social sobre os “menores” parecia ilimitado, é necessário afirmar que o ECA ainda possui fortes resquícios de uma legislação tutelar que legitimou – e segue legitimando – intervenções discricionárias sobre a população pobre de crianças e adolescentes. Se hoje não é a “situação irregular” que os define, o “possível cometimento de um ato infracional” – sem quaisquer indícios de autoria e prova pré-constituída de materialidade – é quem pode tutelá-los de forma irrestrita.

O nosso objetivo, entretanto, não é depositar na norma – por mais limitadora que esta possa ser – e em seus operadores a responsabilidade – e a conseguinte solução – por todos os impasses existentes. Queremos propiciar o debate para o desenvolvimento de uma ciência capaz de interligar direito, sociologia e política e a realidade social extremamente violenta em que estão inseridos os adolescentes brasileiros. Nesse sentido, designamos Sociedade e Estado – ou seja, todos nós – como agentes responsáveis por produzir novas formas de gestão da violência.

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Saraiva, J. B. C. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e ato infracional. 3. ed. ampl. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

______. Desconstruindo o mito da impunidade: um ensaio de direito (penal) juvenil. Brasília: Saraiva, 2002.

Teixeira, M. D. L. T. Medida socioeducativa. In: LAZAROTTO, G. D. R. et al. Medida socioeducativa: entre A & Z. Porto Alegre: Ed. UFRGS: Evangraf, 2014. p. 167-170.

Schuch, P. Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

Zaffaroni, E. R; Pierangeli, J. H. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004.

Decisões consultadas

Brasil, Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 60.612-DF. Relator: Min. Nefi Cordeiro, julgado em 25.08.2015.

______. Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Habeas Corpus 243.950-PA. Relator: Min. Marilza Maynard, julgado em 10.12.2013.

______. Superior Tribunal de Justiça. 5.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 29.184-MG. Relator: Min. Gilson Dipp, julgado em 22.11.2011.

______. Superior Tribunal de Justiça. 5.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 29.573-MG. Relator: Min. Gilson Dipp, julgado em 02.08.2011.

______. Superior Tribunal de Justiça. 5.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 19.703-SP. Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 03.04.2007.

______. Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 14.096-MG. Relator: Min. Paulo Media, julgado em 13.05.2003.

______. Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 5.524-RS. Relator: Min. Anselmo Santiago, julgado em 30.09.1996.

Obras on-line:

Gutierrez, E. C. Punir ou educar? O papel da medida socioeducativa na visão do Poder Judiciário. In: IV Encontro Nacional de Antropologia do Direito, 2015, São Paulo, Disponível em: <http://www.enadir2015.sinteseeventos.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=1>. Acesso em: 5 nov. 2015.

Betina Warmling Barros

Bacharelanda do curso de Ciências Jurídicas e sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrante do grupo de pesquisa “A Efetividade dos Direitos Fundamentais de Adolescentes Envolvidos em Situação de Violência”.

Luiza Griesang Cabistani

Bacharelanda do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “A Efetividade dos Direitos Fundamentais de Adolescentes Envolvidos em Situação de Violência” e bolsista de extensão do Programa Interdepartamental de Práticas com Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei.

[1] O segundo encontro do Colóquio VIVO, realizado no dia 8 de junho de 2015, intitulado “Processo penal juvenil: quando a prática ocupa o vazio da lei”, foi realizado com a presença do – Juiz de Direito no Juizado Regional da Infância e Juventude da Comarca de Passo Fundo, Dalmir Franklin de Oliveira Junior e do Defensor Público do estado de São Paulo e membro do núcleo especializado da infância e juventude da DPESP (Defensoria Pública do estado de São Paulo), Giancarlo Silkunas Vay.

[2] Lei 12.594/2012.

[3] A Lei 12.594/2012 define em seu art. 35, I, que a execução das medidas socioeducativas reger-se-á, entre outros, pelo princípio da legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;

[4] Art. 267, VI, do CPC/1973. Lei 5.869/1973.

[5] Carnelutti, F. Como se faz um processo. Belo horizonte: Editora líder, 2001. p. 21.

[6] Considerando a população carcerária somada àqueles que cumprem prisão domiciliar, o número chega a 715.592, número que eleva o Brasil a terceiro país com maior população carcerária do mundo. Dados disponíveis no sítio do Conselho Nacional de Justiça: . Acesso em: 7 nov. 2015.

[7] O Mapa do Encarceramento: Os Jovens do Brasil realizado pelo Ministério da Justiça, no ano de 2012, mostra que 93,8% do total de presos são homens, 54,8% são jovens de até 29 anos, 63,2% possuem baixa escolaridade (até ensino fundamental incompleto), e 60,7% são negros (Mapa do Encarceramento, 2014, p. 22-26).

[8] Lei 8.069/1990.

[9] A própria Lei 8.069/99 prevê a sanção da autoridade judiciária que violar os prazos por ele estabelecidos, de acordo com o art. 235 do dispositivo.

[10] Ver mais em: Mendes, P. Moacyr. A doutrina da proteção integral e do adolescente frente à Lei 8.069/90. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo; Méndez, Emílio García. Infância e cidadania na América Latina. Sao Paulo: Hucitec, 1998; Saraiva, B. C. João. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e ato infracional. 3. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

[11] Pode se citar como outros exemplos: (a) o momento de interrogatório do réu: no direito penal adulto, a Lei 11.719/2008 determinou que o interrogatório do réu fosse o último ato da instrução probatória, garantindo lhe a mais ampla defesa. No direito penal juvenil, de acordo com o art. 186 do ECA, a oitiva do adolescente acusado de ato infracional é o primeiro ato da instrução probatória. (b) No procedimento de apuração de ato infracional o Ministério Público é titular único e absoluto da ação, independentemente do crime cometido, conforme dispõe o art. 182 da Lei 8.069/90. (c) O adolescente cumpre a medida socioeducativa antecipadamente, ou seja, mesmo que não haja trânsito em julgado de sentença condenatória. Isso se dá pois em casos em que o adolescente não é internado provisoriamente, e é condenado em 2.º grau, os recursos especial e extraordinário, por força do art. 27, § 2.º da Lei 8.038, não possuem efeito suspensivo, o que permite a internação imediata do adolescente. Além disso, nos casos em que o adolescente é internado provisoriamente e condenado em 1.ª instância aplica-se o art. 520, VII, do CPC – cujo sistema recursal foi adotado pelo ECA – para promover a internação antes do trânsito em julgado da condenação.

[12] Apesar de haver discussão na doutrina quanto à natureza do sistema processual penal brasileiro, certo é que “se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório).” (Nucci, 2007, p. 104-105). A Constituição de 1988, ao estabelecer princípio do contraditório, da separação entre acusação e órgão julgador, da publicidade, da ampla defesa, da presunção de inocência, entre outros, dá margem à uma interpretação no sentido de um sistema acusatório, sobretudo quando se trata de uma legislação posterior à sua promulgação, como é o caso da Lei 8.069/90.

[13] Dispõem os arts. 108 e 183 do ECA que o prazo máximo para a conclusão do procedimento é de 45 dias, estando o adolescente internado provisoriamente. Desta forma, a legislação cria “um compromisso com a conclusão do processo neste período, tanto que o Estatuto elevou à condição de crime o descumprimento, injustificado, de qualquer espécie de prazo que estabelece em benefício do adolescente privado de liberdade”. (Saraiva, 2006, p. 97-98). Além disso, prevê o ECA, prazo máximo de 60 (sessenta) dias para o julgamento de recursos, conforme dispõe o art. 199-D, acrescido pela Lei n. 12.010/2009.

[14] Constituição Federal de 1988, art. 227, § 3.º, V.

[15] “A Doutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto conceitual, metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas às crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos humanos, superando o paradigma da situação irregular para instaurar uma nova ordem paradigmática” (Saraiva, 2005, p. 18).

[16] Arts. 118 e 119 do ECA.

[17] “Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.”

[18] Art. 120 do ECA.

[19] Art. 124, XI, do ECA.

[20] Ferrajoli, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p. 219.

[21]  Idem, ibidem, p. 219.

[22] Paula, P. G. D. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada. Sao Paulo: RT, 2002. p. 114.

[23] “O conceito ‘neomenorismo’ designa a posição assumida por aqueles que, em geral, tendo participado do processo de derrocada das velhas leis de menores e de sua substituição por leis baseadas na doutrina da proteção integral, pretendem hoje um uso tutelar e discricional da legislação garantista” (Méndez, 2008). Para maior detalhamento da questão, ver: Méndez, Emilio García. Adolescentes y responsabilidad penal: un debate latinoamericano. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia pena. ano VI, n. 10, p. 261-275, 2000. 

[24] Roubo corresponde a 38,1% ,enquanto que o tráfico corresponde a 26,6%, totalizando 64,6% do total de atos infracionais pelos quais respondem adolescentes no país no ano de 2011 (FBSP, 2013, p. 86)

[25] Nesse sentido, referencia-se que “De qualquer sorte, o bandido, hoje, de regra, o popular, aquele que não tem condição de manter a estrutura efetiva de sua defesa, que não tem condições de se fazer valer porque não consegue espaço para ocupar sua própria cidadania. Nesta hora, porém, quem tem proposto reformas em nome daquilo que chama ‘democracia’, tem esquecido que, ao invés deles, quem poderia estar ali, como se estava no regime militar, era um de nós.” (Miranda, J.N.M.C. Videoconferência. In: Miranda, J. N. M. C. (Coord.). Canotilho e a constituição dirigente. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003. p. 111 apud Bacila, 2005, p. 189).

[26] O título de melhor curso de graduação na área concedido à Faculdade de Direio da UFRGS superou outros 742 avaliados no Brasil. O título veio com a divulgação, em 13 de janeiro, do índice Geral de Cursos (IGC) 2009, do Ministério da Educação. Matéria vinculada pelo jornal Zero Hora, no dia 26 de janeiro de 2011, n. 748, Porto Alegre. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/caar/wp-content/uploads/2011/01/mat%C3%A9riazhdireito.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2015.

[27] Jakobs, G.; Meliá, M. C. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 28.

[28] Sarlet, I. W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: ___ (Org.). Dimensões da dignidade – Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 37.

Infância
Igualdade também se aprende na escola: por uma educação libertadora, emancipatória e não sexista à luz das máximas de Paulo Freire
Data: 24/11/2020
Autores: Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci e Michelle Asato Junqueira

“Não creio em nenhuma busca, bem como em nenhuma luta em

favor da igualdade de direitos, em prol da superação das injustiças que não

se funde no respeito à vocação para humanização”.

Paulo Freire

Resumo: A educação consiste em direito público subjetivo e alberga em si a força emancipatória e libertadora capaz de transformar o indivíduo e fazê-lo sujeito da história. Nessa linha, Paulo Freire confere o referencial teórico à discussão de a educação valer-se à igualdade de gênero, ainda que diversos sejam os retrocessos sociojurídicos à sua implementação. O artigo apresenta-se sob o método de abordagem como hipotético-dedutivo e a metodologia de procedimento foi fundamentalmente bibliográfica.

Palavras-chave: Educação; igualdade de gênero; Paulo Freire.

Abstract: The education consists of subjective public right and houses itself emancipatory and liberating force capable of transforming the individual and make him subject of history. Along these lines, Paulo Freire gives the theoretical background to the discussion of education avail themselves to gender equality, though many are socio-legal setbacks to its implementation. The article presents under the method of approach as hypothetical-deductive method and the procedure was fundamentally literature.

Keywords: Education; gender equality; Paulo Freire.

Sumário: 1. Introdução – 2. Desconstruir para Construir uma igualdade de gênero – 3. Educação em direitos humanos, não sexista e igualitária: por que discutir o óbvio? – 4. 21 de junho: Dia de Luta por uma Educação Não-Sexista e Sem Discriminação – 5. Retroceder jamais. Esta deveria ser a lição – 6. Considerações finais e em constante devir: O caminho se faz caminhando – 7. Referências bibliográficas.

1. Introdução

A relação que se encerra na discussão entre educação e gênero tem por fundamento a igualdade.

A igualdade como centro do cenário político e jurídico é há muito discutida e ganha principal relevância a partir da Revolução Francesa, em 1789. Ainda que nascida do liberalismo burguês, é nesse período que foram plantadas as sementes de um constitucionalismo pautado nos ideais não apenas da liberdade, mas também com base na igualdade e na fraternidade.

Esses ideais da revolução burguesa serão, mais tarde, considerados como bases para a teoria dos direitos fundamentais, pautados na dignidade da pessoa humana e na consideração de que as pessoas possuem direitos pelo simples fato de serem humanos.

A igualdade, portanto, passa a ser elemento essencial para as bases democráticas, sendo primordial para a construção de um modelo de Estado que visa ao desenvolvimento, na medida em que faz que todos os cidadãos sejam capazes de influenciar na tomada das decisões políticas. Por certo que a relação entre a liberdade e a igualdade nunca foi fácil, a conciliação entre os primordiais direitos impõe o balanceamento diante dos casos em concreto e, eventualmente, parciais restrições de um e outro.

Postas tais premissas, cabe localizarmos o direito à educação nesse cenário. A educação é um direito fundamental, social, de igualdade, ou seja, é um direito que se presta à promoção da igualdade, tanto formal quanto material. Formal, na medida em que o ordenamento jurídico confere a todos o exercício desse direito. Material, uma vez que tende a observar as particularidades das relações sociais e jurídicas de cada indivíduo, fazendo que todos alcancem o objetivo desse direito: a emancipação.

De que emancipação estamos falando?

Emancipar se relaciona à ideia de libertar, de libertação. Tornar-se livre. Não é, portanto, a educação mera transmissão de conhecimento, mas um constituir-se sujeito do mundo, atuando nele para alterá-lo. [1]

Além desse conceito, Paulo Freire nos fala em autonomia, um conceito além da emancipação e que, segundo o Dicionário Michaelis, apresenta a seguinte definição: “Sociologiae Política: Autodeterminação político-administrativa de que podem gozar, relativamente, grupos (partidos, sindicatos, corporações, cooperativas etc.), em relação ao país ou comunidade política dos quais fazem parte; Liberdade moral ou intelectual”. [2]

O que se conclui nesse momento é que a educação é um direito de igualdade que visa à efetivação também da liberdade e, portanto, é o elemento construtor da cidadania e elemento essencial da democracia.

É essencial não apenas porque foi positivado como direito público subjetivo, mas, por ser direito fundamental, foi positivado obedecendo a sua relevância.

Nesse sentido, “A educação como direito público subjetivo, não pode pertencer ao universo das normas meramente programáticas, que dependem da vontade de seus aplicadores. Haja vista que a ignorância é uma forma atual de escravidão. É uma doença que cega, paralisa e que mantém as pessoas fragilizadas às investidas dos maus agentes públicos. O analfabetismo e a falta de instrução educacional e profissional fazem perseverar as castas sociais. Aumentam o fosso da má distribuição de renda, preservando ricos e proletários, suseranos e servos, poderosos e humildes, e todas as cruéis características inerentes a essas tipificações. O direito à educação é pedra angular da formação e capacitação de um povo”. [3]

Paulo Freire inicia uma de suas obras com a seguinte afirmação: “Não é possível fazer uma reflexão sobre o que é a educação sem refletir sobre o próprio homem”. [4]

Em sendo assim, ele considera a educação como um processo construído pelo homem e que pode servir para sua dominação ou para sua libertação, como um processo construído extrai-se a sua íntima ligação com a cultura, caminhando juntas e se transformando em um caráter histórico e constante, de transmissão e perpetuação.

Por considerar os homens seres inacabados, deve-se concluir que o processo educacional também nunca acaba, ou seja, estamos sempre em processo educativo. Não há seres educados e não educados, há educandos, estes em diferentes níveis educativos.

Nessa linha, a escola erra ao tirar o conhecimento dominante do contexto histórico e naturalizá-lo, na medida em que torna esse conhecimento o único visível e socialmente aceitável, para ele (Paulo Freire), o conhecimento é histórico e, portanto, produzido em determinadas relações políticas, culturais e econômicas, impondo a conclusão de que os homens são produzidos pela cultura. [5]

Dessa forma, a educação que visa à concretude dos objetivos da Constituição de 1988, em especial a busca por uma sociedade mais livre, justa e solidária, bem como que tem por fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, não pode se afastar da igualdade de gênero estampada entre os direitos fundamentais expressamente assegurados. Indispensável a discussão acerca da relação entre gênero e educação, seu caráter emancipatório e libertador, não só do indivíduo que se livra da dominação, mas também, e especialmente, da sociedade que evolui e mira o desenvolvimento social.

