A ciência criminal, a partir de seu tripé classicamente estabelecido por Von Lizst (política criminal, dogmáticas penais e criminologia), passa por uma de suas mais severas crises, especialmente em relação ao seu campo normativo. Não poderia ser diferente numa área do saber afeta constantemente aos assombros de uma realidade que contradiz a sua discursividade. O fato social, por um lado, antes marcado pela fixidez, dá lugar a características de complexidade, fluidez e indeterminação. Por outro, nas sociedades de massas, surgem pressões pela sua quantificação e padronização por intermédio de métodos estatísticos e procedimentos que prescindam das singularidades.
As dificuldades de regramento deste fato social assim pressionado e diante de um Direito marcado pelas análises binárias ((i)legal, (in)constitucional, (im)provido), paradoxalmente nos coloca diante de múltiplos impasses na busca da segurança jurídica prometida. Some-se a isso o revigoramento de perspectivas autoritárias, antes adormecidas. Hoje, elas corroem a democracia a partir da própria democracia e se utilizam daqueles significantes normativos liberais como significados apreendidos em nome de seus interesses. Algoritmos desenvolvidos a partir de complexas lógicas passam a colocar em xeque toda a estrutura contratualista acerca do Direito.
Tanto as responsabilidades (Direito Penal) quanto as responsabilizações (Direito Processual Penal) sofrem pressões pela parametrização, pelo cálculo a partir de padronização de comportamentos, substituindo a cognição pela checagem. No cerne de tal movimento está justamente um dos corolários discursivos da segurança jurídica: a eficiência do sistema penal. Nada deve passar incólume aos cálculos atuariais, em um processo de cedência à própria natureza humana do ato de julgar. Tanto a individualização da conduta (pilar da culpabilização penal) quanto a fundamentação da sentença criminal passariam a ser assumidas por computadores programados de acordo com as rotinas de julgamentos passados.
A singularidade do caso cada vez mais aparece como um problema e um obstá- culo. Os dramas humanos precisariam ser reduzidos a um número, a um conjunto de caracteres. Não apenas ao número de um processo, como também a sua absoluta despersonificação em nome da eficiência e celeridade das decisões em série.
É preciso analisar sobre o quanto estas lógicas podem impactar o sistema penal brasileiro, historicamente seletivo, racista e marcado pela distribuição intencional e desigual de dores. Em verdade, talvez seja apenas a evidenciação do que estava encoberto, porém é possível que esta radicalização nos leve a reposicionar os positivistas como os detentores sobre “a” verdade acerca do crime. Uma “verdade” cujas consequências ainda amargamos por ter legitimado alguns dos piores massacres humanitários de que se tem notícia e que poderia revigorar um direito penal de periculosidades e predições. Desta forma, é preciso interrogar o quanto os usos tecnológicos colocam em xeque, inclusive, a noção já clássica de Norberto Bobbio de Direitos Humanos. Se esta categoria é entendida como “direitos históricos”, como se dará a sua constante (in)evolução e ressignificação através da máquina? Especialmente quando da necessidade de calcular/projetar as dores sociais materializadas em uma pena? (CHRISTIE, 2016).
Porém, uma série de princípios dogmático-criminais poderia ser colocada em xeque a partir da sua utilização. Nas formas atuariais de prognose do crime, os princípios do “nulla injuria sine actione” (princípio da materialidade ou da exterioridade da ação) e do “nulla culpa sine judicio” (princípio da jurisdicionalidade) poderiam ser violados. Ainda, podemos citar o “nulla acusatio sine probatione” como passível de violação. (FERRAJOLI, 2009) Isto ocorreria em função do afastamento de duas estruturas fundamentais da dogmática processual e penal modernas: a responsabilização fundada na culpa e no design dialético presente no processo penal. Além disso, garantias constitucionais como da fundamentação e motivação das sentenças, atribuídas aos juí- zes, poderiam ser colocadas em xeque. Ainda neste sentido, Byung-Chul Han (2018) nos traz importante advertência acerca dos julgamentos artificiais e o afastamento de nossa condição humana:
“Uma possibilidade infinita de conexão e informação nos torna sujeitos verdadeiramente livres? Partindo dessa questão, é possível delinear a nova sociedade do controle psicopolítico, que não se impõe com proibições e não nos obriga ao silêncio: convida-nos incessantemente a nos comunicar, a compartilhar, a expressar opiniões e desejos, a contar nossa vida. Ela nos seduz com um rosto amigável, mapeia nossa psique e a quantifica através dos big data, nos estimula a usar dispositivos de automonitoramento. No pan-óptico digital do novo milênio – com a internet e os smartphones – não se é mais torturado, mas tuitado ou postado: o sujeito e sua psique se tornam produtores de massas de dados pessoais que são constantemente monetizados e comercializados.”
