Boletim - 338
Janeiro de 2021
Legados e Lições

  

Data: 06/01/2021
Autor: IBCCRIM

Não foram poucas, nem pequenas, as expectativas sobre a gestão 2019/2020 do IBCCRIM. Ser a primeira diretoria eleita em um processo aberto e transparente, em 28 anos de existência do instituto, não trouxe apenas legitimidade, mas, também, uma enorme responsabilidade de corresponder aos anseios de milhares de associados e associadas, que exigiam mais democracia, inclusão e engajamento do instituto nos temas candentes da nossa sociedade.

O desafio foi ainda maior diante de uma das mais graves conjunturas já vividas na história do país. Sucessivas crises políticas, decomposição da situação econômica e a ascensão de governantes que flertam publicamente com o autoritarismo, somaram-se à maior pandemia em gerações, que já ceifou a vida de mais de 175 mil brasileiros, principalmente negros e pobres, e mudou radicalmente nossas vidas.

Mas, se as dificuldades foram imensas, o trabalho realizado nesses últimos dois anos, registrado detalhadamente no Relatório de Gestão 2019/2020, foi igualmente grandioso. Por óbvio, isso não significa que não foram cometidos desacertos, ou que o IBCCRIM ainda não tenha que avançar muito em muitas áreas, mas o balanço geral é extremamente positivo.

Confrontada com problemas antigos, novos e até com o imponderável, a gestão 2019/2020 jamais deixou de responder de forma decisiva e criativa, mesmo considerando as inúmeras limitações do instituto. E isso não teria sido possível sem um trabalho estritamente coletivo, feito por uma equipe de profissionais, corpo diretivo e voluntários extremamente dedicados e que conseguiram manter acesa a chama do IBCCRIM num dos momentos mais críticos de sua história.

Enumerar os feitos e realizações nesses últimos dois anos seria impossível no espaço de um editorial, mas três pautas permearam e marcaram de forma decisiva o conjunto da gestão: as políticas de inclusão e diversidade, a responsabilidade administrativa e a defesa intransigente dos direitos humanos e dos princípios e valores democráticos.

Sob essa gestão foi instituída a mais abrangente política de bolsas, que pela primeira vez abarcou todos os cursos e eventos oferecidos pelo instituto e beneficiou mais de 300 pessoas economicamente hipossuficientes, negras e LGBTQIA+. Além disso, a política de isenção de contribuição associativa, aprovada em 2019, permitiu a incorporação desse mesmo público em cargos de coordenação, coordenação-adjunta, além de beneficiar alunas e alunos do Laboratório de Ciências Criminais, GEA e GCCRIMDH.

No plano da diversidade regional, pela primeira vez, foram instituídas coordenações em todos os estados do país, buscando agregar novas vozes, olhares e saberes para a gestão. Certamente ainda há muito por fazer, mas passos decisivos foram dados e não há mais espaço para retrocessos.

Outra grande marca da gestão foi o intenso (e muitas vezes invisível) trabalho de reorganização e modernização administrativa. Mesmo num cenário econômico absolutamente adverso, as contas do instituto foram finalmente saneadas e equilibradas, como resultado de um enorme esforço que envolveu toda a gestão, especialmente a equipe técnica do instituto. Dezenas de contratos foram revistos, gastos foram cortados e processos internos foram otimizados, gerando uma economia total de cerca de 1 milhão de reais.

Além disso, os cursos do instituto foram reorganizados dentro de um planejamento profissional e novas tecnologias foram incorporadas para melhorar a experiência dos discentes e ampliar o seu público.

Ainda no plano administrativo, as novidades foram muitas: criação do Núcleo Administrativo, novo site, novas modalidades de curso, primeira pesquisa de satisfação com associados e associadas, definição de fluxos de trabalho, novas ferramentas de comunicação e muito mais para preparar o IBCCRIM para os desafios do presente e do futuro.

Sobre a atuação política em tempos tão sombrios, o instituto se manteve firme na fiscalização da atuação congressual e contribuiu decisivamente com os principais debates na área criminal. Entre notas técnicas, manifestações, estudos, participação em audiências públicas e sustentações orais no Supremo Tribunal Federal, o instituto se consolidou como uma trincheira de resistência democrática e referência de sólido conhecimento científico.

Das conquistas mais destacadas nesses últimos dois anos, podemos ressaltar o protagonismo do instituto na campanha contra a aprovação do draconiano pacote “anticrime”, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a aprovação do juiz de garantias, cujo texto foi baseado em proposta do IBCCRIM e o amplo estudo técnico sobre os efeitos da pandemia da COVID-19 no sistema prisional, que fundamentou a proposição da ADPF 684.

Mas, encerrada a gestão 2019/2020, caberá à próxima diretoria, seja qual for sua composição, reconhecer o legado deixado e abrir novas veredas, partindo de um novo e melhor patamar. Assim como foi feito pela gestão de 2017/2018, cujas conquistas e inovações marcaram uma época, avançar é sempre preciso, mas só é possível coletivamente e com humildade. Nossos sucessos têm raízes tão profundas quanto nossas falhas.

Por fim, a repetição de um processo eleitoral democrático, aberto e transparente (ainda que com limitações estatutárias) demonstra cabalmente que o IBCCRIM encontrou sua maturidade institucional. Não há mais espaço para “donos”, heróis ou salvadores da pátria, muito menos para o exercício de autoridades absolutas e sem controles éticos. O instituto será sempre maior que a soma das suas partes.

O processo democrático nos força sempre a ouvir, a dialogar e a nos submetermos ao debate público. Só assim podemos verdadeiramente avançar. Seja qual for o resultado, o IBCCRIM já saiu vitorioso.


Notas de rodapé

 

Militarização e o campo estatal de administração de conflitos

Jacqueline Sinhoretto

Socióloga. Professora do Departamento de Sociologia da UFSCar.

Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos - GEVAC UFSCar.

Bolsista de produtividade do CNPq.

Associada ao IBCCRIM.

ORCID: 0000-0002-8718-779X

jacsin@ufscar.br

Resumo: O artigo analisa a militarização do campo estatal de administração de conflitos, abordando seus elementos estruturantes e as dinâmicas do seu fortalecimento. Identifica atores, concepções e doutrinas em luta nos processos constitutivos do campo.

Palavras-chave: Militarização, Segurança Pública, Policiamento Ostensivo, Polícia Militar, Filtragem Racial.

Abstract: The article analyzes militarization within the Estate field of conflict management, addressing its structuring elements and dynamics of its reinforcement. It identifies actors, conceptions, and doctrines in struggle in the constitutive processes of the field.

Keywords: Militarization, Public Security, Ostensive Policing, Military Police, Racial Filtering.


Data: 06/01/2021
Autora: Jacqueline Sinhoretto

Tenho trabalhado na construção do conceito de campo estatal de administração de conflitos (SINHORETTO, 2010; 2014) como uma forma de compreender que não existe apenas um modo pelo qual os conflitos são administrados por atores e instituições. Enfocando especificamente o campo do controle do crime (isto é, das formas pelas quais se pretende controlar o crime, sem pressupor que o crime esteja sob controle de alguém), tenho identificado que no Brasil ele tem sido disputado por quatro grandes estratégias: a militarizada-inquisitorial, a clássica, a da prevenção e das alternativas penais e ao penal.

Desta forma, o campo do controle do crime tem características estruturadas, que a sociologia histórica do campo ajuda a identificar. E tem dinâmicas, visíveis por meio das lutas por hegemonia e reconhecimento de saberes e práticas resistentes, impactos sobre a formação de subjetividades, produção de doutrinas e de mecanismos de ação. Os atores são diversos e estão em constante fricção, demarcação de identidades, produção de práticas inovadoras e reforço de práticas consolidadas.

De um ponto de vista típico-ideal, os atores que protagonizam a estratégia militarizada são os policiais militares. Nem tudo o que um policial militar concreto faz corresponde à estratégia militarizada de controle do crime. Se ele dá bom dia a um idoso sentado na varanda, ou se ensina o caminho a um pedestre, não está agindo tipicamente segundo as concepções militarizadas do controle do crime. Mas quando faz aquilo que é central no tipo de policiamento que domina o trabalho policial hoje – o policiamento ostensivo –, ele aborda pessoas por perfil criminológico, ele realiza prisões em flagrante, ele utiliza do abuso da força como parte do que pode acontecer nas interações com os tipos de público considerados suspeitos, ele utiliza com muita frequência o recurso à arma de fogo e atira. Um policial formado nos parâmetros de um modelo militarizado de controle do crime acredita que o “verdadeiro trabalho de polícia” é entrar em confronto, usar a arma, abordar suspeitos e realizar prisões em flagrante – a letalidade é um evento considerado uma decorrência natural do combate ao inimigo da sociedade. Do mesmo modo, ele considera que intervir em conflitos diversos não é o verdadeiro trabalho da polícia e reclama, se ressente, de que a população ocupa demais a polícia militar com questões não relevantes. Administrar conflitos, para ele, é neutralizar tipos suspeitos.

Na estratégia que chamo de clássica, o protagonismo está com os operadores jurídicos e o processo penal é a principal forma de administrar o controle do crime. Os juízes detêm o monopólio da punição e as formas de punir estão descritas nos diplomas normativos, com previsão de garantias dos acusados e de limites institucionais ao poder de punir. A forma de policiamento que corresponde a este tipo é a polícia investigativa, que constrói a incriminação partindo do evento para chegar ao acusado. A verdade jurídica se constrói por provas objetivas e reguladas por normas, que embasam a acusação formal. Administrar conflitos é criminalizar condutas e responsabilizar penalmente os indivíduos. A punição atende aos princípios da ressocialização e a prisão é um dispositivo de disciplina individualizante. Eu a chamo de clássica, porque a maioria dos diplomas normativos responde a esta estratégia de controle do crime e esta doutrina é a mais estabilizada nas faculdades de direito, nas revistas científicas, no discurso legitimado das principais posições do campo de controle do crime.

As demais estratégias são minoritárias no campo e se desenvolveram muito mais recentemente. A da prevenção passou a ser apoiada por políticas públicas de prevenção ao delito, e seu desenvolvimento ocorre com a entrada de novos atores e saberes no campo. As prefeituras, os gestores de projetos sociais, oficineiros, assistentes sociais, psicólogos, especialistas em tratamento do uso abusivo de álcool e drogas, promotoras legais populares, centro de atendimento a vítimas de violência, redes de proteção social. Até a polícia pode incorporar essa perspectiva quando se organiza para o policiamento comunitário. O foco da prevenção trabalha com saberes sobre as vítimas e os processos de vitimização e com integração de políticas públicas. Juventude vulnerável, mulheres em situação de violência e usuários de drogas em situação de rua foram os principais temas que emergiram no campo de controle do crime na esteira do desenvolvimento da estratégia da prevenção. Administrar conflitos, nesta visão, é agir sobre as causas da violência e as circunstâncias prováveis de sua emergência, antes que conflitos evoluam para o recurso à violência.

As alternativas penais ou alternativas ao penal também estabeleceram uma disputa por espaço com a emergência de novos saberes e disposições sobre os conflitos violentos e o modo de administrá-los. A informalização judicial, a justiça restaurativa, a mediação de conflitos trouxeram à cena outros estilos de desempenho profissional de operadores jurídicos, que incorporaram saberes de sociólogos e psicólogos. Sua emergência deslocou as funções jurisdicionais, introduziu novos atores, estabeleceu novos conhecimentos, criou uma profusão de cursos, capacitações, formações, vivências. Seu peso também é minoritário, mas é inegável que a Lei 9.099/95 implicou numa reforma importante do acesso à justiça, um tema que trabalhei em estudos anteriores. Administrar conflitos é intervir nas relações conflitivas de modo que caminhem para uma composição autônoma entre os indivíduos, na qualidade de cidadãos.

Deste modo, a militarização do campo estatal de administração de conflitos não é o único movimento perceptível ao analisar como funciona o controle do crime no Brasil atual. Parece nítido que a democratização institucional do período da Nova República trouxe disputas, que impulsionaram tanto as limitações do poder de punir, a prevenção e as alternativas. E é igualmente nítido que a disputa por democratização está sofrendo um refluxo, e a militarização hoje coloniza – ou tenta colonizar – as demais estratégias no campo. No plano do Governo Federal, o fomento à prevenção e às alternativas foi praticamente erradicado e o discurso do “bandido bom é bandido morto” cresce desde 2012 em alta velocidade, atraindo para si os recursos financeiros, humanos e simbólicos disponíveis no campo. As formas de resistência se enfraqueceram. Portanto, este modelo teórico me faz compreender que, para fazer refluir a militarização, é útil investir em qualquer uma das demais três formas de administrar o controle do crime.

A sociologia histórica do campo

A última reforma institucional importante na configuração do campo ocorreu entre 1969 e 1970, com a criação da Polícia Militar (PM), centralizando as instituições policiais em dois corpos, que fagocitaram os demais corpos policiais, como as guardas. O movimento foi de centralização e controle dos riscos de que governadores pudessem utilizar as PM na oposição ao endurecimento do regime ocorrido após o AI-5. A sombra era o movimento paulista de 1932. Assim, de um lado, a PM herdou a história institucional das forças públicas “combatentes” em conflitos políticos armados, lutando sob o comando das elites estaduais. De outro, a influência do Exército, mais do que uma intervenção direta, produziu um arcabouço doutrinário do inimigo interno como dissidente ideológico. Heloisa Fernandes (1974; 1989) deu uma importante contribuição para a compreensão do advento da PM em termos político-institucionais, assim como registrou os principais traços do momento político em que a principal forma de policiar da PM – ao menos em São Paulo – foi introduzida. Ao descrever a criação das rondas ostensivas, a autora permite compreender a passagem do foco no inimigo político para o inimigo desnormalizado das periferias urbanas. A militarização da segurança nacional, transferida para as PM, foi reconfigurada naquele momento.

Com o fim da ditadura, os estudos passaram a desenhar um quadro muito nítido: a criação da PM havia deixado um legado com elementos bem estabelecidos. Pinheiro et al (1991) também registram, que a criação das rondas ostensivas produziu o fenômeno da letalidade policial centrada nos territórios periféricos, cuja incidência se dava sobre vítimas jovens e negras acusadas de delitos patrimoniais. Enquanto isso, os homicídios e assassinatos em série não estavam no foco repressivo deste modelo de policiamento. O mecanismo dos autos de resistência já era identificado naquele momento, bem como eram apontadas as fragilidades institucionais de controle da atividade policial. O Ministério Público e o Poder Judiciário haviam sancionado a introdução do policiamento ostensivo, marcado por discriminação territorial, filtragem racial e etária, opondo defesa do patrimônio à preservação da vida, sob argumentos de defesa da ordem social.

Durante a democratização, muitas pressões existiram para as mudanças. As pressões por reformas na polícia e na segurança já foram abordadas por diversos autores, sendo o balanço de que houve uma diversificação social dos quadros de oficiais, introdução do policiamento comunitário, introdução do gerencialismo como mecanismo de controle da atividade policial e redução de crimes, tecnificação crescente do planejamento e monitoramento do policiamento, investimento crescente de recursos, criação de protocolos de ação e investimento na formação policial. Muita água passou sob a ponte das PM, escândalos de violência policial colocaram em xeque a permanência da instituição, permitindo a ascensão de lideranças divergentes. Contudo, o quadro de como funciona o policiamento ostensivo e quais são os resultados que produz ainda identifica, em 2020, os mesmos elementos estruturantes constatados em 1991.

As inovações no campo estatal de administração de conflitos tiveram impacto muito maior no fortalecimento das outras estratégias. Novas legislações reforçaram a dimensão dos direitos, criminalizaram condutas na área ambiental, na violência contra a mulher, na defesa do consumidor, modificaram o tratamento da delinquência juvenil. A Lei de Execuções Penais definiu os limites e funções da pena. As estratégias da prevenção e as alternativas penais e ao penal disputaram o campo com saberes, doutrinas, legislações, concepções educacionais, modelos de policiamento e propostas de reforma penitenciária. Foram criadas guardas municipais, apesar de que a maioria delas almeja mimetizar o trabalho da PM. Esses elementos todos apontaram, de maneira fragmentária, tanto na direção de reforço do punitivismo quanto na direção de uma concepção de segurança cidadã e justiça penal garantista. O balanço da Nova República tem sido feito pelos estudos de política criminal e de segurança, e eles apontam para a coexistência de lógicas e princípios, muito mais do que para uma homogeneidade de comando e direção. Houve disputa de cosmologias sobre como lidar com o controle do crime e da violência (até mesmo esses termos estiveram em disputa).

Mas é fato que a estratégia militarizada, mesmo encontrando a resistência de outras cosmologias, não foi desmobilizada. Analisamos especialmente como, no caso de São Paulo, a partir de 2012, o modelo militarizado assumiu o protagonismo dos movimentos no campo do controle do crime (SILVESTRE, 2018). Políticas públicas de prevenção praticamente desapareceram e a elite judiciária deixou de investir em ideias de inovação no acesso à justiça. A onda reformista passou. No seu rastro, se fortaleceram os discursos que associaram o inimigo interno ao PCC. Para a opinião pública e para as concepções majoritárias dos operadores do controle do crime, todo progresso de militarização passou a ser justificado pela necessidade de “combater” o PCC.

Essa dinâmica local foi fortalecida pelas transformações significativas das políticas públicas de segurança federais. No lugar dos planos nacionais de segurança pública, que traziam os princípios de integração e multisetorialidade das políticas públicas, planos pontuais focados no reforço da atividade policial militar, Força Nacional, ações de ocupação urbana promovidas pelo Exército Brasileiro foram os principais temas de 2016 em diante. O bolsonarismo cresceu como fenômeno eleitoral e cultural neste momento, deixando evidente as conexões da militarização no campo de controle do crime com o sistema eleitoral.

Conexões internacionais do policiamento ostensivo

Enquanto retratei traços locais da emergência e consolidação do policiamento ostensivo, apontei para as permanências da cosmologia de policiar que são descritas pelos interlocutores de minha pesquisa como técnicas “artesanais”. Essas técnicas artesanais são descritas como fortemente amparadas na interação entre o corpo do policial e os corpos identificados como “suspeitos”. A morfologia da suspeição vem sendo descrita por cientistas sociais que estudam a abordagem policial, e temos constatado o peso da corporalidade e das características somáticas para a formação da suspeição, ao lado de circunstâncias ambientais (horário, territórios, eventos associados).

A maior parte dos policiais nega que a cor da pele seja um fator relevante para a suspeição. Mas os dados estatísticos informam sem sombra de dúvida em que tipo de característica somática ela recai: uma corporalidade jovem, masculina e negra. Há um jeito de andar, de olhar, de desviar o olhar, um estilo de vestir, de falar, de andar em grupo. Tatuagens adquirem uma relevância ímpar. Assim como o uso de assessórios, como o boné e o capuz. Em contraposição ao boné e o capuz de moletom estão o paletó, o blazer, a parka (signo máximo do “cidadão de bem”, que serve no discurso dos policiais para substituir a nomeação destas pessoas como sendo brancas). O “inimigo da sociedade” tem uma estética e uma racialidade descritas nos resultados qualitativos e quantitativos do policiamento baseado em rondas e abordagens.

Ocorre que conhecer os elementos interacionais e locais das formas de policiamento, que atualizam a relação da polícia com a população negra desde a abolição do trabalho escravo, não exime da exigência de reconhecer que essa tecnologia de policiamento, com seus elementos locais, é praticada globalmente.

O policiamento ostensivo baseado em abordagens e filtragem de tipos racializados foi desenvolvido e exportado como doutrinas pelas grandes polícias do mundo. Em São Paulo, a importação de tecnologia policial vem sobretudo das polícias estadunidenses. A nova tecnologia policial de escala global conecta as técnicas “artesanais” de filtragem racial e suspeição, com modelos sofisticados de tecnologia da informação (mapas, videovigilância, desenho de redes, monitoramento eletrônico, inteligência artificial de decodificação de rostos), com utilização cada vez mais frequente de objetos como celulares, tablets e armamento cada vez mais letal. A abordagem policial era descrita como artesanal por utilizar os recursos corporais e subjetivos do policial (sua capacidade de apreender com o olhar as características do suspeito e distinguir situações). Hoje ela é descrita como “moderna”, “profissional”, “tecnológica”, por utilizar cada vez mais os recursos eletrônicos e a tecnologia da informação, sem que, contudo, tenham sido reformulados seus pressupostos epistemoló- gicos e sua cosmologia. A suspeição e a abordagem vão associando cada vez mais à superfície corporal, o olhar para “dentro” do celular do suspeito, procurando suas conexões e confissões delitivas.

Baseado em filtragem racial e de tipos humanos, o policiamento ostensivo do presente se baseia em tecnologias de predição da conduta delitiva. O policiamento preditivo rastreia e-mails, compras, trajetos, redes, opiniões expressas, trânsitos nas redes sociais, em busca do próximo crime ou dos criminosos em potencial. Ora, esse princípio sempre foi praticado pelos policiais da ronda, que procuram no corpo a predição da conduta. No momento atual, o policiamento preditivo, além de produzir desigualdade racial, violações nas interações cotidianas da polícia com seus públicosalvo, e encarceramento massivo por prisões em flagrante, ele também movimenta somas vultuosas de dinheiro, que escoam do orçamento de segurança pública de estados e municípios para as contas das empresas globais de TI.

O seu foco é, como sempre foi o foco do policiamento “artesanal”, o delito patrimonial de pequena monta, o tráfico ilegal varejista de entorpecentes. A violência de gênero e a violência racial não estão, como nunca estiveram, no foco do policiamento preditivo altamente tecnológico.