Guacira Lopes Louro, ao tratar sobre a evolução histórica da educação na perspectiva de gênero, afirma, referindo-se a Robert Connell (1990), que “o gênero é uma categoria ao mesmo tempo biológica e histórica; biológica na medida em que carregamos certas características desde o nascer, e histórica já que deve ser construída e é passível de transformação, não se conformando como uma característica pronta e estável, sofrendo influências constantes e diretas de caráter social, psicológico e cultural. Não é possível descurar, ainda, que o biológico também se transforma, na medida em que os hábitos alimentares, as condições de vida e os aparatos tecnológicos incorporam-se ao cotidiano, alterando a duração de vida, envelhecimento, capacidade motora etc.”. [6] Tornar-se homem ou tornar-se mulher (essa última expressão feita clássica por Simone de Beauvoir) supõe, portanto, um trabalho de socialização de sujeitos – homens e mulheres – em que estes, longe de serem depositários passivos de uma cultura, integram-na de forma ativa e própria. Esse processo, também longe de ter um final, um momento em que está “pronto”, concluído, é um processo dinâmico e tem potencialmente possibilidades de ser modificado, transformado – e não só porque os sujeitos, com suas trajetórias pessoais, sofrem crises ou modificações, mas também porque as sociedades transformam-se, revolucionam-se, podem assumir outros modos de produção e reprodução da vida, podem admitir outros valores, novos símbolos, outras normas, outras representações. [7]

A referida autora também nos alerta que a educação apresenta divergências tanto do ponto de vista do gênero como do da classe. Diversos são os processos educativos propostos para meninos e meninas da classe trabalhadora e proprietária.

Sob essa perspectiva, Paulo Freire propõe a educação dialógica, que parte da seguinte premissa: “O homem não é uma ilha. É comunicação. Logo, há uma estreita relação entre comunhão e busca”. [8]

A busca pelo desenvolvimento e pela igualdade, na visão freireana, é um processo contínuo, compartilhado e dialogado. O diálogo pressupõe preocupação com o outro e com o participar democrático. Ouvir, ponderar e equilibrar devem ser as constantes do desenvolver da educação igualitária.

É preciso dialogar com as diferenças, mas não negá-las. Freire afirmava ser possível trabalhar com os diferentes, mas não com os antagônicos. [9]

Em Pedagogia do oprimido, considerada sua principal obra, Freire nos chama ao compromisso: “Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar”. [10]

É Giselle Moura Schnarr que comenta: “o texto freireano é um convite ao diálogo, que enquanto tal, só existe se estivermos ‘desarmados’ de nossos dogmas e abertos à investigação, que implica no ouvir e no dizer sua palavra”. [11]

2. Desconstruir para construir uma igualdade de gênero

Não há que se falar em naturalização de papéis. Não há que se falar em conceitos advindos do mundo natural. É sabido e consabido que as definições de homem e mulher pertencem ao mundo da cultura, do construído, do como deve ser. Esse modus operandi, o como definido estrategicamente como estrutura de poder. Quem está no poder decide quem é e como deve ser, e assim caminha a humanidade androcentricamente. Marcada historicamente pelas relações de poder, os conceitos de homem e mulher são arquitetonicamente construídos. Partindo desses alicerces, tudo passa a ser solidificado, povoando a crença coletiva e se apresentando como metas apropriadas a cada tempo, cingindo o espaço do homem e o espaço da mulher.

A partir de tais pressupostos, os sexos são excludentes, não interagem e não se harmonizam. E com base na rotulação e no etiquetamento social, as narrativas vão se construindo à margem do que é, de como é e de como deveria ser.

Tais rótulos impiedosamente definem o sexo, o destino de cada um, a existência, as possibilidades, as desigualdades na práxis social.

Tais relatos nos confirmam a tese do surgimento “natural” da desigualdade, da submissão feminina e de sua não recepção de poder, educação e cidadania. No mesmo sentido, homens são aprisionados na não afetividade, voltados apenas para a “vida pública” em detrimento da “vida privada” e dos laços familiares. [12] A naturalização desses conceitos é eficaz – infelizmente – para a manutenção do status quo – sempre foi assim e assim será.

Oportuno salientar que o emprego do termo gênero,utilizado na temática, contempla não as diferenças entre os sexos em razão do determinismo biológico, mas é usado para demonstrar que as diferenças entre homens e mulheres são construídas socialmente no decorrer da história. Partindo de tal fato, as conquistas e transformações sociais não ocorrem de forma natural, o “patriarcado”, a “esfera doméstica feminina” são características arraigadas e arquitetadas desde tempos pretéritos em nossa sociedade e, para tanto, a mudança clama por uma absoluta integração entre atores sociais, tais como o governo, a sociedade organizada, que, por meio de campanhas educativas e formativas, debatam a temática da desigualdade de gênero, revendo conceitos e preconceitos enraizados. Tais arquiteturas discriminatórias já se estabelecem “naturalmente” desde a tenra idade, ou seja, nos primórdios da infância.

Trabalhado com maestria por Joan Scott, o conceito de gênero vem se afirmando ao longo dos últimos tempos como “organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo (...)”(Scott, 1994, p. 13).

Como construtos sociológicos devem ser considerados os comportamentos feminino e masculino; experiências sociais, culturais e históricas talhadas sempre a partir de um aspecto relacional, qual seja, a mulher é o não homem. O modelo androcêntrico tendo o masculino como núcleo e centro do universo, como medida de todas as coisas, é o responsável por ditar as regras, incluindo e excluindo, em permanente moto contínuo, o poder, a imposição da justiça e a governança do mundo (Moreno, 1999, p. 23).

Pierre Bordieu (2002, p. 16) destaca a construção cultural dialética entre masculino e feminino: “arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás, direita/esquerda, reto/curvo (e falso), seco/úmido, duro/mole, temperado/insoso, claro/escuro, fora (público)/dentro (privado) etc., que, para alguns, correspondem ao movimento do corpo (alto/baixo//subir/descer, / fora/dentro//sair/entrar). Semelhantes na diferença, tais oposições são suficientemente concordes para se sustentarem mutuamente, no jogo e pelo jogo inesgotável de transferências práticas e metáforas; e também suficientemente divergentes para conferir, a cada uma, uma espécie de espessura semântica, nascida da determinação pelas harmonias, conotações e correspondências”.

Tudo o que foi construído também pode ser destruído. Há locos privilegiados para mudanças – que sejam graduais e lentas, mas que sejam mudanças – e acreditamos na educação como via de transformação, com um papel fundamental na socialização de papéis de gênero e o dever de propiciar uma educação não sexista e inclusiva. Por isso, constitui uma instância da mais alta valia para a proposição de modelos democráticos e de equidade de gênero, por meio de modificações nos currículos escolares e nas práticas docentes.

3. Educação em direitos humanos, não sexista e igualitária: por que discutir o óbvio?

Aqui novamente retomamos as máximas de Paulo Freire, para quem apenas por meio de uma educação holística, plena, libertadora e emancipatória, formulada sempre pelos ideários dos direitos humanos, será possível o estabelecimento da igualdade e da justiça social: “(...) a perspectiva da educação em Direitos Humanos, que defendemos, é esta, de uma sociedade menos injusta para, aos poucos, ficar mais justa. Uma sociedade reinventando-se sempre com uma nova compreensão do poder, passando por uma compreensão da produção. Uma sociedade em que a gente tenha gosto de viver, de sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Esta tem que ser uma educação corajosa, curiosa, despertadora da curiosidade, mantenedora da curiosidade, por isso mesmo uma educação que, tanto quanto possível, vai preservando a menina que você foi, sem deixar que a sua maturidade a mate. É uma educação que tem de nos pôr, permanentemente, perguntando-nos, refazendo-nos, indagando-nos. É uma educação que não aceita, para poder ser boa, que deva sugerir tristeza aos educandos. Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, tem que ser abrangente, totalizante; ela tem que ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver. E não apenas com a rigorosidade da análise de como a sociedade se move, se mexe, caminha, mas ela tem a ver também com a festa que é a vida mesma” (Freire, 2001, p. 101-102).

Assim, a igualdade de gênero finca raízes como um dos objetivos buscados pela educação em direitos humanos. Não há que se falar em direitos humanos se sujeitos de direitos são tratados de forma discriminatória e preconceituosa. Há um cardápio extenso de normas positivas em âmbito nacional e internacional a combater quaisquer discriminações. Para melhor elucidar o tema, passamos a expor algumas dessas normatizações.

No âmbito da Comunidade Europeia, há o Tratado de Amsterdam, propugnando pela igualdade de gênero em seus arts. 2.º e 3.º. O art. 3-2 determina que “em todas as atividades contempladas no presente artigo, a Comunidade terá o objetivo de eliminar as desigualdades entre homem e mulher e promover sua igualdade”.

Pautado na educação para a cidadania, o art. 13 do Pacto Internacional das Nações Unidas, relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais, datado de 1966, reconhece não apenas o direito de todas as pessoas à educação, mas que esta deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, na sua dignidade; deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais; deve capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre.

A Resolução 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) estabelece que “as mesmas condições de orientação profissional, de acesso aos estudos e de obtenção de diplomas nos estabelecimentos de ensino de todas as categorias, nas zonas rurais e urbana com ênfase na igualdade efetiva já na educação pré-escolar, geral, técnica e profissional, bem como a eliminação de qualquer concepção estereotipada dos papéis masculino e feminino em todos os níveis e em todas as formas de ensino mediante encorajamento à educação mista e a outros tipos de educação que contribuam para alcançar este objetivo e em, particular mediante a revisão dos livros e programas escolares e adaptação dos métodos pedagógicos”.

Também o ano de 2000 foi marcado pela reunião de Cúpula do Milênio, momento no qual os líderes máximos mundiais estabeleceram o compromisso de conjugar esforços para a realização de um plano de oito metas de desenvolvimento ligadas à educação, dentre elas estava a Meta 3 visando à promoção da igualdade de gênero.

Com vistas ao novo milênio, indispensável – para a compreensão da vivência igualitária em sociedade – se faz a leitura do Relatório da Unesco elaborado por Jacques Delors a partir da consagração da educação como processo cidadão e holístico a envolver quatro pilares essenciais e integrados, cabendo citar: A educação ao longo de toda a vida baseia-se em quatro pilares: “Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias. O que também significa: aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida. Aprender a fazer, a fim de adquirir, não somente uma qualificação profissional mas, de uma maneira mais ampla, competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer, no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem ao jovem e adolescente, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, que formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com trabalho. Aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz. Aprender a ser, para melhor desenvolver a sua personalidade e estar à altura de agir com cada vez mais capacidade de autonomia, de discernimento, e de responsabilidade pessoal. Para isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se. Numa altura em que os sistemas educativos formais tendem a privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um todo. Esta perspectiva deve, no futuro, inspirar e orientar as reformas educativas, tanto em nível da elaboração de programas como da definição de novas políticas pedagógicas”. [13]

No ano seguinte, a Recomendação Geral 1, aprovada pelo Comitê dos Direitos da Criança, estabelecido pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, estabeleceu em seu art. 29 a obrigação de os Estados garantirem uma educação livre de estereótipos, não apenas de gênero, mas também de raça/etnia, deficiência física e outros, visando à melhor formação de meninas.

Segundo a ONU, em relatório do ano de 2004, a escola deve estar pautada em modelo de aprendizagem e de prática dos direitos humanos, com o estabelecimento de um espaço dotado de elementos propiciadores do desenvolvimento holístico do ser humano, não focando apenas na aprendizagem cognitiva, mas também no respeito, na mútua responsabilidade e na compreensão.

Em referido relatório são também firmados os oito princípios fundantes da educação em direitos humanos: “(a) promover a interdependência, a indivisibilidade e a universalidade dos direitos humanos, inclusive dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, bem como do direito ao desenvolvimento; (b) fomentar o respeito e a valorização das diferenças, bem como a oposição à discriminação por motivos de raça, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra índole, bem como por motivos de origem nacional, étnica ou social, de condição física ou mental, ou por outros motivos; (c) encorajar a análise de problemas crônicos e incipientes em matéria de direitos humanos, em particular a pobreza, os conflitos violentos e a discriminação, para encontrar soluções compatíveis com as normas relativas aos direitos humanos; (d) atribuir às comunidades e às pessoas os meios necessários para determinar suas necessidades em matéria de direitos humanos e assegurar sua satisfação; (e) inspirar-se nos princípios de direitos humanos consagrados nos diferentes contextos culturais e levar em conta os acontecimentos históricos e sociais de cada país; (f) fomentar os conhecimentos sobre instrumentos e mecanismos para a proteção dos direitos humanos e a capacidade de aplicá-los em nível mundial, local, nacional e regional; (g) utilizar métodos pedagógicos participativos que incluam conhecimentos, análises críticas e técnicas para promover os direitos humanos; (h) fomentar ambientes de aprendizado e ensino sem temores nem carências, que estimulem a participação, o gozo dos direitos humanos e o desenvolvimento pleno da personalidade/individualidade humana; (i) ter relevância na vida cotidiana das pessoas, engajando-as no diálogo sobre maneiras e formas de transformar os direitos humanos, desde a expressão abstrata das normas, até a realidade das condições sociais, econômicas, culturais e políticas” (ONU, 2004, p. 16).

No ano de 2009, o Instituto Sedes Sapientae, em parceria com o Unicef, apontou a dificuldade das escolas em tratarem e dar encaminhamento a casos de violência de gênero e sexual, no âmbito da escola, bem como nos espaços familiares. Discutir tal temática é indiscutivelmente necessário para formar cidadãos mais cônscios de seus deveres e direitos na sociedade. Essa questão envolve não apenas as famílias e os alunos, mas também toda a comunidade escolar, formada por dirigentes, educadores e funcionários. Daí a importancia da educação a partir do mote dos direitos humanos, problematizados e inseridos no locus de vivência coletiva que é a escola.

Para Jane Felipe, há a imperiosa necessidade do debate e da problematização acerca de tais temas que ainda não estão na pauta e no centro das discussões: “Um dos pontos fundamentais na educação das crianças é problematizar e desconstruir o sexismo, a heteronormatividade e outros tipos de preconceito, pois eles começam dentro de casa e podem ser reforçados, muitas vezes, dentro da própria escola, que deveria ser um lugar de acolhimento, além de sua função de ampliar os conhecimentos dos alunos e alunas (e também dos professores). Dessa forma, os brinquedos e brincadeiras que proporcionamos, as atividades que empreendemos no nosso fazer pedagógico, os espaços disponibilizados a meninos e meninas, as falas de ambos, os gestos, os comentários que fazemos, os olhares de repreensão ou não que lançamos a cada um deles/cada uma delas diante de seus comportamentos estão repletos de representações a respeito daquilo que entendemos ser o mais adequado para meninos e meninas, homens e mulheres. Portanto, discutir de que forma se constroem as relações de gênero e como vão se constituindo ao longo da vida as identidades sexuais torna-se crucial nessa formação”.

4. 21 de junho: dia de luta por uma educação não sexista e sem discriminação

Desde 1991, a partir de uma iniciativa da Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe (Repem), [14] celebra-se no dia 21 de junho o marco calendário da luta por uma educação humana não sexista.

Pautado no trinômio igualdade, diversidade e não discriminação, a ideia de se estabelecer uma data para reflexão surgiu em setembro de 1990, em Assunção/Paraguai, quando da realização do encontro denominado “A construção da identidade da mulher como uma contribuição aos processos de democratização nos países do Cone Sul”.

Dentre os muitos debates e altos estudos voltados à temática de gênero, aprovou-se a realização de atividades comuns e efetivas sob o lema: “Trabalhemos por uma educação humana não sexista”, começando as diretrizes pelo estabelecimento da data de 21 de junho como marco da luta efetiva.

Cabe ressaltar que a Repem lidera, há mais de 15 anos, a Campanha por uma Educação Não Discriminatória, voltada às práticas de desenvolvimento educacionais com vistas a alcançar a justiça social e a igualdade de gênero. [15]

5. Retroceder jamais. Esta deveria ser a lição

Cabe ressaltar que, especialmente no ano de 2015, em solo pátrio, o tema ganhou muito relevo, acompanhado de polêmicas e debates, em razão da discussão do Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados, momento no qual as bancadas dos religiosos conservadores conseguiram retirar das diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual.

Em nota pública, várias entidades repudiaram a intolerância e os conceitos religiosos que se afiguravam no centro dos debates dos processos de elaboração e revisão dos planos de educação.

Dentre as iniciativas de manifestação, cabe trazer à colação a assinada pela campanha “De olho nos planos” da Ação Educativa, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, União dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Associação Nacional de Política e Administração Educacional (Anpae) e o Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação (FNCE), com o apoio do Instituto C&A e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), destacando que: “considera extremamente grave tais manifestações que vêm proliferando em várias regiões do Brasil, fruto da atuação de determinados grupos que propagam preconceitos e desinformação, inviabilizam o debate público e questionam as conquistas da sociedade brasileira com relação à igualdade entre homens e mulheres obtidas arduamente na última década”.

A educação não sexista encaixa-se no formato libertador proposto.