As novas tecnologias têm nos trazido importantes desafios na contemporaneidade: desde as redes sociais, câmeras de vigilância com sensores de identifica- ção, até os sistemas de localização em tempo (como GPS), a impressão de quem se preocupa com liberdades é a de que ela está cada vez mais sufocada em nome da eterna promessa de segurança.
Caberia perguntar se tudo isso não representaria um “museu de grandes novidades” e se as novas tecnologias não repaginariam velhos problemas colocados pelas ciências criminais da modernidade e há muito conhecidos por nós. Se, como mencionava Lampedusa, tudo deve mudar para permanecer como está, restaria o problema de saber o que neste debate é realmente novo e o que do velho que nele ressurge cumpre funções não declaradas pelas ciências criminais. Temos aqui um conjunto precioso de possibilidades teóricas para pensarmos os impactos das novas tecnologias às ciências criminais.
Acreditamos que as ideias aqui discutidas possam subsidiar os futuros debates e seus impactos no contexto brasileiro.
Uma ótima leitura! Ciberespaço, junho do ano pandêmico de 2021
Referências
CHRISTIE, Nils. Limites à Dor. Trad. Gustavo Noronha de Ávila, Bruno Silveira Rigon e Isabela Alves. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Trad. Andrés Perfect-Ibañez. Madrid: Trotta, 2009.
HAN, Byung-Chul. No exame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
HARTMANN PEIXOTO, Fabiano; ZUMBLICK, Roberta. Inteligência Artificial e Direito. Curitiba: Alteridade, 2019.
Resumo: Busca-se no presente artigo responder a dois problemas centrais: como se forma e se caracteriza a gestão diferencial dos ilegalismos no processo penal? E como se comportam essas características na era da sociedade digital? Para tanto, procurou-se caracterizar o que se denominou gestão diferencial dos ilegalismos no processo penal para, posteriormente, refleti-la e enquadrá-la, ou não, nas peculiaridades persecutórias que tentam fazer frente às complexidades tecnológicas oriundas dos ambientes digitais de socialização. Partindo-se inicialmente de eixos centrais no pensamento de Michel Foucault e aportando em grau relacional nas diretrizes da hermenêutica processual penal de Alberto Binder, buscou-se demonstrar que, a partir da formação de um saber-poder de cariz criminal, a gestão diferencial dos ilegalismos no processo penal se perfez como característica intrínseca ao cotidiano manejo do sistema penal desempenhado pelos atores aqui denominados persecutórios. Além disso, também buscou-se ilustrar que, em tempos tecnológicos e de socialização digital, a formação de saber pelo Direito se vê prejudicada e tal fato tende a influenciar nos reflexos de poder do próprio Estado em matéria de busca por controle mediante coercibilidade.
Palavras-chave: Processo penal – Gestão diferencial dos ilegalismos – Hermenêutica processual penal – Saber-poder – Sociedade digital.
Abstract: This article aims to answer two central problems: how is the differential management of illegalisms formed in criminal proceedings formed and characterized? And how do these characteristics behave in the era of the digital society? To this end, we sought to characterize what was called the differential management of illegalisms in the criminal process, to subsequently reflect and frame it, or not, in the persecutory peculiarities that try to face the technological complexities arising from the digital socialization environments. Starting from central axes in the thinking of Michel Foucault and contributing in a relational degree to the guidelines of Alberto Binder’s criminal procedural hermeneutics, we sought to demonstrate that, from the formation of a criminal knowledge-power, the differential management of illegalisms in the criminal process has become an intrinsic characteristic of the daily handling of the penal system performed by the actors here called persecutors. In addition, it also sought to illustrate that, in technological times and in digital socialization, the formation of knowledge by law is impaired and this fact tends to influence the reflections of the State’s own power in terms of the search for control through coercibility.
