Como não nos cansamos de destacar, a Revista Liberdades mantém seu firme propósito de democratizar o conhecimento no debate sobre os mecanismos de controle e de punição. O presente número, para além de se dedicar a cumprir os requisitos da Capes para que se alcance e mantenha uma boa qualificação na escala qualis, disponibiliza uma entrevista, um conto e diversos artigos de autores e autoras das mais diversas perspectivas teóricas. Embora constituída de textos com temáticas diversas, o conteúdo da revista se entrelaça coerentemente na medida em que aborda preocupações com os rumos (tradicionalmente) autoritários de nosso sistema de punição. Dessa maneira, a presente publicação se coaduna perfeitamente com uma das principais missões do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, que é a de “contribui para o desenvolvimento e a disseminação das Ciências Criminais por todo o país, promovendo diálogos entre academia, poder público e sociedade civil”.
Entrevista de Roberto Gargarella ao Grupo de Estudos Avançados – GEA de Maceió/AL (parceria entre Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e Centro Universitário Cesmac)1
Resumo: Entrevista realizada por videoconferência, em 23 de julho de 2020, com o professor argentino, Roberto Gargarella, encomendada pela Coordenação Nacional do Grupo de Estudos Avançados - GEA, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, tendo como entrevistador o Coordenador do GEA - Maceió/AL, Bruno Leitão. Este foi o início de um bloco de entrevistas organizado pelo GEA, que tem por objetivo difundir o saber penal crítico para todas e todos que tenham interesse nesta área. Cabe informar que o arquivo em vídeo está disponível na página do Instagram dos Grupos de Pesquisa e Extensão do IBCCrim - @ibccrim.grupos.
Palavras-chave: Direito Penal; Democracia; Direito Constitucional; Punitivismo; América Latina.
Abstract: Interview conducted by videoconference, on July 23, 2020, with the argentine professor, Roberto Gargarella, commissioned by the National Coordination of the Group of Advanced Studies - GEA, of the Brazilian Institute of Criminal Sciences - IBCCrim, with the GEA Coordinator as an interviewer - Maceió / AL, Bruno Leitão. This was the beginning of a block of interviews organized by GEA, which aims to spread critical criminal knowledge to anyone and everyone with an interest in this area. It should be noted that the video file is available on the Instagram page of the Research and Extension Groups of IBCCrim - @ ibccrim.groups. They were responsible for the translation Alice Quintela, Bárbara Furtado and Roberto Barbosa.
Keywords: Criminal Law; Democracy; Constitutional Law; Punitivism; Latin America.
Bruno Cavalcante Leitão Santos entrevista Roberto Gargarella
Roberto Gargarella é advogado, sociólogo pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Mestre em Ciência Política pela Flacso, Doutor pela Chicago University e pela Universidade de Buenos Aires (UBA) com estudos pós-doutorais em Balliol College (Oxford), e Professor Titular da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade de Tella, que nos gentilmente concede espaço para uma breve entrevista.
Bruno Leitão - Professor, a sua obra Castigar al Projimo é muito difundida no Brasil e por isso, eu trouxe aqui cinco perguntas sobre algumas ideias que são lá tratadas. A primeira seria: o que está por trás da ideia de refundação democrática do Direito Penal?
Roberto Gargarella - Bom, é uma pergunta importante sobre um tema também muito importante. Primeiro, eu me aproximo do Direito Penal, como disse no prólogo, como um mensageiro, ele não é meu território natural, eu venho de outras disciplinas que são a Teoria Democrática, a Teoria Constitucional, a Teoria Social do Direito. Ingressei no tema do Direito Penal por uma preocupação, sobretudo com o direito à manifestação, e por algumas intuições, por exemplo, a intuição de que há algo muito equivocado com o modo com o qual pensamos o castigo, o cárcere e etc... Quando eu comecei a explorar um pouco este território estrangeiro do Direito Penal, me encontrei com as surpresas próprias que alertam um estrangeiro em uma disciplina. Uma das surpresas que me alertaram foi a que é muito comum na doutrina penal, mesmo na doutrina penal mais avançada, mais progressista, mais social, um desdém, um descuido, senão uma hostilidade direta com a questão democrática. Mesmo os autores mais interessantes, mesmo os autores mais atraentes na doutrina mostravam esse desdém com a questão democrática, esse descuido. Insisto, creio que seja mais que um descuido: uma desconfiança democrática. E isso se nota em tudo, no modo em que pensam o papel dos juízes, o modo em que pensam a relação de cidadania e Direito Penal, o modo em que pensam a redação, interpretação e aplicação das normas penais. Então, durante todo esse tempo, houve um olhar de desconfiança democrática e que me parece justificável porque a ideia básica é: para os democratas, os cidadãos devem ter um papel protagonista em tudo aquilo que os afeta diretamente e poucas questões na vida social são mais importantes, mais nos afetam, como o uso dos recursos econômicos e o uso do aparato coercitivo. Assim, se eu tivesse que destacar duas questões que são cruciais ao direito e que a cidadania deveria ter papel protagonista, eu diria, primeiro, o uso do aparato coercitivo e, segundo, o uso dos recursos econômicos, as quais, entretanto, são as que em menor grau consegue intervir a cidadania.
Bruno Leitão - Uma segunda pergunta que é vinculada à própria base da literatura do Professor e está associada a essa ideia de refundação democrática do Direito Penal é: como o Professor vê as principais características das constituições na América Latina?
