Boletim - 337
Dezembro de 2020
30 anos de ECA: Nina Rodrigues não pode ter razão

 

Data: 30/11/2020
Autor: IBCCRIM

“A ideia de que ‘para cada escola que se abre, fecha-se uma prisão’ é apenas um absurdo”: Essa frase foi dita em 1894 pelo médico baiano Nina Rodrigues, discípulo dileto do positivismo criminológico italiano no Brasil, em citação a Garófalo. Mais de um século depois, em 2007, Jair Bolsonaro, ainda Deputado Federal, proclamou: “tenho certeza de que se colocarmos 90% deles num colégio de freiras, eles não vão se recuperar”.

De Nina Rodrigues a Bolsonaro, a história infantojuvenil brasileira parece ser marcada por um dos traços mais nefastos da forma mentis positivista que aqui estabeleceu raízes: a ideia de degenerescência do povo. O positivismo criminológico, recepcionado calorosamente no Brasil quando já iniciava sua decadência na Europa, assume a dimensão mais ampla e terrível de uma verdadeira cultura, segundo a qual o povo – crianças, adolescentes e jovens pobres e negros, em especial – não é apenas compreendido, mas sentido e vivenciado pelos operadores do “sistema de proteção” de forma inferiorizada, patologizada, discriminada e criminalizada.

Ao longo do século XX, o Brasil passeou pela indiferença até chegar a uma política de extermínio da juventude marginalizada. O Código Penal de 1890 criou a figura dos “meninos-homens”, presos dos seus 9 aos 21 anos, projetados para serem não mais do que mão-de-obra industrial subvalorizada, na melhor das hipóteses. Em 1927, o Brasil entregou-se ao menorismo e à doutrina da situação irregular que marcaram o Código Melo Mattos. Já a ditadura civil-militar, em 1979, editou seu próprio Código de Menores, o qual, a pretexto de proteger e resguardar a infância das mazelas do braço penal do Estado, costurou toda uma roupagem caritativo-assistencial, com enfeites ditos científicos, para, na prática, prosseguir no sequestro, exclusão e neutralização dos jovens pobres e negros, constantemente estigmatizados e tornados “filhos do governo”, expelidos das unidades correicionais para o subemprego ou a indigência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente então surge, em 1990, com a promessa de concretizar os ditames constitucionais, dizendo um “não” à indiferença, aos dispositivos do menorismo, ao descaso, à hipocrisia, ao extermínio. “Menores”, insistismos, não existem; existem, apenas, crianças, adolescentes e jovens, indepententemente do gênero, da cor e da classe social. Trata-se de um “não” imbuído de sonhos, que encarna o princípio constitucional e internacional da proteção integral, consagra direitos individuais contrapostos ao poder punitivo, garante direitos sociais, protege as mães e as famílias e reorganiza o atendimento à infância e juventude. Um “não” sensível, mas, nem por isso, menos firme.

E o estatuto segue de pé. Segue como um objetivo a ser concretizado apesar do encarceramento juvenil em massa, consequência do punitivismo e de nossa política criminal genocida, na forma preferencial da falida guerra às drogas; apesar dos elevados índices de homicídios sobre a população jovem e negra; apesar da negligência, da invisibilidade, da incompreensão e de tudo o mais que remanesce de uma longa história de opressão.

Todo esse quadro já é diagnosticado pela sociologia da punição e pela criminologia, que chamam os atores do sistema de justiça juvenil à responsabilidade por suas decisões. Em 30 anos, o ECA resistiu, não sofrendo retrocessos legislativos e enfrentando, simultaneamente, as propostas de redução da maioridade penal e de aumento do tempo de internação, adversários tão fortes quanto covardes, porque, para superarem a debilidade de suas razões, valemse do apelo eleitoral ao medo, ao choque e à mentira. Ao revés, o Estatuto deu vida, em 2012, à Lei do SINASE (Lei 12.594), que ampliou suas garantias e densificou o processo de execução das medidas socioeducativas. Analisando deste modo, a conta não fecha. Ou fecha?