Um modelo militarizado inquisitorial

A partir da apreensão do caráter preditivo do policiamento ostensivo – o policiamento tipicamente militarizado –, é possível compreender como ele é afinado com as características inquisitoriais do sistema penal no Brasil. Deste modo, é possível perceber como essas características indicam a adequação de um modo de funcionamento do sistema penal à estratégia militarizada de controle do crime.

Esse modo de funcionamento sanciona a seleção de sua clientela pelas abordagens policiais e prisões em flagrante. As pesquisas sobre audiências de custódia têm mostrado, entre outras coisas, que o perfil dos presos preventivos confirma a seleção de suspeitos feita pelo policiamento ostensivo, ao invés de questioná-la.

A incriminação de tipos, identificados pelas técnicas de filtragem racial, tem sua expressão no sistema penal, quando a produção de provas objetivas é substituída pelo testemunho dos policiais em audiências. Ou pela simples desconsideração de versões alternativas de réus em favor da narrativa policial construída nos autos. No lugar da individualização de condutas, a incriminação preventiva de tipos.

Também em termos de execução penal e gestão penitenciária, a estratégia militarizada-inquisitorial promove a dimensão de segurança acima de qualquer ação de garantia de direito ou tratamento para ressocialização, como têm mostrado as pesquisas sobre as prisões e a trajetória dos egressos.

Por fim, a violência policial não se constitui em fato criminalizável. Diversos elementos contribuem para que a ocorrência de mortes, tortura e maus tratos em ações policiais não resultem em incriminação e responsabilização, nem individual, nem corporativa. Também por esta via, o sistema judicial sanciona a militarização da segurança, por considerar que seus produtos não constituam delitos.

Procurei registrar aqui, de forma suscinta, a análise do dispositivo de militarização no campo estatal de administração de conflitos. Procurei abordar seus traços estruturantes, voltando o olhar para o passado, sem perder de vista a dinâmica do seu fortalecimento. Tentei identificar atores, concepções e doutrinas que contribuíram para seu reforço. E, com isso, procuro afirmar que, na medida em que esses processos ocorrem em um campo de lutas e resistências, é possível construir uma agenda de desmilitarização a partir da aliança de atores intencionalmente comprometidos com este objetivo.


Notas de rodapé

FERNANDES, Heloisa Rodrigues. Política e segurança: força pública do estado de São Paulo, fundamentos histórico-sociais. Editora Alfa-Omega, 1974.

FERNANDES, Heloisa Rodrigues. Rondas à cidade: uma coreografia do poder. Tempo soc., São Paulo, v. 1, n. 2, p. 121-134, Dec.  1989.

PINHEIRO, Paulo Sérgio; IZUMINO, Eduardo A; FERNANDES, Maria Cristina Jakimiak. Violência fatal: conflitos policiais em São Paulo (81-89). Revista Usp, n. 9, p. 95–112, 1991.

SILVESTRE, Giane. Controle do crime e seus operadores: política e segurança pública em São Paulo. São Paulo: Annablume, 2018.

SINHORETTO, Jacqueline. Campo estatal de administração de conflitos: múltiplas intensidades da justiça. Anuário Antropológico, n. II, p. 109–123, 2010.

SINHORETTO, Jacqueline. Controle social estatal e organização do crime em São Paulo. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 7, n. 1, p. 167- 196, 2014a.

Apontamentos para uma genealogia da militarização de matriz racista no estado do Rio de Janeiro

Bruno Shimizu

Doutor e Mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP.

Defensor Público do Estado de São Paulo.

ORCID: 0000-0001-6587-2158

shimex@hotmail.com

Ana Carolina Carneiro Barde Bezerra

Mestranda em Direito Penal pela PUC/SP.

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro.

ORCID: 0000-0001-5485-5192

anacarolcbb@hotmail.com

Resumo: O presente ensaio pretende retraçar apontamentos que permitam uma reconstrução genealógica da militarização da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Para tanto, a partir do conceito de necropolítica de Achille Mbembe, analisam-se as diversas políticas de ocupação militar no Estado, com destaque para as UPP’s e para a intervenção federal de 2018, concluindo com a detecção da essência racista da militarização brasileira, bem como com a constatação de que os recentes fenômenos do milicianismo e do bolsonarismo são tributários dessa forma de gestão da segurança pública.

Palavras-chave: Militarização, Intervenção Militar, Rio de Janeiro, Milícias, Cultura do Medo.

Abstract: This essay retraces evidences that allow a genealogical reconstruction of the militarization of public security in the State of Rio de Janeiro. Therefore, based on the concept of Achille Mbembe's necropolitics, the various policies of military occupation in the State are analyzed, with emphasis on the UPP's and the federal intervention of 2018, concluding with the detection of the racist essence of Brazilian militarization, as well as the realization that the recent phenomenas of militias and ‘bolsonarism’ are dependent on this form of public security management.

Keywords: Militarization, Military Intervention, Rio de Janeiro, Militias, Culture of Fear.


Data: 06/01/2021
Autor: Bruno Shimizu e Ana Carolina Carneiro Barde Bezerra

Ao pesquisar a cultura do medo na cidade do Rio de Janeiro, Batista identificou a existência de uma “conjuntura de pânico na cidade durante o ano de 1994”. Ela relaciona o avanço do neoliberalismo no Brasil ao fato de que, a partir desse período, “o Rio de Janeiro viveu uma onda de medo gerada pela fabricação de uma ‘crise de segurança pública"1 . A autora lembra que a imagem televisionada de arrastões passou a integrar a iconografia da cultura do medo a partir desse discurso de descontrole na segurança pública, que tem o Rio de Janeiro como seu principal palco: “Em 1993, um arrastão, uma coreografia realizada por jovens pretos e pobres no caminho para os desfrutes da Zona Sul é levada ao ar, para todo o Brasil, como indicador da implantação do caos, do governo da desordem no coração do país.”2.

Quase três décadas depois, a cultura do medo parece ter criado raízes e instaurado uma política militarizada específica de ocupação de corpos e territórios marginais. As imagens dos arrastões e variações mais modernas desse elemento da iconografia do medo, como “fluxos” e “pancadões”, continuam assustando o “cidadão de bem” e insuflando a demanda por autoritarismo. Em 2015, noticiou-se quando uma operação da Polícia Militar abordou e retirou dos ônibus vindos da Zona Norte em direção à Zona Sul crianças e adolescentes pretos e pobres que pretendiam alcançar as praias fincadas nos bairros de elite, episódio que deu origem à canção Caravana, de Chico Buarque: “Quando pinta em Copacabana/ A caravana do Arará/ Do Caxangá, da Chatuba/ A caravana do Irajá/ O comboio da Penha/ Não há barreira que retenha/ (....) Tem que bater, tem que matar/ Engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.” Assistimos, atualmente, à consolidação de um modelo de política de segurança centrado na exclusão, na violação e na morte de parcelas marginalizadas da população, que vem em escalada desde o período identificado por Batista até os dias de hoje, em que estratégias de ocupação militar constituem a tônica da atuação estatal (e, mais recentemente, paraestatal) no Rio de Janeiro.

Em fevereiro de 2018, por meio do Decreto 9.288, Michel Temer fez surgir a permissão formalizada de uma segurança pública de confronto bélico, ao instituir a Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro, coroando como se fosse exitosa, apesar de seus resultados, a política de ocupação militar que já vinha sendo gestada há uma década, com o advento das UPPs (Unidade de Polícias Pacificadoras), impulsionadas pelos megaeventos que ocorreriam na cidade, notadamente a Copa do Mundo e as Olímpiadas.

As UPP’s, implantadas em 2008, eram calcadas na ideia de ocupação fixa da Polícia Militar nas comunidades e traziam como objetivo declarado uma conciliação com os moradores. No entanto, conforme Marielle Franco já denunciava em sua dissertação acadêmica, a ocupação foi marcada pelo incremento da letalidade e das abordagens arbitrárias, ao passo que os serviços públicos prometidos não se implementaram ou foram rapidamente sucateados: “Uma vez que o processo de “pacificação” não alcançou o conjunto da população, pois os grandes investimentos existentes são priorizados para a cidade dos grandes eventos e não para um legado permanente do conjunto dos cidadãos, para os moradores das favelas sobrou a polícia. E isso feito em um clima de vitória, como se houvesse duas “nações” disputando um território. Ao final de cada ocupação, são colocadas as bandeiras do Rio de Janeiro e da polícia, como se o governo e a polícia não fossem também dos moradores da favela” 3.

Com efeito, a estratégia de conquista militar foi reatualizada uma década depois e com menor pudor, por meio da intervenção federal e das subsequentes operações de “garantia da lei e da ordem”. Sob a justificativa de “por termo ao grave comprometimento da ordem pública” (art. 34, III, da CRFB), as Forças Armadas passaram a ser responsáveis por toda a estrutura de Estado destinada à segurança pública, afastando-se a ingerência do Governo local sobre o tema.

De acordo com o Observatório da Intervenção, o número de tiroteios e disparos aumentou, no Estado sob intervenção, em 56% em relação ao ano anterior.4 O relatório também apresentou dados sobre o ranking de operações policiais por bairros nos três meses subsequentes ao início da intervenção, sendo que os únicos bairros listados são conhecidos como favelas.5 Além disso, segundo o Instituto de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio de Janeiro, houve aumento de 36% de mortes por ação de agentes de segurança do Estado.6 Os dados dão conta de uma política de guerra instalada, seletivamente voltada contra parcelas específicas da população e tendo como campo de batalha as favelas, origem dos tiroteios e balas perdidas que circunstancialmente chegam ao Leblon e ganham atenção midiática.

Note-se, contudo, que a militarização, conforme observado no exemplo carioca, não se resume à ocupação ostensiva do território pelas forças militares. Trata-se de um fenômeno ideológico amplo, que também coloniza as instituições civis, que lhe dão o respaldo discursivo e a legitimidade jurídica. Isto ficou claro após a morte de um policial em operação das forças de segurança, o que impulsionou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a conceder autorização de busca e apreensão domiciliar generalizada na favela do Jacarezinho e no Conjunto Habitacional Morar Carioca. A medida foi considerada nula por via de Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública, pela 6ª Turma do STJ 7.

A intervenção federal formalmente durou até o fim de dezembro de 2018. Mesmo depois de cessada a vigência do decreto, as Forças Armadas permaneceram realizando, em desvio de função, a ocupação militar no Estado, o que se pode evidenciar pelo episódio amplamente divulgado, quando 12 membros do Exército fuzilaram o músico Edvaldo Rosa, que se locomovia com a família a um chá de bebê, e o coletor de material reciclável Luciano Macedo, em Guadalupe.

No que toca às forças policiais militarizadas estaduais, o padrão de atuação e produção de mortes não arrefeceu após a caducidade do decreto de intervenção. Em 2020, mesmo após o advento da pandemia da COVID-19, cresceu a letalidade policial nas comunidades cariocas. Isso motivou a propositura da ADPF 635, pedindo ao STF a suspensão de operações policiais no Estado do Rio de Janeiro. A liminar foi apenas parcial e timidamente deferida pelo Min. Edson Facchin, condicionando as operações em comunidades à justificação por escrito e à análise por órgão externo em caso de morte.

Toda essa conjuntura pode ser compreendida sob o prisma da noção de necropolítica, preconizada por Mbembe. Ele busca ir além do conceito foucaultiano de biopolítica, racializando esse conceito a partir da percepção de que, pela perspectiva de quem é sujeito de extermínio – a vida nua, o corpo matável ou o homo sacer a que se refere Agamben 8 – é a morte, e não a vida, que funciona como diapasão da forma de incidência da economia do poder sobre as populações. O autor parte das reflexões de Foucault e Agamben, ao compreender que o poder soberano depende da possibilidade de decisão sobre vida ou morte do sujeito descartável e desinvestido de qualquer proteção da norma, entendido como vida em aspecto puramente biológico. Esse corpo matável, assim, sobre o qual se exerce o poder soberano, inclui-se no âmbito político por sua própria exclusão, sendo um elemento ambivalente por excelência e o lócus onde direito e violência, guerra e política se tornam indistinguíveis. É sobre os corpos negros e marginalizados que se inscreve permanentemente o estado de exceção 9.

Se, do ponto de vista de uma historiografia branca, o terror e promoção institucional da morte tiveram uma expressão inédita no mundo contemporâneo com o nazismo, Mbembe argumenta, a partir do pensamento negro, que o espaço de sonegação do direito ao próprio corpo e à vida, com a produção da morte em escala massiva, encontra-se presente em período anterior, nas colônias, plantations e no apartheid, por meio da tripla perda: de um lar, do direito sobre seus corpos e de um estatuto político. Não há como não se notar, ao observar-se o avanço da militarização e da necropolítica no país, a centralidade da escravização como um fio condutor na da exceção. Nesse sentido, a pesquisa de Flauzina já demonstrara que o genocídio da população negra é um projeto de Estado advindo do processo de abolição da escravatura, momento em que as instâncias penais de controle passaram a assumir o papel de contenção das demandas do contingente negro 10.

A construção de tecnologias necropolíticas sobre os corpos negros que se seguiu à abolição é conhecida pelo direcionamento de novas criminalizações, como a tipificação da capoeira e da vadiagem, pelo Código Penal de 1890, e a perseguição sistemática às religiões afrobrasileiras pela criminalização do curandeirismo 11. Para além disso, no entanto, a constituição de uma ideologia militar de ocupação territorial no próprio ambiente doméstico é um dos frutos dessa vetoração genocida tributária do escravagismo.

O primeiro modelo de uma polícia militar brasileira data de 1809, com a instituição da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia, cerca de um ano após a chegada da família real. Criava-se, então, um exótico aparato militar, que atuava no interior da cidade, mas com táticas e modos de operação de uma corporação treinada para combater o inimigo externo em guerra. Não parece haver dúvida sobre quem era esse inimigo externo que habitava dentro dos muros da pólis. A cidade do Rio de Janeiro, no início de séc. XIX, tinha uma população de escravos e pretos alforriados, que representava quase metade da população total. Além disso, a resistência quilombola precisava ser debelada como proteção da economia escravagista. Nesse sentido, a criação de um aparato policial militarizado no Brasil tinha como um de seus significados a assunção estatal da função de capitania do mato12.

Da repressão violenta à resistência escrava até a intervenção militar no Rio de Janeiro, verifica-se que, diante de uma abordagem genealógica, a militarização brasileira da segurança pública tem como alvo prioritário a opressão e a sufocação da população preta, por meio da criação e da expansão de tecnologias que se operam sobre territórios e corpos marginalizados, declarando sua ilegalidade e seu caráter matável, em uma justaposição de ações institucionais violentas e da construção de formas jurídicas racistas, bem como por meio da divulgação midiática de uma iconografia que superestima o medo do crime, além de alimentar o estigma racial do estereótipo do criminoso. A cultura militarizada e sua face necropolítica demonstram sua extensão, ainda, no culto ao militarismo que se denota nas campanhas eleitorais.

Conforme aponta Kruijt, a profissão militar é com frequência a porta de entrada para carreiras políticas por toda a América Latina 13. O autor identifica, na região, uma ideologia que identifica nos militares “forças estabilizadoras” e “sem interesse”, o que sustentou o fato de que a chefia do Poder Executivo foi ocupada por militares pela maior parte da história republicana de diversos países da região, dentre os quais o Brasil. Destacam-se, nesse contexto, as ditaduras civismilitares que se abateram sobre a América Latina ao longo do século XX, ressaltando-se que o Brasil, que passou mais de duas décadas sob o regime autoritário, não se desincumbiu de realizar uma Justiça de Transição satisfatória 14. Atualmente, dados publicados pelo Globo revelaram que, em setembro de 2020, mais de 2.200 policiais já haviam se afastado das funções por todo o Brasil para concorrer às eleições municipais, sendo que o número ainda deveria superar aquele de 2016, quando 1.025 membros das policiais civis e 3.195 policiais militares foram candidatos 15.

O Estado do Rio, já acostumado à militarização mais ostensiva pelas políticas de segurança historicamente implantadas em seu território, não por acaso foi o berço do bolsonarismo e das milícias urbanas paramilitares, fenômenos interdependentes que apontam para uma complexificação do fenômeno da militarização.

Conforme remonta Manso, a organização das milícias, na forma que conhecemos hoje, teve origem no Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Tais agrupamentos, compostos majoritariamente por membros de forças de segurança, ex-policiais e seguranças privados, cresceram a partir do controle da economia informal e da gestão dos espaços de habitação (geridos pela associação dos moradores da localidade, diante ausência do Estado)16. Ideologicamente, o discurso das milícias apela à promessa de que os moradores, sob seu jugo, não sofreriam dos mesmos males das favelas das Zonas Sul e Norte, dominadas pelo tráfico – discurso que atraiu a moralidade tradicional e passou a ser politicamente capitalizado por lideranças políticas e candidaturas locais e, posteriormente, por todo o Estado e pelo país.

Atualmente, o milicianismo apresenta uma infiltração inédita nas altas esferas da política nacional 17, não sendo poucas as vezes que as milícias foram exaltadas por Jair Bolsonaro, durante sua carreira prévia à chefia do Poder Executivo, além de uma inegável proximidade entre os gabinetes da família Bolsonaro e personagens ligados às milícias 18.

Em levantamento realizado por diversas entidades de pesquisa, constatou-se que as milícias já controlam 25,5% dos bairros do Rio de Janeiro, em um total de 57,5% do território da cidade 19. As milícias representam uma forma de privatização e perenização da ocupação territorial militar no Rio, sustentando-se a partir da exploração de mercados ilegais e de práticas extorsivas de moradores, sob a escusa de proteção da população contra o crime, aqui entendido como o estereótipo do jovem preto e pobre segurando um fuzil.

O fenômeno das milícias e suas relações com o Governo ainda devem ser mais bem investigados e pesquisados, mas já parece claro que, a partir de uma leitura genealógica, tanto o bolsonarismo quanto o milicianismo, como formas de capilarização e, simultaneamente, de tomada do poder político institucional, produzindo uma otimização significativa de um estado de dominação, são faces da mesma moeda do militarismo racializado brasileiro 20, sendo, portanto, heranças das sucessivas ocupações militares de territórios e corpos que marcam a história do Estado do Rio de Janeiro.
 


Notas de rodapé

(1) BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2. ed. Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 19.

(2) Ibidem, p. 19.

(3) FRANCO, Marielle. UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. 2014. Dissertação (Mestrado em Administração) – Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014, p. 124-125.

(4) Observatório da Intervenção. Dados disponíveis em < http://observatoriodaintervencao.com.br/wp-content/uploads/2018/12/Infografico09_observatorio_ARTEFINAL_isp.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2020.

(5) Idem.

(6) Instituto de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Dados disponíveis em: <https://www.ispvisualizacao.rj.gov.br:4434/index.html>. Acesso em: 06 de nov. 2020.

(7) STJ, HC n. 435.934/RJ.

(8) AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. port. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

(9) MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Trad. port. de Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018, p. 17.

(10) FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 139.

(11) VILA NOVA. Aldeildo. Das senzalas às prisões contemporâneas: a escravização e o encarceramento em massa da população negra no Brasil como estratégias de contenção e controle. 2019. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, Universidade Federal de São Paulo, Santos, 2019, p. 28-29.

(12) Nesse sentido, Reis aponta a existência de uma resistência de parte dos senhores de escravos pelo Brasil à Guerra do Paraguai, sob o argumento de que o envio de Guardas Nacionais para a guerra externa enfraquecia o combate aos quilombos: “Guerras externas também podiam enfraquecer o controle escravo. Os quilombos do Mato Grosso floresceram à margem da Guerra do Paraguai, engrossando suas fileiras não apenas com escravos fugidos, mas com desertores do exército e homens livres pobres em fuga do recrutamento. Depois da guerra as autoridades tiveram tempo para finalmente deslanchar a repressão contra os quilombolas. Num outro extremo do Brasil, o Maranhão, a guerra também repercutiu, levando desertores a engrossar as fileiras dos quilombolas, que teriam experimentado “incremento excessivo, não só de escravos, como de criminosos e desertores”, queixava a câmara de Turiaçu em julho de 1867. Ao mesmo tempo, autoridades, comerciantes e lavradores da região alegavam que o recrutamento de guardas nacionais para o Paraguai diminuía a capacidade de combate aos quilombos, além de colocar os senhores à mercê de seus escravos” (REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 28, p. 14-39, dez./fev. 1995/1996, p. 29).

(13) KRUIJT, Dirk. Las fuerzas armadas en América Latina, antes y hoy. Ciência Política, Bogotá, v. 7, n. 14, p. 94-112, jul./dec. 2012.

(14) A recusa do Brasil em realizar uma verdadeira Justiça de Transição foi denunciada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio do Relatório sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos, em 2009. (CASSERES, Lívia Miranda Muller Drumond; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Necropolítica no território de favelas do Rio de Janeiro. In: I CONGRESSO  DE  PESQUISAS  EM  CIÊNCIAS  CRIMINAIS, 2017, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: IBCCRIM, 2017,  p. 1475).

(15) CASTRO, Juliana; CRAVO, Alice. Mais de 2 mil policiais e militares já se afastaram para disputar cargos de prefeito e vereador. O Globo, Brasil, 6 set. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/eleicoes-2020-mais-de-2-mil-policiais-militares-ja-se-afastaram-para-se-candidatar-24626540>. Acesso em: 06 nov. 2020.

(16) MANSO, Bruno Paes. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020, p. 84.