Keywords: Criminal procedure – Differential management of illegalisms – Criminal procedural hermeneutics – Knowledge-power – Digital society
Resumo: Os últimos anos presenciaram uma rá- pida expansão no uso de sistemas de predição de crimes por parte das instituições policiais. Desenvolvedores de softwares prometem que seus modelos matemáticos são capazes de antecipar tendências e dar mais precisão para estratégias preventivas de controle do crime, aumentando a eficiência e a transparência das polícias. No entanto, críticos afirmam que os mapas de crimes futuros reproduzem padrões discriminatórios encontrados nas bases de dados dos sistemas de justiça criminal, contribuindo para maior criminalização de populações marginalizadas. Neste artigo, debatemos as implicações dos sistemas preditivos para a prática policial e argumentamos que estes espelham o senso comum punitivo que ganhou espaço a partir dos anos 1980. Para tanto, traçamos um breve paralelo histórico entre o desenvolvimento do pensamento criminológico e as técnicas de análise estatística e visualização cartográfica adotadas pelas polícias. Aprofundamo-nos também em alguns dos modelos preditivos mais comuns no mercado de forma a ilustrar como estes adotam pressupostos da criminologia ambiental em seus mapas de risco. Por fim, abordamos as controvérsias em torno dos sistemas preditivos e sua autoridade epistemológica, demostrando que estes naturalizam e legitimam práticas repressivas.
Palavras-chave: Policiamento preditivo – Previsão de crimes – Viés algorítmico – Punitivismo – Discriminação policial.
Abstract: The past decade witnessed a fast implementation of predictive systems in police institutions. Software developers promise their mathematical models are capable of anticipating criminal trends, affording more precision to preventive strategies, and enhancing police efficiency and transparency. However, critics claim maps of future crime reproduce discriminatory patterns inherent to the databases used in the justice system, which further criminalizes marginalized communities. In this article, we debate predictive system’s impact in police practices and demonstrate that these systems reproduce punitive rationalities that gained track in the 1980s. In this sense, we trace the historical parallels between the development of criminological thinking and police techniques for statistical analysis and crime mapping. We also delve into popular predictive models to illustrate how they advance assumptions of the environmental criminology. Finally, we address current controversies on predictive systems and their epistemological authority, and claim that these systems naturalize and legitimize repressive police practices.
Keywords: Predictive policing – Crime prediction – Algorithmic bias – Punitivism – Police discrimination.
Resumo: A pesquisa parte do tema dos algoritmos preditivos adotados pelo sistema penal, dando especial atenção às experiências estrangeiras em comparativo com as possibilidades nacionais. Tem-se assim como problema de pesquisa: como operam os modelos de algoritmos preditivos aplicados ao sistema penal? Quais os riscos gerados na atuação estrangeira e que poderiam afetar o sistema penal brasileiro? O objetivo geral se concentra em compreender a forma de operação dos dispositivos preditivos, bem como ponderar os riscos oferecidos pelas ferramentas de predição na realidade brasileira. Os métodos utilizados para responder às indagações são o fenomenológico- -hermenêutico, no tocante à abordagem, e o monográfico, em relação ao procedimento, contando ainda com o auxílio da técnica de pesquisa da documentação indireta. Conclui-se que o uso de algoritmos e outras tecnologias preditivas, alinhadas ao controle tecnopolítico e ao capitalismo de vigilância, operam de formas pouco transparentes, e intencionalmente ocultando seus erros/ falhas na manutenção das discriminações produzidas pelo sistema penal. Com o auxílio discursivo-imagético, as tecnologias preditivas servem para reatualizar suportes punitivos e esconder inúmeros problemas já denunciados pelo pensamento criminológico, sendo tais fatores riscos consideráveis quando projetados ao contexto violento e desigual já vivenciado no Brasil.
Palavras-chave: Algoritmos preditivos – Criminologia crítica – Tecnopolítica – Capitalismo de vigilância – Sistema penal.
Abstract: The research starts with the theme of predictive algorithms adopted by the penal system, paying special attention to foreign experiences in comparison with national possibilities. Thus, there is a research problem: how do predictive algorithm models applied to the penal system operate? What are the risks generated in foreign operations and which could affect the Brazilian penal system? The general objective focuses on understanding the way in which predictive devices operate, as well as considering the risks offered by the prediction tools in the Brazilian reality. The methods used to answer the questions are the phenomenological-hermeneutic, with regard to the approach, and the monographic, in relation to the procedure, with the help of the indirect documentation research technique. It is concluded that the use of algorithms and other predictive technologies, in line with technopolitical control and surveillance capitalism, operate in non-transparent ways, and intentionally hiding their errors/failures in maintaining the discriminations produced by the penal system. With the aid of discursive-imagery, predictive technologies serve to update punitive supports and hide numerous problems already reported by criminological thinking, such factors being considerable risks when projected into the violent and unequal context already experienced in Brazil.