Se não é externo e formal o processo de corrosão do ECA – que se reflete em uma realidade terrivelmente avessa aos seus ideais -, ele só poderia ser interno, promovido pelos atores responsáveis por sua interpretação e execução, que, hoje, mais do que subverterem direitos e garantias por metarregras próprias do menorismo, incorporam e reproduzem parâmetros próprios da justiça de adultos, aplicando medidas socioeducativas de restrição de liberdade por fundamentos punitivos, sem atenção à situação peculiar do adolescente e em juízo quase exclusivo acerca da pretensa gravidade do ato infracional praticado, no que vem se chamando de “colonização da justiça juvenil pela justiça de adultos”. Por outro lado, esses mesmos operadores do direito continuam a valer-se do discurso legitimador da “situação irregular” para deixarem de aplicar os direitos e garantias do processo penal aos adolescentes, chegandose à situação que pode ser designada como “pior dos mundos”, em que um processo de índole punitiva é tocado sem respeito às garantias do cidadão acusado.

Há, de fato, muito a se lamentar e denunciar, especialmente quando vivemos uma das maiores pandemias da história da humanidade. Parece haver pouca sensibilidade dos atores do sistema para com o avanço dos números de contágio entre adolescentes e servidores das unidades socioeducativas, cenário que se demonstra ainda mais preocupante em função da baixíssima testagem para Covid-19. Por essa razão, é urgente a aprovação do PL 3.668/2020, em trâmite no Congresso e com o apoio do IBCCRIM, que busca salvaguardar os direitos dos adolescentes internados e servidores durante a pandemia.

E o ECA resiste! A recente e paradigmática decisão, de agosto de 2020, da 2ª Turma do STF no HC 143.988, que teve a participação do IBCCRIM, é prova disso. No caso, foi concedida a ordem, por unanimidade, para frear o processo de encarceramento em massa juvenil e reverter a superlotação, determinando o atendimento da regra numerus clausus pelos juízes da execução de medidas socioeducativas de internação. Vitórias como essa demontram que esses 30 anos foram, sim, marcados por derrotas e decepções, com resultados muito aquém dos necessários, mas eles também forjaram gerações de militantes, acadêmicos/as, pesquisadores/as, professores/as e profissionais comprometidos/as com seu projeto de sociedade para o Brasil, que prospecta um futuro digno e generoso para crianças e adolescentes. 

Logo, os trinta anos de Estatuto, apesar de tudo e de todos, provam que Nina Rodrigues e Garófalo erraram, que Bolsonaro errou (e segue errando). Foram provados equivocados por Darcy Ribeiro e Paulo Freire. Prefere-se o “absurdo” do sonho de um país com mais escolas, mais educação e menos cadeias, ignorância, punição e dor. Que não nos falte forças para seguir lutando por este sonho nos próximos trinta anos – e mais.


Notas de rodapé

 

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Notas sobre a proteção da vida e integridade pessoal de adolescentes e jovens à luz do caso Bulacio vs. Argentina

Hugo Fernando Matias

Defensor Público do Estado do Espírito Santo e mestrando em políticas sociais na Ufes (PPGPS).

ORCID: 0000-0001-6407-3696

 hugofernandesmatias1981@gmail.com

Mariana Chies Santiago Santos

Advogada. Doutora em Sociologia pela UFRGS e Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS.

Atualmente é pesquisadora com bolsa de pós-doutorado no NEV-USP e Coordenadora-Chefe do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

ORCID: 0000-0002-8151-9044

chiesmariana@usp.br

Resumo: O artigo busca analisar alguns dos principais parâmetros e diretrizes estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença do Caso Bulacio vs. Argentina, que trata das agressões e morte do adolescente Walter David Bulacio, após ter sido preso e lesionado pela polícia em um órgão policial na Argentina. A ideia é que o estudo do caso auxilie na compreensão da proteção legal aos direitos à vida e integridade pessoal de adolescentes nos países que compõem o sistema interamericano de direitos humanos, notadamente o Brasil.

Palavras-chave: Adolescentes – Direitos Humanos – Direito à Vida – Direito a Tratamento Digno.

Abstract: The paper seeks to analyze some of the main parameters and guidelines established by the Inter-American Court of Human Rights in the judgment of the Case Bulacio v. Argentina, regarding the injuries and death of Walter David Bulacio, after being arrested and beaten in a policy station in Argentina. The purpose of the paper is to study how this judgment may help the understanding of the legal protection of the rights to life and to humane treatment of court-involved youth in the countries that are part of the Interamerican human rights system, notably Brazil.