(17) Ibidem, p. 80-81.

(18) FRANCO, Bernardo Melo. Em discursos, Bolsonaro já exaltou milícias e grupos de extermínio. 14 de outubro de 2018. Disponível em: <https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/em-discursos-bolsonaro-ja-exaltou-milicias-e-grupos-de-exterminio.html>. Acesso em: 9 novmebro de 2020.

(19) GENI, Disque Denúncia RJ, NEV, Pista News e Fogo Cruzado. Apresentação ao mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro. Disponível em <https://atualprodutora.com/wp-content/uploads/2020/10/apresentacao-16.10.2020.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2020.

(20) Neste sentido, cf. Manso: “Bolsonaro defendia uma violência purificadora contra um sistema bandido. Daí seu envolvimento com o capitão Adriano da Nóbrega, um herói na guerra contra os bandidos que aterrorizavam o Rio de Janeiro. Os novos inimigos urbanos, em vez de subversivos e comunistas, passaram a ser os negros, os pobres, os jovens, os moradores de favelas e os suspeitos de vender drogas. Nessa guerra, a morte do oponente não era problema, mas caminho para a vitória. A guerra continuava. Os inimigos deveriam ser eliminados pelos verdadeiros patriotas, dispostos a matar em defesa do Brasil, contra o comunismo e contra os bandidos comuns”. (MANSO, Bruno Paes. op. cit., p. 270-271)




O princípio da insignificância e a reiteração de conduta


Gustavo de Carvalho Guadanhin

Mestre em Direito Penal pela USP. Procurador da República

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4648874678328528

ORCID: 0000-0003-3292-2993

gustavoguadanhin@mpf.mp.br


Resumo: Diante da disposição do novel art. 28-A, § 2º, II, do Código de Processo Penal, a interação entre os institutos da reiteração de conduta e o princípio da insignificância, já presente no cotidiano forense, mostra-se fundamental para a exegese dessa norma. Nesse prisma, a reiteração de conduta do investigado, conceito mais amplo do que a reincidência e os maus antecedentes, implica na impossibilidade de celebração do acordo de não persecução penal, exceto se os registros encontrados apontarem para fatos penalmente insignificantes. Dessa forma, deve-se privilegiar o sentido técnico da expressão, com o intuito de possibilitar a celebração do acordo àquele que, embora ostente indicativos de reiteração de conduta nos últimos cinco anos, nessas ocorrências tenha havido a aplicação da insignificância e não esteja o evento inserido em um contexto fático único, em face da mesma vítima, com resultado final significativo.

Palavras-chave: Princípio da insignificância – Reiteração de conduta – Acordo de não persecução penal.

Abstract: Given the provision of novel art. 28-A, § 2, II, of the Criminal Procedure Code, the interaction between the institutes of reiteration of conduct and the principle of insignificance, already present in forensic daily life, is fundamental for the exegesis of this rule. In this light, the reiteration of the investigated conduct, a broader concept than recidivism and bad antecedents, implies the impossibility of concluding the non prosecution agreement, except if the records found point to criminally insignificant facts. Thus, the technical sense of expression should be privileged, in order to enable the conclusion of the agreement to those who, although showing signs of reiteration of conduct in the last five years, in these occurrences there has been the application of insignificance and the event is not present. inserted in a single factual context, in the face of the same victim, with significant final result.

Keywords: Principle of insignificance – Reiteration of the conduct – Non prosecution agreement



Data: 06/01/2021
Autor: Gustavo de Carvalho Guadanhin

1. O art. 28-A, § 2º, II, in fine, do Código de Processo Penal, inserido pela Lei 13.964/2019, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro positivo a primeira menção ao princípio da insignificância ao dizer incabível o acordo de não persecução penal “se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas (destacamos), mantendo-se, assim, a redação praticamente original do que foi proposto pelo Projeto de Lei Anticrime.

A despeito da referência, fê-lo em um inciso que trata de reincidência ou de conduta reiterada do investigado que, além de inovar, com isso, das condições impostas pelo art. 18, § 2º, da Resolução 181/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público, reacende uma antiga discussão sobre se esses aspectos subjetivos deveriam ou não ser considerados na análise da aplicação do princípio.

É, então, essa relação entre o princípio da insignificância e a conduta reiterada do investigado nos acordos de não persecução penal que será perscrutada. 

2. No cotidiano forense pátrio é tão corriqueira essa conexão, que é possível encontrar classificações do princípio da insignificância que geram reflexos na consideração da reiteração de conduta do agente. É o caso de Pascolati Júnior,(1) que diferencia: (i) a insignificância absoluta, cujos fatos já “nascem desprezíveis” e, por isso, excluiriam a tipicidade, não havendo interferência da reiteração da conduta para a sua configuração; da (ii) insignificância relativa, a qual denotaria a desnecessidade concreta de aplicação da penalidade, razão pela qual excluiria a culpabilidade, sendo o fato de o comportamento antissocial do agente, que faria da prática de pequenos delitos o seu meio de vida, um impeditivo para o uso do princípio.

Note-se que a demonstração do que seja “fazer da prática de pequenos delitos o seu meio de vida” está distante de um consenso. Desse modo, a par da reincidência e dos maus antecedentes, a novel redação estende-a também à conduta criminal cujos elementos probatórios indiquem que seja: (i) habitual, isto é, parte de uma pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma característica do agente e não da infração penal (diferenciando-se, portanto, do crime habitual, em que ela é elementar do tipo); (ii) reiterada, ou seja, aquela que é repetida, renovada; ou (iii) profissional, que realça o fato de a pessoa fazer da prática de certa atividade um ofício ou uma profissão.(2) Apesar de o legislador ter mencionado três diferentes figuras, todas elas, como visto, podem ser englobadas na definição de conduta criminal reiterada.

Ora, é de se ver que uma das intenções do recém-aprovado texto é o de incorporar a orientação jurisprudencial(3) de afastar a aplicação do princípio da insignificância em situações em que ações penais em curso, inquéritos policiais ou mesmo procedimentos administrativos fiscais (importantes nos delitos de descaminho, por exemplo) estariam aptos a indicar a reiteração de conduta do investigado, isto é, possibilitou-se uma pesquisa dos antecedentes do investigado de um modo mais amplo do que permite os conceitos de reincidência e de maus antecedentes, na abrangência dada a estes pela Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça.(4)

Entretanto, os julgados não deixam expresso o limite temporal para essa consulta, sendo razoável a integração normativa, pela analogia, com o dispositivo que trata da reincidência (art. 64, I do Código Penal), como o faz o Enunciado 49 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal,(5) in verbis: “aplica-se o princípio da insignificância penal ao descaminho e aos crimes tributários federais, quando o valor do débito devido à Fazenda Pública decorrente da conduta formalmente típica não seja superior a R$ 20.000,00, ressalvada a reiteração na mesma modalidade criminosa, ocorrida em períodos de até 5 (cinco) anos (destacamos).

3. Além disso, a exclusão das infrações penais insignificantes da análise da reiteração de conduta do investigado tem levado a uma interpretação de que esse princípio não teria sido utilizado em seu sentido técnico pelo legislador.(6)

Isso porque se estaria diante de uma contradictio in adiecto, visto que “infrações penais insignificantes”, de fato, não são infrações penais. Assim, fundando-se no princípio hermenêutico de que a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda), pretende-se conferir ao termo o significado de “delitos de menor potencial ofensivo”, como o faz o Enunciado 21 do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União.(7) Não é essa, contudo, a melhor interpretação a ser dada ao inciso.

Ao se aceitar essa acepção para o já intrincado significado do princípio da insignificância no ordenamento jurídico brasileiro, estar-se-ia contribuindo para a desfiguração de um sistema jurídico, visto que este deve ser livre de contradições lógicas e axiológicas. Portanto, a melhor alternativa interpretativa parece ser aquela em que se limita o alcance da abrangência da reiteração de conduta do investigado para a vedação legal de celebração do acordo de não persecução penal.

Desse modo, se a reiteração de conduta do investigado puder ser demonstrada por meio de ações penais em curso, inquéritos policiais ou mesmo procedimentos administrativos fiscais, caso os registros apontem para situações em que houve a aplicação do princípio da insignificância, essa reiteração não seria apta a obstar a celebração do acordo de não persecução penal. A vedação ao acordo, pois, viria da ocorrência de outra conduta delitiva, ante a impossibilidade de nova feitura dentro do marco temporal de cinco anos (art. 28-A, § 2º, III do Código de Processo Penal), o que, de fato, guardaria uma proporcionalidade de tratamento ao investigado.

O problema dessa solução, no entanto, é que se cria um verdadeiro círculo vicioso, dado que, se a reiteração de conduta do investigado puder ser utilizada para a não configuração do princípio da insignificância, não se chegará ao ponto de se poder servir-se desse mesmo princípio para excepcionar a vedação do acordo de não persecução penal para os casos de reiteração da conduta. Para que essa situação seja rompida, mister se faz buscar o real sentido do princípio da insignificância.

4. Ora, o fato de, no Brasil, ao contrário de seu país de origem, a Alemanha, o princípio da insignificância ter tido uma aplicação jurisprudencial anterior ao desenvolvimento de um arcabouço doutrinário fez com que, em sua análise, passassem a ser avaliados outros fatores que não o concreto exame do resultado jurídico, qual seja, o ínfimo grau de exposição a que foi submetido o bem jurídico penalmente tutelado.(8) 

Nesse contexto é que se extraem de um julgado do Supremo Tribunal Federal(9) os quatro mais difundidos vetores de sua aplicação, quais sejam: (i) a ausência de periculosidade social da ação; (ii) a mínima ofensividade da conduta do agente; (iii) a inexpressividade da lesão jurídica causada; e (iv) a falta de reprovabilidade da conduta. Verifica-se, então, que três desses requisitos (i, ii e iv) remetem-se ao desvalor da conduta, restando somente um (iii) à análise do desvalor do resultado, não havendo clareza acerca de sua alternatividade ou cumulatividade.(10)

A correta fixação, então, de que o princípio da insignificância atua tão-somente sobre a avaliação do resultado jurídico e, com isso, exclui-se o delito quando inexpressiva a lesão causada, afasta, em definitivo, considerações acerca da reincidência, dos maus antecedentes e da conduta reiterada. Reafirma-se, assim, o princípio da culpabilidade por um fato individual, segundo o qual a responsabilidade penal somente pode ser atribuída por um determinado evento e não pela condução de vida da pessoa, esboçada em seu histórico criminal pregresso.(11)

Nota-se que, mesmo a jurisprudência da Suprema Corte adotando os parâmetros acima fixados e sendo dominante quanto à consideração da reiteração da conduta para a configuração do princípio da insignificância, precisa curvar-se ao critério único da avaliação do resultado jurídico,(12) podendo-se citar como exemplos recentes: (i) furto de R$ 30,00 em mercadorias;(13) e (ii) furto de bens avaliados em R$ 116,50.(14)

Ora, ainda que os julgados mencionem um uso “excepcional” do princípio da insignificância ante as peculiaridades do feito para justificar a divergência ao entendimento majoritariamente fixado, o que seria o princípio da insignificância senão a diminuição do âmbito de incidência da norma incriminadora ante o caso concreto? Comprova-se, pois, o desacerto da exigência dos demais critérios estabelecidos.

5. Eliminada, portanto, a contradição identificada, com maior apelo à técnica terminológica, restaria a crítica do uso do princípio da insignificância para os casos que Gomes(15) denomina de multirreincidência cumulativa, isto é, aquela em que o agente pratica reiterados ataques ao mesmo bem jurídico, contra a mesma vítima, cuja individualidade é insignificante, mas o resultado não, razão pela qual o fato deveria ser considerado como único.

Trata-se de um fenômeno distinto do crime progressivo, em que o agente, para perpetrar um crime de maior gravidade, pratica uma ofensa de menor intensidade, que funciona como meio de chegar ao crime-fim. Exalta-se, aqui, o fenômeno da consunção para destacar que o crime-fim absorve o crime-meio.(16)

Dessa forma, no fenômeno da multirreincidência cumulativa, para que seja o resultado final compreendido dentro de um contexto de crime único, deve ser comprovado o fracionamento da conduta, bem como praticada em face da mesma vítima. Sua configuração é, então, mais complexa que a simples análise dos antecedentes, visto que estes somente se prestariam como indícios de sua ocorrência e não de sua comprovação, pois esses fatos não podem ser levados em consideração para impedir a aplicação da insignificância sem que a pessoa seja por eles processados com a observância do devido processo legal.

6. Portanto, pode-se afirmar que a menção ao princípio da insignificância no art. 28-A, § 2º, II, in fine, do Código de Processo Penal é feita em seu sentido técnico, como intuito de possibilitar a celebração do acordo de não persecução penal ao investigado que ostente indicativos de reiteração de conduta nos últimos cinco anos anteriores ao fato questionado (art. 64, I, do Código Penal, por analogia), caso nessas ocorrências tenha sido configurado o ínfimo grau de exposição a que foi submetido o bem jurídico penalmente tutelado e não esteja o evento sub examine inserido em um contexto fático único, em face da mesma vítima, com resultado final significativo (multirreincidência cumulativa).










Notas de rodapé

(1) PASCOLATI JÚNIOR, Ulisses Augusto. Não aplicabilidade do princípio da insignificância aos portadores de maus antecedentes ou reincidentes em pequenos delitos. 2012. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 28-36 e 75-84.

(2) LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 281.

(3) BRASIL. Superior Tribunal Federal (1. Turma). HC 118028/M. Relator Min. Dias Toffoli, j. 12 jun. 2013. DJe, 17 dez. 2013; BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 142381 AgR/RS. Relator Min. Gilmar Mendes, j. 4 jun. 2018. DJe, 21 jun. 2018; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no RHC 40315/PR. Relator Min. Moura Ribeiro, j. 22 fev. 2014. DJe, 7 mar. 2014; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). AgRg no REsp 1733623/SC, Relator Min. Sebastião Reis Júnior, j. 04 set. 2018. DJe, 17 set. 2018.

(4) “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.”

(5) Aprovado na 150ª Sessão de Coordenação, de 07.05.2018.

(6) LIMA, Renato Brasileiro de., Op. cit., p. 281.

(7) “Não caberá o acordo de não persecução penal se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, entendidas estas como delitos de menor potencial ofensivo” (destacamos).

(8) Para uma maior compreensão do tema v. GUADANHIN, Gustavo de Carvalho. Princípio da insignificância: uma análise dogmática e sua aplicação nos delitos contra a Administração Pública. Curitiba: Juruá, 2018.

(9) BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 84.412/SP. Relator Min. Celso de Mello, v.u., j. 19. out. 2004. DJ, 19 nov. 2004. p. 37.

(10) Pela alternatividade, v. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. p. 20-21; pela cumulatividade, v. artigo 28, parágrafo 1º, do Projeto de Lei 236/2012, em trâmite no Senado Federal, com o intuito de instituir um novo Código Penal, o qual conteria a regulamentação do princípio da insignificância, in verbis: “[t]ambém não haverá fato criminoso quando cumulativamente se verificarem as seguintes condições: (a) mínima ofensividade da conduta do agente; (b) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; (c) inexpressividade da lesão jurídica provocada”.

(11) ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2008. t. 1, p. 817. Para uma visão da jurisprudência brasileira acerca do tema, v. COSTA, Helena Regina Lobo da. Comentários ao art. 155. In: REALE JÚNIOR, Miguel (coord.). Direito Penal: jurisprudência em debate. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 253-254.

(12) O caso paradigmático aponta que a reincidência, por si só, não impede o reconhecimento da insignificância à luz dos elementos do caso concreto (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). HC 123734/MG. Relator Min. Roberto Barroso, j. 03 ago. 2015. DJe 2 fev. 2016).

(13) BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 161074 AgR/MG. Relator Min. Gilmar Mendes, j. 12 nov. 2018. DJe 29 nov. 2018.

(14) BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). HC 141400 AgR/MG. Relator Min. Dias Toffoli, j. 14 ago. 2018. DJe 7 fev. 2019.

(15) GOMES, Luiz Flávio., Op. cit., p. 112-117.

(16) SOUZA, Luciano Anderson. Direito Penal: Parte Geral. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 130-131.


Referências

COSTA, Helena Regina Lobo da. Comentários ao art. 155. In: REALE JÚNIOR, Miguel (coord.). Direito Penal: jurisprudência em debate. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013.

GUADANHIN, Gustavo de Carvalho. Princípio da insignificância: uma análise dogmática e sua aplicação nos delitos contra a Administração Pública. Curitiba: Juruá, 2018.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

PASCOLATI JÚNIOR, Ulisses Augusto. Não aplicabilidade do princípio da insignificância aos portadores de maus antecedentes ou reincidentes em pequenos delitos. 2012. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2008. t. 1.

SOUZA, Luciano Anderson. Direito Penal: Parte Geral. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.



Cadeia de custódia: ônus da prova e direito à prova lícita


Daniel Diamantaras de Figueiredo

Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa.

Professor de Direito Processual Penal. Defensor Público do Rio de Janeiro.

Coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUSPEN).  

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0615447396347665

ORCID: 0000-0002-5957-8881

daniel.diamantaras@gmail.com

Denis Sampaio

Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa.

Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes/RJ.

Professor de Direito Processual Penal. Defensor Público do Rio de Janeiro.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4167842334977106

ORCID: 0000-0002-1700-3799

denissampaio00@gmail.com

Resumo: O presente estudo tem como propósito analisar as normas sobre a cadeia de custódia, trazida pela Lei 13.964/19 (“pacote anticrime”), abordando especificamente o ônus da prova da manutenção/preservação da cadeia de custódia e o direito à prova lícita. Será visto que o procedimento adequado da cadeia de custódia é um direito das partes, principalmente do acusado que, na maioria das vezes, não participa da fase de investigação e precisa ter acesso aos elementos produzidos para poder refutar a acusação e exercer sua defesa de forma ampla e efetiva.

Palavras-chave: Reforma do Código de Processo Penal – direito à prova lícita – legalidade da prova – cadeia de custódia – ônus da prova da cadeia de custódia.

Abstract: This study aims to analyze the rules on the chain of custody, included by Law 13.964/19 (“anti-crime package”), specifically addressing the burden of proof of maintaining the chain of custody and the right to legally obtained evidence. It will be seen that the proper chain of custody procedure is a right of the parties, mainly the accused, who, in most cases, does not participate in the investigation phase and needs to have access to the elements produced in order to be able to refute the accusation and exercise his right to defense in an effective way.

Keywords: Reform of the Criminal Procedure Code - right to legally obtaneid evidence - chain of custody - burden of proof.



Data: 06/01/2021
Autores: Daniel Diamantaras de Figueiredo e Denis Sampaio

O Código de Processo Penal foi recentemente alterado pela Lei 13.964/19 (“pacote anticrime”), incluindo de forma inédita normas sobre a cadeia de custódia. Tais normas estão preconizadas nos artigos 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, contendo a definição do instituto e todo o procedimento a ser adotado para manipular o elemento probatório.  

Define a lei que a cadeia de custódia é “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” (art. 158-A, caput, CPP). De forma original na doutrina brasileira, Geraldo Prado afirma que a cadeia de custódia da prova é um dispositivo com finalidade de assegurar a integridade do elemento de prova e sua fiabilidade, protegendo-o de possíveis interferências que possam prejudicar o resultado da produção probatória.(1)

Para o presente artigo serão analisados o ônus da prova quanto à cadeia de custódia e o direito à prova lícita, e seu respectivo limite probatório, pontos de grande relevância sobre a adequação constitucional do tema.

O ônus e o standard probatório da cadeia de custódia

No processo penal, o ônus da prova cabe à acusação quanto aos elementos constitutivos do crime e todos os elementos necessários para a determinação da responsabilidade daquele que figura na condição de imputado. Isto porque vige no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da presunção de inocência como base elementar do sistema processual. Não deve ser diferente com relação à cadeia de custódia.

Pode-se dizer, assim, que incumbe aos órgãos da persecução penal cumprir todo o procedimento definido para manter a cadeia de custódia da prova, sendo o seu ônus demonstrar o regular cumprimento durante o trâmite do processo, isto é, o uso de forma adequada dos métodos e das regras da cadeia de custódia, e que esta foi mantida ao longo de todo o período até o julgamento. Em outras palavras, a desincumbência do ônus probatório deverá ocorrer com a comprovação de que todas as etapas e métodos da cadeia de custódia foram cumpridas (arts. 158-B a 158-F). É o que se caracteriza como dimensão processual da cadeia de custódia, através da qual é criado um ônus à acusação e impede o abuso do poder estatal em forjar, alterar e modificar provas.

A não-comprovação da regularidade da cadeia de custódia por parte da acusação retira do acusado a expectativa de impugnação quanto à legalidade da prova, ou seja, a defesa perde a chance de ter acesso às provas em sua integridade e de participar ativamente do exercício da defesa, com o objetivo de enfraquecer ou refutar os elementos probatórios propostos pela acusação. Em outras palavras, o acusado fica alijado de impugnar e refutar adequadamente o conteúdo da imputação pela ausência de provas íntegras.

Questão coligada ao dever da acusação e seus limites diz respeito ao standard probatório da cadeia de custódia. A fim de se provar sua manutenção/preservação com um elevado standard, o Ministério Público deverá oferecer garantias e elementos dos quais se possam inferir que a prova se manteve inalterada durante todo o período da custódia, respeitando a aplicação de todos os métodos e técnicas de maneira regular (arts. 158-B a 158-E, CPP).