Keywords: Predictive algorithms – Critical criminology – Technopolitics – Surveillance capitalism – Penal system
Resumo: O presente artigo tem por finalidade tratar de um delito inédito e ainda muito pouco trabalhado pela doutrina e pela jurisprudência nacional: o crime de perseguição, referido pela doutrina estrangeira como stalking, e inserido pela nova Lei 14.132/2021, no artigo 147-A do Código Penal brasileiro. Para tanto, a análise arranca da lacuna legislativa existente em relação a um importante bem jurídico, já tutelado em outros países e ainda carente de proteção pela legislação nacional: a integridade moral da pessoa humana, que concretiza o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) em matéria penal, e que só encontrava guarida na Lei de Tortura (Lei 9.455/1997) no Brasil. Partindo do conceito e análise deste novel bem jurídico, o texto destaca as principais características do assédio moral, como forma geral de atentado à integridade moral da pessoa humana, com particular destaque para a sua reiteração ou habitualidade. Outro ponto trabalhado é a figura do cyberstalking como modalidade especialmente mais grave de assédio moral, potencializada pelos meios informáticos de comunicação, embora olvidada pelo legislador na Lei 14.132/2021. Por fim, o presente artigo analisa o tipo do novo artigo 147-A, saudando a inovação legislativa, ao mesmo tempo em que traça críticas e reparos à sua redação, de forma a contribuir, ainda que de forma tão prematura quanto inovadora, para a interpretação e aplicação deste importante novo tipo penal.
Palavras-chave: Assédio moral – Perseguição – Stalking – Cyberstalking – Integridade moral.
Abstract: The purpose of this article is to deal with an unprecedented crime and still very little dealt with by Brazilian doctrine and jurisprudence: the crime of persecution, referred to by foreign doctrine as stalking, and inserted by new Law 14,132/2021 in article 147-A of the Brazilian Penal Code. Therefore, the analysis starts from the existing legislative gap in relation to an important legal asset, already protected in other countries and still in need of protection by national legislation: the moral integrity of the human person, which concretizes the principle of respect for the dignity of the human person (art. 1º, III, CF) in criminal matters, and which was only found in the Torture Law (Law 9,455/1997) in Brazil. Starting from the concept and analysis of this very legal novel, the text highlights the main characteristics of moral harassment, as a general form of attack on the moral integrity of the human person, with particular emphasis on its reiteration or habituality. Another point worked on is the figure of cyberstalking as an especially serious form of moral harassment, enhanced by the computerized means of communication, although forgotten by the legislator in Law 14,132/2021. Finally, this article analyzes the type of the new article 147-A, saluting the legislative innovation, at the same time that it draws criticisms and repairs to the its wording, in order to contribute, albeit as prematurely as it is innovative, to the interpretation and application of this important new crime.
Keywords: Moral harassment – Pursuit – Stalking – Cyberstalking – Moral integrity
Resumen: Las criptomonedas son un tema bastante debatido en la actualidad. Junto al interés creciente de la población en la novedad de esta tecnología, surgen discusiones por parte de los países y las autoridades estatales con respecto a las medidas de regulación y la posibilidad de utilizar las criptomonedas como medio para cometer el delito de lavado de activos. En este artículo, hago una aproximación al bitcoin, la criptomoneda más conocida y utilizada en la actualidad, y a la manera como sus características pueden definir su posible empleo como medio para el delito de lavado de activos. Esta investigación hace una mirada a las herramientas de soft law y hard law creadas en el ámbito de la Unión Europea, para comprender cómo los países que la componen están planteando las medidas de (des)regulación de las criptomonedas, puntuando elementos de la experiencia española y brasileña. También se evidencia, a través de algunos ejemplos, la plena posibilidad de uso de bitcoins en el delito de lavado de activos y los desafíos de regulación del sector, aclarando la irracionalidad y desproporcionalidad de propuestas legislativas que aboguen por su criminalización.
Palabras clave: Criptomonedas – Bitcoin – Lavado de activos – Criminalización – Regulación.
Abstract: Cryptocurrencies are a hotly debated topic nowadays. In addition to the growing interest of the population in the novelty of the technology, there are discussions by countries and state authorities regarding regulatory measures and the possibility of using cryptocurrencies as a means to commit money laundering. In this article I make an approach to bitcoin, the most known and used cryptocurrency nowadays, and how its personal characteristics can define its possible use as a means for money laundering. The research takes a look at the soft law and hard law tools created in the European Union to understand how those countries are approaching the regulation of cryptocurrencies, highlighting elements of the Spanish and Brazilian experience in this field. It also shows through some examples the full possibility of using bitcoins in the crime of money laundering and the challenges of regulating the sector, clarifying the irrationality and disproportionality of legislative proposals that advocate its criminalization.