Keywords: Court-Involved Youth – Human Rights – Right to life – Right to Humane Treatment


Data: 30/11/2020
Autor: Hugo Fernando Matias e Mariana Chies Santiago Santos

1. Introdução

O presente artigo visa à análise do Caso Bulacio vs. Argentina com base na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 18 de setembro de 2003. Nosso objetivo é de, a partir do caso concreto, identificar critérios e parâmetros para a proteção dos direitos fundamentais à vida e integridade pessoal de adolescentes e jovens acusados da prática de ato infracional, custodiados pelo Estado brasileiro. O diálogo entre o Poder Judiciário brasileiro e a Corte IDH pode e deve ser construído com a participação dos operadores do direito, como advogados, procuradores, membros do ministério público e da defensoria pública, de modo a produzir precedentes que, além de promover os direitos processuais, colaborem para a sedimentação do sistema interamericano de direitos humanos, como o que aconteceu no julgamento do habeas corpus coletivo 143.988/ES, pelo Supremo Tribunal Federal, que tratou da superlotação de unidades socioeducativas no país, com intenso diálogo entre o caso concreto e as decisões da Comissão e Corte Interamericanas.(1)

Nessa linha, salta aos olhos a importância da identificação dos limites e possibilidades para a utilização dos parâmetros fixados no Caso Bulacio vs. Argentina em relação ao Brasil, com destaque para a proteção contra detenções arbitrárias ou ilegais, deveres do Estado inerentes à sua posição de garante e, por último, o dever de investigar e punir os responsáveis por violações a direitos humanos de adolescentes e jovens, abarcando junto a isso a temática da imprescritibilidade. Tudo isso, sem esquecermos das peculiaridades e desafios de cada contexto.

Assim, como forma organizativa, apresentaremos (i) o caso Bulacio vs. Argentina e, em seguida, algumas questões imbricadas na decisão da Corte IDH, que entendemos necessárias para a aplicação no direito pátrio: (ii) proteção contra detenções arbitrárias ou ilegais; (iii) deveres do Estado inerentes à sua posição de garante e (iii) o dever de investigar e punir os responsáveis por violações a direitos humanos de adolescentes e jovens, abarcando junto a isso a temática da imprescritibilidade. Por último, informaremos da importância, no nosso país, de se atentar para tais questões, de forma a garantir o direito à vida e à integridade dos adolescentes a quem se atribui a prática de um ato infracional.

2. O Caso Bulacio vs Argentina(2)

O caso se refere à responsabilidade internacional da Argentina pela detenção arbitrária e morte do jovem Walter David Bulacio, além da falta de investigação, demora excessiva e ausência de punição dos responsáveis pelas graves violações a direitos fundamentais da vítima e seus familiares. A sentença da Corte foi proferida em 18 de setembro de 2003.(3) Consta que, em 19 de abril de 1991, a polícia federal argentina efetuou uma apreensão massiva de mais de 80 pessoas na cidade de Buenos Aires, nos arredores de um estádio de futebol, no qual seria realizado um concerto de rock. Entre as pessoas detidas estava o adolescente Walter David Bulacio, que à época tinha 17 anos de idade, e que, logo após a apreensão, foi levado a uma repartição policial, onde foi agredido por agentes estatais.

Os apreendidos foram progressivamente liberados, sem que tivessem sido iniciadas ações penais e sem que tivessem conhecimento do motivo da detenção. Em relação a  Bulacio, é importante registrar que não houve controle judicial imediato do ato, a despeito do que previa a legislação, assim como seus familiares sequer foram comunicados sobre sua apreensão. Ademais, durante a detenção, crianças e adolescentes estiveram submetidos a condições inadequadas.

Em 20 de abril de 1991, após ter vomitado de manhã, o adolescente foi levado a um hospital e, novamente, não houve comunicação à autoridade judicial ou a seus familiares. O médico que atendeu o adolescente registrou a presença de lesões e de traumatismo craniano. Após a realização dos exames, Walter informou a ocorrência das agressões policiais. Na noite do dia 20 de abril daquele ano, Bulacio foi visitado por seus familiares.

Um dia depois, no dia 21 de abril, Bulacio foi transferido a outro hospital, no qual o médico de plantão denunciou o ingresso de adolescente com lesões, o que gerou a abertura de uma investigação policial pelo delito de lesões. Em 23 de abril, a justiça conheceu das denúncias de lesões contra Walter. Contudo, no 26 de abril, Bulacio acabou falecendo em razão das agressões sofridas.