As tentativas de implantação dessa política ganharam destaque nas propostas para o Plano Nacional da Educação, que se constitui na política pública fundamental para educação brasileira na contemporaneidade. Com duração decenal, ele se presta à estruturação das bases governamentais, compreendendo o primeiro ciclo da política, com o planejamento. Tem finalidade precípua a vinculação e articulação dos gestores públicos visando à efetivação de suas metas.

Com atraso, na medida em que o texto constitucional o propõe como decenal e o Plano Nacional da Educação anterior datava de 2001, o atual Plano Nacional da Educação foi aprovado pela Lei 13.005/2014, apresentando entre as suas diretrizes (art. 2º), dentre outros:

“III – superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação;

(...)

X – promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental”.

Contudo, a proposta inicial contemplava a seguinte redação ao inc. III: “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual, e na garantia de acessibilidade”.

Além disso, expressões como “identidade de gênero” e “orientação sexual” foram suprimidas sob o fundamento de que definidas questões não deveriam ser executadas como de responsabilidade da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos municípios, especialmente pelo fato de o plano inicial, de conformidade com a norma, ser subsídio para a elaboração dos Planos Estaduais, Distrital e Municipais de Educação nos 27 Estados, no Distrito Federal e nos quase 6.000 municípios brasileiros.

A supressão das mencionadas questões, aclamada por muitos, especialmente por questões religiosas, traduz-se em verdadeiro retrocesso na luta pela busca da igualdade entre os gêneros. Furtar-se das problemáticas que envolvem a questão de gênero e a histórica dominação masculina no processo educativo não contribui para a mudança cultural que se espera na construção da cidadania.

Além disso, conforme mencionado, a aprovação do Plano Nacional da Educação sem a manifestação acerca da igualdade de gênero influenciou os Planos Estaduais e Municipais a repetirem a omissão, intencionalmente, na medida em que Estados como Paraíba, Pernambuco, Tocantins, Acre, Paraná e Rio Grande do Sul as vetaram expressamente.

Os argumentos contrários à sua implementação giraram em torno da chamada “ideologia de gênero”, que apresentaria consequências desastrosas à família e à população jovem. [16]

Desastrosas, porém, podem ser as omissões.

Negar a discussão acerca de assunto tão relevante impede que o cenário da realidade social se desenvolva no ambiente acadêmico, fomentando a discriminação, a indiferença e a intolerância.

Paulo Freire costumava se referir ao que chamou de “antinomia fundamental” existente entre o velho e o novo e que dificultava a efetivação da democracia brasileira. Nas palavras de Ana Inês Souza: “O exercício democrático fará com que o homem aprenda com seus próprios erros e avance passo a passo para formas mais espirituais e históricas de vida. Freire via a sociedade brasileira grávida de mudanças e vibrava com isso. Acreditava que a ação educativa da família, da escola, dos partidos, articulada ao desenvolvimento das forças produtivas, haveria de levar à superação daquela antinomia fundamental, inexperiência democrática – emersão do povo na vida nacional e que esta última prevaleceria. Esta fé tinha origem na sua experiência prática. (...)”. [17]

A revolução deve ser o principal compromisso da educação, portanto, não há neutralidade ou apoliticidade no processo educativo, e essa revolução se dá mediante o diálogo e a reflexão. É necessário que o oprimido entenda o seu papel na classificação social e sinta-se indignado, inferiorizado e silenciado, indignação suficiente para que queira tomar outra posição, não se conformando com a ideologia dominante e a manutenção do status quo. [18] É preciso tomar uma posição. “Não existem práticas educativas comprometidas com ideias preponderantemente abstratas e intocáveis”. [19] Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder a minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? ‘Lavar as mãos’ em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele. Como posso ser neutro diante da situação, não importa qual seja ela, em que o corpo das mulheres ou dos homens vira puro objeto de espoliação e de descaso? [20]

Unificando as ideias de Paulo Freire, estamos diante da necessidade de conhecimento da realidade por meio, especialmente, do diálogo para a transformação do papel social do homem, para que assim possam ser criados novos e próprios mundos, na medida em que a realidade histórica é humana e, portanto, mutável, a libertação e a autonomia tornam os homens sujeitos da história e capazes de reconhecer a necessidade da formação igualitária e humana.

A dominação masculina é cultural, é preciso recriar e não repetir, na medida em que o mundo se recria e se transforma em uma sociedade plural e diversificada em que novas situações exigem novas lentes para ver a parte e entender o todo.

O cenário é de um verdadeiro retrocesso ao plano educacional e pedagógico. Absoluta ofensa aos direitos humanos; desrespeito aos tratados internacionais aos quais o Brasil se faz signatário, bem como aos ditames constitucionais da educação e erradicação das desigualdades.

6. Considerações finais e em constante devir: o caminho se faz caminhando

“Se alguém, ao ler este texto, me perguntar, com irônico sorriso, se acho que, para mudar o Brasil, basta que nos entreguemos ao cansaço de constantemente afirmar que mudar é possível e que os seres humanos não são puros espectadores, mas atores também da história, direi que não. Mas direi também que mudar implica saber que fazê-lo é possível”.

Paulo Freire [21]

É preciso fazer diferente. Se a educação deve ser inserida no contexto histórico em que vige e atua para que cumpra o seu papel de transformar, é preciso romper as barreiras do preconceito e da inércia.

Sim, a educação não é um processo que exige e mantém a neutralidade porque deve ser radical.

O machismo, a inferiorização da condição feminina, é uma construção cultural que se estrutura em relações de dominação e poder, é preciso que o ciclo seja quebrado, e somente a educação possui essa força transformadora.

Não temos dúvida alguma de que a luta continua e será um devir, um processo em construção. Acreditamos na mutabilidade dos conceitos e na evolução social, não mais pautadas nas especificações de homem ou mulher – concepções excludentes e binárias –, mas, sim, em um conceito mais igualitário e humanista, o conceito de pessoa, compreendida como finalidade primeira e última da sociedade e do direito. Referido conceito, o de pessoa, será o responsável por afastar estereótipos, propugnar pela igualdade, nortear o futuro e uma nova era. Será a educação o palco privilegiado para o início dessas revoluções!

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Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci

Pós-Doutora em Direitos Humanos e Trabalho pelo Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-Doutoranda em Novas Narrativas na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Doutora e Mestre pela PUC-SP. Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e em Direito pela UPM. Professora do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da UPM. Professora do Curso de Graduação em Direito da Universidade São Judas Tadeu. Professora Convidada do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da ECA/USP. Participante do Grupo de Pesquisa Mulher, Sociedade e Direitos Humanos e Líder do Grupo de Estudos de Direitos da Criança do Adolescente no Século XXI, ambos da Faculdade de Direito da UPM.

Michelle Asato Junqueira

Doutoranda e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Constitucional com Extensão em Didática do Ensino Superior. Professora nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Lato Sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Vice-líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania” e do Grupo de Estados “Criança e Adolescente no Século XXI”. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa “Estado e Economia no Brasil”. Avaliadora de diversos periódicos nacionais e autora de diversos artigos e livros jurídicos.

[1]1Palmer, Joy A. (coord.). 50 Grandes educadores modernos: de Piaget a Paulo Freire. Trad. Mirna Pinsky. São Paulo: Contexto, 2006. p. 164.

[2]2 Disponível em: [http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=autonomia]. Acesso em: 30.10.2015.

[3]3 Pompeu, Gina Marcílio. Acesso à educação, condição essencial para o efetivo exercício dos direitos de personalidade. In: Menezes, Joyceane Bezerra (org.). Dimensões jurídicas da personalidade na Ordem Constitucional Brasileira. Florianópolis: Conceito, 2010. p. 229-244.

[4]4 Freire, Paulo. Educação e mudança.12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[5]5 Palmer, Joy A. (coord.). 50 Grandes educadores modernos: de Piaget a Paulo Freire. Trad. Mirna Pinsky. São Paulo: Contexto, 2006. p. 164-165.

[6]6 Louro, Guacira Lopes. Uma leitura da história da educação sob perspectiva do gênero. Projeto História, São Paulo, (11) nov. 1994.

[7]7 Idem, ibidem.

[8]8 Freire, Paulo. Educação e mudança. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[9]9 Bertolini, Marilene Amaral Albuquerque. Sobre a educação: diálogos. In: Souza, Ana Inês et al. Paulo Freire – vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 131-151.

[10]10 Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 12.

[11]11 Schnorr, Gisele Moura. Pedagogia do oprimido. In: Souza, Ana Inês et al. Paulo Freire – vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 69-100.

[12]12 As desigualdades construídas culturalmente são responsáveis pelo aprisionamento quanto aos papéis a serem desempenhados, Segundo Finco (2009, p. 267) Se é possível perceber o controle da agressividade na menina, o menino sofre processo semelhante, mas em outra direção: são bloqueadas expressões de sentimentos como ternura, sensibilidade”.

[13]13 Delors, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, p. 101.

[14]14 A Repem foi criada em 1982 e conta com 172 organizações filiadas, de 19 países latino-americanos, que realizam atividades em conjunto. A coordenação executiva tem sede em Montevidéu, no Uruguai. No Brasil, seu trabalho nasce vinculado ao da Rede Mulher de Educação (RME), que é uma ONG feminista fundada em 1981 pela educadora e socióloga Moema Viezzer.

[15]15 Disponível em: [http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=7637]. Acesso em: 10.11.2015.

[16]16 Sobre a questão vale citar: [http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/06/1647528-por-pressao-planos-de-educacao-de-8-estados-excluem-ideologia-de-genero.shtml]. Acesso em: 14.11.2015.

[17]17 Souza, Ana Inês. Educação e atualidade brasileira: a emersão do povo na história. In: Souza, Ana Inês et al. Paulo Freire – vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001. p. 33-68.

[18]18 Martins, Eduardo Simões; Lopes, Edson Pereira (orient.). Paulo Freire e a trilogia da libertação: aproximações. 2010. 126f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010, p. 59.

[19]19 Freire, Paulo. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 40.

[20]20 Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 43.

[21]21 Trecho de carta que compõe um dos livros editados após a morte de Paulo Freire, Pedagogia da indignação.

Infância
Justa causa no direito penal juvenil
Data: 24/11/2020
Autores: Betina Warmling Barros e Luiza Griesang Cabistani

Resumo: O presente trabalho analisa a questão da (ausência de) justa causa no âmbito do procedimento de apuração de ato infracional, a partir do que dispõe o § 2.º do art. 182 do ECA. Tendo como paradigma as garantias processuais constitucionais bem como o sistema processual penal adulto, pretende-se discutir a inconstitucionalidade do dispositivo, além dos seus efeitos na prática judiciária. Da natureza híbrida da medida socioeducativa ao controle social formal destes sujeitos, apresentam-se algumas hipóteses sobre as razões da ausência da justa causa do processo infracional. Nesse sentido, entende-se que é somente a partir da leitura crítica da legislação que se possibilita, ao mesmo tempo em que visibilizar sujeitos comumente marginalizados, propiciar os elementos necessários à construção de um debate que ultrapasse as fronteiras da academia.

Palavras-chave: adolescentes; ato infracional; justa causa; direito penal juvenil; processo penal.

Abstract: The following paper aims to develop the issue of the absence of probable cause juvenile justice system, from what is provided in § 2 of art. 182 the Child and Adolescent Statute. Taking as a model the adult criminal justice system, and the rights guaranteed to criminal defendants by the Constitution, we pretend to discuss the unconstitutionality of the device, in addition to its effects on judicial practice. From the hybrid nature of socio-educational measures to formal social control of these adolescents, we present some hypotheses about the reasons for the absence of probable cause of the infraction process. In this sense, we believe it is only from the critical reading of the legislation that allows, while visualize invisible adolescents, provide the elements needed to build a debate extending beyond the boundaries of academia.

Keywords: adolescent; juvenile offenses; probable cause; juvenile criminal law; criminal procedure

Sumário: Introdução – 1. O poder de acusação e a justa causa: comparações entre o direito penal adulto e juvenil: 1.1 A necessária garantia da justa causa no processo penal adulto; 1.2 A (ausência de) justa causa no processo penal juvenil – 2. Por que não há justa causa no processo infracional?: 2.1 A natureza da medida socioeducativa: entre o educar e o punir; 2.2 O processo infracional como controle social dos adolescentes – Conclusão.

Introdução

A partir da vivência no grupo de Assessoria a Adolescentes Selecionados pelo Sistema Penal Juvenil (G10) do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU/UFRGS), o contato cotidiano na defesa de adolescentes acusados de cometer algum ato infracional produziu a necessidade de pesquisar sobre o sistema socioeducativo e os procedimentos que o envolvem. O trabalho na defesa jurídica dos adolescentes implicou perceber o quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente e o seu sistema de garantias processuais ainda estão longe de concretizar a Doutrina da Proteção Integral, bem como estão em desacordo com a Constituição Federal. Um dos exemplos desta problemática – que é extensa – traduz-se por meio do art. 182, § 2.º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual será objeto de análise crítica no presente trabalho.

A série de encontros proporcionados pelo Evento Colóquio VIVO, organizado sob coordenação da Professora Ana Paula Motta Costa, tem produzido importantes debates entre estudantes e pesquisadores de diferentes áreas, bem como entre profissionais do sistema socioeducativo e operadores do direito. Foi no âmbito dessas discussões que surgiu a necessidade de escrever o presente artigo, o qual abordará, em linhas gerais, o procedimento de ato infracional e suas ilegalidades, ainda extremamente misteriosa aos olhos do Direito. [1]

Em relação ao objeto específico deste trabalho, pretende-se realizar uma análise do que dispõe o art. 182, § 2.º, do ECA, o qual estabelece que a denúncia por ato infracional não necessita ser instruída com provas pré-constituídas de materialidade, tampouco com indícios de autoria. Este será, portanto, nosso ponto de partida para discutir por que, afinal, o legislador decidiu que a justa causa não é condição para ação infracional. Uma vez que há considerável aparato legal (Constituição Federal, ECA, Sinase [2] ) no sentido de afirmar o adolescente enquanto sujeito de direito e prioridade absoluta do Estado, questionamos: se é vedado o tratamento mais gravoso ao adolescente do que aquele conferido ao adulto em semelhante situação, [3] o que justifica a possibilidade de acusar um adolescente sem os elementos exigidos pelo processo penal adulto, no caso de acusação de um imputável? As hipóteses que serão levantadas perpassam desde a confusa natureza da medida socioeducativa, que pendula entre seu caráter simultaneamente pedagógico e sancionatório, perpassando os resquícios tutelares advindos da Doutrina da Situação Irregular, até a discussão sobre o controle social que se pretende realizar a partir das “lacunas” da legislação.

Dessa forma, o que se pretende com o presente trabalho, além de dar visibilidade à temática e propor o debate em relação a ele, é o lançamento de hipóteses que permitam a reflexão sobre o assunto para além de questões meramente legalistas. Ou seja, mais do que refletir sobre a ilegalidade contida no § 2.º do art. 182 do ECA, queremos entender quais as razões que efetivamente justificam uma prática inconstitucional, não só do legislador, mas do Poder Judiciário, de permitir que se acusem adolescentes – sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento – sem a existência de indícios probatórios que justifiquem a submissão a um processo de apuração de ato infracional.

1. O poder de acusação e a justa causa: comparações entre o Direito Penal adulto e juvenil

1.1 A necessária garantia da justa causa no processo penal adultoA Constituição Federal de 1988 assegurou amplamente a todas as pessoas o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos do art. 5.º, XXXIV. Embora haja discordância doutrinária, um dos entendimentos leciona que, o direito de ação penal decorre, indiretamente, desse direito constitucional. Do gênero “direito de petição”, advém a espécie “direito de provocação jurisdicional”, e do qual resulta o direito de ação penal, especificado na Carta Política em seu art. 5.º, XXXV (Corrêa, 1998).

Necessário, no entanto, perceber que há diferenças significativas entre o direito de petição e o direito de ação penal (ou, ainda, entre o direito de ação civil e o direito de ação penal), pois ambos são utilizados com finalidades bastante distintas, senão opostas. Enquanto o direito de petição é exercido no intuito de que o postulante acesse um benefício para si ou para outrem, no direito de ação penal o acusador imputa um fato delituoso a alguém, requerendo-lhe a imposição de um malefício, a sanção penal (ou, no caso dos adolescentes, a medida socioeducativa). A ação processual penal, portanto, “circunscreve-se a um poder jurídico constitucional de invocação da tutela jurisdicional e que se exterioriza por meio de uma declaração petitória (acusação formalizada)” (Lopes, 2013, p. 353).

Nessa linha, importante destacar que a teoria da ação de Liebman desenvolve a concepção de direito “conexo instrumentalmente com a pretensão material” (Badaró, 2008), cuja conexão é representada pelas condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade das partes e interesse de agir. Dessa forma, apesar de abstrato, o direito de ação deve necessariamente se ligar ao direito material. Se por um lado o direito de petição foi amplamente assegurado, mas ao mesmo tempo submetido às condições da ação, [4] o direito de ação penal foi ainda mais restringido, pois sua existência é condicionada à justa causa, peculiaridade da ação penal em relação à ação civil.