Roberto Gargarella - Bom, para vincular essa resposta à anterior, creio que todo o direito se construiu com esta suspeita democrática. As constituições latino americanas, incluindo as constituições da Argentina e do Brasil, em particular, em seu momentos de fundação - a Argentina no meio do século XIX e Brasil no final do século XIX - são duas constituições fundamentais que foram resultado de um pacto liberal-conservador, que se explica, basicamente, por essa desconfiança e esse temor comuns das elites do século XIX com relação a um avanço democrático. Muito do que se escreve na constituição e do que não se escreve se explica, no final, por esse elitismo. Alguns poderiam dizer: bom, mas daquela época até hoje, na Argentina, no Brasil, na América Latina, nós mudamos todas as constituições, algumas, inclusive, muitas vezes, como é o caso da Bolívia. Entretanto, eu diria que - e esse é um pouco o ponto dos meus trabalhos sobre o constitucionalismo latino americano -, que apesar de todas as importantes mudanças introduzidas desde o século XX até hoje, em nível constitucional, permaneceu intacta, sem nenhuma reforma adequada, a sala de máquinas, como eu costumo chamar esse núcleo que segue se caracterizando por uma concentração de poder, por um sistema de controles composto, basicamente, por controles internos e não por controles populares sobre o poder, e por uma ideia de representação, na qual o representante se encontra muito afastado e não vinculado, o que, inclusive, foi um objetivo, não representando uma anomalia ou uma patologia do sistema, já que se buscou por razões entendíveis e outras não, por razões aceitáveis e outra não, se separar o representante da cidadania. Então, para responder a sua pergunta, não é uma surpresa que o Direito Penal e o Direito Constitucional, que seguiam por pressupostos comuns, tenham, ainda hoje, seus traços elitistas internos que muito têm a ver com a desconfiança democrática.
Bruno Leitão - Então, poderíamos dizer que a América Latina tem um Direito Penal com características próprias?
Roberto Gargarella - As discussões que eu conheço, não a totalidade das discussões existentes, mas, pelo o menos, as que eu conheço têm muito paralelo com o mundo anglo-saxão. Por exemplo, o funcionamento do cárcere, a sobrecriminalização ou overcriminalization, a brutalidade policial, a desigualdade são temas que estão presentes na literatura dos Estados Unidos e da Inglaterra. Então, sim, há peculiaridades, com relação aos problemas, por exemplo, os níveis de desigualdade, os níveis de exclusão, os níveis da violência policial, mas eu vejo que há muitos paralelos. Tomemos o caso da recente morte de George Floyd, nos Estados Unidos. O caso é uma metáfora maior que nos fala de desigualdade, de violência policial, maus-tratos, uso do cárcere, discriminação racial. E esses são problemas que também estão no país mais desenvolvido da América.
Bruno Leitão - Um ponto muito discutido no Brasil e na América Latina é a questão do colonialismo. O Professor acredita que nós precisamos superar essa ideia de colonialismo que ainda existe nos poderes que gerem a nossa política pública?
Roberto Gargarella - Eu conheço pouco sobre a literatura a respeito do colonialismo, do que conheço, não me interesso particularmente, porque há muito, no que vi, de uma retórica potente, mas vazia de argumentos. Então, claro que existem problemas e são graves, mas para realizar uma crítica à literatura sobre o colonialismo, deveríamos abordar tese por tese, e não classificá-la como uma literatura geral, pois assim não me parece particularmente atraente. Embora, insisto: entendo que fala de problemas que são importantes, que têm relevância, que merecem ser analisados, mas eu acredito que é necessário analisarmos tese por tese para as tomar seriamente e não recair em algum preconceito.
Bruno Leitão - O Professor no seu livro cita alguns autores como Antony Duff e o próprio Carlos Nino. Em relação a outros dois autores citados, eu gostaria de entender um pouco mais e também expor para os colegas, o que necessariamente há de convergência e divergência entre o Professor Eugenio Raúl Zaffaroni e o Professor Luigi Ferrajoli?
