Boletim - 353
Abril de 2022
Desigualdade e violência contra a mulher

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Data: 31/03/2022
Autor: IBCCRIM

Não há sociedade democrática sem igualdade real. A Constituição reconhece direitos iguais a mulheres e homens, mas ainda vigora uma profunda desigualdade de gênero. Desigualdade que se reflete na invisibilidade e coisificação da condição feminina e em alarmantes índices de violência contra a mulher. Embora a percepção sobre essa realidade tenha sido ampliada nos últimos anos em vários setores da sociedade, ainda falta muito a avançar, e em muitas frentes.

Há uma estrutura social que reproduz a desigualdade, em especial funções sociais e modelos de trabalho doméstico que responsabilizam a mulher por todo o cuidado da casa e dos filhos, limitando sua liberdade e suas aspirações. Sob esta estrutura, a mulher brasileira enfrenta dificuldades nas esferas pessoal e profissional, o que reflete também em sua invisibilidade. É alarmante a disparidade dos índices de mulheres em posição de liderança.

Há 90 anos, foi reconhecido no Brasil o voto feminino. Mas as mulheres, maioria na população, continuam sendo minoria nos cargos políticos e nos âmbitos de liderança. É contrário às noções de liberdade e autonomia, próprias da condição de pessoa, o fato de a maioria da população, as mulheres, ter de viver sob regras criadas por homens, em ambientes acentuadamente masculinos.

A mulher não tem direitos iguais se ela é tratada (e muitas vezes em sua própria casa), como objeto. Ainda vigora uma cultura que coloca o feminino como objeto de satisfação sexual dos homens, o que alimenta os índices de violência doméstica. As agressões são cotidianas, praticadas através de violência física, moral, patrimonial, sexual, ou até mesmo através de discursos misóginos.

Também não se pode esconder a situação das mulheres negras no Brasil. A condição feminina e o preconceito racial fazem com que estas mulheres estejam na base da pirâmide social, com os menores salários, com escassas possibilidades de ascensão social e sob cotidiana discriminação e marginalização. Em sua transversalidade, o machismo e o racismo enclausuram estas mulheres em condição sub-humana, como corpos disponíveis para o trabalho e para a satisfação sexual.

A lista de imperativos da igualdade é longa – e está longe de ser exaustiva. É preciso desvelar os mecanismos que reproduzem essas desigualdades, amplificar as vozes femininas, aumentar a participação das mulheres nas diversas esferas sociais, proteger e intensificar o seu protagonismo na sociedade, reconhecer e preservar a sua autonomia, combater as inúmeras modalidades de discriminação e violência contra as mulheres, assegurar efetiva liberdade, respeitar os seus direitos e sua dignidade, fortalecer a cultura de respeito e reconhecimento. São muitas as batalhas que precisam ser enfrentadas.

O mundo, e especialmente o Brasil, é ainda um lugar de afronta às mulheres, que diminui e menospreza o feminino. Os exemplos são notórios e muitas vezes partem da própria classe política, dos representantes do povo que deveriam zelar pela igualdade de gênero.

Atos de menosprezo e discriminação devem ser respondidos com resistência. É preciso desmascarar e denunciar a agressão, promovendo um novo patamar civilizatório. Por outro lado, é inadmissível o uso de cargos públicos para agredir o Estado Democrático de Direito, que tem, entre seus princípios fundamentais, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3o, I e IV da Constituição).

Fiel à sua missão, o IBCCRIM reitera seu compromisso em defesa da mulher, de sua liberdade e de seus direitos. Nesta seara, o Instituto tem três objetivos centrais: (i) vigilância e denúncia das situações de violência contra a mulher, em especial, o tratamento desumano e desigual no sistema de justiça e prisional; (ii) estruturação e ampliação de projetos que promovam a perspectiva de gênero na justiça penal; e (iii) participação em rede de iniciativas para ampliar a participação política e cívica das mulheres.

Lutar pela igualdade da mulher não é uma bandeira acessória do IBCCRIM. Não há cidadania se mais da metade da população vê diariamente violada sua condição de sujeito de direitos, sua condição de pessoa. Não há cidadania com a normalização de um sistema de poder que agride as mulheres. A liberdade e a igualdade da mulher não é uma luta opcional, é uma necessidade.


Notas de rodapé

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Ilegitimidade da contravenção penal de exploração de jogos de azar, diante da teoria da proteção de bens jurídicos e do paternalismo penal


Thiago Baldani Gomes De Filippo. 

Doutor em Direito Penal pela USP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University e Mestre em Ciência Jurídica pela UENP. Professor de Direito Penal e  Direito Processual Penal na UAM. Juiz de Direito no Estado de São Paulo. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2591167984942175.

ORCID: 0000-0001-8793-4735.

tfilippo@tjsp.jus.br.