Keywords: Cryptocurrencies – Bitcoin – Money laundering – Criminalization – Regulation.
Resumo: Este artigo parte do problema da opacidade e da dificuldade de compreensão dos algoritmos no âmbito da segurança pública e da justiça criminal. A simples compreensão descritiva do que consiste um algoritmo ou até mesmo o mero acesso ao “interior” de um algoritmo tampouco parece contribuir para uma compreensão efetiva das possíveis utilizações e dos efeitos dessa tecnologia. Muito tem se falado sobre algoritmos e sua previsibilidade, mas pouco se discute que sentidos podem a eles ser atribuídos, como efetivamente acessá-los, e como podem ser enfim compreendidos. É o que se pretende abordar neste artigo. Seu objeto não são os algoritmos em si, mas a compreensão que pode ser atribuída a eles. Metodologicamente, parte-se de conceitos como ilegibilidade e fluxo oculto de informações, elementos já existentes nos estudos sobre documentos do Estado. Em seguida, pela revisão de literatura especializada, são abordadas as seguintes questões: o que é algoritmo? É possível compreender um algoritmo? É possível acessar um algoritmo? Quão verdadeiros são os resultados de um algoritmo? O eu é computável?
Palavras-chave: Sistema de Justiça Criminal – Algoritmos – Ilegibilidade – Fluxo de informações – Computabilidade do eu.
Abstract: Opacity and technical complexity are major problems when it comes to understanding an algorithm, especially in the area of public security and criminal justice system. The mere technical description of what an algorithm is or even the simple access to the “interior” of an algorithm does not seem to contribute to an effective understanding of the possible uses and effects of this technology. Much has been said about algorithms and their function of predictability, but little is discussed about which meanings can be attributed to them, how to effectively access them, and how they can be finally understood. This is what we intend to address in this article. Its object is not the algorithms themselves, but the understanding that can be attributed to them. Methodologically, it starts with concepts such as illegibility and hidden information flow, elements that already exist in studies on documents of the State. Then, by reviewing the specialized literature, the following questions are addressed: What is an algorithm? Is it possible to understand an algorithm? Is it possible to access an algorithm? How true are the results of an algorithm? Can the self be computable?
Keywords: Criminal Justice System – Algorithms – Illegibility – Informational flow – Computability of the self.
Resumo: A emergência das mídias sociais e o desenvolvimento de novas técnicas para obtenção, validação e extração de dados produziram mudanças socioculturais profundas, de modo que a cibercriminologia tem se tornado um conceito fundamental para descrever o presente e compreender a transformação comunicativa em curso na chamada sociedade de plataformas. Ainda que no plano processual o diagnóstico sobre a permanência da epistemologia autoritária pareça elementar para alguns processualistas, pretende-se, a partir dos aportes teóricos da criminologia e da teoria da comunicação, desenvolver uma compreensão de como a crescente expansão da tecnologia e dos meios de comunicação colabora com a ressignificação da justiça criminal por meio das mudanças promovidas na construção da cultura, da sociedade e das diferentes práticas sociais. Com base na noção de crítica reconstrutiva como base metodológica, o texto assume a hipótese de que as transformações ambivalentes oriundas da virtualidade digital e a “revolução das mídias sociais”1 tem contribuído para a deslegitimação do processo penal contemporâneo, cuja democratização torna-se obstaculizada pelas dinâmicas particulares da midiatização no campo da justiça criminal.
Palavras-chave: Processo Penal – Anocracia – Justiça Criminal – Sociedade de Plataformas – Cibercriminologia.
Abstract: The emergence of social media and the development of new techniques for obtaining, validating and extracting data have produced profound socio-cultural changes, so that cybercriminology has become a fundamental concept to describe the present and understand the ongoing communicative transformation in the platform society. Although at the procedural level the diagnosis about the permanence of authoritarian epistemology seems elementary, it is intended, based on the theoretical contributions of criminology and communication theory, to develop an understanding of how the increasing expansion of technology and communication vehicles collaborates with the re-signification of criminal justice through the changes promoted in the construction of culture, society and different social practices. Based on the notion of reconstructive criticism as a methodological basis, the text assumes that the ambivalent transformations arising from digital virtuality and the “social media revolution” have contributed to the delegitimization of the contemporary criminal process, whose democratization has become hampered by particular dynamics of mediatization in the field of criminal justice.