Roberto Gargarella - Eu habitualmente lanço mão dos textos do Zaffaroni e do Ferrajoli, primeiro, porque são dois autores que me interessam, que creio que escreveram textos muito interessantes e importantes, que tratam de questões urgentes na América Latina, sobretudo de um liberalismo social, no caso de Ferrajoli, e, no caso do Zaffaroni, de um liberalismo que tem uma vinculação com a teoria crítica e isto os faz interessantes em um contexto de comparação com uma literatura, muito comum na Alemanha, composta de textos, na minha opinião, autoritários e pouco abertos à interdisciplinaridade. Então, nesse sentido, tenho muito interesse tanto pelos textos de Zaffaroni como de Ferrajoli, pois eles têm essa abertura, esse conteúdo interdisciplinar, além desse componente liberal frente a uma literatura que, muitas vezes, age como uma reafirmação, na América Latina, de doutrinas, para mim, autoritárias. E, ademais, movendo-se em mundo, sobretudo o mundo penal, que nos mostra práticas tão violentas e tão irracionais, textos e críticas como as de Ferrajoli e Zaffaroni têm sido importantíssimas, de forma que a primeira coisa que tenho que fazer é agradecer pelo contato com esse textos. Dito isso, a mim interessa mostrar que, mesmo em textos tão importantes como os de Zaffaroni e Ferrajoli, senão, especialmente, como se deveria, está a desconfiança democrática. Ambos, na minha concepção, tocam a questão de forma muito problemática. No livro, discuto que Ferrajoli, em tudo que escreveu nesses últimos 40 anos, propõe uma tese que não é marginal e, sim, muito central, de que as esferas da democracia do direito estão separadas e se guiam por princípios distintos, de modo que a esfera dos direitos seria a esfera do indivisível, o que implica, portanto, em uma área fechada e blindada à intervenção democrática, sendo custodiada pelos juízes. Um pouco do que seria o modelo italiano e o modelo europeu pós-guerra. Em Zaffaroni, há algo muito semelhante em todas as suas construções sobre o genocídio e etc, que é tão permanente, que chega a ser preocupante. Digo de forma amistosa, mas esses autores do liberalismo crítico do pós-guerra, vieram, como tantos outros, do drama das violações massivas de direitos do genocídio, do nazismo e do fascismo, com uma análise, que eu acredito, na essência, muito equivocada, porque busca vincular ou assume uma vinculação entre esses movimentos de massas comandados por líderes autoritários tais como Hitler, Mussolini, como se estes movimentos pudessem dizer algo sobre a democracia. Eu creio que esse impacto, essa tragédia marcou o paradigma em que estão inscritos muitos dos autores da área, os quais já têm uma certa idade e são autores de uma geração que ficou muito marcada, e se internalizou nesse paradigma da pós-era, definido pelas violações massivas de direitos humanos, como o genocídio, o nazismo, o fascismo. Eu creio que isso gerou um impacto muito negativo, pois começou a associar democracia ao fascismo, a participação democrática ao crescimento autoritário, a intervenção cidadã ao populismo penal e a verdade é que são todas conexões que não encontram respaldo empírico e se baseiam em uma teoria da democracia muito empobrecida. Afinal, o fato é que muita gente sair pela rua reclamando “x” ou “y” não diz nada a respeito de democracia. A democracia é outra coisa. A democracia requer diálogo, requer discussão, requer inclusão dos diferentes, requer ter em conta o ponto de vista de quem pensa de forma contrária, requer espaços onde se possa debater pontos de vista distintos e chegar a acordos. A democracia não é muita gente na rua apontando o que diz a democracia. Essas ideias de que a intervenção cidadã implica populismo penal, violência penal, neopunitivismo são empiricamente falsas, são falseadas pela realidade e estão fundadas em teorias sobre a democracia muito pobres. E insisto: as evidências que temos vão na direção contrária. Um exemplo pequeno, mas muito importante é o de que a instituição do Júri, em todo o mundo, é uma demonstração de que a mesma pessoa que pode demandar uma pena violenta, dura, a máxima, contra um criminoso, pode, sentada em um Tribunal, no qual tem certas obrigações procedimentais como ler informações, olhar para o acusado, responder aos quesitos, escutar pontos de vista distintos, tende a mudar de opinião, tende a moderar sua opinião. O ponto de vista dos jurados, em seus resultados, tende a ser similar ou mais benevolente, mais parcimonioso do que o dos juízes profissionais e isso, no mínimo, é uma grande maneira de falsear a ideia de que se o povo, o cidadão, as pessoas comuns são conectadas com o Direito Penal há uma explosão de neopunitivismo. Não tende a ser assim. As poucas evidências empíricas com as quais contamos dizem o contrário. Então, em que se baseiam esses autores? Eu creio que em preconceitos ou as custas de um senso comum, claro. Se as pessoas forem perguntadas, logo após um crime ter sido praticado, o que pensam sobre os crimes ou o que acham dos criminosos, será uma barbaridade, mas isso não é democracia. Democracia requer o procedimento e os procedimentos que conhecemos ajudam a moderar o ponto de vista do cidadão que, com um microfone diante da boca, após acontecido um crime, perguntado o que pensa sobre ele, diria que é a favor de uma grande pena para o acusado. Não há respaldo empírico, nem há uma boa base teórica para dizer o que dizem esses autores, por isso que eu os critico, mas a crítica se estende a muitos temas, para além do que o que eu disse sobre populismo penal. Por exemplo, no caso de Zaffaroni, tudo o que ele escreveu sobre como redigir normas penais e dos lugares onde esteve envolvido, porque ele esteve em comissões para redação de normas penais e declarou, muitas vezes, que não quer que aquelas sejam atividades no sentido de se chegar à cidadania, porque não lhe correspondem, porque assim não quer a constituição, mas digo que é onde mais necessitamos. E se nota pela forma que pensa o papel dos juízes, pela forma que pensa o controle policial e quanto ao processo penal, em como se cria a norma, em como se aplica a norma, como se interpreta a norma. Nesse sentido, eu discordo completamente porque entendo que se deve defender uma posição informada pelo compromisso democrático, não pela cegueira democrática, senão pela convicção democrática.
Bruno Leitão - Ou seja, temos um déficit democrático nessas discussões e isso casa com a minha última pergunta, quais as sugestões de leitura sobre Democracia o senhor recomendaria?
Roberto Gargarella - Bom, há muitos, mas, insisto, a leitura de poucos bons autores é suficiente. Com relação à Democracia, para mim Carlos Nino tem livros acessíveis, importantes na América Latina, nós temos à mão, são simples, mas filosoficamente carregados. O pensamento de Nino está muito relacionado com o pensamento de grandes filósofos de sua época, que, em parte, são os mesmos que eu li: Habermas, John Rawls, Joshua Cohen, mas Nino é um grande resumo dessa boa literatura. Na área de Direito Penal, tenho me interessado por explorar essa conexão um pouco mais forte com a democracia, coincide, assim, com que outros autores indicaram de que Nino não explorou a fundo a conexão de sua teoria democrática com o Direito Penal.