Resumo: Este artigo discorre sobre a ilegitimidade da contravenção penal de exploração de jogos de azar, à luz das teorias da proteção de bens jurídicos e do paternalismo penal, situados no contexto da proporcionalidade penal, concluindo que o tipo contravencional não foi recepcionado pela Constituição de 1988.

Palavras-chave: Exploração de jogos de azar - Legitimidade – Bem jurídico – Paternalismo – Proporcionalidade.

Abstract: This paperwork discourses about illegitimacy of the criminal contravention for the exploitation of gaming, according to the theories of the protection of legal interests and criminal paternalism, located in the context of the criminal proportionality, concluding that the contraventional statute was not embraced by the 1988 Constitution.

Keywords: Exploitation of gaming - Legitimacy – Legal interest – Paternalism –Proportionality.

Data: 31/03/2022
Autor: Thiago Baldani Gomes De Filippo

As discussões a respeito da legitimidade da contravenção penal de exploração de jogos de azar, tipificada pelo art. 50 do Decreto-lei 3.688/41, atualmente ocupam a pauta do Congresso Nacional. No dia 24 de fevereiro de 2022, o Plenário da Câmara dos Deputados concluiu a votação do projeto de lei que legaliza os jogos de azar no Brasil (PL 442/91), incluindo cassinos, bingos, jogos do bicho e apostas esportivas. O texto agora será remetido ao Senado Federal para revisão.1

Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por maioria, a repercussão geral do tema (Tema 924 – Recurso Extraordinário 966.177), estando o julgamento pautado para o dia 07/04/2022.2

O tema é candente e suscita diversas reflexões. Prestigiados doutrinadores defendem a ilegitimidade dessa contravenção. Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, defende sua desnecessidade pela invocação do princípio da intervenção mínima, não vislumbrando fundamento para a intervenção estatal na vida privada do cidadão que deseja se aventurar em jogos de azar, observando que seria correta a legalização dos jogos, porque inúmeros são aqueles patrocinados pelo próprio Estado, como as loterias em geral.3

Em sentido semelhante, Katie Silene Cárceres Arguello sustenta ser uma grande hipocrisia haver jogos patrocinados pelo Estado, como as loterias federais e estaduais e, ao mesmo tempo, serem cominadas sanções penais aos jogos de azar, aduzindo que a prática é socialmente aceita e está arraigada nos costumes da sociedade.4

E, por fim, Damásio de Jesus, de maneira específica no que tange à utilização de máquinas de diversão eletrônica para adultos, como o caso presente, entendia que o fato é atípico, porque não constituiria propriamente jogo de azar, uma vez que “em seu manejo não interfere a sorte uma vez que está tudo previamente programado, e tampouco a habilidade do apostador, que se limita a apertar as teclas e esperar que a máquina apresente o programa preestabelecido”.5 E, alternativamente, Damásio fundamentava a atipicidade do fato em face da ausência de imputação objetiva de lesão a bem jurídico, observando estar implícito o eventual risco advindo da utilização das máquinas (teoria do risco tolerado), uma vez que o Estado admite a sua importação tributada.6

O presente trabalho se propõe a analisar se o tipo contravencional foi recepcionado por nossa Constituição Federal para concluir que o seu escrutínio não resiste às barreiras estabelecidas pelas teorias da proteção de bens jurídicos e do paternalismo penal, com a subjacente integração de ambas nas estruturas inerentes à proporcionalidade penal.

O princípio da proporcionalidade, malgrado a inexistência de sua previsão constitucional expressa,7 é incontestavelmente uma ferramenta valiosíssima para o exercício do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos.

Se, por um lado, a proporcionalidade é instrumento indispensável para a manutenção da harmonia do próprio texto constitucional e da investigação da coerência dos demais ramos jurídicos,8 por outro, sua baixa densidade normativa é deveras problemática. Visando a concretizá-la, a dogmática constitucional identificou e procurou desenvolver os seus três corolários: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Em linhas gerais, a adequação condiz com o controle da viabilidade de se atingir o fim pretendido por determinado meio; a necessidade refere-se à eleição do meio menos gravoso para a restrição; e a proporcionalidade em sentido estrito relaciona-se à demanda por equilíbrio entre o meio utilizado e o fim colimado, mediante análise de “custo-benefício.”9

A grande questão que se coloca, no entanto, é de que maneira esses subprincípios podem sofrer uma releitura a partir da dogmática penal, a fim de que a proporcionalidade possua algum rendimento para a aferição da legitimidade dos tipos penais, em geral.