Em relação às investigações, após tramitação processual com diversos incidentes, como separação e reunificação processual, recursos e conflitos de competência, em 2002 foi reconhecida a prescrição da ação penal, o que foi impugnado pelo Ministério Público, sendo certo que até a data de fechamento da sentença as partes não haviam comunicado à Corte as modificações em relação ao processo. Assinala-se que a Argentina reconheceu sua responsabilidade internacional através de um acordo de solução amistosa, tendo sido admitida a violação de diversos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) em prejuízo de Walter David Bulacio e sua família.

3. A Proteção contra detenções ilegais ou arbitrárias

De acordo com a decisão proferida pela Corte, ficou provada a existência de um documento chamado memorando 40, que facultava aos policiais a decisão sobre a notificação ou não aos juízes de menores a respeito da detenção de crianças e adolescentes. Frise-se, contudo, que a própria legislação argentina tinha previsões em sentido contrário. De acordo com a sentença, o Estado tem a faculdade e a obrigação de manter a segurança e a ordem  pública, embora deva observar limites inerentes aos direitos fundamentais das pessoas. Ainda, a Corte consignou que a vulnerabilidade da pessoa detida se agrava em caso de ilegalidade ou arbitrariedade da apreensão, sobretudo diante do risco concreto de violação a outros direitos, tais como a vida e integridade pessoal.

Ganha destaque a posição da Corte no sentido de que a proteção contra prisões abusivas ou ilegais passa pelo controle imediato da autoridade judicial, em especial quando se trata de um Estado Democrático de Direito. De acordo com o Tribunal, ademais, em caso de privação de liberdade sem controle judicial, o indivíduo deve ser posto em liberdade ou colocado à disposição de um juiz, tendo em vista que o escopo do art. 7º da CADH é a proteção das pessoas contra interferências indevidas do poder público. Tal disposição encontra respaldo no art. 40, 2, b, III e V, da Convenção Internacional dos direitos da Criança de 1989, a qual foi ratificada pelo Brasil.

Entretanto, no Brasil, há algumas peculiaridades que merecem atenção dos operadores jurídicos, sobretudo em relação à apreensão em flagrante. Nessa hipótese, o adolescente é apresentado à autoridade policial, nos termos do art. 172 do ECA. Em caso de ato infracional sem violência ou grave ameaça, o adolescente será liberado e reintegrado aos pais ou responsável, observados os termos do art. 174 da legislação pátria. No sentido oposto, quando o adolescente não é liberado, ele é encaminhado ao Ministério Público (art. 175), que procederá à oitiva informal (art. 179).(4) O órgão ministerial, a seu turno, poderá promover o arquivamento dos autos, oferecer remissão ou representar para aplicação de medida socioeducativa, tudo nos termos do art. 180 da legislação estatutária. Com a representação e instauração do processo, ocorrerá a designação de uma audiência de apresentação, ocasião em que finalmente o adolescente ou jovem não liberado e em sede policial terá sua apreensão analisada pelo Poder Judiciário, desconsiderando-se, é claro, a impugnação por recursos ou habeas corpus e a mera análise documental (art. 107), o que fragiliza a proteção contra a tortura, por exemplo.

Dessa forma, entendemos que o ECA não possui mecanismo que garanta o controle imediato e efetivo da apreensão de adolescentes e jovens em flagrante por autoridade judicial, sobretudo numa perspectiva de proteção de seus direitos à vida e integridade pessoal. Todavia, é possível que tal controle seja feito no curso do processo, como na audiência de apresentação, por exemplo. Ocorre que o próprio rito previsto pela lei impede que tal controle ocorra de forma imediata, o que demonstra a fragilidade das disposições da CADH e da Convenção Internacional sobre Direitos da Criança de 1989 no Brasil.

É bem verdade que algumas unidades da federação têm se valido das disposições do art. 88, V, do ECA para a implementação de Núcleos de Atendimento Integrados a adolescentes e jovens, criando condições para a realização de audiências de apresentação de forma célere, sobretudo em relação aos adolescentes não liberados em esfera policial. É o caso dos estados do Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo, por exemplo, que já contam com esses núcleos em algumas comarcas.(5) Entretanto, ainda se tratam de iniciativas pontuais - mesmo que o ECA esteja comemorando os 30 anos de sua existência neste ano de 2020.