Bruno Leitão - Que é o que o Professor tem feito.
Resumo: O intuito é de denunciar como a criminologia atuarial usa o pretexto da objetividade e do rigor científico, fazendo o emprego de métodos puramente abstratizantes, para excluir, neutralizar, exterminar, isto é, apartar da sociedade o indivíduo – que não é criminoso, nem cometeu qualquer delito – ao encaixá-lo em grupos sociais mais gerais etiquetados de “perigosos”. Ainda, o artigo procura demonstrar como o emprego desses métodos científicos no estudo atuarial da questão criminal levaria a um rompimento do vínculo emocional entre o pesquisador e o pesquisado, tendo por uma de suas consequências o aprofundamento da separação, inventada culturalmente, entre os “normais” e os “marginais”. Por fim, traça-se um breve relato envolvendo mulheres familiares de presos do Estado do Rio Grande do Norte, com o intuito de avaliar como o atuarialismo pode ter influenciado na trajetória delas.
Palavras–chave: criminologia atuarial; justiça atuarial; método abstratizante; mulheres familiares de presos.
Abstract: The article seeks to demonstrate how the use of purely abstracting methods in the actuarial study of the criminal issue would lead to a break in the emotional link between the researcher and the researched and has, as one of its consequences, to increase the separation between the “normal” ones and the “marginal” ones. The intention is to denounce how actuarial Criminology uses the pretext of objectivity and scientific rigor, employing those abstracting methods, to exclude, neutralize, exterminate and separate an innocent individual from society, with the justification that he belongs to social groups labeled as “dangerous”. Finally, a brief report is drawn up involving women family members of prisoners from the State of Rio Grande do Norte, in order to think about how the actuarialism may have influenced their trajectory.
Keywords: actuarial criminology; abstracting method; women relatives of prisoners.
Resumo: A pesquisa discorre sobre a carga necropolítica da estrutura prisional brasileira representada pelas diversas técnicas de punição e controle que operadas sobre determinados grupos vulnerabilizados. Aos povos indígenas, por exemplo, reafirmam-se as políticas de morte e a face violenta do Estado. Diante disso, o artigo visa analisar de que maneira a sociedade civil pode vir a contribuir para superação da necropolítica no sistema prisional brasileiro, no que tange aos indígenas privados de liberdade. Para tanto, utiliza o método bibliográfico, documental e dedutivo. Conclui que, no cenário de insuficiência Estatal, existe uma potência na sociedade civil em articular-se na resolução de problemas sociais, possibilitando que a cultura de resistência ao cárcere, entrelaçada com a questão indígena, contribua com um novo direito e uma nova justiça penal para grupos estruturalmente violentados.
Palavras-chave: Necropolítica; Sistema Prisional; Sociedade Civil.
Abstract: The research approaches the necropolitical burden of the Brazilian prison structure represented by various techniques of punishment and control operated on certain vulnerable groups. To indigenous peoples, for instance, the death policies and the violent face of the state are stronger. In light of this, the article analyzes how civil society can contribute to overcoming necropolitics in the Brazilian prison system, regarding the indigenous people deprived of freedom. For this purpose, it was used the bibliographic, documentary and deductive method. Therefore, in the scenario of state insufficiency, there is a power in civil society to articulate in solving social problems, making possible the culture of resistance to prison together with the indigenous issue to contribute with a new law and a new criminal justice for structurally violated groups.
Keywords: Necropolitics; Prison System; Civil Society.
Resumo: O tráfico de drogas é o maior motivo de encarceramento no Brasil entre 2006 e 2016. Enquanto a população do Brasil cresceu 15%, o número de encarcerados aumentou 140% (DEPEN,2017), sem que haja redução nos índices de violência, o que nos faz questionar a Política de Drogas em sua efetividade e viabilidade aos fins que se propõe. O objetivo deste trabalho é demonstrar, a partir das análises de Alexander (2017), Batista (2009; 2015; 2018), Davis (2018), Olmo (1990), Wacquant (2001) e Zaffaroni (2002), que a lei de Drogas é o principal operador da criminalização da pobreza e maior causa do superencarceramento racialmente seletivo observado no Brasil. Esta é uma pesquisa de caráter exploratório-descritivo (GIL, 1991), com levantamento bibliográfico e documental, com coleta de dados junto à Penitenciária Agenor Martins de Carvalho, em Ji-Paraná – RO. O texto aborda as escolas criminológicas para situar-se no campo da Criminologia Crítica, em seguida, discorre sobre os fundamentos do proibicionismo e da “guerra às drogas” e problematiza a violência, o aumento exponencial do encarceramento e a seletividade do combate penal. Ao final, são trazidos os dados colhidos na penitenciária Agenor Martins de Carvalho, em Ji--Paraná-RO, com breves considerações sobre os marcadores raciais e socioeconômicos, que parecem determinantes da seletividade do sistema penal.
Palavras-chave: Drogas. Encarceramento. Seletividade. Criminalização. Pobreza.