Ao lado de diversos trabalhos acadêmicos que se ocupam do tema,10 apresentamos uma proposta de teoria da proporcionalidade penal, visando a densificar critérios de justiça material, tanto em relação aos preceitos penais primários, relacionados ao objeto e à forma de proteção, quanto aos preceitos penais secundários, referentes aos patamares das penas abstratamente cominadas.11

Em linhas gerais, o exame da adequação implica o estudo acerca do exame dos interesses, que podem ser adequadamente protegidos por meio do Direito Penal, vale dizer, de tudo aquilo que pode ser reconhecido como bem jurídico-penal; a investigação da necessidade restringe-se à análise das estruturas típicas utilizadas para a proteção penal de certo interesse, diante do princípio da ofensividade e do impedimento da criminalização de condutas que reflitam um rígido paternalismo penal; e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito diz respeito à perquirição em torno do equilíbrio das penas abstratamente cominadas pelo legislador penal, com fundamento no princípio constitucional da igualdade.12

Aplicadas essas premissas, a conduta contravencional de exploração de jogos de azar não supera os filtros da adequação e da necessidade, revelando-se desproporcional e, consequentemente, não recepcionada pela atual ordem constitucional.

Com efeito, o tipo do art. 50 do Decreto-lei 3.688/41 é penalmente inadequado, porque ele não visa a tutelar um verdadeiro bem jurídico-penal. Inicialmente, é importante sublinhar que, ao longo do tempo, as tentativas de estabelecer um conceito transcendente de bem jurídico-penal, que efetivamente possua alguma possibilidade de fornecer critérios limitadores do jus puniendi estatal, revelaram-se complexas e infrutíferas.13

Sem embargo, há um feixe de interesses individuais, intimamente ligados ao postulado da dignidade da pessoa humana, tais como a vida, a integridade física, a liberdade e a propriedade, que poderão ser constantemente objeto de proteção penal. Por outro lado, também se revela em princípio adequada a tutela penal de interesses coletivos, tais como o meio ambiente, a confiança na segurança da moeda, a confiança na incorruptibilidade dos funcionários e os interesses que visam à preservação da estrutura funcional do Estado, como a administração da justiça, especialmente em relação à arrecadação de recursos necessários para a realização de suas finalidades institucionais, por exemplo, o sistema tributário.14 E, finalmente, também poderá se revelar adequada a utilização da intervenção jurídico-penal para a proteção dos chamados falsos bens jurídicos coletivos, porque representam simplesmente a soma dos vários bens jurídicos individuais,15 tais como a saúde pública, a paz pública, a segurança viária, dentre outros, desde que eles sejam funcionalizados e guardem referibilidade concreta à proteção desses mesmos interesses individuais.

Se há certa zona de penumbra acerca dos bens que podem ser classificados como bens jurídico-penais, é certo que alguns valores, absolutamente, não podem ser erigidos a essa categoria. O exemplo mais sintomático é a proteção de meras moralidades, matéria da qual não deve se ocupar o Direito Penal. Neste sentido, apresentava-se inadequada a criminalização do adultério (art. 240 do CP), abolida pela Lei 11.106/2005, porque a proteção da organização tradicional da família não deve ser assunto apto a ensejar a proteção penal.16 Pela mesma razão são discutíveis os tipos penais de ato obsceno (art. 233 do CP) e de escrito ou objeto obsceno (art. 234 do CP), porque a punição da pornografia entre adultos, em quaisquer de suas manifestações, reflete a pretensa proteção da moralidade e do pudor público.

E, relativamente à contravenção de exploração de jogos de azar, o art. 50 do Decreto-lei 3.688/41 está inserido no Capítulo VII do referido ato normativo, intitulado Das contravenções relativas à polícia de costumes. Portanto, o seu objeto jurídico se resume aos bons costumes. Segundo Guilherme de Souza Nucci, “a ideia, ainda prevalente, é manter as pessoas afastadas desse tipo de jogo, que não depende de habilidade para ganhar (como, por exemplo, os jogos esportivos), mas de mera sorte. Essa situação pode levar à perda patrimonial, ao vício e aos desmandos de toda ordem”.17

Em sentido semelhante, o trabalho de Valdir Sznick assim sintetiza o fim de proteção dessa norma contravencional:

No jogo não só se visa a proteção ao trabalho honesto como a repressão ao ganho fácil. São conhecidos malefícios do jogo justamente pela ilusão de ganhos rápidos e sem muito esforço. Além das conhecidas consequências o jogo avilta, empobrece, degrada, pois leva o rico à pobreza e o pobre à miséria; e junto com a miséria o desamparo à família.

À inutilidade do jogo se contrapõe à sociabilidade do trabalho, mas – tirando-se o azar e as apostas – o jogo entre amigos e junto com a família é uma forma, senão saudável, pelo menos bastante utilizada e sem nenhum dano social.18

Referidas preocupações, inobstante serem nobres e moralmente legítimas, não devem compor o feixe de interesses penalmente relevantes, porque sua fluidez não se compatibiliza com a concretude demandada por um conceito transcendente de bem jurídico-penal, impedindo-se que se use validamente a intervenção jurídico-penal.19

Por outro lado, ainda que, hipoteticamente, fosse possível se vislumbrar a proteção de um bem jurídico-penal pela norma em apreço, ou mesmo se se desacreditasse do potencial crítico conferido à teoria do bem jurídico,20 o tipo contravencional também não resistiria a uma filtragem constitucional, igualmente à luz do princípio da proporcionalidade, mas sob o espeque da necessidade da proteção penal, porque ele reflete indevido paternalismo penal.