Portanto, ao estabelecer o controle judicial imediato da apreensão como mecanismo para controle de ilegalidades e arbitrariedades, inclusive num contexto de proteção dos direitos à vida e integridade pessoal de adolescentes e jovens, a Corte apresenta paradigmas importantes para moldar, também, a realidade do Estado brasileiro. Aliás, tal sinalização da Corte pode servir de dínamo para mudanças estruturais em instituições e ritos procedimentais, de forma individual ou coletiva, sempre com vistas a conferir maior efetividade às disposições internacionais das quais a República Federativa do Brasil é parte.

4. A posição de garante do Estado em caso pessoas sob sua custódia. O direito à atenção médica e o dever de prestar explicações

A sentença proferida pela Corte anota que o Estado deve fornecer explicação satisfatória em caso de pessoas que ingressem no cárcere com saúde e que durante a restrição da liberdade sofram pioras. Sobre o ponto, duas observações: a primeira em relação aos cuidados de saúde e a segunda em relação à proteção contra a tortura, maus tratos e tratamentos desumanos ou degradantes.

No que tange aos cuidados de saúde, a decisão é clara ao apontar que as pessoas detidas devem ser submetidas a exames e acompanhamento médico, de preferência por médico escolhido por eles ou por quem exerça sua representação legal ou custódia. Acrescenta ainda, que os resultados de quaisquer exames médicos ordenados pelas autoridades devem ser encaminhados ao juiz, ao detido e a seu advogado ou a quem exerça a representação, notadamente no caso de menores de idade. Por fim, a Corte registra que a atenção médica deficiente implica violação ao art. 5º da CADH, que trata da proteção à integridade pessoal.

Esses parâmetros ganham importância no Brasil. Inicialmente, cumpre destacar que a Constituição (CF/88) assegura aos adolescentes e jovens todos os direitos fundamentais dos adultos, como a proteção da saúde e vida, além de direitos especiais, incluindo-se aí, a prioridade absoluta no tratamento em qualquer âmbito de políticas públicas, sem qualquer discriminação. Assim, parece claro o direto prioritário de ser atendido pelo Estado, seja no âmbito de instalações e equipamentos socioeducativos ou no próprio Sistema Único de Saúde (SUS).

Em relação ao acesso e disponibilização do exame médico, o parâmetro é importante, pois o ECA e Lei do SINASE não tratam do tema, sendo certo que por vezes exames médicos são negados à Defensoria Pública com base em disposições das mais diversas, como por exemplo a proteção da intimidade, a despeito do poder de requisição legalmente previsto na LC 80/94 e da finalidade constitucional de promoção dos direitos à vida e saúde eventualmente envolvidos.

Vale registrar a importância da menção expressa ao direito de ser atendido por profissional médico, tendo em vista que, não raro, esse direito é tolhido de adolescentes e jovens submetidos à internação, provisória ou não. Em muitos casos, os pedidos dos internos são interpretados como tentativa de causar desordem, o que costuma gerar reações mais intensas dos próprios internos e das equipes de segurança, aumentado os riscos de confrontos e agressões, com muitas chances de prejuízos aos adolescentes e jovens.

Em relação à tortura, vale consignar que o Estado brasileiro possui farta legislação sobre proteção contra essa mazela, desde a CF/88, passando por tratados internacionais nos sistemas da ONU e OEA, até a tipificação de delito específico em lei e a organização de um sistema nacional de prevenção à tortura, com diversos órgãos especializados. Contudo, tortura, maus tratos e tratamentos desumanos ou degradantes infelizmente ainda são realidades para adolescentes no Brasil, ocorrendo com mais frequência no momento da apreensão, em sede de custódia policial ou em unidades socioeducativas.(6)

Um grande desafio em nosso país consiste na qualidade da produção da prova da tortura, sendo certo que os laudos periciais ainda seguem a lógica do CPP de 1941, com base em qualificadoras da lesão corporal e agravantes do art. 61 do CP. Portanto, as perícias no Brasil, em regra, sequer consideram as disposições da Lei 9.455/97, o que dificulta a produção de provas e consequentemente a punição de torturadores.

Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem produzido atos visando ao fortalecimento da prevenção e combate à tortura pelo Poder Judiciário, com destaque para a Recomendação 49/2014, que dispõe sobre a necessidade de observância das normas do Protocolo de Istambul, da ONU, e, bem assim, do Protocolo Brasileiro de Perícia Forense.