Abstrac: In Brazil, between the years 2006 and 2016, the leading cause of the incarceration was the drug trafficking. While the Brazilian population grew 15%, the incarceration numbers increased 140%(DEPEN,2017), without decresead the violent crimes index. Which makes us question if the drug policy is effective and viabily by its purpose .The aim of this paper is to demonstrate, from analysis of Alexander (2017), Batista (2009; 2015; 2018), Davis (2018), Olmo (1990), Wacquant (2001) and Zaffaroni (2002), that the drug politics are the principle cause of criminalization of poverty and the racially selective overincarceration observed in Brazil. This is an exploratory-descriptive research(GIL,1991), with bibliographic and documentary survey, with data collection, in partnership with the penitentiary Agenor Martins de Carvalho, in Ji-Paraná – RO. The text is in criminology’s school, in the Critical Criminology field, where, discusses about the prohibitionism fundamentals and the “War on Drugs” and problematizes violence, the exponential incarceration growth and the penal system selectivity. In the end, the data gathered in the Agenor Martins de Carvalho penitentiary, in Ji-Paraná-RO, are brought in with briefs remarks about racial and socioeconomic markers, that seems to be determinant in the penal system selectivity.
Keywords: Drugs. Incarceration. Selectivity. Criminalization. Poverty.
RESUMO: O trabalho tem como objetivo analisar a reconfiguração do controle social sobre a população negra em São Paulo no contexto da abolição da escravidão. Para tanto, busca situar teoricamente a crise da escravidão dentro das especificidades da sociedade escravista brasileira no século XIX, utilizando como referencial a historiografia que aponta o escravismo do período como uma “segunda escravidão”. Por fim, se debruça sobre a maneira através da qual o sistema penal do período reconfigurou sua atuação sobre essa população, analisando como a economia política da pena do período auxilia na compreensão da atuação do Estado brasileiro frente à população negra no contexto da abolição. Desta forma, sustenta a hipótese de que a população negra foi submetida a um processo de marginalização dos estertores da ordem escravista, sendo posteriormente alvo de um controle por meio de diversos mecanismos penais por parte do Estado brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: escravidão; criminalização; economia política da pena; abolição.
ABSTRACT: The work analyzes the reconfiguration of social control over the black population in Sao Paulo in the context of the abolition of slavery. For that, it seeks to theoretically situate the slavery crisis within the specificities of Brazilian slave society in the 19th century, using the historiography that points to slavery in the period as a “second slavery”. Finally, it looks at the way in which the penal system of the period reconfigured its performance on this population, analyzing how the political economy of punishment of this period helps to understand the Brazilian State’s performance in the face of the black population in the context of abolition. In this way, it supports the hypothesis that the black population was subjected to a process of marginalization in the death throes of the slave order, being subsequently the target of control beyond various criminal mechanisms by the Brazilian State.
KEYWORDS: slavery; criminalization; political economy of punishment; abolition.
RESUMO: Há um aumento acentuado no ingresso de mulheres no sistema prisional a cada ano. Contudo, os estabelecimentos continuam voltados para receber apenas o público masculino. Dessa forma, diversas questões peculiares ao mundo feminino acabam por não serem observadas, enquanto estas mulheres permanecem invisíveis em um sistema que está habituado a receber o público masculino. Assim, este artigo tem como objetivo geral descobrir qual é o perfil da mulher encarcerada a partir da análise no Presídio Estadual Feminino de Lajeado/RS. A pesquisa é quali-quantitativa, realizada por meio de método dedutivo e de procedimento técnico bibliográfico, documental e através de um estudo de caso. O início do estudo aborda brevemente a situação atual dos estabelecimentos prisionais. Na sequência, explana-se sobre a invisibilidade delas no sistema prisional ligada à questão de gênero e à luta pela dignidade no cárcere. Por fim, analisa-se, através do estudo de caso, o perfil da mulher encarcerada com base no Presídio Estadual Feminino de Lajeado/RS. Nessa perspectiva, conclui-se que o perfil se trata de mulheres jovens, solteiras, de cor branca, com pouco estudo e com filhos, bem como que na sua maioria sofreram algum tipo de violência. Além disso, constata-se que são mulheres que vivem em casas alugadas ou próprias, a maioria desempregadas ou que trabalhavam em empregos informais, e que usavam algum tipo de droga. Apurou-se que o crime mais praticado foi o Tráfico de Drogas, estando a maioria delas cumprindo a sua primeira prisão e possuindo familiares que também cumprem penas. Verificou-se que as presidiárias cometeram o crime por falta de dinheiro e que estão arrependidas. Além disso, constatou-se a importância da criação de políticas públicas para ressocializar estas mulheres que se encontram encarceradas.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema Prisional. Mulheres encarceradas. Direitos Humanos. Políticas Públicas.
ABSTRACT: Every year, there is a sharp increase in the entry of women into the prison system. However, the establishments remain focused on receiving only the male population. In this way, several issues that are peculiar to the female world end up not being noticed, while these women remain invisible in a system that is used to receiving a male public. Therefore, this article has a general objective to discover what is the profile of the incarcerated woman through an analysis of the Female State Prison of Lajeado/RS. The study is quali-quantitative, done through the method of deductive reasoning and technical bibliographical, documental procedure and through a case study. The beginning of the study briefly addresses the current situation of prison establishments. In sequence, the invisibility of women in the prison system linked to gender issues and to the fight for dignity in prison is explained. Lastly, through a case study, the profile of the imprisoned woman is analyzed based on the Female State Prison of Lajeado/RS. With this perspective, it is concluded that the profile is that of young women, single, white, with little education and with children, as well as the fact that the majority of them suffered some type of violence. Furthermore, it was found that they are women who live in rented or their own homes, most of them being unemployed or having informal jobs, and that used some type of drug. It was found that the most common crime committed was drug trafficking, being that most of them are serving in prison for the first time and have family members who are also serving time in prison. It was also verified that the female prisoners committed the crime due to lack of money and that they are sorry for their act. Further, the importance of the creation of public policies to ressocialize these women that are imprisoned was also verified.