Nesse sentido, a ação penal está necessariamente vinculada a um caso concreto, uma vez que o processo é um instrumento para apuração de um fato, mas que simultaneamente está condicionado a observar o sistema de garantias constitucionais (Corrêa, 1998). Conforme o ordenamento brasileiro, uma vez que não há como impedir o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, estão especificamente no plano processual penal as regras que regulam o exercício da ação penal, a qual só será possível se estiverem presentes as condições da ação. A tutela será ou não efetivada a partir do controle jurisdicional da legalidade do exercício do poder de acusação. Tal exigência decorre da necessidade de impor verdadeiro limite ao direito de ação penal, haja vista a necessidade de se afastar abuso de direito e prevenir lesão à liberdade individual.

Como ensina Lopes (2012), no processo penal é imprescindível que o acusador, seja ele público ou privado, apresente desde o início a justa causa, onde também estão inclusos os elementos probatórios mínimos que demonstrem a fumaça da prática de um delito. Não há, diferentemente do processo civil, a possibilidade de deixar a análise da questão de fundo (mérito) para a sentença, pois desde o início o juiz faz juízo provisório de verossimilhança sobre a existência de um delito.                 

Enquanto condição primeira para o exercício da ação penal, a justa causa consiste na prova induvidosa da existência de uma hipótese delitiva e, pelo menos, em indícios idôneos de sua autoria (Corrêa, 1998). A justa causa é, portanto, condição de garantia frente ao uso abusivo que se possa fazer do direito de acusar, servindo como ponto de apoio para toda a estrutura da ação processual penal que venha a se desenvolver após o momento da acusação. Trata-se de uma causa jurídica que deve encontrar respaldo na realidade fática, a fim de legitimar e justificar uma acusação e sua admissibilidade.

Nesse sentido, convém refletir sobre porque, afinal, exige-se daquele que tem o poder de acusar que seja demonstrada a justa causa. Uma das hipóteses para essa reflexão, e com a qual concordamos, é a de que o processo penal representa, em termos práticos na vida de um ser humano, uma pena. Ele se materializa em verdadeiro sofrimento na vida daquele que está sendo acusado em termos de estigmatização e de penas processuais:

“É inegável que a submissão ao processo penal autoriza a ingerência estatal sobre toda uma série de direitos fundamentais, para além da liberdade de locomoção, pois autoriza restrições sobre a livre disposição de bens, a privacidade das comunicações, a inviolabilidade do domicílio e a própria dignidade do réu” (Lopes, 2013, p. 190).

É, portanto, em razão do que representa sentar “no banco do réu”, que a acusação não pode ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu. Conforme os ensinamentos de Carnelutti (2001), a sentença criminal, se absolvitória for, fará remanescer para sempre o sentimento de que a justiça atuou com perdas, constituídas não apenas pelo custo do trabalho realizado, mas, sobretudo “pelo sofrimento daquele a quem se colocou a culpa, e, frequentemente, até que seja encarcerado, quando nada disso devia se fazer com ele. Sem falar que, não raramente, para sua vida isso foi uma tragédia, senão uma ruína” (Carnelutti, 2001. p. 21 apud Boschi, 2010). [5]

Ou seja, Carnelutti (2001), já em sua época, acentuou o quão injusta é a instauração de um processo criminal sem provas aptas à demonstração da responsabilidade do acusado. Nesse sentido, a necessidade de cumprir os requisitos da justa causa realiza um importante filtro, impedindo que se possa imputar a alguém delito sobre o qual não se tem prova de materialidade e que não há indícios idôneos que apontem a autoria. Necessário ainda considerar a realidade da justiça criminal no Brasil, que possui a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 500 mil pessoas presas. [6] É imprescindível, portanto, mesmo em um debate no qual se discuta aspectos processuais da lei, considerar a realidade material sobre a qual se fala. A maior parte daqueles que são encarcerados no Brasil são homens, jovens, negros e de baixa escolaridade, conforme dados do Ministério da Justiça. [7]

Nesse sentido, é necessário considerar que a submissão a um processo penal já caracteriza a vivência de uma situação extremamente opressora por si só, pois envolve, entre outros aspectos, rituais hierárquicos e uma linguagem incompreensível. São inquestionáveis os efeitos danosos práticos e subjetivos produzidos sobre aqueles que respondem a um processo criminal. Considerando que há um recorte populacional específico selecionado por esse sistema, a situação agrava-se na medida em que estes sujeitos percorrem esse momento sem o apoio de uma defesa técnica qualificada ou de um serviço de assistência psicossocial. Tais privilégios são inacessíveis a essa “ralé”, a qual é sistematicamente submetida ao processo penal (Coutinho, 2011).

A necessidade da limitação da acusação por força da justa causa não significa que o estado brasileiro estaria se abstendo do seu poder de acusar, incentivando a impunidade. O que se pretende, na verdade – e é essa a razão de ser da justa causa – é que a acusação seja exercida com cautela, e que possua elementos probatórios que justifiquem a sujeição de alguém a um processo criminal e às consequências inerentes a ele.

Diante do cenário em que o processo penal se insere, deve-se lutar por um sistema de garantias mínimas, em que as regras do jogo representem os direitos do acusado, uma vez que este se encontra sozinho perante a total potência punitiva do Estado. Ensina Carvalho (2015) que para a garantia de um processo penal democrático se faz necessário a sistematização deste baseado nos preceitos do sistema acusatório. Assim, as regras processuais, desde a investigação, passando necessariamente pelas condições da ação, “constituem-se como barreiras de contenção ao transbordar punitivo” (Carvalho, 2015, p 167).

É, portanto, por compartilharmos da noção de que o exercício do poder punitivo é sempre atentório aos direitos humanos, que entendemos que o modelo garantista é uma perspectiva imprescindível a ser perseguida no curso do processo penal enquanto interessante mecanismo de fomento à minimização desse poder (Carvalho, 2015). Mesmo com todas as limitações inerentes ao garantismo jurídico, é nele que nos apoiamos enquanto marco teórico para defender que as regras formais que regulam o jogo processual não podem ser flexibilizadas, sob pena de legitimar ainda mais as violências e as perversidades perpetradas pelo Estado.

Nessa esteira, a busca por um sistema processual penal mais democrático passa, impreterivelmente, pelo distanciamento das práticas inquisitoriais. E é nesse caminho que a justa causa, enquanto condição imprescindível para o exercício do poder de acusação, se apresenta como importante elemento de desvinculação do sistema inquisitório, no qual, “o réu, longe de ser percebido como sujeito, é tratado como objeto de investigação e de intervenção” (Carvalho, 2015, p. 168).

Com esse argumento define-se a importância que a justa causa exerce no processo penal: a de garantir que o imputado não seja simples objeto deste percurso, pois na condição de ser humano, é a sua qualidade de sujeito que deve sobrepor-se no jogo processual, não podendo estar a mercê de um poder acusatório absoluto. Da mesma forma, como será visto no ponto seguinte, o adolescente, muito antes percebido como menor do que propriamente como sujeito, também deve(ria) gozar desta garantia processual que é a justa causa.

1.2 A (ausência de) justa causa no processo penal juvenil

A legislação que trata do direito da criança e do adolescente no país está em vigência desde 1988 e representou um marco de ruptura conceitual daquilo que se entende por “criança e adolescente”, seus direitos e garantias, e a participação da sociedade e do Estado no processo de formação desses sujeitos. A entrada em vigor da Lei 8.069/1990 representa uma evolução em direção a um sistema garantidor de direitos humanos aos adolescentes, conforme nos ensina Méndez (1998). No contexto latino-americano, a tentativa de superação da doutrina da situação irregular, a qual tinha em seu centro de atuação a figura de um juiz de menores, “com competência onímoda e discricional” (Méndez, 1998, p. 26), para uma doutrina da proteção integral – onde o juiz passa a ter “missão específica de dirimir conflitos de natureza jurídica” (Méndez, 1998, p. 33), esteve melhor exemplificada na legislação brasileira: “Pela primeira vez, uma construção de direito positivo vinculada à infância-adolescência rompe explicitamente com a chamada doutrina da situação irregular, substituindo-a pela doutrina da proteção integral (...)” (Méndez, 1998, p. 113).

Nesse contexto de mudança legislativa latino-americana, centrada na adoção gradual por esses países da Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, das Regras de Beijing de 1985, das Diretrizes de Riad de 1990, entre outros documentos e tratados internacionais do mesmo período histórico, o procedimento de apuração de ato infracional atribuído a adolescente, passou a ter contornos mais delimitados com regras processuais específicas. Além disso, a Constituição Federal de 1988 introduziu princípios processuais norteadores do ordenamento jurídico brasileiro, pois nesta nova lógica processual democrática, entende-se modernamente o processo como “não apenas instrumento técnico, mas sobretudo ético” (Cintra; Grinover; Dinamarco, 2013). Dessa forma, os procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, [8] bem como em qualquer legislação ordinária, estão submetidos àqueles princípios.

Além disso, a Constituição Federal também inaugura no seu art. 227 o Princípio da Prioridade Absoluta, conferido somente às crianças e adolescentes, [9] e delineado mais especificamente no art. 4.º do ECA. Embora não vinculado diretamente ao procedimento de apuração de ato infracional, é o pano de fundo que possibilita a efetivação de direitos concernentes a esses sujeitos, entre eles o direito a um processo mais breve que aquele destinado aos adultos. Entre inúmeras justificativas da necessidade deste princípio, fazemos referência ao fato de que “o tempo da adolescência é a urgência, haja vista a notável capacidade de transformação (…)” (Saraiva, 2006, p. 132).

Apesar de todos os avanços decorrentes da incorporação da Doutrina da Proteção Integral, [10] notamos que inúmeras conquistas já cristalizadas no direito penal adulto, de acordo com o visto no ponto anterior, ainda não foram absorvidas pelo sistema socioeducativo. Dentre tantos exemplos que serviriam ao debate sobre a razão dessa não absorção, [11] a justa causa da ação é um ótimo ponto de referência para a reflexão que deve seguir para além dos autos processuais. Parte-se, então, do disposto no § 2.º do art. 182 da Lei 8.069/90:

“Art. 182. Se, por qualquer razão, o representante do Ministério Público não promover o arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação à autoridade judiciária, propondo a instauração de procedimento para aplicação da medida sócio-educativa que se afigurar a mais adequada.

(...)

§ 2.º A representação independe de prova pré-constituída da autoria e materialidade”.

A leitura do dispositivo estabelece que, para ser aceita pelo juiz, a denúncia por ato infracional não necessita ser instruída com provas da existência do fato, tão pouco pelos elementos embasadores da alegação de autoria pelo órgão acusador. Tal redação leva a uma só possível conclusão: a justa causa não é condição da ação de apuração de ato infracional. Como já visto, contrariamente ao direito de petição – amplo e disponível – o direito à ação penal, em relação ao adulto, é restrito e condicionado, e advém primeiramente do princípio constitucional da presunção da inocência, presentes tanto no ordenamento brasileiro (art. 5.º, LVII, da CFRB/1988), quanto internacional (art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

Em suma, a consequência prática da prescindibilidade da justa causa no direito socioeducativo é a permissão à autoridade judiciária de instauração de processo de apuração de ato infracional sem que qualquer prova seja apresentada. Segundo Corrêa (1998), o art. 182 do Estatuto da Criança e do Adolescente seja talvez o caso mais flagrante de ilegalidade no que diz respeito ao tema da justa causa:

“A supra citada representação está equiparada à denúncia, de cujo processo poderá culminar a aplicação das sanções penais enumeradas no art. 112 do ECA, além da pesada pena de sujeitar o adolescente a um processo fictício, que, nos termos desta lei, não precisa assentar-se na prova da materialidade e da autoria, mas em simples suposição, suspeição, presunção – e porque não dizer – na imaginação e na subjetividade de um acusador (…)” (1998).

Em um exercício de ficção, pode-se dizer que o Ministério Público teria todos os instrumentos legais para denunciar um adolescente de nome João, por exemplo, pela prática de ato infracional análogo ao crime de homicídio, tipo penal previsto no art. 121 do CP. Para tanto, bastaria que na representação (peça inicial do processo), contasse uma história fictícia, no qual João era o assassino de seu pai, por exemplo, e que por esse fato deveria cumprir medida socioeducativa de internação. O acusador estaria agindo de acordo com os limites da lei, mesmo se não instruísse esta representação com qualquer prova da existência do fato, ou da autoria do adolescente: não há nem mesmo a necessidade do atestado de óbito da vítima. Significa dizer que poderia João passar por um processo de apuração, acusado de ter matado seu pai, quando o mesmo encontra-se vivo, ou, se de fato morto, seja um completo desconhecido para seu filho.

Como aprofundaremos na segunda parte deste trabalho, o dispositivo em questão, em desacordo não apenas com uma lógica penal já cristalizada, mas principalmente com princípios constitucionais, não foge completamente do que foi estabelecido pelo restante do Estatuto de 1990: não representa um “cochilo” do legislador. O art. 182 é apenas um exemplo de uma legislação que, confusa quanto ao seu objetivo e sua natureza, transfere ao juiz uma amplitude decisional completamente em desacordo com o sistema constitucional acusatório brasileiro. [12] Embora não seja um dispositivo vago (é expresso em sua afirmação), ao permitir a acusação infundada, retira do juiz a obrigação do controle destas representações, possibilitando que este tenha base legal para o recebimento de toda e qualquer acusação realizada pelo Ministério Público. É a legislação que, com o objetivo de modernizar-se, retorna à concepção de um juiz-cidadão (Carvalho, 2010), ou seja, um juiz que no momento do recebimento da representação fará uma análise subjetiva do caso para determinar se aquele adolescente deve ou não passar pelo procedimento de apuração de ato infracional. Não se trata de juiz-magistrado, orientado pela lei e que a ela não pode negar vigência, mas um bom juiz, capaz de consertar os problemas e as lacunas da legislação.

Ocorre que a jurisprudência existente sobre a questão demonstra não haver, pelo Poder Judiciário, um controle externo desta legislação em específico. Em uma breve pesquisa jurisprudencial no Superior Tribunal de Justiça, utilizando-se os termos “ato infracional justa causa”, foram encontrados 10 acórdãos, dos quais 3 não versavam sobre o objeto de pesquisa, enquanto os outros 7 tratavam do trancamento da ação em razão da ausência de justa causa na representação. Embora nenhuma destas decisões utilize na fundamentação da ementa o art. 182 do ECA, todos os recursos foram desprovidos. Significa dizer, portanto, que nunca foi provido recurso pelas Turmas do STJ, em razão da ausência de justa causa na representação por ato infracional. O dado alarmante preocupa ainda mais ao se analisar alguns dos argumentos utilizados pelos Ministros:

“Considerando o próprio espírito do ECA, mister se faz reconhecer que o intuito preponderante da medida socioeducativa, em que pese o seu inegável caráter repressivo, é a reeducação e reinserção do adolescente na sociedade, o que evidencia a necessidade de prosseguimento do feito para a devida elucidação dos fatos imputados pelo Parquet” (RHC 29.184/MG, 5.ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, j. 22.11.2011, DJe 02.12.2011) (destaques nossos).

A natureza da medida aparece como fato justificador do desprovimento do recurso, ou seja, embasa-se a necessidade do prosseguimento do feito a partir do caráter reeducativo da sanção, independentemente da representação conter ou não justa causa. O acórdão supracitado é apenas um exemplo de julgado que traz a natureza híbrida da medida como pano de fundo da decisão, o que é recorrente no sistema jurídico socioeducativo. Tal questão será melhor analisada na segunda parte deste trabalho, mas adiantamos que, de acordo com Konzen (2005), não são os aspectos materiais e formais, ou mesmo as verdades dos fatos, as questões que parecem mais relevantes aos julgadores para o prosseguimento do processo infracional, mas sim “o dever público de tomar alguma providência, providência que sempre será justa e eticamente sustentável, porque concebida e imposta para beneficiar, jamais para prejudicar” (Konzen, 2005, p. 40).

Por fim, necessário atentar para uma particularidade estabelecida pelo legislador na Lei 8.069/90 quando este trata dos critérios para imposição de medida socioeducativa:

“Art. 114. A imposição das medidas previstas nos incisos II a VI do art. 112 pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos do art. 127”.