Em linhas gerais, como pontua Gerald Dworkin, o paternalismo pode ser compreendido como a interferência sobre a liberdade de ação de alguém justificada por razões referentes exclusivamente ao bem-estar, ao benefício, à felicidade, às necessidades, aos interesses ou aos valores da pessoa coagida.”21 O paternalismo penal, neste sentido, seria a utilização das leis penais para o alcance dessas mesmas finalidades.

Dentre suas classificações possíveis,22 importa ao presente caso a sua distinção entre paternalismo rígido (hard) e paternalismo moderado (soft). Paternalismo rígido é aquele segundo o qual as leis buscam interferir nas escolhas dos indivíduos, indicando quais seriam os caminhos que melhor atenderiam aos seus próprios interesses, independentemente da capacidade de discernimento dos destinatários das normas, justificando-se, mesmo para sujeitos responsáveis, a proibição de autolesões e de heterolesões consentidas,23 como na hipótese de proibição de condutas masoquistas. Por outro lado, o paternalismo moderado justifica a interferência estatal quanto às escolhas eventualmente danosas aos próprios indivíduos, apenas quando não for possível se demonstrar a capacidade de discernimento destes, como no caso de crianças e sujeitos com doenças mentais.24

Inseridas no contexto paternalista, somente se justificam leis penais que retratam um moderado paternalismo, como se legitima, por exemplo, uma série de normas penais presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), independentemente da vontade desses sujeitos especiais.

Por outro giro, revelam-se absolutamente desnecessárias, logo, desproporcionais, leis penais que flertem com o paternalismo rígido, a saber, que visem à proteção de sujeitos imputáveis, autorresponsáveis, mediante a criminalização de comportamentos que lhes possam ser eventualmente danosos, a despeito de suas vontades e escolhas.

A contravenção penal de exploração de jogos de azar nada mais revela do que a concretização de um indesejado paternalismo penal rígido, avultando-se, também por esta razão, a sua ilegitimidade.

Em suma, a contravenção penal de exploração de jogos de azar, prevista no art. 50 do Decreto-lei 3.688/41, é ilegítima e não foi recepcionada pela Constituição de 1988, porque desatende aos reclames ditados pela teoria de proteção dos bens jurídicos e também por implicar indevido paternalismo penal, categorias subjacentes ao princípio da proporcionalidade penal.


Notas de rodapé

1 BRASIL, [2022].

2 Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4970952. Acesso em: 25 fev. 2022.

3 NUCCI, 2017, p. 169.

4 ARGUELLO, 2012.

5 JESUS, 2015, p. 1148.

6 Idem, ibidem, p. 1153.

7 Há divergências acerca da origem do princípio da proporcionalidade. Para alguns, trata-se de diretriz vinculada à própria noção de Estado de Direito, como parece ser a compreensão tradicional da Corte Constitucional alemã (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 323). Para outros, a proporcionalidade compõe a própria essência dos direitos fundamentais (ALEXY, 2008, p. 117). E, por fim, como parece ter se consolidado na jurisprudência do STF após a atual Constituição, a proporcionalidade decorre do aspecto substantivo do devido processo legal, previsto no art. 5o, LIV, da Constituição (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 329).

8 SILVA, 2002, p. 25.

9 SARLET, 2004, p. 101.

10 Na Espanha: COBO DEL ROSAL, 1999; e AGUADO CORREA, 1999. Na Itália: ANGIONI, Francesco. Contenuto e funzioni del concetto di bene giurídico. Milão: Giuffrè, 1983. E, no Brasil: GOMES, 2003; e SOUSA FILHO, 2019.

11 DE FILIPPO, 2020.

12 Idem, ibidem, pp. 190-193.

13 BECHARA, 2014, p. 352.

14 HEFENDEHL, 2011, p. 67-69.

15 GRECO, 2011, p. 95.

16 CATÃO, 1974, p. 70.

17 NUCCI, op. cit., p. 169-170.

18 SZNICK, 1987, p. 281-282.

19 DE FILIPPO, op. cit., p. 101.

20 Parcela da doutrina, como Amelung, Hirsch e Stratenwerth, enxerga simplesmente o caráter imanente ou dogmático do bem jurídico-penal, sem possibilidade de rendimento político-criminal, no sentido de poder limitar o poder de punir do Estado (GRECO, 2004, p. 93-95).