Keywords: Criminal Procedure – Anocracy – Criminal Justice – Platform Society – Cybercriminology
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal debater a inserção de novas tecnologias na área de segurança pública, especificamente em se tratando do aparato policial na Era Big Data. Para tanto, apresentamos um debate bibliográfico sobre algoritmos e sua aproxima- ção com a justiça penal e a atuação da polícia, adentrando, assim, no chamado policiamento preditivo. Buscamos analisar o que a bibliografia norte-americana, que há mais de duas décadas se debruça sobre a temática, revela sobre um policiamento baseado na predição para, em seguida, analisarmos dois casos práticos dos EUA acerca desse modo de policiar. Por se tratar de uma sociedade racializada com significativos indícios de atuação discriminatória por parte da polícia, assim como a sociedade brasileira, os exemplos norte-americanos podem auxiliar na formação de um pensamento acadêmico crítico quando do policiamento preditivo, trazendo questionamentos e avaliações para pensarmos, também, sobre nossa realidade.
Palavras-chave: Policiamento Preditivo – Inteligência Artificial – Big Data – Algoritmos.
Abstract: This paper aims to examine the insertion of new technologies in the area of public security, specifically when it comes to the police apparatus in the Big Data Era. For that, we present a bibliographic debate on algorithms and their approach to criminal justice and the role of the police, thus entering the so-called predictive policing. We seek to analyze what the North American bibliography, which has been focusing on the theme for more than two decades, reveals about policing based on prediction; then we will analyze two practical cases from the United States about this way of policing. Once we analyzed a racialized society with significant evidence of discriminatory action by the police, as well as Brazilian society, the North American examples can assist in the formation of critical academic thinking about predictive policing, bringing questions and evaluations to think, also, about our reality.
Keywords: Predictive Policing – Artificial intelligence – Big data – Algorithms.
Resumo: Todas as jurisdições pressupõem um conceito de “ação de natureza sexual” ou “ato libidinoso” ao regular os crimes sexuais. Até a revolução sexual e o advento dos movimentos feministas em prol da igualdade nas relações sexuais, o Direito Penal se preocupava apenas com certos tipos de atos sexuais ou libidinosos. Era o caso, sobretudo, de infrações envolvendo atos de penetração praticados fora do matrimônio. Com a modificação ocorrida nos últimos anos em torno dos padrões de sexualidade e de moralidade sexual, tem-se uma expansão do Direito Penal Sexual que tende a considerar criminalmente relevantes quaisquer atos libidinosos praticados sem o consentimento válido da outra pessoa. Esse movimento de mudança resulta em grandes desafios para a correta aplicação dos crimes sexuais, independentemente de haver ou não uma definição explícita do tipo de ato libidinoso proibido pela lei. Conforme o estudo de casos limítrofes demonstra, nem critérios meramente objetivos nem elementos puramente subjetivos podem servir como base para a descrição da conduta proibida. Neste artigo, tentamos superar as dificuldades enfrentadas pela doutrina a respeito. Sustentamos que o conceito de “ação sexual” ou “ato libidinoso” não deve ser entendido por meio da metáfora de uma imagem, como acreditam os doutrinadores alemães. Ao invés disso, deve ser compreendido a partir da metáfora de um roteiro interpretado por um ator, na linha do que esclarecem os teóricos da sexualidade.
Palavras-chave: Crimes sexuais – Ato libidinoso – Ato sexual – Elementos subjetivos do tipo – Autonomia sexual.
Abstract: All jurisdictions operate with a concept of an act of a sexual nature in regulating sex crimes. Until the sex revolution and the feminist movements for equality in sexual relations, criminal law was mostly concerned with specific types of sexual acts, particularly with non-marital sexual intercourse. With the paradigm shift of recent years, criminalization tends to embrace all acts of a sexual nature with another person without her or his valid consent. Whether the law contains a definition of a sexual act or not, borderline cases show that neither merely objective criteria nor purely subjective elements can serve as the basis for the description of the conduct under prohibition. In this paper we try to overcome this deficit in criminal law theory. Sexual acts should not be understood through the metaphor of a picture, as German legal scholars believe, but with the metaphor of a script played out by an actor, as theorists of sexuality put it.