Apesar de não ser um ônus imposto à defesa, esta tem o direito de realizar o controle da cadeia de custódia da prova, nos termos do inciso XV, do artigo 3º-B do Código de Processo Penal,(2) alterado pela Lei 13.964/19. Saliente-se que, de todo modo, antes mesmo desta alteração legal, tal acesso e controle já era assegurado pelos artigos 44 (inciso VIII), 89 (VIII) e 128 (VIII) da LC 84/94 (alterada pela lei complementar 132/2009), bem como pelo artigo 7º (XIV) do Estatuto da OAB (alteração feita pela Lei 13.245/16) e, ainda, pela súmula vinculante 14.(3) 

É sabido que o standard probatório(4) no processo criminal deve caracterizar-se por sua complexidade, devendo as provas aduzirem a comprovação da hipótese fática imputada com elevado grau de elementos necessários para o afastamento de dúvidas razoáveis. Trata-se de uma escolha política, a qual privilegia a manutenção do estado de inocência, a liberdade e a proteção do inocente, corroborando isto o fato de o processo penal contar não só com um standard de prova elevado, mas também com o ônus da prova para o órgão acusatório.(5)

Nesse sentido, é de suma importância a manutenção da qualidade da prova com fins a se atingir um standard probatório elevado no processo, que não deve prescindir da existência de provas confiáveis e íntegras, na medida em que uma ruptura da cadeia de custódia será suficiente para desacreditar determinado elemento probatório, não atingindo o standard necessário para uma condenação.

Impende registrar, ainda, que os protocolos ou etapas da cadeia de custódia (agora com previsão normativa no CPP) constituem verdadeiros requisitos legais, que formam o próprio conteúdo da prova material. Logo, através deles tenta-se garantir a integridade da fonte de prova colhida até a sua valoração (“mesmidade”)(6).

Nessa linha, a quebra da cadeia de custódia, com supressão de dados, adulteração ou contaminação dos elementos probatórios colhidos, afasta a legalidade e/ou confiabilidade do resultado da perícia e a própria qualidade de prova em sentido técnico do elemento contaminado. Isto porque impossibilita o exercício pleno do contraditório, tendo em vista que as partes, mormente a defesa, não terão a possibilidade de utilização da prova em seu estado líquido perfeito e da realização de contraprova em condições de igualdade ao material produzido.

A violação da cadeia de custódia, como dito, descaracteriza o elemento como uma prova técnica, sob pena de, caso assim não seja, desrespeitar o devido processo legal, um contraditório efetivo, a ampla defesa e especialmente o direito à prova lícita, porquanto a falha no cuidado com a preservação e com as etapas existentes prejudica a defesa, impossibilitando a refutação efetiva da tese acusatória.

A partir da alteração da Lei 13.964/19, em que as etapas estão delineadas por norma legal, caracterizando-se como requisito essencial da cadeia de custódia e constituindo-se como o próprio conteúdo da prova material, a violação da cadeia de custódia gera o efeito da ilicitude da prova, incidindo a norma do artigo 157 do CPP, que preconiza que são provas ilícitas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais, devendo os referidos elementos serem desentranhados da discussão processual.(7)

Não se pode olvidar que, se decorrer da prova pericial despida de licitude outro elemento de prova, este também será considerado ilícito por derivação, salvo se incidir a exceção do art. 157, §1º, CPP.

Com efeito, tendo em vista que o direito à prova lícita é um pressuposto legal e inevitável da valoração da prova, a ilicitude da prova gera, em primeiro momento, a sua inadmissibilidade e, em segundo, a proibição da sua valoração.(8)

Pode-se concluir, portanto, que o estudo da cadeia de custódia tem como ápice a análise da sua legalidade. A quebra da cadeia de custódia deve ser vista como a inobservância do próprio conteúdo da matéria em reflexão e, consequentemente, os seus efeitos (inadmissibilidade da prova ilícita e proibição de sua valoração) se caracterizam não como sanção processual, mas como garantia fundamental.

As etapas da cadeia de custódia e o direito à prova lícita

Por outro lado, a confiabilidade do elemento probatório se caracteriza pelos procedimentos de coleta, documentação, armazenamento, manuseio e manutenção do material probatório a ser futuramente valorado pelo julgador. Desta forma, além da história cronológica devidamente documentada do vestígio coletado,(9) tornam-se extremamente importantes as etapas individualizadas para serem regularmente observadas (procedimentos probatórios), sob pena de violação à estrutura normativa e a consequente ineficácia da prova, caracterizada pela quebra da cadeia de custódia.

Conclusão

Em jeito de conclusão, é lícito afirmar que o procedimento adequado da cadeia de custódia é um direito das partes, principalmente do acusado que, na maioria das vezes, não participa da fase de investigação e precisa ter acesso aos elementos produzidos para poder refutar a acusação e exercer sua defesa de forma mais ampla e efetiva.

Assim, ainda que não haja previsão expressa, extrai-se dos preceitos constitucionais (devido processo legal, contraditório, ampla defesa, direito à prova lícita, presunção de inocência) o ônus de comprovação por parte da acusação do regular procedimento da cadeia de custódia. À defesa resultará o direito à prova técnica lícita e toda a análise quanto à etapa da sua produção até a efetiva valoração.  

O que se espera das normas introduzidas no diploma processual é a sua efetiva aplicabilidade, com a garantia de democraticidade do processo penal brasileiro, focado no respeito à proteção do inocente à luz da Constituição da República e, portanto, o reconhecimento do ônus da prova para a acusação quanto à integridade do procedimento probatório, bem como o direito à prova lícita.





Notas de rodapé

(1) PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 101 e 105.

(2) Em 22 de janeiro de 2020, o Ministro Relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, Luiz Fux, revogou decisão anterior dada pelo Presidente Dias Toffoli durante plantão judiciário e, entre outros artigos, suspendeu a eficácia de parte do artigo 3º (de “A” a “F”), que tratava da implantação do juiz das garantias e seus consectários.

(3) MACHADO, Vitor Paczek; JEZLER JUNIOR, Ivan. A prova eletrônica-digital e a cadeia de custódia das provas: uma (re)leitura da Súmula Vinculante 14. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 24, n. 288, p. 8-9, nov. 2016.

(4) Trata-se de um grau (ou medida) de prova necessária a partir do qual um fato deva ser provado para ser considerado como comprovadamente verdadeiro. Cf. HAACK, Susan. Evidence matters: science, proof and truth in the law. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2016, p. 4; e HAACK, Susan. El probabilismo jurídico: una disensión epistemológica. In: VÁZQUEZ, Carmen (ed.). Estándares de prueba y prueba científica: ensayos de epistemologia jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 69.

(5) BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 43-80, jan./abr. 2018, p. 72.

(6) Reconhecida a cadeia de custódia como registro ou documentação da conservação dos materiais sensíveis à demonstração do fato criminoso. Cf. TONINI, Paolo; CONTI, Carlotta. Il diritto delle prove penali. Milano: Giuffrè, 2012, p. 334.

(7) Expressão espanhola, importada para a doutrina nacional através da obra de Geraldo Prado, que indica que a cadeia de custódia se fundamenta pelo princípio da autenticidade da prova ou princípio da “mesmidade”. Trata-se do princípio segundo o qual o “mesmo” vestígio que foi encontrado na cena do crime será aquele valorado pelo julgador. PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 95.

(8) Nesse sentido, PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 128-130.

(9) Não há como confundir formalmente regras de exclusão probatória (critérios normativos de deveres positivos e, quando inobservados, mandamentos de exclusão) –, que possuem limitação ao nível de introdução e produção probatória – com regras de proibição na sua valoração – e se caracterizam por fazer parte do conteúdo da decisão (GÖSSEL, Karl-Heinz. As Proibições de prova no Direito Processual Penal da República Federal da Alemanha. Revista Portuguesa de Ciências Criminais, ano 2, v. 3, p. 397-441, jul./set. 1992, p.399). Diante do procedimento probatório, as regras de valoração somente ocorrerão quando ultrapassadas as regras de exclusão (FERRUA, Paolo. Il giudizio penale: fatto e valore giuridico. In: FERRUA, Paolo et al. La prova nel dibattimento penale. 4. ed. Giappichelli: Torino, 2010, p. 355). Na realidade, seguem como substratos necessários entre as primeiras para as segundas, ainda que, no conteúdo material, todas as proibições de prova se comportam como proibições de valoração dos elementos de prova. Vide GÖSSEL, Karl-Heinz., op. cit. p. 400.

Referências

BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 43-80, jan./abr. 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138. Acesso em: 9 jan. 2020.

BRASIL. Decreto-Lei 3.689/1941. Código de Processo Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 21 out

FERRUA, Paolo. Il giudizio penale: fatto e valore giuridico. In: FERRUA, Paolo et al. La prova nel dibattimento penale. 4. ed. Giappichelli: Torino, 2010. p. 317-410.

GÖSSEL, Karl-Heinz. As Proibições de prova no Direito Processual Penal da República Federal da Alemanha. Revista Portuguesa de Ciências Criminais, ano 2, v. 3, p. 397-441, jul./set. 1992.

HAACK, Susan. Evidence matters: science, proof and truth in the law. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2016.

HAACK, Susan. El probabilismo jurídico: una disensión epistemológica. In: VÁZQUEZ, Carmen (ed.). Estándares de prueba y prueba científica: ensayos de epistemologia jurídica. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 65-98.

MACHADO, Vitor Paczek; JEZLER JUNIOR, Ivan. A prova eletrônica-digital e a cadeia de custódia das provas: uma (re)leitura da Súmula Vinculante 14. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 24, n. 288, p. 8-9, nov. 2016.

PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

TONINI, Paolo; CONTI, Carlotta. Il diritto delle prove penali. Milano: Giuffrè, 2012.


Tutela cautelar e tutela provisória: a natureza jurídica da prisão preventiva na lei 13.964/19

Sebastian Mello

Doutor em Direito Público (UFBA). Mestre em Direito Econômico (UFBA).

Professor de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia (UFBA) na graduação, mestrado e doutorado.

Professor da Faculdade Baiana de Direito. Advogado Criminalista.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2042697331981933

ORCID: 0000-0003-3051-2966

sbam@terra.com.br

Luíza Guimarães Campos Batista Gomes

Mestranda em Direito Público pela UFBA.

Especialista em Ciências Criminais pela UCSal.

Advogada.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2554520668602458

ORCID: 0000-0002-5891-8557

luguimaraes90@gmail.com

Resumo: O presente ensaio é um convite ao debate acadêmico voltado para o estudo dos fenômenos processuais penais concernentes à identificação da natureza jurídica da prisão preventiva, diante das recentes modificações introduzidas expressamente na lógica processual penal pela Lei 13.964/19. Para tanto, estabeleceremos, em paralelo, o que é compreendido como tutela cautelar e tutela provisória pela ciência processual civil, e sua possível relação com os fenômenos processuais penais antes mesmo de tais conceitos jurídico-positivos serem inseridos na lógica processual penal pelo legislador.

Palavras-chave: Tutela Cautelar. Tutela Provisória. Prisão preventiva. Pacote Anticrime.

Abstract: This essay is an invitation to an academic debate of the study of pre-trial detention´s legal nature in a criminal procedural, in view of the recent changes introduced expressly in the criminal procedural logic by the new legislation. This study will establish in parallel what is understood as precautionary protection and provisional protection by civil procedural science, and its possible relationship with criminal procedural, even before such legal-positive concepts have been inserted into the criminal procedural logic by the legislator.

Keywords: Precautionary protection. Provisional protection. Pre-trial detention. Anti-crime package.


Data: 06/01/2021
Autores: Sebastian Mello e Luíza Guimarães Campos Batista Gomes

A discussão doutrinária acerca da natureza jurídica da prisão preventiva não é exatamente nova e pode fundar-se em conceitos lógicos-jurídicos (gerais) que norteiam a (in)aplicabilidade dos conceitos jurídicos-positivos (distintos) afetos a cada matéria, em relação a uma e outra; ou seja, daquilo que é aplicável apenas no Direito Processual Civil e aquilo que apenas existe no Direito Processual Penal.(1) 

No que se refere ao instituto dedicado a este ensaio, a classificação majoritária da doutrina processual penal se manifesta no sentido de que a prisão preventiva – antes da Lei 13.964/19 – guardaria em si uma tutela acautelatória,(2) não satisfativa(3) e, portanto, impossível de figurar como uma antecipação provisória da tutela penal.

Tal afirmação, contudo, não se aplica a todos os casos de decretação de prisão preventiva. É o que ocorre, por exemplo, com a prisão preventiva decretada ou reafirmada em segunda instância, após o exaurimento da devolução da matéria de fato discutida nos autos, pelo duplo grau de jurisdição;(4) é também o caso da prisão preventiva decretada como medida protetiva nos casos enquadrados pela Lei Maria da Penha,(5) pois em ambos, esta decisão tem caráter antecipatório satisfativo e independe do requisito de urgência para a sua concessão (tutela de evidência).

Outra hipótese de decretação da prisão preventiva, distinta da natureza cautelar, é aquela que diz respeito à garantia da ordem econômica e da ordem pública. Não obstante as críticas inerentes a tais concepções, por se tratar de instrumento retórico desprovido de qualquer significado ou relevância diante do caso concreto, é certo que a garantia das ordens pública e econômica não se baseiam no acautelamento do resultado útil do processo penal. Com efeito, a prisão fundada nestes conceitos não constitui medida cautelar, já que, nesse caso, a medida terá caráter satisfativo geral, supostamente direcionado à sociedade (impedir a continuidade delitiva, atender ao clamor social, coibir um agente de alta periculosidade) – sendo, a princípio, incompatível com o estado de inocência constitucional.

Tendo em vista a significativa modificação introduzida na legislação processual pelo CPC, em 2015, pertinentes às tutelas provisórias, algumas considerações são importantes para o exame da natureza jurídica referente à tutela provisória penal. A tutela cautelar se encontra prevista no novo CPC como medida assecuratória cabível para a proteção de direito ameaçado por perigo iminente, a ser requerida como tutela provisória, de maneira antecedente geralmente ou cumulativa ao pedido principal em via de exceção (arts. 305 e ss. do CPC/15); o livro de procedimento cautelar foi extinto do texto processual civil, tendo sido a tutela cautelar incorporada às espécies de tutela provisória.(6)

Elas distinguem-se das tutelas provisórias de caráter satisfativo em virtude, sobretudo, de suas características peculiares: referibilidade e temporariedade. A tutela cautelar é o meio empregado para a preservação de outro direito (acautelamento), que poderá ser objeto de tutela satisfativa final. Não há, entretanto, a necessidade de comunicação idêntica entre o objeto cautelar e o objeto satisfativo, diga-se, a tutela cautelar não precisa se comunicar diretamente com o objeto do direito acautelado, pois, constitui-se, necessariamente, em direito que se refere à segurança de outro direito, distinto da própria cautela. Este é o critério da referibilidade.(7)

Por seu turno, a tutela provisória, concedida em caráter antecipatório, é a tutela que se pretende alcançar no curso do processo de maneira definitiva, ante a presença de determinados requisitos objetivos previstos no art. 300 do CPC para o caso de tutela provisória de urgência e no art. 311 para os casos de tutela provisória de evidência.(8)

Todavia, o nome dado pelo legislador pátrio para o instituto em questão (tutela provisória) não transmite de maneira correta a informação do sentido que é atribuído a este signo, pois por “provisório” não se deve compreender “temporário” – já que: será temporária a providência jurisdicional não substituída por sentença; e será provisória a providência jurisdicional que pressupõe uma decisão terminativa para a sua concretização.(9)

No que se refere à conceituação especial processual penal, é possível afirmar que a definição de “cautelaridade” da medida (prisão preventiva) é uma conclusão imediata e histórica por parte da doutrina, já que os enunciados dos artigos que tratam do tema desde o texto original do CPP (caput do art. 313) traziam como requisito para a sua decretação nítido sentido de acautelamento do processo: a conveniência da instrução criminal e a segurança da aplicação da lei penal (resultado útil do processo penal).(10) O conceito jurídico-positivo “ordem pública” também existe desde a redação original do CPP e não possui uma descrição precisa com relação ao seu conteúdo semântico.

Com o novo enunciado do art. 312 do CPP, é possível identificar a diferenciação dada pelo legislador para as demais hipóteses de decretação. Segundo o texto aprovado, para que seja decretada a prisão preventiva, para além dos conceitos lógicos-jurídicos inerentes às medidas cautelares (fumus comissi delicti e periculum libertatis), há que existir, por força dos conceitos jurídicos-positivos trazidos com a reforma, fundamentação vinculada no perigo e na existência concreta de fatos novos ou contemporâneos, que justifiquem a ultima ratio (§2 do art. 312 do CPP)(11) e que podem ser, inclusive, procedimentos de jurisdição voluntária independentes do processo penal (como ocorre por exemplo com as medidas protetivas de urgência).

Outra importante contribuição da reforma se refere ao fato de que está expressamente vedada a concessão de medida de prisão preventiva de caráter satisfativo – antecipação do cumprimento de pena.

Temos então normas processuais até então inéditas no âmbito processual penal. O perigo do estado de liberdade do sujeito não é justificável por si só. Para o legislador, o periculum libertatis é vinculado à existência e comprovação de reiterada continuidade delitiva ou ainda de atos contemporâneos ao processo que possam comprometer a conveniência da instrução processual. Não se trata, pois, de qualquer perigo.

A decisão que discorre sobre tal perigo também não é qualquer decisão. Há, aqui, a interação entre distintos signos de normas processuais (de interpretação e de fundamentação), que juntos exprimem para os sujeitos do processo os elementos axiológicos e valorativos que deverão ser atendidos (respeitados) quando de suas respectivas aplicações,(12) para que uma decisão seja considerada suficientemente fundamentada e possa, assim, produzir efeitos jurídicos sob o manto da estrita legalidade.(13)

Ao trazer para o ordenamento jurídico processual penal, tal como descrita a referida regra de fundamentação da decisão, o legislador reafirma o compromisso político e processual do Estado brasileiro com o sistema adversarial, onde as partes possuem como garantia o direito de influência no resultado do processo. É disso que decorre o seu direito à fundamentação exauriente (contraditório pleno), na medida em que obriga o magistrado, em seu exercício jurisdicional, a expor toda a carga racional de sua decisão, diminuindo, assim, as hipóteses do subjetivismo das decisões.

Com a nova redação do art. 312 e ss. do CPP, não é possível mais afirmar que toda e qualquer decisão de decretação de prisão preventiva terá natureza jurídica cautelar.(14) A realidade da natureza jurídica de cada prisão preventiva decretada dependerá do caso concreto e dos conceitos jurídicos-positivos que forem utilizados para a sua imposição no processo – daí a obrigatoriedade de exposição racional de motivos, inclusive no que se refere à ineficiência das demais medidas diversas da prisão para o fim protecionista a que ela se destina.

Investigar-se-á, então, o seu objeto final (o que ela visa proteger), sua forma (quais conceitos jurídicos-positivos estão presentes) e a sua fundamentação (como foi justificada) para que possamos definir a sua natureza jurídica caso a caso.

Definir se a prisão preventiva decretada possui caráter satisfativo em relação a uma decisão terminativa não definitiva (pendente de recurso ou, se preferirem, de trânsito em julgado) é do interesse de todos, principalmente se levarmos em consideração os recentes acontecimentos jurídicos que circundam o tema da prisão em segunda instância.





Notas de rodapé

(1) DIDIER Jr., Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 52-64; 125-127.

(2) LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 637-640.

(3) SIQUEIRA, Tatiana. Um breve estudo sobre a natureza jurídica das prisões cautelares (?) no processo penal brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, v. 16, n. 16, p. 640-663, jul./dez. 2015.

(4) Remonta-se para o julgamento do HC 126.292, ocasião em que o Pleno do STF decidiu que “(...) a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial e extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção da inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.”. Ver mais em: TAVARES, João Paulo Guimarães. Das medidas cautelares no processo penal: um esboço à luz do regramento da tutela provisória no novo CPC. DIDIER Jr., Fredie (coord. Geral). CABRAL, Antônio Passo; PACELLI, Eugênio e CRUZ, Rogério Schietti. In: Repercussão do Novo CPC: Processo penal, v. 13. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 229.

(5) Cuja urgência é presumida. O que é mais protecionista para a figura da vítima (mulher), inclusive, já que a tutela de evidência pode ser estabilizada (tornando-se definitiva), ou seja, não seria necessário o comparecimento periódico da mulher à Vara de Violência Doméstica para fins de renovação do pedido de concessão da medida protetiva.

(6) Neste sentido: COSTA, Adriano Soares da. Morte processual da ação cautelar? In: DIDIER Jr, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil, Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória, v. 2. 11. ed, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 188.

(7) DIDIER Jr, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil, Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória, v. 2. 11. ed, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 684.

(8) DIDIER Jr, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil, Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória, v. 2. 11. ed, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 157.

(9) Neste sentido: COSTA, Eduardo José da Fonseca, Art. 294. In: STRECK, Lenio, NUNES, Dierle, CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 398. Em sentido contrário: DIDIER Jr., Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 732; BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: Lei n. 11.340/2006, aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 180-181.

(10) Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3689-3-outubro-1941-322206-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 1 mar. 2020.