21 DWORKIN, 2009, p. 9.

22 O paternalismo também pode ser puro/direto e impuro/indireto. O primeiro indica a possibilidade de interferências no comportamento de um grupo de pessoas para protegê-las delas próprias, como a imposição a motoristas, sob a pena de multa, de utilização de cinto de segurança. O segundo aponta para a proibição de comportamento de um grupo, com a finalidade de proteger outras que não o compõem, como no caso de proibir a produção de cigarros com o objetivo de proteger a saúde dos fumantes (MARTINELLI, 2015, p. 100-101).

23 MARTINELLI, op. cit. p. 100.

24 Idem, ibidem, p. 100.


Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

ANGIONI, Francesco. Contenuto e funzioni del concetto di bene giurídico. Milão: Giuffrè, 1983.

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ARGUELLO, Katie Silene Cárceres. Criminalização dos jogos de azar: A contradição entre lei e realidade social. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 60, p. 239-250, 2012.

BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

BRASIL. PL 442/1991. Revoga os dispositivos legais que menciona, referentes à prática do " jogo do bicho ". Brasília, DF: Câmara dos Deputados, [2022]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4970952. Acesso em: 25 fev. 2022.

BRASIL. Decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: “DEL3688 (planalto.gov.br)”. Acesso em 07 mar. 2022.

BRASIL. Lei 11.106, de 28 de março de 2005. Disponível em: “Lei nº 11.106 (planalto.gov.br)”. Acesso em 07 mar. 2022.

BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1999. Disponível em: "L8069 (planalto.gov.br)”. Acesso em 07 mar. 2022.

CATÃO, Yolanda. Notas sobre a punição do adultério e descriminalização. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n. 13/14, p. 68-75, jan./jun. 1974.

COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás S. Derecho penal: parte general. 5.. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

DE FILIPPO, Thiago Baldani Gomes. Proporcionalidade legislativa penal. São Paulo: LiberArs, 2020.

DWORKIN, Gerald. Paternalismo. Trad. João Paulo Martinelli. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba, v. 1, n. 1, pp. 7-27, 2009.

GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

GRECO, Luís. Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, v. 12, p. 89-147, 2004.

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MARTINELLI, João Paulo. Paternalismo jurídico-penal: limites da intervenção do estado na liberdade individual pelo uso das normas penais. São Paulo: LiberArs, 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza, Leis penais e processuais penais comentadas. Vol. I. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 47, v. 12, p. 60-122, 2004.

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 798, pp. 23-50, 2002.

SOUSA FILHO, Ademar Borges. O controle de constitucionalidade de leis penais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

SZNICK, Valdir. Contravenções penais. São Paulo: Universitária de Direito, 1987.

Autor convidado

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O acesso aos elementos de prova pelo investigado na fase do inquérito: a conquista da súmula vinculante n. 14


Alberto Zacharias Toron. 

Doutor e Mestre em Direito pela USP. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca. Professor de Processo Penal da FAAP.  Conselheiro Federal da OAB e ex-presidente do IBCCRIM. Advogado criminal. 

aztoron@terra.com.br. 


Resumo: A correta interpretação da Súmula Vinculante (SV) 14 e dos acórdãos que lhe dão suporte está centrada em que a eficácia das investigações deve respeitar o direito de defesa por expressa disposição legal e como decorrência da amplitude do direito de defesa. Sua aprovação pelo STF em 2009 representou a quebra de uma estrutura autoritária na forma de investigar, que pretendia dificultar o exercício da defesa ao máximo, com um padrão de prisões temporárias, buscas e apreensões, oitivas dos investigados de um lado, e, de outro, a obstaculização do acesso aos autos pelos advogados dos investigados. Por isso, o tema central no Estado democrático de Direito não é saber “quando é necessário” permitir o acesso aos autos por parte do investigado, mas, sim, quando é, excepcionalmente, legítimo impedi-lo.

Palavras-chave: Súmula Vinculante 14 - Acesso aos autos do inquérito pelo investigado - Garantias do investigado no inquérito - Estado democrático de direito.

Abstract: The effectiveness of investigations must respect the right of defense by express legal provision and due to the breadth of the right of defense. This is the correct interpretation of the Binding Legal Precedent n. 14 and the rulings that support it. Its approval by the STF in 2009 represented a break from an authoritarian structure of investigation, intended to make the exercise of defense as difficult as possible: temporary arrests, searches and seizures, and suspect interrogation whilst blocking access to the records by the lawyers of the person under investigation. The central issue in a democratic rule of law is not knowing “when it is necessary” to allow access to the records to the person under investigation, but when it is, exceptionally, lawful to prevent it.

Keywords: Binding legal precedent n. 14 - Access to criminal investigation records by the person under investigation - Legal guarantees of the person under investigation - Democratic rule of law.