KEYWORDS: Prison system. Incarcerated women. Human Rights. Public Policies.
RESUMO: O presente artigo tem como pressuposto a análise geral da lei no 13.964/19, que consagrou o sistema acusatório no processo penal brasileiro (CPP, art. 3-A) e implementou o acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A), averiguando a (in)compatibilidade do acordo penal com o modelo processual brasileiro (acusatório), numa geral visão do instituto. Busca-se com o artigo verificar os pontos favoráveis e contrários a implementação do acordo penal no ordenamento jurídico brasileiro, mas principalmente, analisá-lo à luz do sistema acusatório, sob o aspecto de resguardo dos direitos e garantias do Investigado. No artigo realizou-se uma breve análise dos sistemas processuais penais, a evolução da negociação penal no Brasil, os aspectos favoráveis e contrários da implementação do acordo, com ênfase na necessidade do equilíbrio entre a eficiência e o respeito aos direitos e garantias individuais do investigado.
PALAVRAS-CHAVE: Pacote anticrime. Acordo de não persecução penal. Sistema acusatório. Processo penal. Estado democrático de direito. Direitos e garantias do Investigado.
ABSTRACT: This article assumes the general analysis of Law No. 13.964 / 19, which enshrined the accusatory system in the Brazilian criminal process (CPP, art. 3-A) and implemented the non-prosecution agreement (CPP, art. 28-A), ascertaining the (in) compatibility of the penal agreement with the Brazilian procedural model (accusatory), in a general view of the institute. The article seeks to verify the favorable and contrary points to the implementation of the penal agreement in the Brazilian legal system, but mainly, to analyze it in the light of the accusatory system, under the aspect of safeguarding the rights and guarantees of the Investigated. The article carried out a brief analysis of the criminal procedural systems, the evolution of criminal negotiations in Brazil, the favorable and opposite aspects of the implementation of the agreement, with an emphasis on the need to balance efficiency and respect for the individual rights and guarantees of the investigated.
KEYWORDS: Anti-crime package. Non-criminal prosecution agreement. Accusatory system. Criminal proceedings. Democratic state. Rights and guarantees of the Investee.
Resumo: O presente trabalho pretende analisar se o advento da Constituição Federal de 1988 foi suficiente para a eliminação dos traços inquisitórios e autoritários advindos do Código de Processo Penal de 1941. Serão analisadas algumas reformas realizadas no período pós-constituição. Para isto a pesquisa a ser realizada neste trabalho se desenvolverá por uma perspectiva qualitativa descritiva, mediante a utilização de materiais bibliográficos já existentes, realizando consultas a doutrinas, jurisprudências e artigos científicos.
Palavras-chaves: autoritarismo, sistema penal acusatório
Abstract: The present work intends to analyze if the advent of the Federal Constitution of 1988 was sufficient to eliminate the inquisitorial and authoritarian traits arising from the Penal Procedure Code of 1941. Some reforms carried out in the post-constitution period will be analyzed, for this, the research to be carried out in this work will be developed from a descriptive qualitative perspective, using existing bibliographic materials, making consultations to doctrines, jurisprudence and scientific articles.
Keywords: authoritarism, accusatory criminal system.
Resumo: O artigo realiza o exame das Leis 9.613/98 e 12.850/13, a fim de verificar qual a punição cabível ao agente que, por intermédio de organização criminosa, comete o crime de lavagem de capitais, especialmente porque há possível conflito aparente de normas a ser dirimido pelo intérprete sob pena de se incorrer em indevido bis in idem. Para tanto, por meio do emprego de metodologia dedutiva e ampla pesquisa bibliográfica, buscar-se-á verificar os problemas trazidos pela existência de normas semelhantes em ambas as leis, bem como traçar limites objetivos visando solucionar a correta aplicação dos dispositivos que abordam os crimes de organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Palavras-chave: Conflito aparente de normas; lavagem de dinheiro; organização criminosa.
Abstract: The article examines the laws 9.613/98 and 12.850/13, in order to verify the punishment applicable to the agent who, through intermediary of criminal organization, commits the crime of money laundering, especially as there is an apparent conflict of rules to be resolved by the interpreter under penalty of incurring undue bis in idem. Therefore, through the use of deductive methodology and extensive bibliographic research, it will seek to verify the problems brought about by the existence of similar rules in both laws, as well as to draw objective limits in order to solve the correct application of the legal provision that address crimes of criminal organization and money laundering.
Keywords: Apparent conflict of rules; money laundering; criminal organization.
FOI UM ENGANO, DOUTOR!
Entrei sutilmente na sala de audiências do principal fórum da cidade. Estava à procura de um colega para entregar um importante documento, cuja juntada em processo criminal sob o seu patrocínio deveria ocorrer, impreterivelmente, até aquela data. Então, percorri com a vista a sala inteira na tentativa de encontrá-lo, mas não o vi.