Vale registrar que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) produziu a Recomendação 31/2016 com objeto semelhante.

A prevenção e o combate à tortura passam ainda pelo reforço dos sistemas de controle. E nesse ponto o país precisa avançar no fortalecimento e implementação de órgãos locais de combate à tortura, como Comitês e Mecanismos Estaduais, sobretudo em relação aos últimos, dado que poucas unidades da federação contam com esse órgão em suas estruturas. Além disso, o Mecanismo Nacional encontra-se atualmente subjudice, tendo em vista o ajuizamento de ações na justiça federal e no Supremo (ADPF 607) contra o Decreto 9.831/2019 que fragilizou o órgão.(7)

5. O dever de investigar e punir os casos de violações a direitos fundamentais de pessoas detidas. A questão da imprescritibilidade

No caso Bulacio vs. Argentina, a Corte Interamericana é incisiva ao afirmar que os Estados têm obrigação de investigar e punir os responsáveis por violações a direitos humanos. E mais, que devem desempenhar tal missão com seriedade e não por meio de meras formalidades. Ademais, consignou que o Estado, além de garantir o devido processo legal, deve zelar pela duração razoável dos processos e pelo direito de os familiares conhecerem a verdade, o que efetivamente não ocorreu em relação à Walter David Bulacio e seus parentes.

Ao contrário, a mora processual levou ao reconhecimento de prescrição, o que também foi alvo de manifestação da Corte, segundo a qual, são inadmissíveis disposições de direito interno que impeçam a investigação e punição de violações a direitos humanos, o que é reforçado pelos artigos 1.1, 2 e 25 da CADH, assim como pelo artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

Esses parâmetros são relevantes para o Estado brasileiro na medida em que muitos casos de violações a direitos fundamentais de adolescentes e jovens internados em equipamentos socioeducativos não geram a responsabilização e a punição dos responsáveis, quando cabível. Um indício dessa situação é a raridade com que os operadores do direito se deparam com sentença reconhecendo, por exemplo, a prática do crime de tortura contra pessoas privadas de liberdade. Nesse sentido, consta no STJ demanda envolvendo o estado do Espírito Santo e a Corte Interamericana de Diretos Humanos.(8)

Ocorre que, a despeito das decisões proferidas pela Corte, outros casos de graves violações a direitos humanos começaram a ser verificados no ES, sobretudo pela Defensoria Pública (DP/ES). E mais: processos iniciados pela Defensoria e Ministério Público (MP/ES) tinham uma marcha morosa, bem como não havia notícia de punições de agentes públicos pelos graves fatos apurados pelo Tribunal Interamericano.

Por isso, a DP/ES, em conjunto com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes (CONANDA), ingressou com representação junto à Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitando a instauração de Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), o que foi acolhido pelo órgão ministerial, dando ensejo a processo no STJ, com fundamento no art. 109, § 5º, da CF/88.(9)

Em relação à imprescritibilidade das violações a direitos humanos, a posição da Corte no Caso Bulacio vs Argentina corrobora o entendimento do Tribunal firmado em outros precedentes, como nos Casos Barrios Altos (2001),(10) Albán Cornejo (2007)(11) e Gomes (2010).(12) 

Tal situação demonstra a importância dos parâmetros estabelecidos no Caso Bulacio vs Argentina para fins de proteção e promoção dos direitos humanos de adolescentes e jovens sujeitos a medidas restritivas de liberdade. É imprescindível que ocorra a proteção e a prevenção de atos que possam atentar contra direitos fundamentais, sobretudo vida e integridade pessoal. Mas também é importante que o Poder Público investigue e sancione os responsáveis por tais violações. E mais, que seja afastada a incidência da prescrição em crimes ligados a graves violações a direitos humanos, como a tortura, a fim de que as disposições da CADH não sejam esvaziadas por autoridades internas.

6. Conclusão

A República Federativa do Brasil é signatária dos principais tratados interamericanos de direitos humanos, tendo reconhecido voluntariamente a competência jurisdicional da Corte Interamericana. Por isso, é importante que operadores jurídicos, pesquisadores, estudantes e trabalhadores do sistema socioeducativo aprofundem seus conhecimentos sobre sua jurisprudência.