Data: 31/03/2022
Autor: Alberto Zacharias Toron

No Boletim anterior, o Procurador da República Henrique de Sá Valadão Lopes brindou-nos com um instigante artigo intitulado “Quando [é] necessário o acesso pela defesa aos elementos de prova? O art. 3-B, XV, CPP à luz dos precedentes da SV 14”. Inteligentemente, o Autor parte da análise dos precedentes que deram base à construção da Súmula Vinculante em exame e, numa leitura restritiva, conclui “que o acesso pelo investigado aos autos da investigação sigilosa é exceção”. Não havendo prisão decretada ou iminência da realização do interrogatório, “não haveria restrição a direitos que tornasse necessário o acesso à investigação e aos elementos de prova lá documentados” (p.).

Como fui impetrante do histórico HC 82.354, acórdão seminal do STF no tema do acesso aos autos do inquérito por parte do investigado quando gravado pelo sigilo e, depois, no âmbito do Conselho Federal da OAB, fui o proponente do pedido de edição da súmula vinculante (PSV 1), redigi-o e o sustentei no Pleno do STF, senti-me estimulado para dialogar com o texto anterior do qual, na essência, discordo da abordagem restritiva.

1.      Os antecedentes da criação da SV 14

No longínquo ano de 2000, Mévio recebeu uma intimação para ser indiciado e oferecer material gráfico de seu próprio punho na Delegacia de Cartas Precatórias da Polícia Federal em São Paulo. Como a Precatória oriunda de Foz do Iguaçu (PR) não trazia maiores dados sobre a investigação, um colega de escritório se encarregou de examinar os autos do inquérito em Foz, pois é impossível questionar a justa causa para o indiciamento ou mesmo orientar o cliente quanto ao que dizer e até mesmo decidir por ficar em silêncio sem essa providencia comezinha, mas essencial. Enfim, sem ter feito um “curso completo de parapsicologia forense” não se pode exercer a advocacia sem examinar os autos e, tampouco, dar vida à defesa.

Não é por acaso que o Estatuto da OAB, desde a Lei 4.215, de 1963, assegurava ao advogado o acesso aos autos de inquérito, mesmo que conclusos à autoridade (art. 89, inc. XIV). Hoje esse mesmo direito vem assegurado tanto no art. 7º, inc. XIV da Lei  8.906/94 como pelo art. 3-B, XV, do CPP, introduzido pela Lei 13.964/2019, ora suspenso por decisão monocrática do Min. Luiz Fux na ADI 6.298.

Não obstante, o delegado da Polícia Federal indeferiu o pedido de vista invocando o decreto de sigilo imposto com fundamento no art. 20 do CPP. O Juiz Federal, na mesma linha, agregou que o interesse público na eficácia das investigações deve prevalecer sobre o do particular no exame dos autos. O fato, até então, era surpreendente. Normalmente os delegados de polícia, estaduais ou federais, não opunham qualquer obstáculo ao exame dos autos pelo advogado do investigado, desde que munido de procuração. Podiam, às vezes, dar uma canseira, mas não passava disso.

Agora parecia se iniciar uma nova prática. A propósito, numa elucidativa entrevista, o então Diretor-Geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, revelou que a técnica de negar acesso aos autos visava a impedir que os investigados combinassem suas defesas1 e, obviamente, embora não expresso, que fossem instruídos pelos seus advogados. Funcionou durante um tempo e, por vezes, ainda hoje.

Identificando na recusa ao acesso aos autos do inquérito a ocorrência de ofensa ao direito líquido e certo previsto no Estatuto da OAB, o caminho foi um mandado de segurança contra o ato violador da autoridade judiciária. Todavia, embora por maioria, o TRF da 4ª Região, na mesma linha do juiz, negou a segurança. Resumidamente, além da supremacia do interesse público, o acórdão acentuou ser o inquérito um instrumento de “autodefesa próprio do Estado no combate ao crime”, devendo-se assegurar no seu transcurso o sigilo.2 Levado o tema ao STJ pela via do recurso ordinário constitucional, sua 2ª Turma, por 3 votos a 2, desproveu-o ao argumento de que “Em nome do interesse público, podem as investigações policiais revestirem-se de caráter sigiloso, quando não atingirem o direito subjetivo do investigado”.3

Não havendo outro recurso no mandado de segurança e nem mesmo a possibilidade de se manejar outro mandado originário para o STF, percebi que se, por um lado, o tema discutido atingia direito líquido e certo do advogado, por outro, também interferia com o direito de defesa do investigado na fase investigatória. Ou, como sintetizou o Min. Sepúlveda Pertence no HC 82.354,

o mesmo constrangimento ao exercício da defesa pode substantivar violação à prerrogativa profissional do advogado - como tal, questionável mediante mandado de segurança - e ameaça, posto que mediata, à liberdade do indiciado - por isso legitimado a figurar como paciente no Habeas Corpus voltado a fazer cessar a restrição à atividade dos seus defensores (DJ 20/8/2004).