(11) Nesse sentido, rememoramos que: “O primeiro aspecto que merece destaque é a consagração da ultima ratio da prisão cautelar. Ainda que a natureza excepcional desse instrumento fosse evidente, é importante que o legislador caracterize expressamente a privação da liberdade como a última das medidas, aplicável apenas diante do insucesso das demais. (...) o que impõe ao magistrado, ao determinar a prisão preventiva, a exposição dos motivos que a justificam e das razões pelas quais entendeu que todas as demais cautelares são imprestáveis para substituí-la no caso concreto; do contrário, a decisão será nula, por ausência de fundamentação completa.”. (BOTTINI, Pierpaollo. Medidas Cautelares Penais (Lei 12.403/11): novas regras para a prisão preventiva e outras polêmicas. Revista Eletrônica de Direito Penal, AIDP-GB, v. 1, n. 1, p. 263-27, jun. 2013 ). Consignamos que a nova redação do §6 do art. 282 do CPP, conforme a reforma do PA, é extremamente feliz ao inserir em seu enunciado: a uma, a expressa reafirmação da opção do legislador de tratativa da prisão como ultima ratio; a duas, a expressa previsão de subsidiariedade da prisão preventiva em relação às medidas cautelares diversas da prisão.

(12) BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento: o problema da repartição de competência legislativa no direito constitucional brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015, p. 78.

(13) FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 93-97.

(14) A despeito disso, relevantes processualistas penais costumam reduzir o tema da prisão provisória à cautelaridade do instituto, negando a existência de hipóteses que – na realidade – importam em antecipação de caráter satisfativo da tutela requerida. Analisar o instituto da prisão preventiva, assumindo seu comportamento satisfativo em relação às medidas estabelecidas não quer dizer que concordamos com a opção do legislador, mas sim que reconhecemos a distinção de cada um deles. Posicionamento interessante – e com o qual coadunamos – é o de Gustavo Badaró, no sentido de afirmar – categoricamente – a impossibilidade de admitirmos uma tutela provisória de caráter satisfativo em matéria processual penal sem que isso represente uma violação ao princípio da presunção da inocência e, por esta razão, caracterize o enunciado processual responsável por tal antinomia como um enunciado inconstitucional, a exemplo da parte final do inciso I do, caput do art. 282 do CPP, que o autor classifica como “medida de segurança preventiva”. Ver mais em: BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1.040-1.043.


Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 7. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: Lei n. 11.340/2006, aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

BOTTINI, Pierpaollo. Medidas Cautelares Penais (Lei 12.403/11): novas regras para a prisão preventiva e outras polêmicas. Revista Eletrônica de Direito Penal, AIDP-GB, v. 1, n. 1, p. 263-27, jun. 2013.

BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento: o problema da repartição de competência legislativa no direito constitucional brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. 468p.

Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro. Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015.

DIDIER Jr., Fredie; CABRAL, Antônio Passo; PACELLI, Eugênio; SCHIETTI, Cruz (coords.). Coleção repercussões do Novo CPC, v.13. Salvador: Juspodivm, 2016.

DIDIER Jr., Fredie (coord.); PEREIRA, Mateus; GOUVEIA, Roberto; COSTA, Eduardo José da Fonseca. Grandes temas do Novo CPC: tutela provisória, v. 6. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018.

DIDIER Jr, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil, Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória, v. 2. 11. ed, Salvador: Juspodivm, 2016.

DIDIER Jr., Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

GOMES, Luíza. A aplicação supletiva do CPC ao CPP como meio de ampliação de direitos e garantias fundamentais. Salvador: Neojuris Editora, 2018.

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MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código De Processo Civil: Lei 13.105/15. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

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STRECK, Lenio, NUNES, Dierle, CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.

STRECK, Lenio. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas, o fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 52, n. 206, p. 33-51, abr./jun. 2015. 




Lei "Anticrime" e a expansão da identificação genética: os efeitos da(s) violência(s) do controle

Felipe da Veiga Dias

Pós-Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS.

Doutor e Mestre pela UNISC.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Medirional.

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Gabriel Ferreira dos Santos

Mestre em Direito pela UNISINOS.

Professor da Escola de Direito da Faculdade Meridional – IMED.

Advogado Criminalista. 

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7593401056686943.

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Lucas da Silva Santos

Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS.

Graduado em Direito pela Faculdade Meridional.

Advogado Criminalista.

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Data: 06/01/2021
Autor: Felipe da Veiga Dias, Gabriel Ferreira dos Santos e Lucas da Silva Santos

1. Introdução

O presente artigo tem como escopo apresentar uma breve análise crítica da Lei 13.964/2019, intitulada de “Lei anticrime”, sancionada em 24 de dezembro de 2019, em vigor desde o dia 23 de janeiro de 2020. A novel legislação apresenta importantes avanços, especialmente, na tentativa de apagar algumas marcas inquisitoriais das legislações penais e processuais penais, contudo, verifica-se alguns dispositivos legais que representam um verdadeiro retrocesso jurídico-social. Além disso, em diversos pontos o pacote anticrime ignora importantes marcos jurídicos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

A Lei 13.964/2019 proposta pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, desde o início de sua tramitação enquanto projeto de Lei, estava apoiada em promessas legitimadoras já bastante conhecidas e difundidas no passado autoritário brasileiro, tais como: proteção de bens jurídicos que interessam ao “cidadão de bem”, combate eficaz contra a criminalidade e a corrupção, aumento das penas, etc.(1) Parte-se da seguinte problematização: quais são as implicações e os efeitos da(s) violência(s) do controle? Quem são os verdadeiramente atingidos por esses dispositivos de controle social da Lei “Anticrime”?   Não são poucas as alterações promovidas pela Lei “Anticrime”; por tais razões, não se pretende realizar uma análise geral da “Lei Anticrime”, busca-se elaborar, através de um viés criminológico crítico, uma análise mais aprofundada sobre as implicações das modificações introduzidas pela novel legislação sobre a extração e armazenamento de perfil genético dos condenados/acusados.

2. A Lei “Anticrime” e a coleta de perfil genético

A Lei “Anticrime” em alguns pontos sustenta-se em discursos emocionais de “combate” à criminalidade e a corrupção, com efeito, acaba ocultando a funcionalidade política e real do sistema punitivo, assim como o fracasso de seus objetivos/promessas oficiais (declarados), pois a marca do sistema penal é a sua eficácia invertida. Logo, a função do sistema penal não é o combate, redução e/ou eliminação da criminalidade, mas, ao invés disso, é construir e reproduzir um processo permanente de estigmatização dos grupos sociais mais vulneráveis.(2)  

Não obstante, a Lei Anticrime apresenta avanços: juiz das garantias, impossibilidade da decretação da prisão preventiva de ofício, etc., bem como, retrocessos: alteração no sistema progressivo de cumprimento de pena, determinando a execução antecipada quando a pena for igual ou superior a 15 (quinze  anos) no rito do Tribunal do Júri, ampliação do rol dos crimes hediondos, aumentando o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade em 10 (dez) anos.(3) 

Com isso, amplia-se o tempo de aprisionamento, antecipa-se o cumprimento de penas, impulsionando o superencarceramento e, por consequência, o aumento dos gastos públicos, ressaltando-se que as alterações referidas pela legislação estão em contraposição com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, declarou o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro.

Evidencia-se principalmente a partir do amplo apoio midiático recebido pela operação “Lava Jato”, desde o seu início em março de 2014, que o processo penal brasileiro passou a ser visto como um longo e difícil caminho a ser percorrido. Assim, a duração razoável do processo, presunção de inocência, ampla defesa e contraditório, dentre outras garantias processuais que visam assegurar a proteção do réu sob a égide da proteção constitucional e convencional, foram cada vez mais apresentadas como obstáculos à persecução penal e à segurança pública.  

Acertadamente de forma sintetizada Gloeckner faz a seguinte indagação: “Por que no Brasil é mais fácil modificar-se uma constituição do que um código?”.(4) Tal questionamento feito pelo autor sobre a legislação processual penal sobrevive a uma reforma completa desde o ano de 1941, visto que a legislação é caracterizada por dispositivos que possuem simetria com o código Rocco de matriz flagrantemente autoritária. Nessa senda, conforme ressaltado por Giacomolli, “as tentativas de situar o processo penal brasileiro no plano constitucional e humanitário fracassaram de forma olímpica”.(5)

Os direitos fundamentais, anteriormente vistos como pilares em um Estado Democrático de Direito, ou seja, em contraposição às maiorias de ocasião, limitando os anseios punitivos e as ambições inquisitoriais, passaram a ser entendidas pela sociedade em geral e por determinados atores jurídicos como barreiras à “eficiência” do Estado em exercer seu poder punitivo.(6)   

Não restam dúvidas sobre a necessidade do aperfeiçoamento dos dispositivos de investigação criminal no Brasil, inclusive em aspectos tecnológicos. Contudo, esses mecanismos de persecução devem estar dentro dos parâmetros do devido processo legal (não podendo ultrapassar determinados limites). Os meios de investigação criminal não podem romper com direitos e garantias individuais, sob pena de se refutar o próprio Estado Democrático de Direito através da busca incessante de se alcançar uma ilusória sensação de segurança pública.

A Lei Anticrime apresenta uma série de medidas direcionadas ao incremento e à expansão da malha penal, com pouquíssimo vínculo aos verdadeiros problemas atuais e históricos presentes na gestão da segurança pública brasileira. Ademais, não apresenta real capacidade de cumprir com as promessas/discursos justificantes de combate à criminalidade e corrupção, visto que se trata de uma legislação que alarga expressivamente os dispositivos de controle das populações, enfraquecendo ainda mais o sistema jurídico de defesas e garantias.(7)

Com o advento da Lei 12.654/2012(8), que trouxe modificações na Lei de Identificação Criminal (Lei 12.037/2009(9)) e na Lei de Execução Penal 7.210/1984, a utilização de perfil genético para identificação e investigação criminal já apresentava alterações importantes no sistema punitivo brasileiro. A obrigatoriedade da identificação do perfil genético(10) para condenados em determinados delitos já demonstrava a urgência em discutir a transformação do investigado/acusado/réu em um instrumento de produção de provas contra si próprio.

Esse desejo determinista baseado em matrizes defasadas de intervir obrigatoriamente em corpos demonstra como os legisladores brasileiros reiteradamente buscam realizar reformas parciais no sistema penal/processual brasileiro, mas ignoram constantemente que essas reformas devem estar em consonância com os direitos e garantias fundamentais.

A Lei anticrime inclui os §1°-A; §2°; §3°; §4° e §8° no artigo 9°-A, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), prevendo que a recusa do condenado em submeter-se à identificação do perfil genético constitui falta grave. Além disso, alcança os condenados pelos crimes previstos no artigo 1° da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), rol ampliado pela Lei anticrime, e os condenados por crimes dolosos, com violência grave contra pessoa.(11)

Outrossim, a novel legislação também incluiu modificações na Lei 12.037/2009. No que se refere à exclusão e armazenamento do material genético, segundo o artigo 7°-A, a exclusão dos perfis genéticos ocorrerá no caso de absolvição do acusado ou no caso de condenação, mediante requerimento passados 20 (vinte) anos do cumprimento de pena. Por certo, trata-se, a rigor, de um registro eterno no banco de dados genéticos caso o condenado não faça o requerimento.

A falácia permanente, que associa recrudescimento penal com diminuição da criminalidade, infelizmente, demonstra a dificuldade do Estado Brasileiro em respeitar os valores democráticos trazidos pela Constituição Federal de 1988. A permanência do autoritarismo no Brasil perpassa pela continuidade de determinadas instituições e da mentalidade antidemocrática/inquisitiva, que persistiu no momento da transição do período ditatorial para o democrático.(12) 

Nesse sentido, a coleta, armazenamento e registro do perfil genético de condenados/acusados em vários pontos violam o ordenamento jurídico constitucional, como a garantia constitucional da não autoincriminação, a inviolabilidade corporal e a presunção de inocência, conforme dispõe artigo 5°, incisos LXII e LVII, da Constituição Federal(13) e artigo 8,2, alínea g, da Convenção Americana de Direitos Humanos(14).

O banco nacional de identificação genética possui o condão de viabilizar a expansão dos dispositivos de punição e controle social. O Estado penal se agiganta para selecionar os “desviantes”, a partir de uma etiologia positivista, e a violência está cada vez mais inserida na sociedade da vigilância e do controle, que através da futurologia visa intervir pré e pós o cometimento de delitos.

Aqui cabe novamente a reflexão: Se a Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos vedam a punição corporal, por que leis infraconstitucionais autorizam tal intervenção? As modificações trazidas pela Lei anticrime sobre a coleta de perfil genético deveriam ter sido afastadas, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de tal intervenção corporal. 

Submeter de forma obrigatória alguém a uma intervenção corporal, igualmente, a previsão legislativa de reconhecer como falta grave a recusa do réu em fornecer seu material genético, o registro em banco genético de criminosos de pelo menos 20 (vinte) anos no caso de condenação, asseveram o ultrapunitivismo do sistema punitivo e sua constante busca por expansão das formas de punição e controle, tais como a pena corporal.

Portanto, não há como negar que alusões à “identificação” e outros instrumentos discursivos servem apenas para mascarar a operacionalidade da coleta do material genético enquanto elemento probatório,(15) bem como o fato da dilação futura dos efeitos das penas aplicadas.

Ademais, as proposições chocam-se com a dignidade da pessoa humana, seja enquanto fundamento da República, artigo 1°, inciso III, seja como princípio matriz que irradia as bases dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais, como a proteção da integridade física e mental de um acusado, ao menos pensando-se aqui em um modelo acusatório.  Arremata Lopes Júnior: “submeter o sujeito passivo a uma intervenção corporal sem seu consentimento é o mesmo que autorizar a tortura para obter a confissão no interrogatório quando o imputado cala, ou seja, um inequívoco retrocesso.”(16)

Submeter de forma obrigatória alguém a uma intervenção corporal, igualmente, a previsão legislativa de reconhecer como falta grave a recusa do réu em fornecer seu material genético, o registro em banco genético de criminosos de pelo menos 20 (vinte) anos no caso de condenação, asseveram o ultrapunitivismo do sistema punitivo e sua constante busca por expansão das formas de punição e controle, tais como a pena corporal.

Aqui cabe novamente a reflexão: Se a Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos vedam a punição corporal, por que leis infraconstitucionais autorizam tal intervenção? As modificações trazidas pela Lei anticrime sobre a coleta de perfil genético deveriam ter sido afastadas, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de tal intervenção corporal. 

O banco nacional de identificação genética possui o condão de viabilizar a expansão dos dispositivos de punição e controle social. O Estado penal se agiganta para selecionar os “desviantes”, a partir de uma etiologia positivista, e a violência está cada vez mais inserida na sociedade da vigilância e do controle, que através da futurologia visa intervir pré e pós o cometimento de delitos.

3. Conclusão

As explanações até aqui expostas cumprem o objetivo do presente artigo em propor uma análise crítica sobre a Lei Anticrime, especialmente, sobre a extração de material genético de acusados/condenados. Fundamentalmente, buscou-se expor as implicações da extração e do armazenamento de perfil genético, que foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 12.654/2012, bem como as modificações sobre essa matéria trazidas pela Lei Anticrime.

Apesar de alguns avanços previstos na Lei Anticrime, o debate ora proposto no presente estudo buscou, de maneira central, apresentar reflexões críticas sobre as modificações implementadas pela novel legislação sobre a extração, armazenamento de material genético de condenados/acusados. Frisa-se que de maneira alguma pretendeu-se um estudo exaustivo sobre o assunto. Em razão de que inexiste pesquisa completa, o conhecimento científico sempre precisa de constantes aprofundamentos teóricos e empíricos.

Enfatiza-se que a rápida expansão tecnológica que permeia as sociedades contemporâneas não deixaria de fora os novos dispositivos de controle e punição. Entretanto, tais dispositivos de prevenção e repressão da criminalidade não podem significar a relativização de direitos fundamentais.

Portanto, o que se observa no contexto brasileiro é a conservação e o fortalecimento de um processo penal autoritário, além de um imobilismo jurídico-social frente aos constantes/permanentes ataques ao devido processo legal. Isso significa a continuidade das violências institucionais, que corroboram uma escalada do encarceramento em massa e a estigmatização de grupos sociais vulneráveis, especialmente da população jovem, negra e moradora de regiões periféricas.







Notas de rodapé


(1) ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p.134.

(2) ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p.136.

(3) BRASIL. Lei n.º 13.964 de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: 04 fev. 2020.

(4) GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideais autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirand Lo Blanch, 2018. p. 441.

(5) GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas marcas inquisitoriais do Código de Processo Penal brasileiro e a resistência às reformas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, n. 1, p. 143-165, 2015. p.148. Disponível em: <http://www.ibraspp.com.br/revista/index.php/RBDPP/article/view/8>. Acesso em: 04 fev. 2020.

(6) CASARA, Rubens Roberto Rebello. A ampliação das hipóteses da prisão preventiva: uma corrupção das conquistas civilizatórias. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 277, p. 21-22, dez. 2015. p.21. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/pdfs/Boletim277.pdf>. Acesso em: 04 fev. 2020.

(7) FREITAS, Felipe da Silva. A que será que se destina? O pacote de moro e a escalada autoritária do Estado brasileiro. In: RIOS, Lucas P. Carapiá; NEVES, Luiz Gabriel Batista; ASSUMPÇÃO, Vinícius de Souza (Org.). Estudos temáticos sobre o “pacote anticrime”. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p.33.

(8) BRASIL. Lei nº 12.654, de 28 de maio de 2012. Altera as Leis nºs 12.037, de 1º de outubro de 2009, e 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, para... Disponível em:  <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm>. Acesso em: 05 fev. 2020.

(9) BRASIL. Lei 12.037, de 1° de outubro de 2009. Dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado, regulamentando o art. 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12037.htm>. Acesso em: 05 fev. 2020.

(10) A obrigatoriedade da extração de material genético é discutida no Supremo Tribunal Federal no RE 973.837.

(11) BRASIL. Lei n.º 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 05 fev. 2020.

(12) GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideais autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirand Lo Blanch, 2018. p. 594.

(13) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm . Acesso em: 05 fev. 2020.

(14) COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção americana de direitos humanos. Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: < https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 05 fev. 2020.

(15) LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 492.

(16) QUEIJO, Maria Elizabeth. O princípio nemo tenetur se detegere e a coleta de material genético: identificação criminal ou colaboração na produção da prova? Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 250, set. 2013. p. 8.


A justificativa dogmática para o crime de infração de medida sanitária preventiva

Fernando Andrade Fernandes

Pós-Doutor em Direito Penal pela Universidade de Salamanca.

Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

Mestre em Direito pela UFMG.

Professor Assistente da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0485191470301548

ORCID: 0000-0002-6801-3356

feranfer@uol.com.br

Giuseppe Cammilleri Falco

Mestrando e graduado em Direito pela UNESP.

Advogado.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0425322094561553

ORCID: 0000-0002-5734-9006

giuseppecfalco@gmail.com

Resumo: A proliferação do vírus transmissor da COVID-19 motivou a edição de diversos textos normativos prevendo medidas de contenção da disseminação da doença. Assim, surgiu a pergunta se aqueles que descumprirem tais medidas sanitárias poderiam ser responsabilizados pelo crime previsto no art. 268 ou pelo crime descrito no art. 330 do CP. Isto porque, ambos visam resguardar o cumprimento de norma legal. Deste modo, para que o crime do art. 268 do CP não se torne letra morta, propõe este texto que na sua interpretação seja considerada a doutrina dos crimes de infração de dever, sobretudo por imporem à pessoa uma conduta de garantia da contenção do vírus causador da COVID-19. Em conclusão, o objetivo deste texto é identificar qual é a funcionalidade dogmática do crime de infração de norma sanitária (art.268 do CP), especificamente no contexto da pandemia de COVID-19.  

Palavras-chave – Norma sanitária, dever, crime, COVID-19.

Abstract: The proliferation of the COVID-19 brought several legal texts with containment measures of deases. So emerged the question if those who disobey these new legal order should be charge by the crime descript in the art. 268 of brasilian penal code or art. 330, this beacause those two crimes aims to protect the legal text. That way, for the crime descript in the art.268 wont be unusable, this excerpt propose that these crime is sustained by the interprtation of duty violation crimes, above all, because they require a active conducts of the citizen to guarantee the contention of the dissemination of the virus. In conclusion, the gola is to find a dogmatic funcionality for the crime of breach of health rule.

Keywords – Healf rule, duty, crime, COVID-19







Data: 06/01/2021
Autores: Fernando Andrade Fernandes e Giuseppe Cammilleri Falco

A proliferação da pandemia de COVID-19 criou um contexto social que há muito não nos deparávamos, qual seja, a edição de legislações municipais, estatuais e federais (ao que parece de caráter provisório) contendo medidas visando a sua contenção. Essas medidas são diversas e vão desde o uso obrigatório de máscara, passando por imposição de multas e chegando até a avançar sobre a configuração de tipos penais.