Keywords: Sexual crimes – Sexual act – Criminal intent – Sexual autonomy
Resumo: O presente artigo objetiva analisar a criminalização internacional do ecocídio à luz do Tribunal Penal Internacional (TPI). O que se busca investigar é se a experiência do TPI de alguma forma ofereceu alguma modificação ao conceito de ecocídio e, em caso positivo, como essa modificação se manifestou na experiência do tribunal. O trabalho é desenvolvido a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema cotejada com a análise da casuística internacional e do próprio Estatuto de Roma (ER) no sentido de se verificar se à evolução do conceito de ecocídio corresponde uma resposta normativa no estatuto daquela corte internacional. Inicialmente, o artigo apresenta o conceito de ecocídio a partir da discussão da doutrina que o desenvolve, buscando-se identificar os elementos centrais desse conceito. Em seguida, analisa-se a competência material delimitada no ER para verificar se dentro dos conceitos dos crimes sob sua jurisdição, seria ali possível encontrar a criminalização do ecocídio e, diante de uma resposta positiva, verificar a dimensão da proteção que se daria ao conceito para identificá-la como antropocêntrica ou ecocêntrica. Por fim, o texto discute quais as contribuições do ER para o debate da criminalização do ecocídio, apontando que, ainda que o ER tenha adotado uma perspectiva redutora da complexidade do ecocídio, trata-se de uma posição compreensível no plano penal e que abre espaço para a comunidade internacional procurar outras formas mais eficientes de proteção do meio ambiente.
Palavras-chave: Ecocídio – Estatuto de Roma – Direito Penal Internacional – Tribunal Penal Internacional.
Abstract: This article analyses the international criminalisation of ecocide under the International Criminal Court (ICC). What it investigates is whether the experience of the ICC somehow offered any changes to the concept of ecocide and, if yes, how did such change has manifested in the Court’s experience. This work is developed through a literature review over the theme along with the analysis of the international casuistry and the Rome Statute (RS) itself, in an effort to verify if there is a normative answer in the Statute of this Court corresponding to the evolution of the concept of ecocide. Initially, this article presents the concept of ecocide from the discussion of the doctrine that develops it, looking to identify the central elements of this concept. Next, it analyses the material jurisdiction delimited by the RS to verify if it would be possible to find the criminalisation of ecocide amongst the concepts of the crimes under its jurisdiction and, when faced with a positive response, verify the dimension of the protection granted to this concept to identify it as anthropocentric or ecocentric. Finally, this work discusses the contributions of the RS for the debate of the criminalisation of ecocide, arguing that, even if the RS has adopted a perspective that is reductive of ecocide’s complexity, this is an understandable position within criminal law and it opens space to the international community to look for alternative and more efficient ways of protecting the environment.
Keywords: Ecocide – Rome Statute – International Criminal Law – International Criminal Court
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo analisar decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), em sede de habeas corpus, diante de pedidos que apontam ilegalidades na prisão dos pacientes pela não realização da audiência de custódia. Entende-se que uma vez consolidada a incorporação do instituto no processo penal brasileiro, passa a ser fundamental compreender as representações e práticas que compõem a realização da audiência de custódia no Brasil. A premissa adotada nesta pesquisa é que existe um paradoxo entre os esforços políticos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Tribunais de Justiça (TJs) e Tribunais Regionais Federais (TRFs), ao buscarem regulamentar e implementar a audiência de custódia, e a atuação concreta de juízes e desembargadores por meio de decisões judiciais em ações que apontam ilegalidades referentes a sua não realização. Desse modo, esta pesquisa propõe analisar duas questões: de que forma o Tribunal de Justiça da Bahia tem decidido os habeas corpus que apontam ilegalidades referentes a não realização da audiência de custódia? Como essas decisões se relacionam com a postura institucional adotada pelo TJ-BA sobre o tema? Por meio de uma abordagem qualitativa, a pesquisa se desenvolve em três momentos: caracterização das disputas na efetivação da audiência de custódia no direito brasileiro, análise dos discursos institucionais do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) sobre o tema (conjuntos de notícias do site do TJ-BA) e análise de decisões do mesmo Tribunal.
Palavras-chave: Audiência de custódia – Decisões judiciais – Ilegalidade – Posição institucional.
Abstract: This research aims to analyze decisions of habeas corpus handed down by the Court of Justice of Bahia (TJ-BA), in the face of requests that point out illegality in the prison of patients for not holding the custody hearing. It is understood that once the institute was incorporated and consolidated in the Brazilian criminal process, it is essential to understand the representations and practices that make up the custody hearing in Brazil. The premise adopted in this research is that there is a paradox between the political efforts made by the National Council of Justice (CNJ), the Courts of Justice (TJs) and Federal Regional Courts (TRFs), in seeking to regulate and implement the custody hearing, and the concrete performance of judges through judicial decisions in lawsuits that point out illegalities regarding their failure to occur. Thus, this research proposes to analyze two questions: how has the Court of Justice of Bahia decided on habeas corpus that point out illegalities regarding the non-realization of the custody hearing? How do these decisions relate to the institutional stance adopted by the TJ-BA on the topic? Through a qualitative approach, the research is divided in three moments: characterization of the disputes in effecting the custody hearing in the Brazilian law, analysis of the institutional speeches of the Court of Justice of Bahia (TJ-BA) on the theme (news from the website of the TJ-BA) and analysis of decisions of the same Court.