Havia, é certo, uma grande incompreensão quanto a essa ideia. Erguia-se um verdadeiro mantra, ora a dizer que o tema não atinava com o direito de locomoção, ora que não há defesa e nem contraditório na fase pré-processual.

Contudo, qualquer pessoa com alguma experiência no processo penal sabe que uma palavra mal posta na fase do interrogatório policial pode, conjugada com outro dado colhido na fase do contraditório, servir para a condenação e supressão da liberdade; certo ou errado, é assim que as coisas se passam na cena forense. Não é à toa que a Constituição assegura ao autuado em flagrante ter um advogado ao seu lado e, por extensão, ao investigado em geral durante a investigação (cf. art. 5º, inc. LXIII). De fato, a presença do advogado não é decorativa ou cerimonial, apenas para dar um “apoio moral”, “uma força” ao assistido, como se diz popularmente. Essa presença presta-se, sobretudo, à orientação técnica do autuado em flagrante ou do investigado. No ponto, muito sensível a essa questão, o Min. Sepúlveda Pertence, que já havia exercido com muito brilho a advocacia, disse logo na ementa do acórdão do HC 82.354:

1. O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente (DJ 20/8/2004).

E mais:

3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5o, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.

A essência desse acórdão, leading case na matéria, está, de um lado, na inoponibilidade ao advogado do investigado do sigilo do inquérito e, de outro, na limitação deste acesso ao que já estiver documentado nos autos do procedimento investigatório, permitindo-se o escamoteamento apenas das diligências em andamento como forma de proteger a eficácia das investigações. Outro ponto igualmente importante é o afastamento da contraposição entre o interesse público na eficácia da investigação e o privado no exame dos autos. Disse o relator:

O conflito aparente de interesses contrapostos, de que partem tais raciocínios, no entanto, mais que aparente, é falso, na medida em que a lei mesma o resolve, em favor da prerrogativa do defensor e contra a oponibilidade ao advogado do sigilo decretado do inquérito (item 34 do acórdão).

A despeito de ter sido unânime a decisão da Primeira Turma do STF, delegados federais, procuradores da República, além de juízes federais e Tribunais, deram de ombros a este pronunciamento com os mais diferentes subterfúgios. Ora se dizia que a pessoa já havia tido acesso, ora que não era investigada ou mesmo que o writ não era via idônea para se conhecer do reclamo. Não por acaso vários outros Habeas Corpus chegaram à Suprema Corte, e não apenas os que são referidos como base para a edição da SV 14. Para exemplificar, veja-se o HC 86.059, relatado pelo Min. Celso de Mello e igualmente o elenco de decisões citado pelo Cezar Peluso no Inq. 2.424 ao determinar que a autoridade policial abrisse vista dos autos aos advogados:

ADVOGADO. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito ou investigado. Intervenção nos autos. Elementos documentados. Acesso amplo. Assistência técnica ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional garantida. Resguardo da eficácia das investigações em curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência do art. 5º, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, art. 7º, XIV, da Lei n.º 8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei n.º 6.368/76. Precedentes.  É direto do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela do interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte (HC n.º 88.190, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 6.10/06).

No mesmo sentido, cf., ainda, HC n.º 82.354, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 24.09.04; HC n.º 86059-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ30.6.05; HC n.º 88.520-MC, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 25.4.06; HC n.º 90.232, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 2.03.07; HC n.º 87.827, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 23/06/06; e, ainda em decisão monocrática proferida pelo Min. Nelson Jobim, no HC n.º 87.619-MC, DJ de 01.02.06.

Para evitar o calvário pelo qual passavam os advogados, isto é, ter que percorrer todos os degraus da jurisdição até chegar ao STF, o Conselho Federal da OAB submeteu ao STF a proposta de edição de uma Súmula Vinculante. Vencidas as resistências internas na Ordem por conta do preconceito contra o instituto da Súmula Vinculante, o pedido foi protocolizado e, por nove votos a dois, deferido, gerando a SV 14, que tem sido invocada em diferentes Reclamações diretamente no STF para remediar abusos.4

2.      Investigação e Estado democrático de direito

Victor Nunes Leal, na obra que o imortalizou perante a nação, referindo-se aos Regimentos relativos ao governo do Distrito Diamantino, acentuava que o Intendente “podia julgar com prova secreta, «sem figura alguma de juízo», razão pela qual foi proibida a advocacia no Tijuco”.5

Vê-se, pois, que não é de hoje que a figura do advogado, representando o réu na ação penal ou o investigado na fase do inquérito, é considerada como um estorvo a ser evitado. Aliás, na Inquisição, em matéria de heresia, Nicolau Emérico dizia que se deveria proceder com muita simplicidade e sem as grandes solenidades dos julgamentos:Simpliciter & de plano sine advocatorum & Judiciorum streptu et figura(1972, p. 105). Nicolás González-Cuéllar Serrano, ao explicar a função do advogado perante o Santo Ofício, referia que sua figura era a de um “colaboracionista”, sendo que Inocêncio III proibiu, por decreto de 6 de junho de 1205, a defesa ou patrocínio dos hereges.6