Em especial a Lei 13.979,(1) publicada em 06 de fevereiro de 2020, trouxe ao Ordenamento Jurídico brasileiro medidas de enfrentamento à pandemia de COVID-19. Diante disto, o governo federal, em 17 de março de 2020, editou a Portaria Interministerial 5,(2) a qual, em seu art. 4º, caput, determinou que o descumprimento das medidas previstas no inciso I e nas alíneas "a", "b" e "e" do inciso III do caput do art. 3º da Lei 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos art. 268 e art. 330 do Código Penal se o fato não constituir crime mais grave. O citado art. 3º da Lei 13.979/20 possibilita às autoridades, no âmbito de suas competências, a adoção de medidas para o enfrentamento da emergência de saúde causada pela pandemia, tais como isolamento social, quarentena, entre outros. Assim, por raciocínio simples, a Portaria Interministerial 5, ao explicitar o entendimento de que o descumprimento das medidas adotadas em face da pandemia de COVID-19 pode configurar a prática de delitos, tem por objetivo fazer cumprir as orientações da citada Lei 13.979/2020. Além disso, uma vez que a Lei de enfrentamento à pandemia não delimita, objetivamente, quais autoridades poderão adotar tais medidas, tudo leva a crer que a Portaria Interministerial 5 de 2020 aplicar-se-á, ainda que na circunscrição da competência da autoridade, sempre que houver uma medida formal oriunda de autoridade competente que vise a contenção da pandemia de COVID-19. Ou seja, a citada Portaria, a priori, tem efeitos nas legislações municipais, estaduais e federais.(3) 

Posta esta situação, impõe-se atenção aos tipos previstos nos artigos 268 e 330 do CP, até então praticamente em desuso, sendo que o primeiro se localiza no Capítulo dos crimes contra a saúde pública, enquanto o segundo integra o capítulo dos crimes praticados por particular contra a administração pública em sentido amplo. A doutrina mais tradicional, na esteira da topologia dos delitos, entende que o crime de desobediência (art. 330 do CP) visa proteger o bom funcionamento da administração pública, ao passo que o crime de infração de medida sanitária preventiva proteger a saúde pública (art.268 do CP).(4) 

Porém, a aproximação teleológica da descrição típica destes dois crimes nos permite questionar a mencionada associação. Isto porque as expressões “determinação do poder público” (presente no art. 268 do CP) e “ordem legal” (grafada no art. 330 do CP) trazem significados muitos semelhantes, traduzindo-se na existência de um comando legal de comportamento, oriundo de uma autoridade competente, fundamentado em lei vigente, que deve ser cumprido pelo destinatário da norma. Neste ponto, diferenciam-se somente pela origem do comando. O art. 268 do CP é uma norma penal em branco, complementada, no caso da Pandemia de COVID-19, pela Lei 13.979/20, que, por sua vez, é complementada por um Decreto. Enquanto isso, o art. 330 do CP aplica-se de forma mais ampla, não necessitando de tais medidas excepcionais como complemento.

Assim, entendendo que o tipo do art. 330 do CP abarca a conduta descrita no tipo penal que descreve o crime de infração de medida sanitária preventiva, cabe indagar sobre qual é a justificativa normativa para positivação do crime do art. 268 do CP, de modo a possibilitar a sua aplicação nos casos concretos. Ressalvadas as questões político criminais e os questionamentos sobre a legitimidade constitucional destas medidas, que não serão tratadas neste excerto, do ponto de vista dogmático, a pergunta somente pode ser respondida à luz dos crimes de infração de dever, sob pena do tipo do art. 268 do CP estar condenado à inutilidade.

Fazendo apelo à doutrina germânica, em virtude da especialidade deste tema, entende-se que para a convivência harmônica é necessário o respeito a um rol de deveres impostos a cada integrante da sociedade, visando o cumprimento das expectativas de sociabilidade.(5) Por exemplo, todos estão sujeitos ao dever de não lesar fisicamente o outro.(6) Esses, os chamados deveres negativos.

Todavia, alguns integrantes da sociedade, por ocuparem – ainda que momentaneamente – posições diferenciadas no âmbito social, detêm rol especial de deveres. Assim, a norma cumpre uma função de imposição de deveres (gerais e especiais) pela via comunicativa.

Dentro desta lógica, os crimes de infração de dever pertencem a um conjunto de delitos em que o agente não somente está sujeito a deveres especiais, advindos de normas penais por excelência, mas, também, a obrigação normativa extrapenal de assegurar as expectativas de comportamento.(7) Por isso, são chamados de deveres positivos.

Ademais, tais deveres positivos podem ser divididos em duas espécies, quais sejam, os deveres positivos gerais e os deveres positivos especiais. Os primeiros, destinam-se a todas as pessoas, sob o fundamento da solidariedade intersubjetiva, cabendo - em determinadas situações – a pessoa reduzir riscos ou agir em nome de um dever. Os deveres positivos especiais, esses – propriamente – decorrem do status especial da pessoa perante a sociedade.(8) 

Logo, ainda que nesta posição doutrinária todos os crimes importem em uma infração de dever normativo (negativos ou positivos), os crimes de infração de um dever positivo se diferenciam dos demais não somente pelo dever especial do agente, mas, sobretudo, por conta da obrigação (dever) oriunda de norma extrapenal a que está submetido o agente.

Nestes casos, a posição de garantia do dever faz, inclusive, com que omissão do agente possa ser objeto de punição (omissão punível).(9) Por exemplo, o médico que infringe alguma norma do código de ética (norma extrapenal) para dar preferência ao atendimento de paciente do seu interesse pessoal à despeito da necessidade de outros doentes.  

Em resumo, ao menos para o que aqui interessa, visualizam-se dois grupos de crimes: os crimes comuns, que visam assegurar a validade da norma vigente e garantir o cumprimento das expectativas de comportamento,(10) e os delitos de infração de dever que, além das finalidades dos crimes comuns, têm por objetivo assegurar a observância de categorias normativas de responsabilidade especial, advindas de normas extrapenais.

Sobre este entendimento, há de se recordar que o crime do art. 268 do CP é uma norma penal em branco que, por isso, necessita de uma norma extrapenal para sua aplicação. Logo, por meio da responsabilização penal, o crime de infração de medida sanitária preventiva visa a eficácia das normas sanitárias, que, ressalta-se, no caso da COVID-19, foram previstas na Lei 13.979/2020 e passaram a ser válidas somente após a edição de Decreto nesse sentido.

Assim, onde estiver vigente uma determinação oriunda de poder público para a prevenção da proliferação da doença, necessariamente se verificará a sua inserção no rol de deveres das pessoas cobertas pelo alcance da “determinação do poder público”, prevista no art. 268 do CP, além de outros, que também podem ser decorrentes da nova determinação legal. Por exemplo, se for publicado um decreto municipal na cidade X ordenando o uso de máscaras em ambientes públicos, é dever de todos, ainda que dentro dos limites do município X, o cumprimento da medida.(11) 

Todavia, em que pese estes novos deveres oriundos das legislações sanitárias serem impostos sem diferenciação de categorias de pessoas, eles devem ser incluídos no rol de deveres positivos gerais. Isto porque decorrem de um contexto temporário da sociedade, em razão do qual o descumprimento de comandos extrapenais (normas sanitárias) causa intolerável incremento de risco à saúde de todos (perigo comum). Nesse sentido, a ação (comissiva ou omissiva) em oposição à norma sanitária, ressalvadas as especificidades do caso concreto, em que será necessária a análise dos critérios de imputação, poderá configurar o crime do art. 268 do CP.

O ponto central é que as medidas excepcionais visando a não proliferação da COVID-19 impõem uma alteração do comportamento costumeiro, passando a exigir das pessoas condutas de contenção da disseminação do vírus, seja de forma comissiva (colocar máscara) ou omissiva (isolamento social). Logo, o comando normativo destas medidas temporárias é no sentido de que não basta que a pessoa não ofenda o sistema de saúde pública, o que está resguardo pela norma penal, mas sim que todos assegurem, por meio das condutas impostas nestes atos normativos, a contenção da proliferação do vírus, esta sim, obrigação advinda da norma extrapenal (Lei 13.979/20 e eventual Decreto adotado no âmbito das competências específicas). Isto porque este momento pandêmico exige um incremento do dever de solidariedade geral, visando a redução de riscos à saúde.

Sendo assim, o crime de infração de medida sanitária preventiva é um crime de infração de dever positivo geral, pois se insere no rol de deveres daqueles que são os destinatários da determinação do poder público, estando sujeitos à obrigação de cumprimento de normas extrapenais e, por ora, temporárias.

Contudo, deve-se salientar que a imputação do crime do art. 268 do CP não exclui a aferição do elemento pessoal do agente (dolo ou culpa). Isto porque, embora a doutrina majoritária informe que, no delito de violação de norma sanitária preventiva, necessite somente de dolo genérico, o que levaria ao entendimento de que – por ser crime de infração de dever – bastaria a observância do elemento da consciência para a configuração do dolo. A estrutura dos crimes de infração de dever, pelo contrário, impõe a verificação do dolo direcionado à infração da medida temporária, onde inclui-se o elemento volitivo no sentido de subversão do dever imposto pela norma extrapenal.

Assim, a partir da correta delimitação normativa do elemento pessoal deste crime, o que é negado pela doutrina majoritária, poder-se-á demarcar o alcance do tipo, impedindo a penalização de condutas irrelevantes em relação à vigência da norma penal. Ou seja, para entender o alcance do tipo, há necessidade de distinguir, por meio da análise do elemento pessoal, as condutas de diferentes níveis de violação do decreto sanitário preventivo. Afinal, ainda que adotado o método da imputação objetiva, há necessidade de verificação dos elementos pessoais, sob pena da ocorrência de responsabilização penal objetiva inadmitida pelo ordenamento jurídico pátrio.

A aferição do elemento pessoal doloso é ainda mais relevante no caso do crime do art. 268 do CP, uma vez que este não admite a modalidade culposa. Em outras palavras, a diferenciação do elemento pessoal distingue a punição, ou não, do indivíduo. Sendo assim, partindo do pressuposto de que o dolo é uma especificidade da culpa stricto sensu, a necessidade de verificação do elemento volitivo (aqui entendido como elemento de distinção entre o dolo e a culpa) faz-se necessária, em que pese defenda-se que o tal crime tenha natureza de infração de dever positivo geral. O afastamento deste raciocínio levaria à hipótese de equiparação de conduta absolutamente distintas do ponto de vista normativo.

Por exemplo, não seria razoável considerar, que organizar uma festa com grande aglomeração de pessoas em tempos de isolamento social tem o mesmo grau de lesividade normativa que o simples deslocamento ao supermercado. Haja vista que, uma festa, que não se inclui no rol de atividades essenciais, ou seja, perfeitamente evitável, promove atitude diametralmente oposta às expectativas de comportamento em tempo de pandemia de COVID-19, mostrando, portanto, absoluta indiferença do agente para com a norma. De outro lado, ir ao supermercado é uma atividade completamente indispensável, tanto que está incluída no rol de atividade essenciais e, por isso, completamente convergente à expectativa normativa temporária. Em outras palavras, diante dos fundamentos expostos, a análise do elemento pessoal deixa evidente que não cabe a responsabilização penal pelo crime do art. 268 do CP para o sujeito que vai ao mercado, mas sim para aquele que organizou a festa.

No mais, seguindo o entendimento extraído da mencionada doutrina germânica, no sentido de que a pena deve ser uma resposta contrafática proporcional à oposição à norma penal violada(12) e considerando a medida da pena prevista para o crime do art. 268 em relação a crime descrito pelo art. 330, ambos do CP, percebe-se que o crime de infração de medida sanitária preventiva é crime com maior potencial lesivo. O que também indica que este é um crime de infração de dever positivo, uma vez que há maior necessidade de repressão deste conjunto de crimes, pois as expectativas dos deveres positivos gerais não somente abarcam a obrigação de não lesar, como, também, a de solidariedade. Prova disto, é, por exemplo, o agravamento de pena, com base no art. 61, inciso II, alínea j) do CP pela prática de delitos em circunstâncias de calamidade pública, quando se espera que o valor da solidariedade guie as condutas sociais.

Em conclusão, o fundamento na ideia da infração de dever positivo geral para o reconhecimento do conteúdo penal nas normas sanitárias em face à COVID-19 é o único capaz de justificar a existência do delito do art. 268 do Código Penal. Esse que, em definitivo, confere responsabilidade especial àqueles submetidos à norma extrapenal, essa sim, que traça medidas materiais de contenção da proliferação da doença.



Notas de rodapé

(1) Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm. Acesso em: 24 abr. 2020.

(2) Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-5-de-17-de-marco-de-2020-248410549. Acesso em: 24 abr. 2020

(3) Neste ponto, vale lembrar que em 15/04/2020 o Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI 6341, ao referendar medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio, assentou a competência dos estados e municípios para, via decreto, legislarem sobre medidas preventivas de contenção da proliferação do vírus causador da COVID-19.

(4) NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

(5) “Ser pessoa significa representar um papel” JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional. Tradução de Mauricio Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. p.30.

(6) “Todo ordenamento regulador de la existência de personas, esto es, todo ordenamento social, contiene como mínimo el deber que se impone a toda persona de no danar a otra persona” JAKOBS, Gunther. Dogmática de derecho penal y la configuracion normativa de la sociedad. 1. ed. Madrid: Thomson Civitas, 2004. p. 149.

(7) “Los delitos que resultan del ámbito de un deber positivo se llaman delitos de infracción de deber y solo pueden ser cometidos por el titular de un determinado status, por una persona obligada precisamente de forma positiva” JAKOBS, Gunther. Dogmática de derecho penal y la configuracion normativa de la sociedad. 1. ed. Madrid: Thomson Civitas. Madrir, 2004. p.153.

(8) “A partir de aquí, puede trazarse una ulterior distinción en el seno de los deberes positivos entre deberes positivos generales y deberes positivos especiales. Los primeros se dirigen a todos los ciudadanos y tienen como fundamento genérico la solidaridad intersubjetiva. (...) Tal condición de obligado especial la otorga –en la terminología de JAKOBS- la entrada voluntaria en una “institución” (p. ej. la Administración pública)” PLANAS, Ricardos Robles. Deberes negativos y positivos en derecho penal. Indret: Revista para el análisis del derecho, [s. l.], ano 4, out. 2013. Disponível em: https://indret.com/deberes-negativos-y-positivos-en-derecho-penal/. Acesso em: 5 jun. 2020. p.  7.

(9) JAKOBS, Gunther. Ação e omissão no direito penal. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.

(10) “A partir da perspectiva de que partimos, o funcionalismo jurídico-penal se concebe como aquela teoria segundo a qual o Direito Penal está orientado a garantir a identidade normativa, a garantir a constituição da sociedade.” JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa: Teoria de um direito penal funcional. Tradução de Mauricio Antônio Ribeiro Lopes – Barueri: Manole. 2003. p.1.

(11) Neste ponto, ainda que não caiba nos limites deste texto, é oportuna uma discussão acerca do alcance da norma penal em relação à competência da autoridade editora do Decreto cuja resposta, certamente, influenciará na eventual imputação do crime.

(12) JAKOBS, Günther. Sobre la teoria de la pena. Tradução Manuel Cancio Melia. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998.

Referências

AGAPITO, Leonardo Simões. Crimes de Infração de Dever: A conduta Omissiva do Fiscal e sua Responsabilidade jurídico penal. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista,, Franca, São Paulo, 2015.

JAKOBS, Gunther. Ação e omissão no direito penal. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.

JAKOBS, Gunther. Dogmática de derecho penal y la configuracion normativa de la sociedad. Madrid: Thomson Civitas, 2004.

JAKOBS, Günther. Sobre el tratamiento de los defectos volitivos y de los defectos cognitivos. In: JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas/UAM, 1997.

JAKOBS, Gunther. Sobre la teoria de la pena. Tradução Manuel Cancio Melia. Bogotá: Universidad Externado de Colombia,1998.

JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa: Teoria de um direito penal funcional. Tradução de Mauricio Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.

JAKOBS, Gunther. Uma teoria da obrigação jurídica. Tradução de Mauricio Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

PLANAS, Ricardos Robles. Deberes negativos y positivos en derecho penal. Indret: Revista para el análisis del derecho, [s. l.], ano 4, out. 2013. Disponível em: https://indret.com/deberes-negativos-y-positivos-en-derecho-penal/. Acesso em: 5 jun. 2020. p.  7.



A razoável duração do inquérito policial

Octavio Augusto da Silva Orzari

Mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Professor voluntário da Universidade de Brasília.

Ex-delegado da Polícia Federal. Advogado.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0595679479738337

ORCID: 0000-0002-9460-8257

octavio@advocaciamac.com.br


Resumo: O artigo discute a importância da definição legislativa de um prazo de duração do inquérito policial e de sua efetiva observância em um cenário de debates legislativos e de dificuldades práticas do sistema de justiça criminal. Aborda proposta de projeto de lei originário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e argumenta pela necessidade de sua aprovação, tanto do ponto de vista da atuação dos órgãos da persecução penal quanto sob a ótica de sua harmonia com as normas infraconstitucionais, da premência indicada pela jurisprudência e dos direitos fundamentais do indivíduo.

Palavras-chave: Inquérito policial. Prazo. Razoável duração. Proposta legislativa.

Abstract: the article discusses the importance of a legal definition of a conclusion term for the police inquiry and the importance of its effective observance, due to legislative debates and difficulties of the criminal justice system. Adresses a legislative proposal of the Instituto Brasileiro de Ciências Criminais and defend its approval, considering the view of the public agencies responsible for the criminal justice system, the law, judicial precedents and the effectiveness of fundamental rights.

Keywords: Police inquiry. Term. Reasonable duration. Legislative proposal.


Data: 06/01/2021
Autor: Octavio Augusto da Silva Orzari

Em artigo denominado “O tempo do processo penal”, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Reis Júnior faz importantes reflexões sobre as propostas legislativas e o sistema de justiça criminal, sob a perspectiva da duração do processo penal.(1) Após demonstrar que significativa porcentagem de equívocos de julgamento das instâncias ordinárias são corrigidos pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, e que são raros os casos de extinção da punibilidade pela prescrição, o ministro faz o que chama de “uma penitência”: constata a condescendência da jurisprudência do STJ com a desobediência aos prazos legais que regem o processo penal, em razão do despreparo do sistema judicial em suportar o volume exorbitante de processos que devem ser apreciados.

Enquanto o leigo, embalado por fake news, critica infundadamente os tribunais superiores e clama pela flexibilização da indiscutível aplicação da pena após o trânsito em julgado, uma relevante engrenagem do sistema de justiça criminal é esquecida no debate sobre a demora do processo penal: o inquérito policial.

Considerando-se que não é observada a previsão legal de prazo de duração do inquérito de 30 (trinta) dias, para o investigado solto, e de 10 (dez) dias no caso de investigado preso em flagrante ou preventivamente (art. 10 do CPP), é necessária a determinação de um prazo máximo para o encerramento de inquéritos que, muitas vezes, mesmo sem fundamento e sem continuidade das diligências investigatórias, remanescem indefinidamente instaurados.(2)

O STJ não ignora a premência de se impedir investigações que se prolongam no tempo, sem motivos para tanto. Tal fato é consignado pelo Ministro Sebastião Reis Júnior ao exemplificar julgamentos em que o STJ trancou inquéritos por excesso no prazo de duração (como no HC 482.141/SP, em que o inquérito perdurou por quase 10 anos), e casos em que o tribunal fixou prazo para o seu término (como no HC 444.293/DF, no qual foi determinado prazo de trinta dias para o desfecho do inquérito, a contar da publicação do acórdão; e no RHC 91.389/SP, em que se concedeu mais noventa dias para o inquérito). No RHC 106.041/TO, inquéritos de quase 6 anos, foram trancados por estar “configurada a ineficiência estatal”, chegando-se a discutir, em substancioso voto-vista do Ministro Rogerio Schietti, critérios para se avaliar o tempo do inquérito, tais como a complexidade das investigações, das perícias, a colaboração de demais autoridades nacionais e internacionais, a evasão de pessoas chamadas a depor e a paralisação ou ausência de empenho das autoridades no esclarecimentos dos fatos. De elevado rigor científico, o voto conclui, com suporte nas legislações portuguesa, italiana e chilena, que “os códigos mais modernos costumam prever um prazo máximo de duração das investigações – em torno de 2 anos – ao cabo do qual deverá o Ministério Público oferecer a denúncia ou promover o arquivamento do inquérito”(3), prazo esse contado a partir de algum ato concreto que constitua determinada pessoa como investigada.

Embora o STJ fiscalize a razoável duração do inquérito policial em face das peculiaridades do caso concreto e da atuação estatal na investigação – tolerando-se que se ultrapasse, em muito, o prazo legal –, não há limitação temporal para o inquérito, que, em regra, não tem controle abstrato e isonômico. Em suma, a norma que define o prazo de duração do inquérito é vigente, mas ineficaz.

Nesse contexto, foi apresentado o Projeto de Lei do Senado 119, de 2017, inspirado em anteprojeto sugerido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, que, todavia, foi arquivado por inércia na tramitação. A proposta previa o prazo máximo de 720 (setecentos e vinte) dias para o decurso do inquérito, prorrogáveis por mais 30 (trinta) dias, em razão da complexidade da investigação, e verificado empenho da autoridade policial.

Consideramos que a proposta é digna de repropositura, debate e aprovação pelo Poder Legislativo.

Enquanto se coloca a prescrição como vilã do sistema criminal, sob a ótica eficientista da punição, e aparecem propostas para o aumento do prazo prescricional e de criação, legal e jurisprudencial, de novos e mais frequentes marcos interruptivos do fluxo do prazo prescricional, deve-se sublinhar que o alongamento da prescrição significa o endosso à ineficiência estatal na persecução penal. Sem prazo, ou com prazo muito dilatado ou várias vezes se reiniciando, como controlar ou se chegar aos parâmetros da razoável duração do processo, garantia fundamental do indivíduo vigente, mas não eficaz?(4)

Mas não é só: além de se contrapor à busca da celeridade pelo Estado-Juiz, como observou o Ministro Sebastião Reis Júnior em seu artigo, a alteração do regime da prescrição acarreta aval à ineficiência do Estado-Policial, o que impacta na existência de muitos inquéritos instaurados e sem rumo, indefinidamente no tempo, que aumentam os números da elevada carga de processos, e sobrecarregam ainda mais o Ministério Público e o Judiciário.