Ou seja, comparando-se os arts. 182 e 114 do Estatuto, chegamos a seguinte conclusão: o legislador não permite a aplicação de medida socioeducativa (exceto advertência) sem a existência de comprovação da autoria e da materialidade, apesar de permitir a representação sem tais elementos probatórios. Portanto, o adolescente pode passar por um processo de conhecimento para a apuração de ato infracional, sem os elementos que são obrigatórios para a imposição da medida: a ação poderá ser intentada mesmo sem que possa produzir efeitos. Poderia se pensar que a razão para tal contradição seria o fato de que, no decorrer do processo de conhecimento, acredita o legislador que as provas necessárias viessem à tona, embasando a imposição da medida. Ocorre que: (a) há inúmeras situações em que essas provas não poderão ser produzidas em tempo hábil; (b) o tempo da instrução do processo é muito exíguo, em razão da celeridade que se exige no processo de ato infracional. [13]

Desta forma, parece que, para além de dar a oportunidade ao órgão acusador de produzir os elementos necessários no decorrer da instrução, o legislador esta dizendo, entre linhas, que o processo de conhecimento de alguma forma produzirá efeitos, ainda que nenhuma sanção possa ser aplicada. Imagina-se que, na pior das hipóteses (o fato não aconteceu ou não foi cometido pelo acusado), o adolescente passou por um processo necessário de reeducação, de autoconhecimento e de reinserção social. Desconsidera-se completamente o “caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já significa uma grave ‘pena’ imposta ao indivíduo” (Badaró, 2008, p. 71). Se passar por um processo penal é considerado “uma pena” à pessoa adulta, dotada de capacidade e com sua formação completa, os efeitos prejudiciais na pessoa “em desenvolvimento” são ainda mais significativos e preocupantes. Qual seria, então, as razões pelas quais tanto Poder Judiciário quanto Legislativo insistem em legitimar práticas inconstitucionais no processo de apuração de ato infracional? Por que afinal ambos os poderes não atuam no sentido de restringir o processo socioeducativo como ultima ratio?

2. Por que não há justa causa no processo infracional?

2.1 A natureza da medida socioeducativa: entre o educar e o punir

Normalmente tende-se a pensar na natureza híbrida da medida socioeducativa, como resposta única para as dificuldades que se enfrentam diante da problemática infracional. A sua natureza complexa, que não se configura totalmente nem como punição nem como educação, mas em um intermédio entre os dois polos, seria, para alguns autores a questão central a ser entendida. Conforme Teixeira, “esse duplo aspecto constitutivo da MSE se constitui em polêmica desde a promulgação do ECA, em 1990” (Teixeira, 2014, p. 167). Assim, questionamos se reside efetivamente na natureza da medida socioeducativa a justificativa para a ausência de justa causa no procedimento de apuração de ato infracional.

Ainda que existam questões macrossociais que ultrapassem os limites da medida, as quais serão melhor aprofundadas posteriormente, entendemos importante dedicar um espaço para pensar o problema da complexidade da natureza da medida no que tange especificamente à ausência de justa causa no direito processual juvenil. Na realidade, pensar qual é a natureza da medida é esclarecedor no sentido de que, para quem considera que a medida não é sanção, tampouco será o processo. Assim, para este entendimento, não há qualquer efeito negativo para o adolescente em passar pelo procedimento de apuração, o que leva à ideia de que não é necessária a existência de instrumentos restritivos, que filtrem a ocorrência desses processos. Por outro lado, caso se acredite no aspecto punitivo da medida e no do processo, ganha relevância a necessidade da justa causa para a representação destes sujeitos, pois não se está “fazendo um favor” aos adolescentes, muito menos “protegendo-os”, mas sim, impondo determinada punição em razão de fato criminoso.

Como já dito, é com a mudança legislativa de 1990 que se começa a pensar a criança e o adolescente, no contexto brasileiro, não mais como menor em situação irregular – ou “mero objeto do processo” (Saraiva, 2006, p. 18), mas como sujeito de direito, principalmente a partir do princípio constitucional da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. [14] A partir do novo paradigma incorporado, [15] começa-se a distinguir programas para adolescentes autores de ato infracional diversos daqueles previstos para crianças e adolescente em situação de risco.

Assim, as garantias a estes sujeitos estão divididas em três níveis, sendo o nível secundário o responsável pelo direito à proteção especial e o terciário pela determinação das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que cometem ato infracional (Costa, 2004). Embora metodologicamente a legislação se decomponha em duas frentes (medidas protetivas e socioeducativas), a infância, como objeto de estudo, começa a ser vista como um fenômeno completo. Se antes os sujeitos eram bipartidos em “menores versus adolescentes”, agora compõem um mesmo grupo social. Diz-se que o menorismo cede lugar à concepção de uma infância única, integrada, universal (Saraiva, 2005; SCHUCH, 2009).

O paradoxo da tentativa de unificação da infância, a partir da separação dos sujeitos em “crianças perigosas” e “crianças em perigo” (Schuch, 2009, p. 153), merecedores cada grupo de um tipo de atuação (assistencial ou repressiva), só poderia reestabelecer no cerne da legislação a ambiguidade na finalidade da medida socioeducativa. Se o educar esta no nome da sanção, no seu dever-ser, o punir está presente na prática, nos efeitos e na aparência que as medidas vão começar a apresentar para a sociedade a partir da vigência do Estatuto. A ambivalência desta nova categoria jurídica criada juntamente com a responsabilização penal dos adolescentes, é confusa desde o seu princípio e ao irradiar-se, continua a causar interpretações tanto em um sentido quanto em outro. Os técnicos responsáveis pela aplicação destas medidas (sejam juízes, promotores, psicólogos, assistentes sociais ou educadores) lidam com um objeto jurídico-educacional “que ao mesmo tempo deve reabilitar infratores e cultivar cidadãos” (Fonseca et al., 2009, p. 77).

Nota-se, por exemplo, que o legislador, ao determinar o significado da medida de Liberdade Assistida, [16] incumbe ao orientador da medida a promoção social do adolescente e de sua família, a sua supervisão escolar e as diligências necessárias à profissionalização do mesmo. O próprio fim da medida é exposto no sentido de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. [17] Da mesma forma, ao determinar a medida de semiliberdade, o Estatuto a vincula à obrigatoriedade da escolarização e profissionalização, [18] o que também é exemplificado como direito do adolescente em caso de cumprimento de medida de internação. [19]

A necessária escolarização dos adolescentes envolvidos em ato infracional, ao ser reiteradamente retomada pela legislação, passa a figurar como imprescindível no momento da execução das medidas, deixando claro que a intenção é estabelecer uma finalidade pedagógica a esta categoria jurídica, para além da punição por si só. Segundo Craidy e Gonçalves (2005), não se fala em medida socioeducativa apenas como um eufemismo para pena, mas porque se acredita que “educar é possível, mesmo àqueles que apresentam um comportamento divergente” (p. 139).

Os critérios de aplicação da medida também são fatores que fazem emergir a vontade do legislador em trazer a educação para o cerne da medida. Se no direito penal é o grau de culpabilidade o critério mais importante, no infracional (ou penal juvenil), também dialogam a necessidade pedagógica, a capacidade de cumprimento, e a gravidade da infração. Desta forma, se a realização da dimensão pedagógica da sanção encontra diversas dificuldades nas práticas de execução, ao menos parecer estar respaldada pela lei.

Para Rosa, é justamente e existência desse imperativo de “ressocializar” que afasta o Direito Infracional do Direito Penal, mesmo que ligado a uma corrente garantista, uma vez que “para o garantismo não existe possibilidade de o Estado buscar ressocializar” (Rosa, 2007, p. 13). Essa afirmação vem daquilo que Ferrajoli concebia em sua teoria garantista, ao precisar repressão e educação como noções conceituais incompatíveis “como também o são a privação da liberdade e a liberdade em si” (Ferrajoli, 2002, p. 219 apud Konzen, 2005, p. 81 [20] ). Do cárcere, diferentemente daquilo que fantasia o sistema socioeducativo, a única coisa que se pode pretender “é que seja o mínimo possível repressivo e, portanto, o menos possível dissocializante e deseducativo” (Ferrajoli, 2002, p. 219 apud Konzen, 2005, p. 82 [21] ).

Por outro lado, questiona Konzen (2005) qual seria a necessidade da inserção, pela legislação, de institutos de defesa jurídica derivados do garantismo penal, caso se considere a medida como puramente pedagógica. Certamente, se houvesse apenas a intenção de proteger ou tutelar, não haveria a necessidade de tais instrumentos, como não há – ainda que discutível – no exercício do poder familiar pelos pais da criança. Ao citar Garrido de Paula (2002), o autor afirma que o novo ordenamento jurídico apresentou, pela primeira vez, garantias processuais aos adolescentes acusados de cometimento de ato infracional, podendo se dizer que inspirado “no sistema de garantias materiais e processuais do sistema penal, exigindo regularidade no processo de distribuição de justiça” (Paula, 2002, p. 114 apudKonzen, 2005 [22] ).

Para além de elucubrações teóricas, talvez seja no significado da medida para o adolescente – sujeito central de todo esse regime – que devemos voltar nossa atenção. Nesse sentido, disserta Konzen (2005, p. 43): “não importa o sentir do aplicador ou dos demais operadores, porque não são eles os depositários das consequências, notadamente quando as consequências podem ser situadas no âmbito da dor física, moral ou emocional (...)”.

A ambivalência deixada pela mescla punição-educação atinge a significação deste momento na vida destes sujeitos, dificultando muitas vezes o entendimento, não das causas do cumprimento, mas sobretudo da maneira que se deve agir ao experimentar a socioeducação. Afinal, estão sendo punidos e, portanto, devem se deparar com a disciplina, a hierarquia e a coerção ou estão sendo educados, e nesse sentido, tem direito ao acompanhamento, ao aconselhamento e a troca de saberes? Embora exista um discurso muito presente na fala dos pais desses adolescentes de que o ambiente repressivo pode educar – “Minha filha saiu de lá toda arrumada!” (Fonseca; Schuch, 2009, p. 76) –, o caráter sancionatório, impositivo e obrigatório se sobressai quase que na totalidade dos casos, uma vez que “é indiscutível seu caráter aflitivo, especialmente tratando-se da privação de liberdade” (Costa, 2004, p. 87). Além disso, se é o fato criminoso a gênese da medida socioeducativa, difícil pensar que a consequência não é punitiva.

No mesmo sentido, interessante o trabalho de Alves (2005), que ao realizar pesquisa empírica sobre os efeitos da internação na psicodinâmica destes adolescentes constata que a reclusão, mesmo que possua dever-ser educativo, “é uma marca simbólica que “pune” o sujeito, por um crime contra a sociedade, mas, paradoxalmente, acaba por incentivar e reforçar as causas que impulsionaram o ato, ou seja, é uma medida que contribui para o aumento do nível de pressão e revolta interna, tornando insuportáveis os níveis de violência” (Alves, 2005, p. 203).

Ou seja, tem-se que as consequências da internação vão, contrariamente ao que esperançava o ECA, no sentido contrário da educação. Os mesmos efeitos também podem apresentar-se nas medidas em meio aberto, as quais carecem de maiores investimentos, e por vezes restringem-se a tarefas que envolvem atividades de limpeza e serviços gerais (Gandin; Icle; Rickes, 2008). A visão por parte dos adolescentes, seja esta consciente ou não, do significado da medida socioeducativa em suas vidas, aliada aos elementos legais que estabelecem garantias processuais, aos ensinamentos da escola garantista no que tange às possibilidades da repressão e à realidade fática da execução destas medidas só pode levar à afirmação da natureza repressiva/punitiva da medida socioeducativa. Esta não pode ser jamais desconsiderada ou amenizada, mesmo que o conteúdo pedagógico esteja presente em maior ou menor grau. A educação através da repressão, possível na visão de alguns, não pode absorver o caráter eminentemente sacionatório da medida. Neste sentido, nos unimos à concepção de Costa (2004, p. 87): “Coerente é o entendimento que atribui natureza sancionatória às medidas socioeducativas, embora seu conteúdo na execução deva ser predominantemente educativo”.

Para além deste posicionamento ideológico, qualquer que seja a natureza atribuída à medida socioeducativa, seja ela predominantemente pedagógica ou punitiva, certo é que não há qualquer possibilidade de educar a partir de medida injusta. A ausência de justa causa no procedimento infracional, para além de ser símbolo de uma ambiguidade do próprio entendimento quanto à responsabilidade penal dos adolescentes, representa a carência de uma garantia inerente ao processo democrático, qual seja: não passar por um processo de apuração sem que haja embasamento para tal. Se há a possibilidade de fundir pedagogia e repressão em um só instrumento estatal, somente o tratamento justo possibilitará esse acontecimento, pois “nada fere mais um jovem do que a arbitrariedade, sobretudo quando vinda de quem é responsável pelo cumprimento da lei” (Craidy; Gonçalves, 2005, p.140).

Por fim, necessário reforçar a desmistificação de uma máxima comum na fala dos operadores jurídicos, os quais afirmam que haveria mais prejuízo para a sociedade e para o próprio adolescente se este, cometendo ato infracional, não é “selecionado” pelo sistema socioeducativo, do que os danos causados àquele que, inocente, é obrigado a passar pelo processo de acusação. Aqueles que compartilham desse entendimento acreditam que o adolescente que, tendo cometido ato infracional e restando impune, terá sua personalidade comprometida, pois, justamente, a medida socioeducativa está atrelada à ressocialização. Nesse sentido, utiliza-se de todo um aporte teórico neomenorista [23] para estender os efeitos de uma medida que se encontra entre o educar e o punir ao momento do processo infracional. Para essa corrente, passar pelo procedimento de apuração também é pedagógico, ressocializador e pode influir positivamente na subjetividade do adolescente. Ignora-se, todavia, todos os efeitos estigmatizadores deste transcurso, a repressão inerente ao fato de acusar e o controle social realizado neste momento, conforme aprofundaremos a seguir.

Dessa forma, ainda que a natureza híbrida da medida socioeducativa seja aspecto relevante quando nos deparamos com problemas que circundam a temática do sistema socioeducativo, concluímos que ela não é capaz de justificar, por si só, a ausência de justa causa no procedimento de apuração infracional. Afirmar o caráter punitivo da medida e do processo não é suficiente: é preciso que se enxergue para além do binômio punição versus educação. Para a extensão do debate sobre o tema, foi necessário levantar outras hipóteses que pudessem amparar, afinal, alguma explicação para o problema lançado inicialmente. Assim, perguntamos-nos, afinal, quais são os papéis efetivamente exercidos pelos atores envolvidos nesta problemática (Estado, sociedade, adolescente)? Porque, afinal, acusar quando não há razões para tal?

2.2 O processo infracional como controle social dos adolescentes

Somado aos argumentos já expostos, e ainda na tentativa de formular algumas explicações sobre porque razão o Estado brasileiro – especialmente na esfera legislativa e judiciária – decidiu que o poder de acusação em relação aos adolescentes fosse totalmente discricionário, levantam-se novas hipóteses. Os adolescentes selecionados pelo sistema penal juvenil não diferem, em termos de recortes sociais, das características predominantes na população adulta encarcerada. Ainda, os atos infracionais pelos quais respondem os sujeitos menores de 18 anos são, em sua maioria, tráfico e roubo, [24] o que revela que as “condutas criminosas” estão intimamente ligadas a um rápido retorno econômico. Ou seja, a população submetida à legislação do ECA – e à sua arbitrariedades, tal qual a ausência de justa causa – não exerce força política, tampouco possui espaços positivos de visibilidade para reivindicar seus direitos, quiçá uma mudança legislativa nesse sentido.

E o que se quer dizer com isso é bastante simples: não há uma mobilização no país em discutir e modificar a atual situação legislativa, nem por parte dos sujeitos que sofrem suas consequências diretas, nem por parte dos operadores do direito. Costa (2005) observa a existência de uma concepção doutrinária que perpassa muitos processos da Justiça da Infância e da Juventude, de que este assunto não se trata efetivamente de matéria de Direito, ou ainda trata-se de um “Direito menor”, de natureza social, sobre o qual concedem menor importância. Saraiva (2002) reforça esta noção, afirmando que no imaginário de muitos dos operadores do Direito ainda habita uma ideia de que a Justiça da Infância e da Juventude não se ocupa da “nobreza do mundo jurídico”, pois suas questões seriam “ajurídicas”, não científicas, em uma ideia de jurisdição subalterna (Saraiva, 2002, p. 91, apud Costa, 2005, p. 149).

Apesar de muitos profissionais da área militarem pelas pautas pertinentes ao sistema penal adulto, não há o mesmo engajamento político pelas questões relativas ao sistema socioeducativo e suas problemáticas. Além disso, os adolescentes que respondem por atos infracionais não exercem pressão política neste meio, [25] seja pela sua quantidade numérica pouco expressiva comparada ao encarceramento adulto, seja pela classe social a que fazem parte. O que ocorre é que muitos advogados e juristas renomados, tanto na área criminal, quanto na área civil, nunca foram provocados a entrar de forma mais profunda em contato com a matéria, e em decorrência disso o procedimento de ato infracional é verdadeiro mistério para muitos deles.