Ocorre, no entanto, que o poder punitivo numa democracia se encontra limitado por várias disposições de caráter constitucional, que atingem e restringem o seu exercício. Fortes, nesse sentido, são as disposições que, regulando a atividade do processo penal, inadmitem as provas ilícitas e, no Direito Penal, vedam as penas cruéis, perpétua e de morte. O conjunto de direitos e garantias individuais inscrito no artigo 5º da Lei Maior impede, concretamente, que se torture alguém em nome, por exemplo, da eficácia repressiva, descoberta da verdade, etc. O mesmo se pode afirmar em relação aos grampos telefônicos: a conversa interceptada ilicitamente, ainda que materialmente possa expressar alguma verdade, é imprestável. Disso se infere que no campo do processo penal há limites cognitivos à atividade persecutória estatal, erigidos em nome de uma ética reconhecida pelo documento maior de nossa cidadania.          

É, portanto, frise-se, em nome do interesse público, reconhecido pela Constituição, que se veda a introdução no processo de provas ilícitas ou mesmo o inquérito secreto. Por isso e para ilustrar, não se pode admitir que se pretenda válida uma confissão obtida mediante tortura, com o argumento de que, em nome do interesse público, deva prevalecer a confissão pelo que nela há de verdadeiro. Sustentar o contrário levaria ao absurdo de se afirmar que o direito de o cidadão não ser torturado, identificado como interesse individual, não pode se sobrepor ao da eficácia repressiva ou da descoberta da verdade real.

Os acórdãos que deram base ao surgimento da SV 14 não fizeram mais do que reafirmar a lei e os princípios constitucionais como o direito de defesa. Se o Ministro Peluso, após citar amplamente o acórdão relatado pelo Ministro Pertence, afirmou haver contraditório no inquérito e o primeiro o inadmitiu, isso não retira em absoluto a essência do significado da Súmula em exame: impedir o desenvolvimento do inquérito sem que o advogado tenha acesso ao inquérito para orientar a defesa de seu cliente ou mesmo fiscalizar a legalidade do procedimento pré-processual. E o fato de os acórdãos retratados cuidarem de presos ou de pessoas na iminência de serem interrogadas não retira o direito de qualquer outro investigado ter acesso aos autos de que tenha conhecimento, mesmo sem estar nessas situações.

Por fim, a disposição constante do art. 3º-B, inc. XV, do CPP, cuja eficácia ainda está suspensa por força de uma ADI, “quando se fizer necessário” deve ser compreendida no seu conjunto, isto é, o de assegurar prontamente “o direito outorgado ao investigado e seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento”. Portanto, a regra é a possibilidade de exame dos autos de inquérito como direito outorgado e não como exceção. A suposição de que o sigilo é sempre necessário para a consecução das investigações contrasta com a realidade de que a grande maioria dos procedimentos não corre sob sigilo.


Notas de rodapé

Referências

1 Jornal Hoje em Dia, Caderno Brasília, ed. de 17 a 23/6/07, n. 528, p. 11

2 TRF-4, 2ª T., MS n. 1999.04.01.138371-5, rel. Des. Fed. Vilson Darós, rel. p/ o ac. Des. Fed. Élcio Pinheiro de Castro j. em 04/5/2000.

3 RMS n. 12.516, rel. Min. Eliana Calmon, j. em 20/8/2002, DJ 27/9/2004.

4 Confiram-se as seguintes Reclamações: 7539-SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski; 7813-RJ, rel. Min. Carlos Britto; 7860-BA, rel. Min. Cezar Peluso; 7873-RJ, rel. Min. Celso de Mello; 8158-SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski; 8159/RS, rel. Min. Ellen Gracie; 8173-SP, rel. Min. Eros Grau; 8225, rel. Min. Celso de Mello; 8458-ES, rel. Min. Cezar Peluso; 8483-SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, 8529-MS, rel. Min. Ricardo Lewandowski e, entre muitas outras, 24.116, rel. Min. Gilmar Mendes.

5 LEAL, 1978, p. 72, nota de rodapé n.º 33.

6 SERRANO; CRESPO, 2015, p. 30.

Referências

EYMERICH, Nicolau. O Manual dos Inquisidores. Lisboa: Ed. Afrodite, 1972.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 4. Ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.

SERRANO, Nicolás González-Cuéllar; CRESPO, Eduardo Demetrio. El Derecho de Defensa y la marca de Caín.  SERRANO, Nicolás González-Cuéllar; CRESPO, Eduardo Demetrio (Dir.). Legalidad y defensa: garantías constitucionales del derecho y la juticia penal, Madri: Castillo de Luna ediciones jurídicas, 2015.


Autor convidado

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