Quando já estava determinada a me retirar do local, percebo sentada em uma cadeira do canto uma mulher negra, de estatura baixa e vestes simples. Ela estava com a expressão abatida e o olhar triste e também inquieto. Eu não sabia quem era, porém aquela senhora de meia idade me despertou bastante atenção. Atraiu a minha curiosidade o fato dela transparecer que não se sentia confortável ali. Notei que não estava relaxada, pois sua postura corporal a denunciava. Ela cerrava bem as mãos e os lábios e não se recostou, em momento algum, na cadeira. Parecia querer encontrar refúgio em algo com o seu olhar, mas não conseguia. A ansiedade a consumia, embora ela tentasse disfarçar. Seus únicos companheiros eram os pequenos objetos religiosos que possuía no colo: um terço de contas cor-de-rosa e a pequena imagem de um santinho.
Na hora desejei saber mais sobre ela, mas não me senti à vontade o suficiente para puxar assunto. Não sabia se estava disposta a conversar, pois sei bem que o fórum é um lugar de muitos desencantos e tensões. Tenho a convicção de que foi melhor respeitar o momento de solidão daquela senhora, pois aos que experimentam as agruras de uma ação penal, seja como vítima, seja como réu, estar no fórum, e, precisamente, em uma audiência, é sempre muito angustiante e decisivo. De fato, ali serão confrontadas teses e explicações jurídicas, mas, sobretudo, haverá embates de falas, olhares, emoções e sentimentos de pessoas desejosas que suas expectativas sejam atendidas. Por trás dos autos processuais e de todo formalismo inerente, há rostos, histórias de vida e experiências. Por trás de inúmeros documentos, há gente que almeja renovar suas esperanças nas instituições do sistema de justiça. Enfim, os elementos anímicos ecoam nesse jogo de estratégias racionais e passionais que é o processo penal.
Exatamente nesse instante, a pessoa que eu procurava me enviou uma mensagem avisando que havia saído com urgência do fórum para resolver problemas referentes a outras ações. Minha tentativa de encontrá-lo acabou frustrada. Dessa forma, como eu estava com o restante do dia livre, resolvi permanecer na sala. Acompanharia aquela audiência e, talvez, ficaria sabendo quem era a mulher que tanto atraiu minha curiosidade e quais marcas da vida ela carregava consigo.
Sentei na mesma fileira que ela, mas no outro extremo. Discretamente a examinei. A mulher, que momentos antes estava tomada por uma agitação (ainda que silenciosa), agora mirava fixamente para o chão e aparentou-me estar rememorando, compenetrada, alguma situação vivida outrora. Na verdade, acho que em momento algum ela notou a minha presença lá. Seu estado de espírito não lhe permitia distrações. Dessa forma, percebi que de nada adiantaria tentar travar um diálogo. Apesar de ainda não ter ciência de quais fatos seriam ali discutidos, resolvi aguardar em silêncio e quieta o início da audiência.
Introspectivos, o promotor de justiça e o escrivão já estavam posicionados em seus lugares, fazendo algumas anotações em papéis. Na sala, havia outras pessoas sentadas. Todavia, faltavam o juiz e o advogado. O réu também.
Passados uns 20 minutos, quando já estava pretendendo ir embora, o juiz adentra na sala e anuncia aos presentes que o ato iria finalmente iniciar, pois o problema de transporte e condução do réu já havia sido resolvido. A mulher que estava cabisbaixa, logo ergueu o corpo e recobrou a atenção.
Nesse momento, o réu preso, trajando o uniforme carcerário, acompanhado de seu advogado, é trazido pela escolta armada. A senhora o observou de cima a baixo, não esboçou reação alguma. Ouso dizer que ela tenha ficado imobilizada diante dele. Até aquele momento eu ainda não era capaz de precisar com exatidão qual era o tipo de conexão que havia entre eles. Por sua vez, o denunciado também quando a viu mudou de imediato a expressão do rosto. Ele parecia tranquilo, mas foi tomado por um nítido sobressalto. Baixando a cabeça, ele se recolheu na cadeira em que tinha sido posto. Assim permaneceu até o juiz dar início à audiência, com a leitura da denúncia, subscrita pelo Ministério Público.
Justamente nesse instante, meu celular começou a tocar baixinho. Tratava-se de uma ligação inadiável do escritório ao qual estava vinculada à época, indagando-me acerca da movimentação de um processo cível, motivo pelo qual precisei me retirar da sala para atendê-la. Acabei perdendo a narração dos fatos que eram imputados àquele homem. Quando retornei, percebi também que não havia peritos ou testemunhas para depor, pois ninguém foi apregoado pelo escrivão. Certamente aquela audiência era a continuação de outra.
De fato, o juiz explicou exatamente aquilo que eu havia pensado: em razão da audiência anterior, com muitas testemunhas arroladas, ter se prolongado demais no horário, o interrogatório do réu e outros atos ocorreriam apenas naquele momento.
Assim, depois do esclarecimento acerca do direito ao silêncio no interrogatório, a qualificação do réu foi então iniciada. Ele foi questionado sobre nome, local de residência, data de nascimento e estado civil. A mulher, sentada no outro extremo da fileira de cadeira, ouvia tudo sem piscar os olhos. Parecia estar pronta para contra- -atacar se necessário fosse. Quando inquirido sobre sua profissão, causou-me espanto a resposta do réu, pois tratava-se de um policial militar, profissional da segurança pública que materializa, pelo menos em tese, o dever estatal de diligência com a incolumidade social.