Há, portanto, pouco ou quase nenhum interesse político em discutir o sistema socioeducativo e principalmente o processo penal juvenil por parte dos operadores do direito. Apesar de haver no país importantes movimentos sociais pelos direitos da criança e do adolescente, os quais foram fundamentais para a implementação do ECA e de suas políticas, os aspectos referentes às questões processuais foram, e ainda são, extremamente relegados a segundo plano. Tal situação decorre também da total ausência de uma formação jurídica a respeito do tema.

Somado ao fato dos adolescentes não acessarem as instâncias recursais superiores – seja pela ausência de defesa técnica, seja pela não análise em tempo hábil dos recursos interpostos – a formação sobre o tema nas faculdades de direito é praticamente inexistente. A título de exemplificação, a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, já considerado pelo Ministério da Educação a melhor Faculdade de Direito do Brasil, [26] não possui em sua grade curricular uma única cadeira obrigatória que lecione sobre o direito da criança e do adolescente, tampouco sobre o direito penal juvenil. A invisibilidade do tema é tamanha que nem as cadeiras de processo civil, nem as cadeiras de processo penal o abordam, pois como é um procedimento de natureza híbrida – e extremamente confuso –, nenhuma delas está disposta a enfrentar a complexidade da questão.

Tanto é notória tal problemática, que Méndez (2008) atribui o isolamento dos estudos acerca dos direitos da infância em geral, a baixa qualidade intelectual da produção teórica e sua escassez à banalização (progressista ou conservadora) do tratamento de temas centrais como a violência juvenil e suas demandas. Assim, vão se agregando diversos fatores que resultam no total desconhecimento sobre o tema e na consequente ausência de debate sobre as ilegalidades que o permeiam. Dessa forma, somente quem conhece os absurdos do procedimento de ato infracional são aqueles que se deparam, na realidade prática e cotidiana, com a defesa dos adolescentes.

O problema do procedimento de ato infracional, aqui concretizado e especificado na não necessidade de justa causa para o exercício da ação, mais do que um problema de âmbito legal, possui importante dimensão política. Na medida em que os operadores do direito não se interessam pelo tema, pois este não possibilita retorno financeiro, e não é fomentado durante a formação acadêmica, as discricionariedades no sistema socioeducativo não são questionadas, o qual segue recheado de ilegalidades.

Por fim, entendemos que atrelado ao desinteresse generalizado em torno do assunto do procedimento de ato infracional, a dimensão política do problema também se relaciona ao amplo controle social facultado ao sistema de justiça sobre os adolescentes, por meio de dispositivos abertos e discricionários, tal como o art. 182, § 2.º, do ECA.

Apesar do conceito de controle social ser atribuído mais recorrentemente às teorias do direito penal e especialmente à criminologia, afirma Zaffaroni (2004) que aquele que pretende analisar um modelo de sociedade sem, contudo, problematizar a pluridimensionalidade do fenômeno de controle, cairá em um simplismo ilusório (p. 62). Segundo o autor, toda sociedade tem uma estrutura de poder com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados deste, e esta “centralização-marginalização” tece um emaranhado de múltiplas e proteicas formas de controle social.

Para Muñoz Conde e Winfred Hassemer (2008) “o controle social é uma condição básica irrenunciável da vida social. Com ele se assegura a todo grupo, a qualquer sociedade, as normas, as expectativas de conduta sem as quais não poderia seguir existindo como grupo ou sociedade” (p. 249). Ele é exercido, portanto, por diversas formas alternativas, as quais se diferenciam em grau de formalização com a qual se impõem (Hassemer; Conde, 2008). Nesse sentido, o Direito Penal – e aqui se inclui o sistema de responsabilização juvenil – é forma de controle social com alto nível de formalização.

Disserta Zaffaroni (2004) especificamente sobre esta espécie de controle, a qual se vale “desde meios mais ou menos ‘difusos’ e encobertos, até meios específicos e explícitos, como é o sistema penal (polícia, juízes, agentes penitenciários, etc.).” (Zaffaroni, 2004, p. 61). No entanto, esse evento não se restringe ao controle formal: “a enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito”. (Zaffaroni, 2004, p. 61).

Méndez ao criticar o tema da distinção entre os mecanismos formais e informais de controle social, afirma que “a dificuldade em definir com certa precisão a formalidade ou a informalidade dos mecanismos de controle social constitui uma constante nos escritos de todos os que se ocuparam com o problema” (1998, p. 42). No entanto, apesar do sistema penal adulto ser historicamente considerado um mecanismo de controle formal, o que se percebe ao analisar o sistema de responsabilização dos adolescentes, na verdade, é, paradoxalmente, um alto grau de informalidade dos mecanismos formais de controle sociopenal dos sujeitos menores de 18 anos. Tal informalidade é exemplificada na possibilidade de se acusar um adolescente sem que existam os elementos pré-constituídos de autoria e materialidade, a qual se caracteriza uma importante flexibilização em relação ao sistema adulto.

Nesse sentido, faz-se necessário perceber de que forma as instituições que compõem o tecido social comportam-se, uma vez que toda e qualquer instituição social possui em seu cerne um elemento de controle social inerente à sua essência. Apesar desse controle se apresentar de forma enraizada, dependendo do funcionamento das diferentes instituições sociais, elas podem ser instrumentalizadas no sentido de potencializar este controle para muito além do que corresponde essa essência, tal como acontece no sistema socioeducativo.

Notamos, assim, que há em todas as instituições sociais um espaço de constante disputa, em que se concorre por mais ou menos controle social. É neste ponto, portanto, que entendemos residir um aspecto fundamental da discussão: o controle social exercido por meio da justiça penal juvenil se intensifica à medida que não se prevê aos adolescentes garantias como a necessidade de justa causa para o exercício do poder acusatório.

“Se nos anos 80, durante o processo de redemocratização no contexto da América Latina, o pensamento crítico revalorizou a cultura garantista conduzindo a uma visão menos ideológica dos mecanismos formais de controle (Méndez, 1998), tais críticas não alcançaram o sistema de controle sociopenal juvenil. Nesse sentido, disserta Méndez: no contexto de recuperação da cultura garantista, que implica de fato na revalorização crítica da função dos mecanismos formais de controle social, torna-se evidente a oportunidade e a urgência em se analisar o sistema penal de menores” (1998, p. 44).

Segundo o autor, a informalidade dos mecanismos formais de controle sociopenal dos adolescentes deve ser posta em evidência para se tirar conclusões que permitam a elaboração de uma política social baseada no respeito absoluto dos direitos humanos (Méndez, 1998).

Indo além, entendemos que a possibilidade de se exercer o poder acusatório contra um adolescente da forma como prevê o ECA, não só aniquila princípios constitucionais, mas também possui uma perversa função de controle irrestrito sobre esses sujeitos, a qual possui significativa dimensão simbólica. A garantia legal de que é possível submeter um jovem a um processo de ato infracional sem quaisquer indícios probatórios que o justifiquem implica submeter essa população a um constante estado de polícia.

Tal situação prevista pelo legislador permite pensar que o que está em questão em um processo de ato infracional não se relaciona exclusivamente ao controle do crime, mas a um conjunto de forças sociais e históricas direcionadas a um grupo populacional que não necessariamente precisa estar envolvida em uma situação de ato infracional. Nesse sentido, inevitável a relação com as teorias do direito penal do inimigo, pois segundo Gunther Jakobs, “para os cidadãos são mantidas as garantias fundamentais da dignidade da pessoa humana, já para o inimigo, tais garantias não necessitam ser asseguradas, pois a própria existência do inimigo já é uma afronta ao direito” (Jakobs, 2010, p. 28 apud David; Oyarzabal, 2011, p. 226 [27] ). Nessa perspectiva, portanto, o adolescente é o inimigo, na medida em que este é desprovido das garantias e prerrogativas processuais de um Estado de Direito, pois “a condição de inimigo supera em muito a qualidade de sujeito de direito” (Coutinho, 2011, p. 333).

A título de conclusão sobre as reflexões expostas, apesar de o sistema penal ser estruturado enquanto um mecanismo formal de controle, o sistema relativo aos adolescentes é permeado por característica que revelam um alto grau de informalidade, na medida em que ele não se reveste de garantias processuais mínimas. Por isso, e seguindo os ensinamentos de Méndez (1998), o qual afirma que, comprovado que um mecanismo formal “de controle social participa, além de seu funcionamento seletivo, de todas as características negativas dos mecanismos informais de controle social, deve-se admitir o estado de profunda crise” (p. 44), crise esta relativa à legislação juvenil e ao sistema socioeducativo.

Assim sendo, ressaltamos que mesmo quando a pena (ou a medida socioeducativa) respeitar os limites da legalidade, ela sempre se constituirá em instrumento reprodutor da estratificação social capitalista (Baratta, 1999, p. 207). Portanto, é necessário assumir as reais funções exercidas pelo direito penal juvenil – e intensificadas por dispositivos discricionários como o § 2.º do art. 182 do ECA –, o qual ainda se reveste de um caráter tutelar para maquiar suas intenções de controle das populações mais pobres, e a conseguinte produção e reprodução das desigualdades sociais.

Conclusão

Após a análise específica do dispositivo legal, concluímos primeiramente pela inconstitucionalidade do § 2.º do art. 182 do ECA, seja pela sua incompatibilidade com o sistema de garantias processuais constitucionais, seja por não estar abarcado em um necessário sistema acusatório. Ainda que evidentemente atentatório aos princípios da presunção da inocência, do devido processo legal, do necessário respeito ao contraditório e da ampla defesa, pretendíamos no presente trabalho, demonstrar, sobretudo que a norma em questão é apenas sintoma de instituições jurídicas responsáveis pelo processo de formalização do estigma, a partir de uma ciência “que dá um ar sério aos estigmas, fortalecendo-os e consolidando-os (…)” (Bacila, 2005, p. 187).  

A ausência de justa causa no processo juvenil, se em um primeiro plano, ofende os direitos da pessoa em desenvolvimento, em uma visão mais ampla, afronta o próprio princípio do respeito à dignidade humana, no sentido de que este é “qualidade intrínseca reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade (…)” (Sarlet, 2005, p. 37 apud Costa, 2012, p. 103 [28] ). Afirmamos, nesse sentido, a necessidade de que o tema alcance o âmbito dos tribunais superiores do país, não só para que tenhamos um posicionamento inédito dos Ministros sobre o assunto, mas para que de fato se possa fazer um controle externo da legislação. Assumir esse posicionamento, todavia, não significa depositar esperanças de que a solução dos problemas aqui expostos estará tão somente no âmbito do Poder Judiciário: a leitura crítica da legislação foi responsável pela emersão de inúmeras outras questões de âmbito político e sociológico.

Conforme aprofundamos no segundo capítulo deste trabalho, a complexidade da natureza da medida socioeducativa surge como uma das hipóteses quando se pensa os motivos que possam justificar a ausência da justa causa, ainda que seja esse um debate de certa forma já esgotado para aqueles envoltos nas problemáticas da socioeducação. Por fim, talvez seja na afirmação do Poder Judiciário como protagonista de um controle formal a partir da informalidade de certas normas, o ponto chave deste trabalho. Nesse sentido, os adolescentes – hoje considerados como sujeitos de direito – são as vítimas de um Direito que, para além de suas questões operacionais a serem resolvidas, possui “desafios fundamentais que não estão ligados a isso. Ao contrário, eles vão além porque são próprios do tipo de sociedade que essa Justiça regula” (Coutinho, 2011, p. 329-330).

Concluímos, portanto, destacando a necessidade de se produzir visibilidade dos dilemas que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu a partir da criação do sistema socioeducativo que vigora na atualidade. Afirmar o caráter penal sancionatório da medida socioeducativa, conforme fizemos, deve ser entendido como uma estratégia de resposta à sociedade punitiva que clama por intervenções cada vez mais violentas (Costa, 2014). Se na época do Código de Menores o controle social sobre os “menores” parecia ilimitado, é necessário afirmar que o ECA ainda possui fortes resquícios de uma legislação tutelar que legitimou – e segue legitimando – intervenções discricionárias sobre a população pobre de crianças e adolescentes. Se hoje não é a “situação irregular” que os define, o “possível cometimento de um ato infracional” – sem quaisquer indícios de autoria e prova pré-constituída de materialidade – é quem pode tutelá-los de forma irrestrita.

O nosso objetivo, entretanto, não é depositar na norma – por mais limitadora que esta possa ser – e em seus operadores a responsabilidade – e a conseguinte solução – por todos os impasses existentes. Queremos propiciar o debate para o desenvolvimento de uma ciência capaz de interligar direito, sociologia e política e a realidade social extremamente violenta em que estão inseridos os adolescentes brasileiros. Nesse sentido, designamos Sociedade e Estado – ou seja, todos nós – como agentes responsáveis por produzir novas formas de gestão da violência.

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Decisões consultadas

Brasil, Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 60.612-DF. Relator: Min. Nefi Cordeiro, julgado em 25.08.2015.

______. Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Habeas Corpus 243.950-PA. Relator: Min. Marilza Maynard, julgado em 10.12.2013.

______. Superior Tribunal de Justiça. 5.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 29.184-MG. Relator: Min. Gilson Dipp, julgado em 22.11.2011.

______. Superior Tribunal de Justiça. 5.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 29.573-MG. Relator: Min. Gilson Dipp, julgado em 02.08.2011.

______. Superior Tribunal de Justiça. 5.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 19.703-SP. Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 03.04.2007.

______. Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 14.096-MG. Relator: Min. Paulo Media, julgado em 13.05.2003.

______. Superior Tribunal de Justiça. 6.ª Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 5.524-RS. Relator: Min. Anselmo Santiago, julgado em 30.09.1996.

Obras on-line:

Gutierrez, E. C. Punir ou educar? O papel da medida socioeducativa na visão do Poder Judiciário. In: IV Encontro Nacional de Antropologia do Direito, 2015, São Paulo, Disponível em: <http://www.enadir2015.sinteseeventos.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=1>. Acesso em: 5 nov. 2015.

Betina Warmling Barros

Bacharelanda do curso de Ciências Jurídicas e sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrante do grupo de pesquisa “A Efetividade dos Direitos Fundamentais de Adolescentes Envolvidos em Situação de Violência”.

Luiza Griesang Cabistani

Bacharelanda do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “A Efetividade dos Direitos Fundamentais de Adolescentes Envolvidos em Situação de Violência” e bolsista de extensão do Programa Interdepartamental de Práticas com Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei.

[1] O segundo encontro do Colóquio VIVO, realizado no dia 8 de junho de 2015, intitulado “Processo penal juvenil: quando a prática ocupa o vazio da lei”, foi realizado com a presença do – Juiz de Direito no Juizado Regional da Infância e Juventude da Comarca de Passo Fundo, Dalmir Franklin de Oliveira Junior e do Defensor Público do estado de São Paulo e membro do núcleo especializado da infância e juventude da DPESP (Defensoria Pública do estado de São Paulo), Giancarlo Silkunas Vay.

[2] Lei 12.594/2012.

[3] A Lei 12.594/2012 define em seu art. 35, I, que a execução das medidas socioeducativas reger-se-á, entre outros, pelo princípio da legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;

[4] Art. 267, VI, do CPC/1973. Lei 5.869/1973.

[5] Carnelutti, F. Como se faz um processo. Belo horizonte: Editora líder, 2001. p. 21.

[6] Considerando a população carcerária somada àqueles que cumprem prisão domiciliar, o número chega a 715.592, número que eleva o Brasil a terceiro país com maior população carcerária do mundo. Dados disponíveis no sítio do Conselho Nacional de Justiça: . Acesso em: 7 nov. 2015.

[7] O Mapa do Encarceramento: Os Jovens do Brasil realizado pelo Ministério da Justiça, no ano de 2012, mostra que 93,8% do total de presos são homens, 54,8% são jovens de até 29 anos, 63,2% possuem baixa escolaridade (até ensino fundamental incompleto), e 60,7% são negros (Mapa do Encarceramento, 2014, p. 22-26).

[8] Lei 8.069/1990.

[9] A própria Lei 8.069/99 prevê a sanção da autoridade judiciária que violar os prazos por ele estabelecidos, de acordo com o art. 235 do dispositivo.

[10] Ver mais em: Mendes, P. Moacyr. A doutrina da proteção integral e do adolescente frente à Lei 8.069/90. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo; Méndez, Emílio García. Infância e cidadania na América Latina. Sao Paulo: Hucitec, 1998; Saraiva, B. C. João. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e ato infracional. 3. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

[11] Pode se citar como outros exemplos: (a) o momento de interrogatório do réu: no direito penal adulto, a Lei 11.719/2008 determinou que o interrogatório do réu fosse o último ato da instrução probatória, garantindo lhe a mais ampla defesa. No direito penal juvenil, de acordo com o art. 186 do ECA, a oitiva do adolescente acusado de ato infracional é o primeiro ato da instrução probatória. (b) No procedimento de apuração de ato infracional o Ministério Público é titular único e absoluto da ação, independentemente do crime cometido, conforme dispõe o art. 182 da Lei 8.069/90. (c) O adolescente cumpre a medida socioeducativa antecipadamente, ou seja, mesmo que não haja trânsito em julgado de sentença condenatória. Isso se dá pois em casos em que o adolescente não é internado provisoriamente, e é condenado em 2.º grau, os recursos especial e extraordinário, por força do art. 27, § 2.º da Lei 8.038, não possuem efeito suspensivo, o que permite a internação imediata do adolescente. Além disso, nos casos em que o adolescente é internado provisoriamente e condenado em 1.ª instância aplica-se o art. 520, VII, do CPC – cujo sistema recursal foi adotado pelo ECA – para promover a internação antes do trânsito em julgado da condenação.