Litigar com base nos precedentes da Corte, além de demonstrar a necessidade de alinhamento do Brasil às disposições internacionais em relação as quais o país se encontra submetido, permite a construção de estratégias jurídicas que ultrapassam as fronteiras do país.

De fato, um processo individual ou coletivo que em sua origem dialoga com os precedentes do sistema interamericano de direitos humanos abre a possibilidade de acesso à Comissão e a Corte Interamericana, o que pode gerar reflexos positivos na tramitação interna, tal como se verificou no julgamento do HC coletivo 143.988/ES que, a partir de um intenso diálogo com o sistema interamericano, resultou na construção de um precedente inédito no país, com alto potencial de transformação da realidade de adolescentes e jovens.








Notas de rodapé

(1) Sobre o julgamento do HC 143.98/ES, ver: <https://www.conjur.com.br/2020-ago-24/stf-determina-fim-superlotacao-unidades-socioeducativas>. Acesso em: 04 de nov. 2020.

(2) Mais detalhes sobre o caso em: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS Y FONDO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA INFANCIA. Violencias contra niñas, niños y adolescentes en América Latina y el Caribe, Corte Interamericana de Derechos Humanos y Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia. San José, C.R: Corte IDH, 2019.

(3) Conferir: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_100_esp.pdf>. Acesso em: 03 de nov. de 2020.

(4) A oitiva informal mereceria uma análise detalhada, uma vez que é facultada – durante a sua realização – a presença de defesa para o adolescente, o que gera diversas violações aos direitos dos adolescentes. Contudo, em razão do espaço desse texto, optamos por não entrarmos em detalhes. Para saber mais sobre o instituto da Remissão, ver: GUTIERREZ, E.; CHIES-SANTOS, M. Remissão. In: LAZZAROTTO, G. D. R. Medidas Socioeducativas: entre A & Z. 2014, p. 227-229. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/115265>. Acesso em: 13 nov. 2020.

(5) Conferir: <https://www.tjce.jus.br/noticias-cij/tjce-e-governo-do-estado-firmam-parceria-para-melhorias-no-sistema-socioeducativo/>, <https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/perguntas-frequentes/o-que-e-centro-integrado-de-atendimento-ao-adolescente-autor-de-ato-infracional-de-belo-horizonte-cia-bh.htm#.X6G_JVhKjIU> e <https://iases.es.gov.br/Contents/Item/Display/197>. Acesso em: 03 nov. 2020.

(6) Ressalta-se que, no Brasil, a fiscalização dos espaços de encarceramento de adolescentes e jovens é feita por muitos órgãos, com destaque para o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura. Em casos de agressões e mortes, é imprescindível que a entidade responsável pelo equipamento proceda à rápida comunicação dos órgãos de controle para apuração em âmbito administrativo, cível e criminal, se for o caso.

(7) Sobre o tema, conferir: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-14/tribuna-defensoria-compromisso-defensoria-combate-tortura-brasil>. Acesso em: 04 de nov. 2020.

(8) Com efeito, desde 2011 tramitam na Corte Interamericana medidas provisórias em face do Brasil, diante do risco à vida e integridade pessoal de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas na Unidade de Internação Socioeducativa (Unis) localizada em Cariacica, ES. O contexto inicial envolvia superlotação, mortes, torturas e maus tratos, além do uso de contêineres para o encarceramento de pessoas na unidade.

(9) De fato, consta na inicial que o incidente tem por objeto pedido de deslocamento de competência para apurar graves violações de direitos humanos na área da socioeducação capixaba, mais especificamente em relação ao objeto de ações civis públicas propostas com o fim de assegurar o cumprimento das determinações do ECA e da Lei do SINASE. Outrossim, trata também da propositura das ações competentes visando a responsabilizar os agentes públicos por fatos relacionados às referidas violações de direitos. Um dos destaques apontados pela PGR é justamente a inexistência, no âmbito estadual, de ações visando à responsabilização das autoridades, gestores e funcionários do sistema socioeducativo que, por ação ou omissão, contribuíram para a situação de caos e violações a direitos humanos, seja no âmbito criminal, seja no tocante à improbidade administrativa.

(10) Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_por.pdf>. Acesso em: 03 de nov. 2020.

(11)Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_171_esp.pdf>. Acesso em: 03 de nov. 2020.

(12) Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.pdf>. Acesso em: 03 de novembro de 2020.


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