Portanto, vê-los em posição passiva no processo nos denuncia uma certa anormalidade do sistema. O juiz, então, interrogou-lhe sobre a acusação feita, perguntando se esta era verdadeira ou não. A princípio, o policial não confirmou nem negou os fatos. Ele iniciou afirmando ter sido escalado com mais uns vinte colegas de farda para a missão numa comunidade pobre, região de intenso tráfico de drogas, situada bem distante do centro da cidade, cinco dias antes do fatídico. Sempre chegavam denúncias de populares sobre o comércio de entorpecentes por lá. Segundo ele, a incursão ocorreria em uma quinta-feira, pois a polícia havia tomado ciência de que um carregamento de trezentos quilos de maconha chegaria no finalzinho da tarde daquele dia.
Por esses motivos, a guarnição se preparou para invadir o local, apreender a droga e “flagrantear” os traficantes. Todos os presentes na sala o ouviam com singular atenção. A senhora, sentada na ponta da cadeira, cerrava, novamente, os lábios com muita força. Parecia querer se conter. Assim que a equipe chegou ao local, conforme o policial militar interrogado, ele se separou de seus colegas, escondendo-se atrás de um poste. Incumbia-lhe, na ocasião, montar campana para evitar fugas. Ele falou que o local estava aparentemente tranquilo e sem quaisquer indícios de anormalidade. De repente, segundo seu relato, um jovem em alta velocidade cruzou a sua frente. O PM disse ter se assustado com um garoto que passou correndo.
Ele já estava com a arma engatilhada. Pensou que fosse um dos traficantes em fuga. Disparou contra ele. 3 tiros. Fatais. O jovem caiu ensanguentado em uma enorme poça d’água. Nesse momento, diante dessas revelações dolorosas, a mulher fechou bem os olhos. Uma única lágrima escorreu pelo seu rosto. Ela tinha acabado de ouvir a narrativa da morte do próprio filho. O silêncio tomou conta da sala de audiência, mas a dor daquela mãe reverberava até os lugares mais longínquos do fórum. O policial baixou a cabeça e calou-se. O magistrado continuou questionando-o sobre os fatos, mas ele só respondeu: “Foi um engano, doutor. Foi um engano, infelizmente. Aconteceu”.
O réu disse que já tinha falado tudo e que não responderia nenhuma pergunta. Nessa altura, lágrimas copiosas vertiam incessantemente dos olhos daquela pobre mulher. Ela as secava com um lencinho que estampava a foto do filho. Um garoto negro, de 13 anos, que estava apenas brincando com os vizinhos de esconde-esconde. Um menino sonhador, cheio de amigos, estimado por sua família e, principalmente, amado por sua mãe de maneira incondicional. Sua vida fora interrompida bruscamente por 3 tiros. Um acertou-lhe o braço, o outro o peito e o último a cabeça. Tudo por causa da cor da pele. Era só uma criança. Era só uma criança brincando. Mais um jovem negro que teve a vida ceifada. E assim este conto termina, abruptamente, tal qual a vida do garoto.
Resumo: O presente trabalho buscou compreender a perseguição de inimigos como política de governo no Brasil contemporâneo, analisando fragmentos do discurso do presidente Jair Bolsonaro através de uma metodologia qualitativa, revisitando, para compreensão do objeto, os conceitos de Adorno sobre a propaganda fascista e de Freud sobre o papel do líder na estrutura dos movimentos de massa. Ademais, foi necessário demonstrar as implicações da pós-modernidade na constituição do sujeito e sua utilização como fundamento para um direito penal da emergência, que funciona num constante estado de exceção, restringindo direitos e garantias fundamentais sob o pretexto de garantia da segurança. A perseguição de inimigos aparece como elemento para a manutenção da estabilidade social, uma vez que grande parte dos males é projetada para determinados grupos sociais. O estado de exceção contemporâneo constrói seu homo sacer mediante uma potencialização da criminalidade e, consequentemente, das medidas para lidar com o crime. O texto mostra que o colonialismo e as práticas de biopoder exportadas do colonizador delimitam as vidas que podem ser ceifadas, desenvolvendo estruturas para o ressurgimento de movimentos antidemocráticos que se aproveitam de racionalidade de permanente insegurança para propagar um discurso fantasioso de salvação nacional, através da perseguição de grupos vulnerabilizados.
Palavras-chave: Estado de exceção. Perseguição de inimigos. Direito penal de emergência.
Abstract: The present work sought to understand the persecution of enemies as a government policy in contemporary Brazil, analyzing fragments of President Jair Bolsonaro’s discourse through a qualitative methodology, revisiting Adorno’s concepts about fascist propaganda and Freud’s about the object. the role of the leader in the structure of mass movements. In addition, it was necessary to demonstrate the implications of postmodernity in the constitution of the subject and its use as a basis for an emergency criminal law, which operates in a constant state of exception, restricting fundamental rights and guarantees under the pretext of guaranteeing security. Persecution of enemies appears as an element for the maintenance of social stability, since most of the evils are designed for certain social groups. The contem porary state of exception builds its homo sacer by increasing criminality and, consequently, measures to deal with crime. The text shows that colonialism and the biopower practices exported from the colonizer delimit the lives that can be taken, developing structures for the resurgence of anti-democratic movements that take advantage of the rationality of permanent insecurity to propagate a fanciful discourse of national salvation, through persecution of vulnerable groups.
Keywords: State of exception. Persecution of enemies. Anti-democratic movements.