[12] Apesar de haver discussão na doutrina quanto à natureza do sistema processual penal brasileiro, certo é que “se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório).” (Nucci, 2007, p. 104-105). A Constituição de 1988, ao estabelecer princípio do contraditório, da separação entre acusação e órgão julgador, da publicidade, da ampla defesa, da presunção de inocência, entre outros, dá margem à uma interpretação no sentido de um sistema acusatório, sobretudo quando se trata de uma legislação posterior à sua promulgação, como é o caso da Lei 8.069/90.

[13] Dispõem os arts. 108 e 183 do ECA que o prazo máximo para a conclusão do procedimento é de 45 dias, estando o adolescente internado provisoriamente. Desta forma, a legislação cria “um compromisso com a conclusão do processo neste período, tanto que o Estatuto elevou à condição de crime o descumprimento, injustificado, de qualquer espécie de prazo que estabelece em benefício do adolescente privado de liberdade”. (Saraiva, 2006, p. 97-98). Além disso, prevê o ECA, prazo máximo de 60 (sessenta) dias para o julgamento de recursos, conforme dispõe o art. 199-D, acrescido pela Lei n. 12.010/2009.

[14] Constituição Federal de 1988, art. 227, § 3.º, V.

[15] “A Doutrina da Proteção Integral, além de contrapor-se ao tratamento que historicamente reforçou a exclusão social, apresenta-nos um conjunto conceitual, metodológico e jurídico que permite compreender e abordar as questões relativas às crianças e aos adolescentes sob a ótica dos direitos humanos, superando o paradigma da situação irregular para instaurar uma nova ordem paradigmática” (Saraiva, 2005, p. 18).

[16] Arts. 118 e 119 do ECA.

[17] “Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.”

[18] Art. 120 do ECA.

[19] Art. 124, XI, do ECA.

[20] Ferrajoli, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p. 219.

[21]  Idem, ibidem, p. 219.

[22] Paula, P. G. D. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada. Sao Paulo: RT, 2002. p. 114.

[23] “O conceito ‘neomenorismo’ designa a posição assumida por aqueles que, em geral, tendo participado do processo de derrocada das velhas leis de menores e de sua substituição por leis baseadas na doutrina da proteção integral, pretendem hoje um uso tutelar e discricional da legislação garantista” (Méndez, 2008). Para maior detalhamento da questão, ver: Méndez, Emilio García. Adolescentes y responsabilidad penal: un debate latinoamericano. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia pena. ano VI, n. 10, p. 261-275, 2000. 

[24] Roubo corresponde a 38,1% ,enquanto que o tráfico corresponde a 26,6%, totalizando 64,6% do total de atos infracionais pelos quais respondem adolescentes no país no ano de 2011 (FBSP, 2013, p. 86)

[25] Nesse sentido, referencia-se que “De qualquer sorte, o bandido, hoje, de regra, o popular, aquele que não tem condição de manter a estrutura efetiva de sua defesa, que não tem condições de se fazer valer porque não consegue espaço para ocupar sua própria cidadania. Nesta hora, porém, quem tem proposto reformas em nome daquilo que chama ‘democracia’, tem esquecido que, ao invés deles, quem poderia estar ali, como se estava no regime militar, era um de nós.” (Miranda, J.N.M.C. Videoconferência. In: Miranda, J. N. M. C. (Coord.). Canotilho e a constituição dirigente. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2003. p. 111 apud Bacila, 2005, p. 189).

[26] O título de melhor curso de graduação na área concedido à Faculdade de Direio da UFRGS superou outros 742 avaliados no Brasil. O título veio com a divulgação, em 13 de janeiro, do índice Geral de Cursos (IGC) 2009, do Ministério da Educação. Matéria vinculada pelo jornal Zero Hora, no dia 26 de janeiro de 2011, n. 748, Porto Alegre. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/caar/wp-content/uploads/2011/01/mat%C3%A9riazhdireito.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2015.

[27] Jakobs, G.; Meliá, M. C. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 28.

[28] Sarlet, I. W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: ___ (Org.). Dimensões da dignidade – Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 37.

Conto
O homem – pequeno e singular
Data: 24/11/2020
Autores: Joao Marcos Buch

- Você consegue imaginar que elas estavam aqui muito antes da nossa existência e aqui estarão muito depois?

- Acabei de pensar sobre isso. Como somos pequenos.

- Mas somos singulares!

Aos pés dos fiordes da Noruega, numa noite estrelada, víamos as luzes do norte, também conhecidas como aurora boreal. Mesmo numa temperatura de -25 graus o calor que eu sentia, resultado da emoção de concretizar um sonho, permitiria me despir das roupas glaciais e sair correndo pelos campos nevados, num ato de libertação, ainda que sob riscos de hipotermia em poucos minutos. Então lá, praticamente no polo norte, no meio da madrugada, quando aquele espetáculo cósmico se descortinava em toda sua beleza, meu celular tocou. Ligação do Brasil.

Por força do hábito, atendi.

- Alo, deseja falar com quem?

- Dr. João Marcos, aqui é Marcelo (fictício) do jornal. Gostaria de saber se o senhor declarará algo sobre a crítica ao seu trabalho, por parte do (…). Ele disse que o senhor defende bandido e que os direitos humanos são para os humanos direitos.

Levei alguns segundos para me situar do que se tratava. Ainda no Brasil, tinha recém participado de alguns eventos em defesa dos direitos humanos e transmitido minhas experiências como juiz da execução penal da Comarca de Joinville/SC. Também tinha acabado de publicar um texto a respeito da dignidade da pessoa humana dentro das unidades prisionais. Essas manifestações sempre provocavam reações, com o que já tinha me acostumado. Inclusive as via como algo importante. Afinal o fenômeno da violência urbana, que é o que faz mais vítimas e mais leva pessoas à prisão, precisava ser melhor debatido. Minha intenção sempre era inserir alguma ética e alteridade à discussão. Devia ser sobre isso que o jornalista falava.

E ao atender aquela ligação, mesmo em tão distantes plagas, onde a noite imperava por quase 22 horas, fui transportado para os dramas diários que costumava vivenciar no país tropical. Na última semana antes das férias, havia ido até o presídio para inspeção de rotina. Ao transpor os umbrais que separam a liberdade da detenção, logo percebi que muito ainda precisava ser feito. Alguns passos rumo a melhorias tinham sido dados, mas o cheiro da prisão, que marca os sentidos, não deixava dúvidas, as prisões do presente são os navios negreiros do passado. Entre lajes com infiltrações, ainda com problemas de saneamento, em meio a celas ainda com superlotação, ainda com detentos dormindo em colchões no chão, mesmo sabendo das condições piores em outras unidades, no Presidio de Joinville a vida continuava sendo difícil, tanto para presos como para agentes penitenciários. Os primeiros sem condições dignas de vida e os segundos sem devido reconhecimento e valorização. Num corredor molhado e abafado, aguardei que retirassem os detentos das celas e os colocassem na galeria, sob o anúncio de que eu ali estava para com eles conversar. Estava preparado, como sempre, para ouvir os pedidos por atendimento à saúde, trabalho, defesa, limpeza, vestuário, kit higiene e tantos outras solicitações, que confirmam a ausência de um estado de direito pleno nas veias carcerárias. Mas o primeiro a se dirigir a mim mostrou que em matéria humana, nunca um caso é igual a outro.

Vilmar (fictício), jovem de 24 anos, condenado por roubo, havia ficado 4 anos evadido. Na época, recebera autorização para sair da prisão e passar 7 dias com a família, direito seu após conquistar o regime semiaberto por tempo de pena cumprida e ter bom comportamento. Ao chegar em casa, num afastado bairro da zona leste, encontrou a família despedaçada. O pai estava acamado, com invalidez permanente, a mãe trabalhava como empregada doméstica, vindo dela a única fonte de custeio da família, composta por mais três irmãos, de 7, 9 e 13 anos. Precisava ajudar a família, eles não tinham culpa pelos seus atos. Não viu outra solução que não fosse deixar de voltar para a cadeia, com todas as consequências graves que isso traria. Arranjou serviço de pedreiro em Florianópolis, na construção de uma casa, numa das praias mais cobiçadas da ilha da magia. Com sua fidalguia, ganhou a confiança do patrão e foi contratado para ser zelador da propriedade. Mandava mensalmente parte do salário para mãe, que com isso conseguiu reformar a casa, tratar dos medicamentos do marido, sustentar os filhos pequenos. Anos se passaram, a vida da família melhorou, e Vilmar resolveu que devia pagar a dívida pendente. Nunca dormira tranquilo, sempre lhe pesava a espada da Justiça sob sua cabeça. Assim, num dia de inverno, contou tudo ao patrão, voltou para Joinville e se dirigiu ao Fórum para se entregar. Lá chegando, apresentou-se na Vara de Execuções Penais, quando então o mandado de prisão se cumpriu. Realizados os procedimentos de praxe, foi levado ao Presídio. E então, algumas semanas depois, via a oportunidade de conversar comigo, o juiz da do seu processo, e contar sua história. E o fez emocionado, nervoso.

Pedi que se acalmasse e falei ao assessor para anotar o nome. Na realidade já no início do relato tinha identificado o caso, pois o assistente social forense, antes do encaminhamento ao Presídio, havia feito uma entrevista com o detento e juntado o relatório nos autos. Pelos que se verificou e pelos documentos apresentados, a história dele era verídica. Falei que logo eu avaliaria o caso e que consideraria que ele não tinha se envolvido em nenhum outro ilícito durante o período em que esteve evadido e que sua apresentação voluntária seria relevante para análise de regressão ou não de regime de pena. Ele se acalmou, agradeceu e deu espaço para o detento seguinte e para o seguinte. Ainda distribuí formulários para todos, chamei os representantes da galeria, fiz uma reunião na direção e em conjunto tratamos das questões gerais da unidade. Ao retornar ao Fórum, junto com assessoria, passei aos comandos necessários para deliberar sobre os casos mais urgentes anotados na visita. O do Vilmar estava entre eles.

Em tempos que atores jurídicos e agentes públicos pregam a morte por empalamento dos miseráveis, esquecendo-se do processo histórico de construção e conquista da declaração universal dos direitos humanos, em tempos em que policiais e adolescentes são desgraçadamente vitimados porque estão na ponta de uma cadeia sistemática de incompreensão do fenômeno da violência urbana, em tempos em que as crianças e jovens negros não podem circular livremente pela cidade maravilhosa, brincando e jogando futebol, indo à praia, nesses tempos, em que o ódio parece ser radical e banalizado, temos que desarmar nossos corações, temos que nos solidarizar, temos que ouvir nossa alma, temos que amar mais. Só assim caminharemos pelas ruas de um mundo não violento. Nesta senda eu, como juiz de direito de vara de execuções penais, reconhecerei e reafirmarei sempre, não importam as críticas que receba, pois a causa é maior, que a pessoa do detento nunca perderá sua condição humana e por isso será sempre merecedora de irrestrito respeito em seus direitos e garantias fundamentais. Afinal, o ser humano é uma promessa, jamais uma ameaça.

- Marcelo, grato por ter me ligado - minha mão tremia, havia tirado a luva para atender e sinais de congelamento apareciam - Estou em viagem e apenas digo que toda e qualquer espécie de manifestação e crítica ao meu trabalho eu devo respeitar e aceitar. Isso faz parte das liberdades públicas e democráticas. Está bem assim?

- Certo doutor, obrigado por me atender.

- De nada, uma boa noite.

Desliguei o telefone e logo coloquei a luva.

- Quem era? - perguntaram os demais membros da expedição.

Olhei para o céu mais uma vez, que continuava com sua explosão de cores verdes e lilases. Inspirei fundo o gelado e límpido ar.

- Apenas alguém para nos lembrar como somos pequenos, e singulares.

João Marcos Buch

Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC e autor do livro Crônicas Relatos Vivências - Editora Giostri.

Cadeia de Papel
Coletes Azuis | Métodos de conversa | Fósforo
Data: 24/11/2020
Autores: Debora Diniz

Eles chegaram em vários carros. Desceram em silêncio, mas aprumaram-se no uniforme antes de qualquer apresentação. O tom azul da roupa seria infantil se o brasão United Nations Organization não fosse mais imponente que o de qualquer Donagente com uniforme surrado do tempo do caje, o reformatório implodido da capital. O boné os anunciava – são primos dos capacetes azuis da onu em missão internacional. Se nos campos de refugiados, eles são o corredor humanitário para salvamentos, histórias ou resistências, ali estavam com tradutores e caderninhos miúdos de jornalistas. No corpo, só o colete que mais parecia a prova de balas. Vinham para perguntar e muito ouvir em um lugar onde a solidão faz de qualquer menina uma contadora de histórias.

Eram homens e mulheres, os bonés escondiam as gerações, em alguns os fios rebeldes denunciavam experiência. Falavam entre si no idioma internacional da paz e da guerra, mas eram quase todos estrangeiros à língua franca. Os primeiros inquiridos foram Donagentes e Seusagentes, a eles cabia responder sobre o manual de boas práticas sobre cuidados e castigos. A multidão se dispersou, saíram em “firminhas”, como se diz por ali. Em grupos de três ou quatro caminhavam de ombro erguido, pois a missão era ousada, vinham em busca de histórias escondidas, as histórias de tortura. Donagente Gerente e Donagente c2 se desdobravam para arrumar detalhes da visita surpresa: roupas foram retiradas das janelas, pois ali não era uma favela; “Meninas, se vistam, vai ter visita”; mas o sujeito visitador não era anunciado.

Os coletes azuis foram recepcionados pelo rádio, “Inspetores da onu contra a tortura chegaram”. “Eles podem tudo”, ouvi alguém dizer: fotografar, medir espessura de colchão ou provar comida. Como fui afastada do corredor, pois a eles é concedido direito à privacidade absoluta, resolvi fazer guarda na comida, fantasiava um colete azul provando um “hot box”. Esquecida, funguei o cardápio: era frango, ou algo de procedência da mesma espécie, feijão e arroz. Um dos colete azul parecia ser holandês, nele concentrei minha atenção. Como seria a experiência gastronômica em uma missão de tortura nas cadeias de papel da capital do Brasil?

Mas os métodos de investigação dos coletes azuis não incluíram testes de campo: só perguntas sobre o número de refeições, exames de saúde periódicos, tapas ou algemas, salas de isolamento e castigo. Uma curiosidade imponente, eu diria, por isso me escondi ainda mais entre a sombra de Donagentes: queria ouvir sobre o escondido nem que fosse como discurso oficial. Com outros modos e estilos, imagino que perguntas semelhantes foram feitas às meninas, todas elas encantadas com os coletes azuis: eles eram de couro branco, alguns se embelezaram com gravatas, mas todos calçavam tênis, pois em cadeia agilidade pode ser sobrevivência. Eram sorridentes e gentis. E o mais importante, eles tinham orelhas maiores que o normal e dedos mais ágeis que os de taquígrafas, estavam preparados para ouvir e anotar histórias de sofrimento e injustiça para quem vive atrás de grades na juventude.

As conversas com as meninas obedeceram ritos de sigilo, confidencialidade e afastamento. Pela primeira vez, mudei de lado naquele lugar onde se acredita em binarismos do poder – eu era alguém também suspeita, não poderia mais conversar com elas, e nem ousar espiar conversação alheia. Fiquei afastada em tão longa distância que acabei me aborrecendo com a apartação. Cheguei pensar em voltear o módulo e ouvir conversa alheia pelo combogó, mas achei que desprezo sofrido não merecia minha curiosidade indiscreta. Desconheço se Donagente ou Seuagente tiverem a mesma ideia, pois desfeita seria de fácil execução, apesar de ignorada pelos investigadores. Não me acalmava imaginar que as meninas me contariam o conversado, me perturbava o posto de torturadora lançado para quem vestia preto. Senti-me como uma Donagente insultada, aquela que veste preto por sustento ou honra, não importa, mas a que recusa o abuso da tortura.

