.
Em um giro sobre o desenvolvimento das Ciências Criminais a partir do processo de racionalização do monopólio do poder de punir pelo Estado, é possível perceber que a dogmática penal se centrou inicialmente no binômio crime-pena em uma perspectiva jurídica, definindo o crime a partir da realização de um dado comportamento humano e a pena como retribuição normativa de tal comportamento. Em seguida a Criminologia de base positivista altera a lente do estudo para o crime e o criminoso e passa a tratar das causas do crime e a encontra-las em fatores biológicos, antropológico ou sociais, e a pena como controle da perigosidade ou defesa social. À vítima foi dedicado espaço secundário seja no direito penal – na definição do crime, no direito processual penal – na participação no processo; ou na criminologia no período clássico ou positivista.
A legitimação do direito penal sob o enfoque da garantia da paz pública e da defesa social, atribuindo ao Estado a condição de sujeito passivo de todos os delitos, afastou a consideração da vítima na definição do crime. Assim como a perspectiva litigiosa do processo, direcionada ao reconhecimento da autoria, da materialidade do fato e da culpa do réu, deixam a vítima em segundo plano.
Nills Christie, por exemplo, alerta que “A vítima em um caso criminal é uma espécie de perdedor em dobro na nossa sociedade. Primeiro em face do ofensor, em segundo lugar em relação ao Estado. Ele é excluído de qualquer participação no seu próprio conflito. Seu conflito é roubado pelo Estado, um roubo que é realizado por profissionais em particular. [...]
Esta perda é, antes de tudo, uma perda de oportunidades de esclarecimento de normas. É uma perda de possibilidades pedagógicas. É uma perda de oportunidades para uma discussão contínua sobre o que representa a lei do país.” (Christie, 2017, p. 123).
O estudo da criminalidade e de seu controle sob a ótica da Criminologia crítica desdobra-se em questionamentos sobre o direito penal e o processo penal. A consideração da contribuição da vítima para o crime e a revitimização provocada pelo sistema penal, por outro lado, causaram estremecimentos nas bases da dogmática penal e processual penal. Pôs à vista, de sua vez, a ausência nos procedimentos da figura mais relevante no delito quando não passa de um terceiro esquecido e ignorado. Mero elemento de prova, poder-se-ia afirmar. De tal forma se propugna por sua reinserção na apuração dos fatos que já há quem afirme que, dar-lhes mais espaço, poderia afetar a simetria nos procedimentos, porque os acusados passariam a se confrontar com dois acusadores: o Estado e o sujeito passivo.
O modelo binário – lícito/ilícito, culpado/inocente, autor/vítima – a que, necessariamente, recorre o direito penal para oferecer segurança aos cidadãos em suas decisões, viu-se abalado pelo desenvolvimento das ciências criminais que revelam uma pluralidade de situações nas quais o titular do bem jurídico, nem sempre é vítima. Esta nova perspectiva desvela um sujeito passivo não tão inerte e também gerador de perigos que se concretizam em resultados típicos. Então, a dogmática penal, a partir das correntes funcionalistas, para além das construções ontológico-descritivas, incorporou elementos axiológico-valorativos na teoria do delito, estabelecendo “um novo olhar sobre o autor e o titular do bem jurídico” (MINAHIM, 2021, p. 297). Observa-se, então, o desenvolvimento de institutos dogmáticos como o consentimento do ofendido, a vitimodogmática, a participação em autocolocação em perigo consentida e outras que põem em realce a autorresponsabilidade do titular do bem jurídico como fundamento à ampliação de espaços sociais de ação.
Sob o enfoque da criminologia da reação social, observando-se o funcionamento do sistema penal, verifica-se um processo de revitimização no que diz respeito, por exemplo, à criminalidade sexual (ANDRADE, ....). Ganha ênfase, na fala da autora, o fato de que prostitutas e mulheres consideradas desonestas não são tidas como vítimas de estupro, podendo, até mesmo ser transformadas em acusadas. De outro lado, iniciativas emancipatórias, com vistas à realização de um Estado Democrático, não hesitam em recorrer ao Direito Penal como meio para consolidar reinvindicações, concretizando-as através da utilização de instrumentos punitivos. Surgem, então, novas figuras vitimais através de movimentos que se intitulam libertadores.
A proposta desta publicação é a de examinar a posição da vítima nas Ciências Criminais, compreendendo, especialmente, análise do comportamento da vítima nos campos de abordagem da dogmática penal, bem como propor reflexões sobre os limites que podem e devem ser opostos à juridicidade da ação do autor em razão da compreensão do cidadão como sujeito autônomo; a vítima na criminologia; a vítima no processo penal e os novos processos de vitimização.
Bibliografia
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimização feminina? Sequência, estudos jurídicos e políticos. N.33. 1 de janeiro 1996. SC, Brasil.
CHRISTIE, Nils. Limites à dor: o papel da punição na política criminal. Tradução Gustavo Noronha de Ávila, Bruno Silveira Rigon e Isabela Alves. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
MINAHIM, Maria Auxiliadora. Funcionalismo e vítima: de figurante à protagonista. Em: Cadernos de Relações Internacionais, vol. 123, nº22, jan.305-jun 2021.