Note-se o problema gerado pela Lei 12.234, de 5 de maio de 2010, que, objetivando coibir a prescrição virtual ou em perspectiva, acabou com a prescrição em concreto para o período anterior ao início da ação penal. Ou seja, no período da investigação, entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia, não há prazo prescricional com base na pena ao final aplicada para aquele crime específico, mas tão somente pelo prazo prescricional em abstrato, o qual se baseia nos alargados prazos do art. 109 do Código Penal. Em tese, por exemplo, para um crime de furto simples, poderá haver inquérito por 8 (oito) anos (incluindo-se o tempo para denúncia e seu recebimento, tendo em vista que este interrompe o prazo prescricional – art. 117, I, do Código Penal); para um estelionato, o inquérito pode durar 12 (doze) anos; para um delito de lavagem de dinheiro, a investigação inquisitorial poderá durar 16 (dezesseis) anos; para um fato tido como tráfico de drogas, ou para um homicídio, poderá perdurar o inquérito por 20 (vinte) anos.

Sabe-se, entretanto, que as provas se esvaem com o passar do tempo. Observa-se, ademais, que as polícias judiciárias dispõem de meios para a elucidação do fato tido como criminoso em tempo muito menor do que tais prazos, haja vista a notória especialização no raciocínio ou método abdutivo do context of discovery ou contexto da investigação.(5) Sabe-se, também, que um inquérito, e um eventual indiciamento, ato técnico-jurídico fundamentado do delegado de polícia, que pode ocorrer no início ou no final do procedimento, geram ônus incalculáveis à pessoa, sobretudo se perdurarem por décadas.(6)

O Supremo Tribunal Federal determinou o arquivamento do Inquérito 4.441/DF, e outros inquéritos semelhantes instaurados na instância máxima, que perdurava há mais de 15 (quinze) meses e já tinha duas prorrogações de prazo concedidas, uma delas determinando a elaboração de relatório conclusivo sobre diligências, após insurgência da defesa, o que não foi cumprido. A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, segundo a decisão do ministro relator Dias Toffoli, deveria proferir manifestação conclusiva, seja pela denúncia, ou pelo arquivamento, ante as colheitas de provas realizadas, mas não o fez. Ao contrário, a PGR pretendeu a prorrogação do feito com inovação de providência que, há muito, poderia ter sido requisitada e com o deslocamento de competência. O STF, então, determinou o arquivamento, sem prejuízo da reabertura diante da notícia de novas provas, o que, todavia, nunca aconteceu.(7)

Por fim, a coerência sistêmica do ordenamento jurídico também demanda a previsão e a efetiva observância de prazo para o inquérito policial, pois se harmoniza com a Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019, que define os crimes de abuso de autoridade, uma vez que tipifica como criminosa a conduta de “estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado”, e daquele que “inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado” (art. 31, caput, e parágrafo único da Lei 13.869/19). Como se vê, a delimitação de um prazo promove segurança jurídica não só para o investigado, mas também para as autoridades policiais.

Do que se expôs, conclui-se que é benéfica e adequada para o sistema de justiça criminal, que geralmente é inicializado na esfera policial, a definição de um prazo para a conclusão do inquérito policial, não somente para os atores estatais envolvidos, mas também para o investigado, uma vez que significa uma medida de concretização da busca de celeridade (art. 5º, LXXVIII da CF). Da mesma forma, não se pode olvidar, em sintonia com o eminente Ministro Sebastião Reis Júnior, que é primordial o investimento na estruturação e gestão das polícias judiciárias brasileiras, do ponto de vista humano e material, com o aumento do número de delegados e investigadores, tal como se pode visualizar a necessidade do aumento do número de juízes e servidores, e com a disponibilização dos instrumentos e condições para que possa ser desenvolvida a essencial função investigativa, em detrimento de soluções legislativas sem base empírica de aumento de penas e de prazos prescricionais.






Notas de rodapé

(1) Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/324921/presuncao-de-inocencia-nao-mais-orienta-operadores-do-direito-adverte-ministro-sebastiao-reis. Acesso em: 8 set. 2020.


(2) Ainda que não seja o objeto direto deste texto e que sejam suscitadas discussões quanto à privatividade da União em legislar sobre matéria processual (art. 22, I da CF), é importante mencionar o “procedimento investigatório criminal” (PIC) e as chamadas “peças de informação” como instrumentos investigatórios do Ministério Público previstos na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Embora haja referência a prazo de noventa dias de duração de tais procedimentos, a própria resolução permite indefinidas prorrogações sucessivas, o que faz sem balizamento legal e sem controle do Poder Judiciário.


(3) STJ. RHC 106.041/TO. Voto Min. Rogerio Schietti, p. 18. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201803200569&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea. Acesso em: 8 set. 2020.

(4)  A Constituição Portuguesa atrela a celeridade processual à presunção ou estado de inocência (art. 32º, 2: Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa), o que deve ser feito na busca da máxima efetividade ou eficácia social da Constituição Brasileira, sendo pacífico que esses princípios irradiam efeitos na esfera administrativa (o inciso LXXVIII do art. 5º da CF é expresso nesse sentido), tal como no inquérito policial, superando-se, assim, a de longa data criticável doutrina do “não-prazo”, inclusive por cortes internacionais de direitos humanos, e demandando interposição normativa para a concretização constitucional. Segundo J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Uma dimensão importante do princípio da inocência do arguido, mas que assume valor autônomo, é a obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. A demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido (nomeadamente a prisão preventiva), acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência. O direito ao processo célere é, pois, um corolário daquela. Esta garantia tem a ver não só com os prazos legais para a prática dos actos processuais mas também com a sua própria observância pelo próprio tribunal.” (Constituição da República Portuguesa anotada, 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 518-9).

(5) Sobre o tema, vide BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 137-52.

(6) Segundo Roxin e Schünemann, “Ya que el proceso penal interviene sensiblemente en el círculo jurídico de aquella persona que posiblemente se encuentra incorrectamente como imputado y que la calidad de los medios de prueba disminuye com el curso del tiempo (especialmente, la capacidad de memoria de los testigos), existe un interés considerable en una administración de justicia penal rápida. De otro lado, a través de ello no se puede perjudicar demasiado el cuidado en las investigaciones.” (ROXIN, Claus; SCHÜNEMANN, Bernd. Derecho procesal penal. 1. ed. Buenos Aires: Didot, 2019, p. 174).

(7) Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5149821. Acesso em: 8 set. 2020.

 Art. 31, caput, e parágrafo único da Lei 13.869/19.


Condições do acordo de não persecução penal (ANPP): Lineamentos para confecção de cláusulas

Rogério Filippetto

Doutor e mestre em Direito pela UFMG.

Professor de Direito Processual Penal na PUC/MINAS.

Procurador de Justiça em Minas Gerais

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2076225792754833

ORCID: 0000-0002-3411-7691

rogerio.filippetto@gmail.com 


Resumo: O presente artigo cuida do instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido pela Lei 13.964/2019. O ANPP constitui manifestação do direito consensual na esfera do Processo Penal brasileiro e o estudo pretende contribuir para a elaboração de suas cláusulas, a partir de três eixos: 1- vigiar o excesso de acusação; 2- velar pela proporcionalidade no caso concreto; 3- buscar a negociação integrativa.

Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) – Condições – Elaboração de cláusulas – Negócio Jurídico Processual – Disponibilidade da Ação Penal Pública – Excesso de Acusação – Proporcionalidade – Negociação Integrativa – Dignidade da Pessoa Humana.

Abstract: This article deals with the institute of the Penal Non-Persecution Agreement (CNPA), introduced by the Law 13.964/2019. The CNPA is a manifestation of consensual law in the Brazilian Criminal Procedure and it intends to contribute for making clauses, based on three axes: 1- to monitorate the accusation excess; 2- ensure proportionality in the case; 3- look for the integrative negotiation.

Keywords: Non-Persecution Agreement (CNPA) – Conditions – Making clauses – Legal procedural business – Public criminal action dispense – accusation excess – Proporcionality – win-win negociation - Human person dignity.


Data: 06/01/2021
Autor: Rogério Filippetto

O advento da Lei 13.964/2019, resultado do que restou denominado Pacote Anticrime, trouxe diversas alterações à sistemática processual penal brasileira e, no particular que aqui interessa, deu base legal ao Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).

Referido acordo já era contemplado no ordenamento nacional, ainda que de forma polêmica por causa de sua origem. É que foi instituído através da Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Sobre ela incidia a crítica de invadir competência legislativa privativa do Congresso Nacional (art. 22, I/CF), ao estabelecer a disciplina processual do acordo, que resulta na diminuição de liberdades e, por isso, desafiando o princípio da legalidade (reserva de lei). É certo que a esse argumento se opunha o fato de o CNMP gozar de previsão constitucional que lhe dá poder regulamentar, tal qual ocorre com o congênere Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por força do art. 103-B, §4º, I/CF. Dessa forma, suas resoluções têm o atributo da força legal, sem que formalmente ostentem a envergadura de lei, por causa do caráter normativo primário decorrente da previsão do poder regulamentar contido na Constituição da República(1). De qualquer forma, agora essa discussão só tem sentido para fins de direito intertemporal, já que o instituto passou a ser tratado pelo art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei. 13.964/2019, afastando a discussão do vício de origem.

Os acordos processuais já eram conhecidos do Processo Penal, mas assumiram um destaque notável a partir da amplitude que se deu ao instituto da colaboração premiada (Lei 12.850/2013), revelando o sinal dos tempos.

É que a era pós-moderna mergulha o saber humano em novo questionamento, sugerindo incertezas ao que se mostrava incontestável, constituindo um tempo onde o piso é movediço e as fronteiras imprecisas, possibilitando a inter e a transdisciplinaridade na resolução de questões que se impõem, como exemplificativamente sucede na dialogue des sources(2). Um dos resultados disso, é certa ruptura do saber posto. Por sua vez, um reflexo disso no Direito pode ser sentido no afastamento, agora em definitivo, do dogma do princípio da obrigatoriedade, que levava à indisponibilidade da ação penal pública. Numa perspectiva de Direito material, é possível dizer que esse contexto próprio da pós-modernidade é resultado do desenvolvimento de uma sociedade de riscos (Risikogesellshaft), que se incrementa a partir do modelo social pós-industrial, sob a influência da revolução tecnológica, onde os bens jurídicos se submetem a riscos não delimitáveis, globais e que podem afetar um número indiscriminado de pessoas. São bens jurídicos metaindividuais de matiz abstrato, caracterizados pela incerteza de seus contornos(3). Já sob o prisma processual, torna-se possível cogitar de instrumentos que rompem com a tradição. Tempos diferentes, instrumentos diferentes.

Referido fenômeno de mitigação da obrigatoriedade da ação penal já era experimentado à vista de institutos despenalizantes contidos na Lei 9.099/95, como a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo, falando-se em disponibilidade regrada da ação penal para infrações de menor potencial ofensivo(4). Isso foi estendido às infrações graves, com a possibilidade de benefícios, como o não oferecimento da denúncia, quando celebrada a colaboração premiada. E agora, isso se aperfeiçoa de maneira absoluta por também contemplar uma possibilidade de disposição da ação penal nos casos de crimes de médio potencial ofensivo, vale dizer, no caso de infrações cuja pena mínima cominada é inferior a quatro anos e não se encaixa no conceito de infração de menor potencial ofensivo. Portanto, incide uma disponibilidade regrada sobre a ação penal pública, desde os crimes de menor potencial ofensivo até os crimes graves, passando agora pelas infrações de médio potencial ofensivo, ou de média gravidade.

A resistência ao que é novo é mais do que comum, porque próprio do ser humano. Mas os acordos como um todo refletem o tempo em que se vive, onde há a necessidade de interação dos postulados do common law e do civil law. Aquele mais aberto e este mais restrito, justamente pela inspiração juspositivista de restrição à legalidade estrita. Não se trata da adoção da negociação ampla, geral e irrestrita no ordenamento criminal, nos moldes do plea bargain, pois não há possibilidade de disposição sobre a tipicidade, por exemplo, mas admite-se a assunção de condições e obrigações para o não oferecimento da denúncia, cuja observância pode levar à extinção da punibilidade. Essas práticas já influenciam sistemas jurídicos de matiz continental europeu, denotando a possível convivência da diversidade, que se assemelham ao ordenamento brasileiro, através de institutos como o nolo contendere italiano, evidenciando a plena compatibilidade.

De se repelir eventual crítica de ausência de ajuste dos acordos ao modelo brasileiro, já que oriundos de sistemas onde há maior liberdade individual negocial (plea bargain), privilegiando a autonomia da vontade das partes, em formato desburocratizado que dispensa o filtro do Ministério Público e do Poder Judiciário para as avenças. O ajuste envolve apenas o infrator e o representante do Executivo, podendo incidir desde a quantidade de pena até à própria configuração jurídica da conduta. A intervenção formal do Estado, através dos componentes do sistema de Justiça (Ministério Público e Poder Judiciário) se faz necessária no modelo nacional, uma vez que se busca a efetividade do princípio da igualdade, resguardando o equilíbrio na relação estabelecida, de modo a velar pela parte hipossuficiente ou processualmente vulnerável, prevenindo acordos leoninos, como pode acontecer no paradigma americano.

Esse formato consensual traz para o Processo Penal a possibilidade de uma atuação resolutiva que afasta uma perspectiva demandista, comprometedora da eficiência judicial. Resguarda-se o acesso à Jurisdição para situações ou momentos gravados pela imprescindibilidade, com o escopo de se atingir a paz social ou a preservação da liberdade. O resultado disso é um nítido empoderamento do Ministério Público, capaz de gerar incompreensão e desagrado ou rompimento da necessária paridade. Exatamente por isso, majora-se a responsabilidade de atuação do órgão de acusação, sendo necessário pautar-se por diretrizes redutoras do subjetivismo na confecção dos acordos. Sempre haverá um espaço decorrente da atuação humana, de modo que é inviável preconceber fórmulas ajustadas às possíveis situações. Não há espaço para um etiquetamento de casos, suprimindo a sensibilidade humana, de modo que os acordos devem ser fruto de uma inteligência (não artificial). No entanto, é possível e recomendável a submissão a padrões mínimos (guide lines), para a elaboração das cláusulas do ANPP, sugerindo-se a observância de três condutas: 1- vigiar o excesso de acusação; 2- velar pela proporcionalidade no caso concreto; 3- buscar a negociação integrativa.

Tem-se por excesso de acusação uma postura que extrapola no pedido aquilo que seria realmente devido, sob a inspiração dos ideais de Justiça. Trata-se de prática quase que cultural e de longa tradição de órgãos de acusação, que buscam o mais, para eventualmente garantir o menos. Veja-se o caso das qualificadoras do homicídio quando, cogitáveis, nem sempre são prováveis, sendo praticamente certo o decote. Mas como instrumento de retórica, a acusação nelas insiste na denúncia, muitas vezes sabendo que não se sustentam até o fim. Cuida-se de uma manifestação da Teoria dos Jogos, em que de maneira enviesada se busca atingir a Justiça ao final. A estratégia é, pois, acentuar a pretensão acusatória, admitindo internamente a sua restrição, mas de modo a potencializar um resultado punitivo, não necessariamente comprometido com postulados de Justiça. Práticas semelhantes fragilizam a credibilidade ministerial e forçam a criação de instrumentos de controle. No caso do ANPP, existe o desconfortável § 5º do art. 28-A, que possibilita o controle judicial para provocar a adequação da proposta quanto ao seu mérito, quando a avaliação de tal medida deveria ser submetida a controle interno e não externo, por se tratar de disponibilidade da ação penal, cujo titular é o Ministério Público (art. 129, I/CF). Aqui, como em outros pontos, esse irregular freio é imposto como receio de eventual abuso no direito de acusar, rotulando negativamente o exercício da acusação, razão pela qual se deve vigar para evitar a sua utilização.

Noutra vertente, há de informar a proposta, preceitos de proporcionalidade(5). A proporcionalidade é daqueles conceitos de difícil materialização concreta, constituindo muito mais uma ideia a ser perseguida do que propriamente algo realizado. Aliás, parece ser uma busca constante desde os primórdios da Lei do Talião, na qual numa proporcionalidade matemática se buscou a limitação do poder de punir. Humberto Ávila e Robert Alexy(6) se debruçaram em fórmulas redutoras da proporcionalidade, que contribuíram para a construção da ideia de proporcionalidade, mas não foram totalmente seguras para a sua identificação concreta. Com todos esses esforços, parece que há um campo onde se pode trabalhar, sob a orientação de dois princípios: a proibição de excesso e a vedação de proteção deficiente.

Assim, sob a perspectiva da proibição de excesso, não se deve valer de instrumento desproporcional no sentido de extrapolar critérios de necessidade para se prevenir e reprovar o crime, impondo ao indivíduo medida desarrazoada. Ao mesmo tempo, não se deve invocar providência que não atenda a critérios de suficiência, dotando de ineficácia a medida escolhida em contraste com a infração praticada. Mas, se isso ainda se manifesta por demais abstrato, haverá um norte legal para a fixação das condições a serem avençadas: as circunstâncias judiciais do art. 59/CP. Tais circunstâncias provocam a análise do agente e do fato, esmiuçando sentimento de reprovabilidade social que incide sobre a conduta, de modo a permitir conceber concretamente o suficiente e necessário para contrastar o crime através de condições ajustadas.

Por outro lado, há de se atentar para os casos em que a conduta produz efeitos panprocessuais, vale dizer, que a sua reprovabilidade extrapole os limites exclusivos do processo penal, para fazer incidir uma repulsa ainda mais intensa. Imagine-se situação de crime contra a administração pública, em que a condenação importaria efeitos que poderiam dar ensejo à causa de inelegibilidade contida na LC 64/90. Nessas hipóteses, redobra-se a gravidade da conduta, autorizando que as condições se inspirem em resultados outros, além dos estritamente penais, para que se guarde paridade entre o fato e as condições sugeridas.

A última conduta a ser observada é a de se buscar uma negociação integrativa, que se manifesta como sendo uma negociação na qual cada participante atinge seu objetivo, com a criação de valores para todos os interessados. Trata-se de um acordo do tipo win-win(7), que se opõe às práticas negociais tradicionais, que buscam a supremacia de um negociante sobre o outro, caracterizando-se por tratativas gananciosas, onde o lucro de um, pressupõe prejuízo para outro, o que é próprio da negociação distributiva. Essa inversão do senso comum negocial privilegia os ganhos como aspectos positivos da negociação, de modo a se distribuir esses ganhos, minimizando os aspectos negativos a serem suportados. Em se tratando de processo criminal, é natural que o agente procure maximizar a sua liberdade, enquanto o Estado-acusador almeja concretizar as consequências legais. A maximização dos ganhos aparece de um lado, ao se alcançar um ponto médio que afaste a impunidade, satisfazendo aspectos relacionados com a retribuição e a prevenção, de modo a realizar os anseios persecutórios do Estado. De outro lado, também surgem valores ao se evitar as agruras do cárcere ou a maior limitação da liberdade decorrente das penas não corporais, o que representa um ganho sensível para o agente. Trata-se de incremento na humanização da aplicação da lei, com nítida inspiração pro homine.

Formuladas as condições a partir dos mencionados eixos, obrigatoriamente estar-se-á tomando o investigado não como objeto, mas respeitando-se sua condição de sujeito de direitos, com a observação de suas garantias fundamentais, notadamente no que diz respeito à dignidade da pessoa humana(8), sem que isso represente renúncia estatal ao direito de punir ou fomento da impunidade. Ao contrário, o acordo antecipa fins preventivos e retributivos próprios da sanção criminal, ainda que sem processo, mas de forma consensual, potencializando aspectos restaurativos e ainda guarnecendo a proteção da vítima, com a precária, porém antecipada e necessária reparação.

A partir dessas orientações básicas, portanto, é possível construir um acordo que evite o processo de maneira útil para a persecução penal e para o agente acusado de crime, com a preservação da dignidade do acusado, contribuindo para a construção de um Ministério Público cada vez mais resolutivo no âmbito penal e para uma Justiça mais ágil e eficiente, que pode se voltar para causas de mais elevada sensibilidade. Além do que, esses ares de modernidade do Processo Penal não destoam da necessária observância dos postulados próprios de Estado Democrático de Direito.






Notas de rodapé

(1) A respeito, conferir STF, ADC 12 MC-DF e MS 72621-DF, rel. Min. Carmen Lúcia.

(2) A teoria do diálogo das fontes de Erik Jayme busca a superação dos paradigmas em favor de sua convivência, coordenando leis aplicáveis em campos diferentes, de forma convergente. Cf. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (coords.). Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: RT, 2012, p. 27.

(3) Embora desenvolva a ideia de sociedade de riscos, Ulrich Beck manifesta discordar da teoria da pós-modernidade: Ela se articulou, a partir dos anos 80, na França, e se difundiu, dessa região, para todos os países ocidentais, nos quais, hoje, está sendo intensamente discutida. Há muitos teóricos da pós-modernidade que, em parte, são muito interessantes; não obstante, todos eles se caracterizarem por um traço em comum. Eu diria que o prefixo pós é a bengala do cego de espírito da nossa época”. (BECK, Ulrich. Sociedade Global, sociedade de riscos. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 78. p. 54, jan./Jun. 1998).

(4) José Antônio Paganella Boschi denomina de princípio da discricionariedade controlada, a flexibilidade da obrigatoriedade da ação penal pública. (BOSCHI, A. P. B. Ação Penal: as fases administrativa e judicial da persecução penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 138).