Keywords: Custody hearing – Judicial decisions – Illegality – Institutional position.
Resumo: O presente trabalho aborda a construção da insegurança como problema público na França e sua repercussão na proposta de institucionalização de uma “nova criminologia” na universidade francesa nos anos 2000. Através de revisão bibliográfica e pesquisa documental, observou-se, de um lado, a concorrência pela afirmação de paradigmas de explicação no Direito, na Psiquiatria e na Sociologia, e a expansão e diversificação das redes de pesquisa e ensino; de outro, as mudan- ças nas formas de administração dos conflitos e de controle do crime, que se relacionam com a construção da insegurança como problema pú- blico (CEFAÏ, 2007), base para o projeto de uma criminologia interdisciplinar como ciência a serviço do poder político (MUCCHIELLI, 2014; 2017). Essa proposta atualizará uma disputa histórica pela definição da Criminologia como campo de estudos, de ensino e de profissionalização, sustentada por distintas comunidades epistêmicas (ENGUELÉGUÉLÈ, 1998; 2010) interessadas no controle das políticas penais e de segurança: a “criminologia do passage à l’acte”, auxiliar do sistema penal na repressão e no tratamento do criminoso, e a “sociologia da reação social”, crítica das formas de controle penal e securitário dos conflitos sociais.
Palavras-chave: França – Criminologia – Universidade – Insegurança – Problema Público
Résumé: Cet article présent la construction de l’insécurité comme problème public en France et ses répercussions sur la proposition d’institutionnalisation d’une « nouvelle criminologie » à l’université française dans les années 2000. Grâce à la revue bibliographique et à la recherche documentaire, on a observé une concurrence pour l’affirmation de paradigmes d’explication en droit, en psychiatrie et en sociologie, ainsi que l’expansion et la diversification des réseaux de recherche et d’enseignement; d’autre part, l’évolution des formes de gestion des conflits et de lutte contre la criminalité, qui portent sur la construction de l’insécurité en tant que problème public (CEFAÏ, 2007), base du projet de criminologie interdisciplinaire au service du pouvoir politique (MUCCHIELLI, 2014; 2017). Cette proposition mettra à jour un différend historique sur la définition de la criminologie comme domaine d’études, d’enseignement et de professionnalisation, soutenu par différentes communautés épistémiques (ENGUELÉGUÉLÈ, 1998; 2010) intéressées par le contrôle des politiques criminelles et de sécurité: la « criminologie du passage à l’acte », auxiliaire du système criminel dans la répression et le traitement du criminel et la «sociologie de la réaction sociale », critique des formes de contrôle criminel et sécuritaire des conflits sociaux.
Mots-clés: France – Criminologie – Université – Insécurité – Problème public.
Resumo: O artigo analisa as narrativas da imprensa brasileira sobre a ação de organizações criminais nas dinâmicas comunitárias durante a pandemia da Covid-19, em comparação ao cená- rio anterior. Foram estudados jornais de grande circulação publicados em três estados: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Em geral, os relatos indicaram para aspectos políticos nacionais, analisando pouco as dinâmicas estabelecidas nos espaços periféricos urbanos. Entretanto, ao discutir temas comunitários, os jornais enfocaram, em especial, o contexto do Rio de Janeiro, sempre de modo ambíguo. Indicaram que os grupos criminais devem ser foco do controle estatal. Simultaneamente, assinalaram que tais atores são importantes à manutenção da ordem comunitária durante a pandemia.
Palavras-chave: Pandemia – Organizações Criminais – Milícias – Tráfico de Drogas – Estado
Abstract: This article analyzes the narratives of the Brazilian press regarding the impact of criminal organizations on community dynamics during the first year of the Covid-19 pandemic, in comparison to the previous year. Major newspapers published in three states were scrutinized: Minas Gerais, São Paulo and Rio de Janeiro. In general, the news framed federal political aspects, with little emphasis on the dynamics established in the peripheral urban spaces. However, when discussing community issues, newspapers focused, in particular, on the context of Rio de Janeiro, always in an ambiguous way. They indicated that criminal enterprises should be the aim of state control. At the same time, they pointed out that such groups are important for maintaining community order during the pandemic.
Keywords: Pandemic – Criminal Organizations – Militias – Drug Trafficking – State