As prisões e reformatórios são instituições de tortura no Brasil, mas minha permanência na cadeia de papel em regime de plantão provocou as formas e modos de investigação sobre o escondido e proibido. Ouço histórias de tabefes e croques, castigo sem colchão, ou banho com água fria. As histórias mais dramáticas são sempre as da banda masculina, seja dos meninos entre si, ou dos meninos com Seuagente invocado e lutador. A história mais terrível que escutei me chegou em formato de texto – uma denúncia ao Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos dizia: “A menina é agredida fisicamente pelos agentes e negligenciada pelo diretor. Ademais, outras adolescentes são agredidas fisicamente pelos agentes [...] Os suspeitos são responsáveis por plantões, inclusive no dia 21.02.2015, [...] quando a menina apanhou de mangueira da suspeita, ficando várias marcas visíveis pelo corpo. Em seguida foi algemada nua em meio ao pátio, sangrando [...] A aparência da vítima é desumana, aparentando desnutrição”. Havia nome para a menina, para os agentes e para o diretor. Todos eu conhecia por rosto e convívio.

O dia 21 de fevereiro foi de meu plantão. A menina vítima da denúncia de tortura era minha conversadeira, estava bem no dia, se desconto a maluquice que lhe era própria. Magra é verdade, mas de um magrém já seu que não foi conquistado ali. O rumor da denúncia no Disque 100 chegou à cadeia de papel: era fato que não houve tortura neste caso e contra aquela menina em particular. Novos rumores explicaram o texto anônimo, disputas entre Donagentes ou malquerenças de vizinhança. Os coletes azuis me fizeram lembrar do que senti quando li o documento de “Denúncia registrada no Disque Direitos Humanos” – tortura é das mais graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado, mas como identificá-la, prová-la e coibi-la? Se há torturadores no reformatório da capital do país, eles não foram denunciados após a inspeção dos coletes azuis e, para maior risco das meninas e meninos, devem estar ainda mais raivosos contra suas vítimas.

Figura 1: Grades.

Lembro do Menino no Chão. Ele foi a primeira vítima de violência que conheci de corpo e sangue na cadeia de papel – corri ao anúncio de “Reforço, m5”. Reforço é palavra de urgência na cadeia de papel, significa pedido de multidão vestida de preto para conter, reagir ou defender. Como as Donagentes do plantão, disparei, de longe vi formigueiro em rota certa: todos se dirigiam para a porta do módulo em reforço. Da porta, avistei o Menino no Chão, ele sangrava, o corpo estirado denunciada uma teresa no pescoço e um empalamento sem pudor. Havia tensão e vergonha na cena, mas o menino estava vivo, a urgência era socorrê-lo. No fundo do pátio, outros meninos olhavam o muro e dois se afastavam da fila, o gesto silencioso da confissão. A essa cena não posso dar o nome de tortura, pois não foram os agentes do Estado, os Seusagentes quem violentaram o corpo.

Esse é o sentido específico da terrível palavra tortura: um ato do Estado contra os indivíduos. Há tortura, repito, nas prisões e reformatórios no Brasil. O código planetário que define tortura e que autorizou os coletes azuis a entrarem na cadeia de papel reserva o horror do gesto torturador para funcionários públicos ou pessoas no exercício de funções públicas. Ali, os suspeitos são as Donagentes e os Seusagentes, todos aqueles que vestiam preto naquela noite. Para haver tortura, diz a Convenção da onu, é preciso que hajam atos que provoquem sofrimentos agudos, físicos ou mentais para fins de confissão. Mas tortura é também castigo e intimidação ilegítimas. Certamente foi na fronteira entre a legitimidade e ilegitimidade dos gestos castigadores que estiveram as conversas das meninas com os coletes azuis da paz: seria a cela de isolamento um castigo legítimo? Seria a dormida na pedra uma sanção ilegítima?

Não faço aqui acusação ou defesa de procedimentos disciplinares da cadeia de papel. Minha inquietação é anterior, até porque cela de isolamento ou dormida na pedra foram procedimentos narrados como parte do discurso oficial das Donagentes aos coletes azuis. Armários com faltas de roupas, material de higiene ou roupa de cama foram escancarados para fotografias. Há dores e sofrimentos agudos na falta de higiene imposta pelo Estado como parte de um castigo pelas infrações penais cometidas pelas meninas – essa foi parte da tortura exibida pela voz de Donagentes. Assim como há dores e sofrimentos na violência de um Seuagente quando um menino planeja fuga ou rebelião – talvez, essa tenha sido a tortura narrada pelos meninos aos inspetores da paz. Repito, não conto segredos escondidos dos investigadores, apenas me perturbo sobre os modos de investigar esse abuso terrível e escondido do Estado. A quem se pergunta e o que são evidências de tortura?

métodos de conversa

Não tenho dúvidas de que a melhor resposta é ouvir a vítima. As evidências podem ser do instante ou da memória, não é preciso a ferida no couro para que se prove tortura. Fatos repetidos, coerências narrativas, dissimulação ou desfaçatez são indícios de instituições torturadoras. Por isso, ouvir as meninas é um gesto de acolhimento e respeito – a vítima deve ser sempre ouvida como portadora da verdade de si. Minha inquietação não é a quem cabe a verdade do testemunho da tortura, mas como e onde registrar as provas da sobrevivência. Observar os coletes azuis em investigação me provocou sobre os modos de investigação sobre tortura: ali e daquele jeito seriam bons modos de escuta? Os coletes azuis sabiam das câmeras por todos os lados, ou seja, qual confidencialidade garantiram às meninas se as bisbilhoteiras lentes não foram desligadas? Os coletes azuis com o brasão do “tudo pode”, a apartação de Donagentes, a voz em sussurro, os caderninhos e as fotografias – aquilo me parecia um arsenal de intimidação ao poder disciplinador, mas sem os poderes efetivos de alterar ordens injustas. A cena me parecia mais de provocação que de efetivação de direitos, mas minha inquietação pode ter outras razões, preciso confessar.

Os coletes azuis eram mais perguntadores do que eu. E muito, mas muito mais ousados para quem faz primeira visita. É verdade que visto preto para me fazer de multidão, eles vestiam o brasão internacional e a cor da paz universal. Tinham direitos que demorei para conquistar – fotografavam sem pedir licença, permaneciam sem sombra de Donagente, eram autoridades em território estrangeiro. Se as maneiras de investigar tortura me inquietavam, os modos dos coletes azuis me agoniaram. Sem o poder da surpresa ou das leis planetárias, eu me comporto como os coletes azuis: fico sozinha com as meninas, ando com caderno anotador, ouço histórias que Donagente desconfia enredo. Donagente não sabe o que pergunto ou escuto, posso ser só uma fuxiqueira do trabalho alheio, estar ali como espiã da tortura ou de outros malfeitos. É verdade que há sempre câmeras me espiando, mas Donagente que pilota a lente é de poder distante, não é Donagente do módulo.

Figura 2: Vigilância.

Tomei tempo para me aproximar das meninas, por uns plantões permaneci por trás do vidro da Monitoria de vigilância, deixando-me ser vista, antes de qualquer apresentação. Devagar, atravessei a porta, ensaiei cartão de visitas, começamos a leitura de fantasias e a troca de cartas. Com o tempo de convivência, explorei os sentidos de minha presença por ali, entre fantasias e realidades, ouvi que me imaginam como “uma terrorista que escondia bombas, talvez fosse uma espiã russa”. Sim, terrorista, e esse foi um dos enredos mais sérios criados sobre a antropóloga na cadeia de papel. “A senhora veste preto, sempre com roupa folgada, não tem medo e nunca se altera, ou é psicopata ou terrorista”, me explicou uma delas, talvez a liderança da teoria. Nunca soube os enredos criados pelas Donagentes sobre minha presença, mas quem sabe também se movessem entre a psiquiatria e a polícia.

Minha pesquisa não é sobre tortura. Busco histórias de sobrevivência pela escrita, elas podem vir em formato de rabiscos nas paredes, de cartas apaixonadas para meninos vizinhos na escola ou de confissões sobre livros e sofrências. Mas ouço muito mais do que consigo guardar como pesquisadora, e passeio pelo território de Donagente com a impertinência dos coletes azuis. Elas nunca pediram para vistoriar meus cadernos, nem mesmo ouvir minhas gravações, elas me acolhem sem o medo do colete azul, mas com a deferência desassossegada a quem tem o direito de tudo perguntar e tudo ouvir. É assim que assumo: demorei para perceber que minha presença também causava desconforto às Donagentes, mas precisei antes vivê-lo como meu por um deslocamento de lugar imposto pelos coletes azuis.

Como puxo um plantão, nem todas Donagentes que atuam em um módulo me conhecem: a cada três dias estou ali, mas, nos intervalos de folga, outras Donagentes escutam ruídos de minha presença. O treino daquele lugar é para a desconfiança, e minha pesquisa movimenta formas estranhas de conversa onde privacidade inexiste. Troco cartas com as meninas, peço sigilo e discrição ao escrito ou ouvido em segredo. Demorou, mas a suspeita me alcançou: grupos de Donagentes se uniram para revirar cartas em barracos, questionar meu modos e autorizações, uma reação razoável contra uma intrusa de longa permanência. É certo que houve maus modos pessoais de algumas mulheres de preto, mas tento compreender a reação como uma inquietação legítima: com mais permanência que os coletes azuis, o espaço do módulo se organiza em binarismos com minha presença – eu e as meninas; Donagentes são as outras.

Se ficar sozinha pelo módulo, no pátio ou em conversas privadas foram conquistas de confiança e segurança, essas são práticas que afastam Donagentes da cena de encontro com as meninas. Assim como preciso da confiança das meninas para ouvir histórias segredadas pela escrita, preciso da confiança de Donagentes que faço o que digo fazer, que não sou uma espiã investigando regimes de trabalho ou formas de convivência. A verdade é que os coletes azuis me perturbaram sobre os modos de pesquisar verdades – essas maneiras tão autoritárias e impositivas de se lançar em um campo.

fósforo

O sussurro era de malfeito, o pedido demandava cabeça baixa na bocuda. Cabeça baixa é sinal de esconderijo, casinha para a câmera indiscreta não fazer leitura labial, uma mudança recente nos modos de conversa. Nos meus primeiros sete meses não teve isso de filmagem ou bisbilhotice da vida no módulo, eu ainda aprendia os novos modos de posicionar cabeça para esconder boca. No passado, se havia escuta escondida era de Donagente agachada em combogó ouvindo conversa alheia. As histórias de desacato atravessado são muitas e repetem enredo fuxiqueiro: a menina encolhe-se no banheiro e, imaginando-se sem rosto de Donagente, lhe professa desaforos. Donagente, é verdade, não está no barraco, mas na parede vizinha do lado de fora do módulo, ouvindo impropérios pelo combogó. Não importa se desacato foi de olho virado para autoridade, vale o dito para castigo por palavra indevida.

Figura 3: Combogó.

“Chega aqui”, a voz era miudinha, um segredo de meninas, mas o tom era de malfeito de mulher, “A câmera está mesmo ligada?”. “Sim”, aproveitei para engrandecer os feitos das lentes, “vê tudo”, expliquei, “Só não ouve”, mas não dei garantia da mouquice, pois a inteligência da cadeia de papel também me suspeita. As duas meninas do barraco se entreolharam, riram muito, acenaram para vizinha de frente, “Ouviram isso? Tudo ligado”. Ainda desconhecendo a razão da preocupação, me pediram detalhes sobre o poder de indiscrição das lentes, “Até onde ela pega? No banheiro?”, apontou para o sanitário. Aquela é cena que também me perturba, pois da bocuda sempre soslaio os joelhos da menina em necessidades que deveriam ser privadas. Me aquietei, quis crer que não havia malfeito, só pudores de quem perambula seminua pelo barraco, ignorando regras solenes de corpo só coberto com roupa do reformatório.

Ensaiei voz de confessionário, me imaginei alguém com poderes de acalmar pudores. Tracei fronteira da lente, dei geografia aproximada do poder de bisbilhotice de quem fiscaliza. Enquanto explicava limites, o horror se instalou nos dois barracos. “Chega mais”, a voz era rachada e o tom de mando de quem xerifa o instante. Como costumo obedecer ordens por ali, não importa se de menina ou de Donagente, quase me pendurei na bocuda. Nossas testas se encontraram, mas a da menina fervia. Como em movimento sincronizado, os queixos encostavam no peito, “A gente tá com maconha aqui”. Contei segundos para planejar resposta, mas meu autocontrole só me deixou ir até dois, “E isqueiro tem?”. A resposta não veio, ela insista na perturbação pessoal, “Ontem fumamos a noite inteira, agora também. Sente o cheiro?”.

O cheiro me desmoralizava, estava ali desde antes, mas só o senti quando foi anunciado. Reiniciei a contagem dos segundos, e elas passaram a falar todas em assembleia, as testas agora deitavam nos braços na porta da bocuda, aquilo era mesmo uma coreografia. A maconha era abundante, uns vinte baseados arriscou uma delas; já consumiram muitos, outra fez questão de explicar; me descreviam posições para a câmera, e eu só pensava no isqueiro. Fiz proposta objetiva, “Que tal me darem o isqueiro? Vocês somem com a maconha e eu negocio entrega sem castigo com Donagente gerente”. Fui ignorada, continuavam a descrever a festa da fumaça nos dois dias seguintes ao retorno do saídão do dia das crianças. O isqueiro me agoniava mais do que qualquer droga – o corredor não tem saída de emergência, incêndio recente na banda dos meninos me mostrou medonhice que é queimar colchão em módulo com grades nos barracos. Maconha dá lombra em menina e vergonha em Donagente investigadora das cavidades naturais, mas isqueiro chama tragédia.

Resolvi mudar a tática, esqueci os segundos de suspiro, e iniciei minhas perguntas de sempre, queria entender como conseguiram entrar com escondido se há vistoria vexatória na portaria? “Entocada”, e passaram a me explicar os sentidos do verbo e do substantivo. “Sabe o osso lá de dentro?”, imaginei anatomia e concordei, “Duas camisinhas, a primeira para garantir higiene, a segunda prende as trouxinhas de baseado”. Para facilitar minha compreensão, simularam as cenas da revista, agacharam-se, assopraram o braço e garantiram, “Nada cai se a senhora entocar bem atochado. Entocado nada cai”. Pedi licença ao vocativo, expliquei que nada entoco, ainda estava imaginando o osso da toca. Aproveitei o riso junto e pedi isqueiro, recebi contraproposta, “Não tem isqueiro, só quatro fósforos”, abriram toca nem sonhada por Donagente, e me exibiram os palitos. Era tempo de almoço, o Hot Box arrastava-se pelo corredor. A menina do corre da comida, empurrava a caixa e anunciava cardápio, o cheiro do feijão se confundia ao da maconha. Fui ganhando tranquilidade, a proposta parecia razoável. Eu fosse almoçar, na sesta elas fumariam o restante dos baseados, não haveria risco de incêndio, garantiam, e me dariam os palitos queimados para que eu voltasse a respirar sem segundos contados. Retornei breve, encontrei todas dormindo e os palitos de fósforo enrolados em papel na grade da bocuda.

modos de falar

barraco: quarto ou cela onde vive a menina na cadeia de papel. Há grades e jega para uma habitante, mas em geral vivem duas em cada barraco. Ou se divide jega, ou uma delas dorme no colchão na praia, isto é, no chão.

c2: Donagente chefe das Donagentes em um plantão. Há o Seuagente para a banda masculina.

colete azul: inspetores internacionais da onu para investigação sobre tortura. Usam coletes e bonés azuis.

donagente: um vocativo para designar quem veste preto e se multiplica aos olhos das meninas. São as agentes de segurança, agentes de reintegração social (ATRS) ou carcereiras, termos que sobrepõem a depender do contexto.

donagente gerente: chefe dos agentes de um plantão. É a liderança máxima depois do diretor de segurança da cadeia de papel.

firminha: grupos de, pelo menos, duas meninas que juntas se protegem, fazem planos e determinam regras. Identificar firminhas é estratégico para o trabalho de Donagentes, pois as firminhas organizam o módulo em rixas e alianças.

hot box: caixa térmica onde são transportadas as refeições quentes para os módulos.

maiores: classificação etária para organização das meninas nos módulos do reformatório. Maiores são as adolescentes com mais de 18 anos sentenciadas para o regime de internação com privação de liberdade. A expressão pode ser ainda uma permanência da história do “Código de Menores”. 

módulo: unidade arquitetônica onde ficam os barracos. A cadeia de papel é organizada por módulos, em cada módulo há barracos com, em média, duas meninas.

reformatório: maus modos próprios de descrever a unidade de internação socioeducativa. Nos termos das meninas, ali é cadeia de papel ou fuleiragem.

xerifa: é a líder do módulo. A liderança pode ser “positiva” ou “negativa” – a positiva é aquela com habilidade para negociar com Donagentes e a disciplina; a negativa é a que divide o módulo e provoca constantes discórdias entre as habitantes.

Debora Diniz

Antropóloga. Professora da Universidade de Brasília. Pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Autora do livro Cadeia, relatos sobre mulheres (Civilização Brasileira, 2015, 224 p.).

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