(5) No mesmo sentido, ao se referir ao ANPP concebido na Res. 181/2017 do CNMP, cf. MESSIAS, Mauro. Acordo de Não Persecução Penal: teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p 10.

(6) ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2019; ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

(7) https://www.pon.harvard.edu/category/daily/win-win-daily/. Acesso em 02 jun.2020.

(8) “Entendendo-se como dignidade da pessoa humana: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 73.)




Caso Vélez Loor Vs Panamá e as garantias de direitos dos migrantes contra a detenção arbitrária

Helisane Mahlke

Doutora em Direito Internacional pela USP.

Mestre em Relações Internacionais pela UFRGS.

Professora de Direito Internacional Público da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

ORCID: 0000-0002-7980-4452

mahlke.helisane@gmail.com

Resumo: O presente artigo analisa os standards jurisprudenciais trazidos pelo Caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos “Jesús Vélez Loor vs Panamá” no que se refere à proteção dos direitos das pessoas migrantes, em especial em situação de detenção arbitrária, devido à situação irregular no país de destino. Verifica-se, sobretudo, como essa jurisprudência pode converter-se em instrumento para proteger os direitos humanos de pessoas em situação de encarceramento no Brasil, sendo nacional ou imigrante.

Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Imigração. Detenção Arbitrária.

Abstract: The paper analysis the standards brought by the jurisprudence of the Interamerican Court of Human Rights in the Case Jesús Vélez Loor vs Panama, concerning the protection of irregular migrant’s rights in the situation of arbitrary detention in the country of destination. This piece verifies how this jurisprudence can become an instrument to protect the human rights of persons in prisons, being nationals or immigrants.

Keywords: Interamerican Court of Human Rights. Immigration. Arbitrary Detention.


Data: 06/01/2021
Autora: Helisane Mahlke

Introdução

O presente artigo dedica-se a verificar a importância da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos na garantia de direitos da população migrante, sobretudo quanto a um evento recorrente, que é a detenção ilegal de imigrantes e a privação dessas pessoas do acesso à justiça. Para tanto, pretende-se avaliar como os parâmetros jurídicos do sistema interamericano podem contribuir para o tratamento adequado às pessoas migrantes, mesmo aquelas em situação indocumentada. Mais especificamente, utilizar-se-á como parâmetro o Caso da Jesús Vélez Loor da Corte Interamericana de Direitos Humanos e as questões jurídicas por ele abordadas como paradigma dessa análise.

Em um primeiro momento, verificaremos os direitos das pessoas migrantes, bem como as características do fluxo migratório na América Latina e, posteriormente, far-se-á uma análise do caso, a situação fática envolvida, quais direitos foram violados e os principais pontos apontados pela sentença da Corte. E, por fim, serão discutidos como osstandards jurídicos estabelecidos pelo caso podem ser aplicados no sistema judicial brasileiro, sobretudo em situações de detenção arbitrária e privação de direitos e garantias processuais.

1. Os direitos das pessoas migrantes na América Latina

Os fluxos migratórios na América Latina caracterizam-se por múltiplos graus de vulnerabilidade. Podemos observar diferentes categorias de migrações forçadas, frequentemente interconectadas, das quais destacam-se três principais na atualidade: o caso de refúgio motivado por fundado temor de perseguição, dada a crescente violência em algumas regiões; o tráfico de pessoas; e, também, a migração motivada por extrema vulnerabilidade socioeconômica. Contudo, é importante referir que, dessas categorias, apenas as normas do direito internacional dos refugiados, ratificadas pela maioria dos países Latino-americanos, garantem ao migrante o “direito de ingresso”)(1). Já quanto às demais categorias de migrações forçadas, restam as barreiras legislativas, frequentemente restritivas, impostas pelas políticas nacionais, o que acaba resultando em um aumento da migração indocumentada.

Na região, a princípio, cada Estado possui sua própria legislação migratória, determinando condições para a entrada e permanência de imigrantes em seu território. Somente com o estabelecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, suas normas e mecanismos de supervisão e controle, mormente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, é que se passa a ter algum tipo de padrão jurídico unificador de direitos da população migrante no Continente.(2) 

No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, destaca-se além das Recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e das previsões contidas na Convenção Americana de Direitos, há importante jurisprudência produzida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que se deve fazer menção. Em especial, a Opinião Consultiva 18 sobre os Direitos dos Migrantes Indocumentados reconhece os direitos dessas pessoas, dentre eles: a importância do respeito ao princípio da igualdade e não discriminação;(3) além de casos contenciosos que definem o paradigma jurídico de direitos para a população migrante.(4)

Pelos exemplos expostos, observa-se a importância da contribuição do Sistema Interamericano na construção de um marco jurídico na proteção das pessoas migrantes, em especial no combate às detenções arbitrárias e privações de direitos a que são submetidas por legislações nacionais, que contrariam os princípios de direitos humanos que devem nortear todo sistema legal.

2. O Caso Velez Loor vs Panamá

O caso refere-se à prisão do cidadão equatoriano Jesús Vélez Loor, pela polícia panamenha, em 11 de novembro de 2002, depois de ter adentrado irregularmente no território daquele país. Após ser entregue às autoridades migratórias, o Senhor Velez Loor foi arbitrariamente detido, julgado em processo do qual não teve conhecimento e, portanto, sem acesso à ampla defesa e nem à assistência consular a que tinha direito. A sentença condenou o Sr. Velez Loor a dois anos de prisão por ter violado as leis migratórias do país. Após cumprir dez meses da pena, foi deportado, pela interferência do Consulado do Equador, com o qual só conseguiu contato mediante um telefone clandestino ao qual teve acesso na prisão.

Durante o período em que esteve preso, o Sr Vélez Loor sofreu diversos abusos, foi submetido à tortura e ficou detido em condições absolutamente insalubres segundo padrões mínimos de dignidade. Além de não ter tido acesso a meios capazes de denunciar as condições e o tratamento inadequado ao qual estava sendo submetido. Somente após a deportação é que o Sr. Vélez Loor conseguiu levar ao conhecimento das autoridades as violações que sofreu. Contudo, essas nunca foram devidamente investigadas.

A situação foi levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que entendeu por judicializar o caso, após o não cumprimento do Primeiro Informe por parte do Estado Panamenho. Dessa forma, a Comissão provocou a jurisprudência da Corte Interamericana a consolidar standards de tratamento dispensado aos migrantes em situação indocumentada, em respeito aos princípios de direitos humanos contidos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

A sentença da Corte Interamericana(5) determinou a responsabilidade do Estado pela violação dos seguintes direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos: a) direito à liberdade pessoal (artigo 7); b) direito às garantias judiciais (artigo 8); c) violação do princípio da legalidade (artigo 9º); d) direito à integridade pessoal (artigo 5º); e) direito de acesso à justiça (artigos 8 e 25); além da referenciar a interpretação desses artigos em consonância com o direito da obrigação de respeitar direitos de todo ser humano (artigo 1.2), independentemente de “sua raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”.(grifo nosso à redação do artigo 1.1). Em especial, a Corte também faz menção quanto à violação do direito à integridade pessoal, em consonância com os artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura. Por fim, outra questão importante aqui relacionada é o direito à assistência consular no marco do devido processo legal, o qual foi negado ao Sr. Jesús Vélez Loor pelas autoridades panamenhas,(6) negligenciando seus direitos no contexto da reciprocidade diplomática.

Nesse contexto, o caso do Sr. Vélez Loor é um exemplo do tratamento discriminatório e inadequado, frequentemente dispensado aos imigrantes, em especial os que adentram o território de outros países em situação irregular. Sua condição de dupla vulnerabilidade, como migrante e como pessoa encarcerada, coloca a vítima como sujeito de uma série de violações de direitos humanos. Ao considerar ilegais as medidas adotadas pelo Panamá, como parte de uma política migratória que criminaliza a mobilidade humana, a Corte lança luz à necessidade de proteger os direitos humanos de pessoas em igual situação. Em suma, o tribunal estabelece um limite às políticas migratórias restritivas dos Estados baseadas em instrumentos de controle de ingresso de imigrantes em seus territórios,(7) sobretudo quando estas são estabelecidas em violação de direitos humanos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Também, de forma geral, ou seja, quanto a nacionais ou não, o Caso estabelece um paradigma jurídico no que se refere às garantias processuais e às condições de tratamento dispensado às pessoas encarceradas, fornecendo instrumentos jurídicos importantes para garantia de direitos dessas pessoas, as quais pertencem a um grupo frequentemente vítima de violações intrínsecas aos problemas estruturais de um sistema que discrimina e subtrai os direitos humanos das pessoas no sistema prisional.

2.1 O Contexto Especial da Pandemia

Merece menção especial a questão da detenção de pessoas face às emergências sanitárias impostas pela pandemia. A partir da decretação de seu início, determinado pela Organização Mundial da Saúde, em fevereiro de 2020, tem-se um novo elemento agravante da situação das pessoas migrantes, em especial aquelas em situação de detenção. As normas internacionais(8) em situações como essa, permitem que os Estados adotem medidas restritivas à circulação de pessoas, com o intuito de conter o contágio. Todavia, é importante pontuar que isso não exime os Estados quanto às responsabilidades de proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade, estejam elas em situação migratória ou não. Ademais, a detenção de pessoas em situação inadequada agrava as condições de saúde durante a pandemia.

Nesse contexto, a Corte Interamericana pronunciou-se em uma Resolução(9) em referência ao Caso Vélez Loor, determinado ao Panamá a adoção de Medidas Provisórias, em razão da situação de pessoas nas Estações de Recepção Migratória em La Peñita e Lajas Blancas, na Província de Darién, de modo a proteger os direitos à saúde, à integridade pessoal e à vida, incluindo a testagem e tratamento da COVID-19. Essa Resolução, conexa à jurisprudência da Corte no Caso Vélez Loor, demonstra a preocupação com o agravamento de violações de direito durante a pandemia e determina que os Estados deem atenção especial às pessoas que se encontram em situação de privação de liberdade.

A preocupação é, sem dúvida, legítima. Verifica-se exemplos de negligência quanto às necessidades de populações em situação de vulnerabilidade, como a população migrante indocumentada.(10) Também se verifica a ausência de uma política adequada de combate ao vírus e de proteção das populações em situação de detenção de um modo geral. Para tanto, passa-se a analisar, como a jurisprudência da Corte estabelecida no Caso Vélez Loor pode ser usada como instrumento para a garantia de direitos no sistema judiciário brasileiro.

3. A jurisprudência do Caso Vélez Loor e o Contexto Brasileiro

O Brasil é parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, abraçando seu corpo normativo e institucional(11) como um todo. Todavia, a aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda é insipiente no Brasil, sobretudo no que se refere ao Caso em estudo. À luz do controle de convencionalidade, percebe-se a necessidade de aprofundar o diálogo entre as Cortes Nacionais e Internacionais. Em razão disso, segue a contribuição desse artigo.

Em um primeiro momento, é importante mencionar que, no que se refere às normas referentes aos direitos da população migrante, o Brasil aderiu a normas internacionais(12) e promulgou uma nova Lei Migratória (Lei 13.445) em 2017. Todavia, apesar da aparente evolução legislativa, a política migratória brasileira é caracterizada, paradoxalmente, pela ausência de uma política, ou seja, pela falta de parâmetros claros e estruturados destinados a gerir os fluxos migratórios no país. Essa situação abre margem para soluções precárias e provisórias e para a subtração de direitos da população migrante, legando sua concessão, ou reconhecimento, à discricionariedade estatal. Todavia, quanto ao que se refere à detenção de imigrantes, o Brasil não possui centros para esse fim, como ocorre em outros países. Contudo, apesar do disposto no artigo 3º, III, da Lei Migratória, pairam no país, no âmbito político e legislativo, tentativas persistentes de criminalizar a imigração.(13)

Por outro lado, no que se refere à privação de liberdade em sentido mais amplo, tanto de nacionais quanto de imigrantes, o Brasil possui alarmantes dados sobre encarceramento que(14), além de denunciar que o sistema prisional reflete a desigualdade econômica e racial do país, ainda demonstra que essas condições de discriminação, agravam a condição de vulnerabilidade e supressão de direitos das pessoas encarceradas em nosso país.(15) 

As condições degradantes dos presídios brasileiros e a endêmica prática de tortura e outros tratamentos cruéis e degradantes são recorrentes(16) e um retrato do sistema prisional brasileiro cruel e ineficiente. A mesma situação também encontramos na situação de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas em unidades de internação, frequentemente superlotadas e sem oferecer as condições adequadas ao cumprimento das medidas sem violar os direitos humanos desses jovens.(17) 

Nesse sentido, a jurisprudência da Corte Interamericana no Caso Vélez Loor pode ser usada como um parâmetro para exigir do Estado a sua responsabilidade quanto aos direitos dessa população. Seja para prevenir a detenção arbitrária ou o surgimento de novas medidas de prisão migratória, a partir de lacunas deixadas pela regulamentação falha da Lei 13.445, seja para garantir o respeito às garantias processuais e os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, sejam nacionais ou imigrantes.

É fato que o problema do encarceramento e do tratamento dispensado à população em situação de privação de liberdade no país é um problema bem mais amplo e complexo, que transcende a situação migratória do indivíduo. Ademais, as condições sanitárias durante a pandemia apenas deram mais visibilidade à situação degradante dos presos no país, de como essa população é preterida na gestão de políticas públicas e carece de uma política de segurança que não se limite ao caráter punitivo. A falta de uma condução adequada de ações governamentais, a fim de conter a expansão da COVID-19, apenas refletiu mais uma face do problema.(18) Notadamente, os direitos referidos anteriormente pela jurisprudência da Corte no Caso em tela podem servir como instrumento para cobrar ações efetivas do Estado para a proteção dos direitos das pessoas que se encontram em privação de liberdade. Mas, isso irá depender do grau de comprometimento das instâncias judiciais brasileiras em relação aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, o que nos leva a outra discussão.

Conclusão

O Brasil não fez a sua “lição de casa” no que se refere à justiça de transição. Esse fato, em parte, contribui para a persistência de práticas sistemáticas de violações de direitos humanos cometidas contra as pessoas encarceradas. O sistema prisional brasileiro é um reflexo desse legado, que estigmatiza e nega direitos àqueles que são acusados de delitos ou que foram condenados por eles. A jurisprudência da Corte no Caso Vélez Loor também lança luz sobre a necessidade de rever políticas prisionais e o tratamento dispensado às pessoas encarceradas, sejam elas nacionais ou imigrantes. Mais especificamente quanto à população migrante, apesar da legislação migratória atual ter, aparentemente, superado o paradigma da “segurança nacional”, uma herança do período ditatorial, é preciso que aqueles que buscam a afirmação dos direitos humanos e reconheçam sua universalidade na construção de um verdadeiro Estado Democrático estejam atentos à possibilidade de subversão da norma por inciativas legislativas ulteriores. Assim, o Caso estudado, em conexão com o conjunto normativo do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, converte-se em um paradigma importante para, por meio do controle de convencionalidade, conter violações e ações discriminatórias e para tornar efetiva a responsabilidade do Estado, seja na esfera nacional ou internacional.








Notas de rodapé

(1) O denominado “direito de ingresso” está reservado apenas aos refugiados, no âmbito do artigo 33 da Convenção de Genebra de 1951 Sobre o Estatuto dos Refugiados (princípio do non-refoulement).

(2) O Sistema Interamericano de Direitos Humanos surge a partir da elaboração da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e da Carta de Bogotá (que cria a Organização dos Estados Americanos), em 1948. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é criada em 1959, com competência determinada pela Carta de Bogotá. Posteriormente, em 1969, é aprovada a Convenção Americana de Direitos Humanos que, além de estabelecer uma ampla previsão de direitos humanos, também prevê a criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que entrou em vigor em 1978.

(3) Também, destaca-se a Opinião Consultiva 16/99 sobre o Direito à Informação sobre Assistência Consular no Marco do Devido processo Legal; a Opinião Consultiva 21/2014 sobre os Direitos e Garantias das Crianças Migrantes. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/opiniones_consultivas.cfm. Acesso em 06 de dez2020.

(4) Nesse contexto, merece menção o Caso Família Pacheco Tineo vs Bolívia (2013), dentre outros, o qual também aborda a violação do direito de acesso à justiça e outras garantias legais, tem relevante para esse artigo. CIDH. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Familia Pacheco Tineo Vs. Estado Plurinacional de Bolivia. CIDH: [s. l.], 23 nov. 2013. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/CF/jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=376. Acesso em: 06 dez 2020.

(5) Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/ver_ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=341&lang=es.

(6) Opinião Consultiva 16/99 sobre Direito à Informação sobre Assistência Consular no Marco do Devido Processo Legal.

(7) Os standards interamericanos estabelecem condições para a detenção administrativa de imigrantes, sendo que estas nunca devem ter caráter punitivo, segundo o próprio marco fixado pelo Caso Vélez Loor. Ver mais em CIDH. Derechos humanos de migrantes, refugiados, apátridas, víctimas de trata de personas y desplazados internos: Normas y Estándares del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. OEA: [s. l.], 31 dez. 2015. p 191 a 200. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/MovilidadHumana.pdf. Acesso em: 05 dez 20202.

(8) Vide Regulamento Sanitário Internacional, estabelecido pela Organização Mundial de Saúde, disponível em: https://www.who.int/health-topics/international-health-regulations#tab=tab_1. Acesso em: 05 dez 2020.

(9) Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 29 de julho de 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/velez_se_02.pdf. Acesso em: 06/12/2020.

(10) Ver mais em: BAENINGER, Rosana; NANDY, Shailen; VEDOVATO, Luís Renato (Coords). Migrações Internacionais e a Pandemia de Covid-19. Campinas: Nepo-Unicamp, jul. 2020. Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/livros/miginternacional/miginternacional.pdf. Acesso em: 05 dez 2020.  

(11) O Brasil ratificou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos em 1992 e reconheceu formalmente a jurisdição da Corte Interamericana em 1998.

(12) O Brasil ratifica o Estatuto dos Refugiados, de 1951, em 1961; e o Estatuto dos Apátridas, de 1954, em 2002. Porém, vale ressaltar, que o Brasil não ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Migrantes e Suas Famílias, de 1990.

(13) A Lei 13.445, além de sofrer inúmeros vetos, ainda padece dos problemas impostos pelo seu Decreto de Regulamentação (Dec. 9.199, de 20/11/2017), que parece desvirtuar seus objetivos. Como exemplo, pode-se apontar a possibilidade de prisão do deportando, mesmo com a redação expressa do artigo 123 da Lei de que “ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias, exceto nos casos previstos nesta lei”. A Lei também deixa em aberto que várias questões podem ser regulamentadas por atos normativos posteriores, o que pode facilmente delegar à discricionariedade dos Estados questões importantes, como a definição dos vistos humanitários ou o que seria a definição de “atos contrários aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”.

(14) O Brasil possui uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes, um dos maiores índices do mundo (segundo dados até fevereiro de 2020). Fonte: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados. Acesso em: 6 dez. 2020.

(15) Para mais informações, consultar: https://www.conectas.org/noticias/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-encarcera-pessoas-no-mundo?gclid=CjwKCAiAn7L-BRBbEiwAl9UtkBJcjbue0ZfzfjMJbwZ7wEp3C2eT3b5xJp_UieL9rAukIYJyRsYnxxoCeA0QAvD_BwE. Acesso em 6 dez. 2020.

(16) Vide TJ-PB 00644784920148152001 PB, Relator: JOSE FERREIRA RAMOS JUNIOR, Data de Julgamento: 06/08/2019, 1ª Câmara Especializada Cível.

(17) Vide: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 143988/ES. Rel. Ministro Edson Fachin, julgado em 24 ago. 2020. Disponível em: https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/attachments/STF_HC_143988_c8857.pdf?AWSAccessKeyId=AKIARMMD5JEAD4VJ344N&Expires=1607207350&Signature=7MfgwHXAJY%2BtYzSpJEQCzfpGOuE%3D. Acesso em: 05 dez. 2020. No Acórdão, o Ministro faz referência ao precedente do Caso Vélez Loor da Corte Interamericana de Direitos Humanos no que se refere ao respeito à vida e integridade das pessoas em situação de privação de liberdade.

(18) Ver informações em: https://www.conectas.org/noticias/o-impacto-do-covid-19-no-sistema-prisional-a-posicao-dos-especialistas?gclid=CjwKCAiAn7L-BRBbEiwAl9UtkG9uLCKtJFv50e1PwIFJxecmTqjdht1vgct20Ebpog634WkUwPzceBoCmWoQAvD_BwE. Acesso em: 05 dez. 2020.

Referências

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CERNADAS, Pablo Ceriani. Immigration Detention through the Lens of International Human Rights: Lessons from South America. Global Detention Project. Working Paper, Switzerland, n. 23. Setembro, 2017. Disponível em: https://www.globaldetentionproject.org/.../Ceriani-Cernadas-GDP-working- paper.pdf.

GONZÁLES, Juan Carlos Murillo. Forced Displacement in the Americas and its Impact on Regional Migrations. Revista Multidisplinar de Mobilidade Humana. v. 16, n.31, p. 165-178, 2008.

RODRIGUEZ-PINZÓN, Diego & MARTIN, Claudia. The Prohibition of Torture and Ill-treatment in the Inter-American Human Rights System. [s. n.]: World Organization Against Torture, 2006.

VEDOVATO, Luís Renato. O Direito de Ingresso do Estrangeiro: a circulação das pessoas pelo mundo no cenário globalizado. São Paulo: Atlas, 2013.