Boletim - 357
Agosto de 2022
Defesa e crítica do Supremo Tribunal Federal


Data: 01/08/2022
Autor: IBCCRIM

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem papel fundamental no funcionamento do Estado Democrático de Direito, o que exige uma qualificada autoridade e traz imensa responsabilidade. Só uma Corte Constitucional respeitada está apta a defender os direitos e garantias fundamentais e, ao mesmo tempo, transformar os conflitos sociais. Eis o grande desafio do STF: prover uma defesa efetiva da Constituição, com decisões corajosas – sem permitir que pressões da política e da opinião pública interfiram no seu exercício jurisdicional, fundamentadas em profunda técnica –, aptas a serem acolhidas e respeitadas mesmo por quem não concorde com elas.

Própria da dimensão contramajoritária do Judiciário, essa tensão está especialmente presente nas questões penais e processuais penais. O devido processo legal, o direito de defesa e efetivo contraditório, a garantia da presunção de inocência e tantas outras disposições constitucionais sofrem significativa resistência. As tentativas de impedir seu pleno rendimento, como se fossem obstáculos à paz social e à moralidade pública, são constantes. Esse cenário de incompreensão revela a importância de uma Constituição cidadã – fundada na dignidade humana, que não transija com a violência, a discriminação e o preconceito –, bem como de uma Corte constitucional capaz de garantir esses direitos.

Na atualidade, tudo isso ganhou uma nova relevância. O Poder Judiciário – em especial, o STF – é atacado em sua independência e autonomia. Seguidas e insistentes ações concatenadas tentam deslegitimar sua função racional. É preciso defender o Supremo e suas competências constitucionais, sem transigir com ataques e discursos antidemocráticos. Ao mesmo tempo, é essencial preservar o espaço de crítica a respeito das decisões do Judiciário. Respeitar e defender a independência da Justiça não significa aplaudir tudo o que ela produz em seu exercício jurisdicional. A recepção acrítica do trabalho do Supremo e dos tribunais seria prejudicial ao próprio Judiciário e ao Estado Democrático de Direito. Não existe bom funcionamento da Justiça sem crítica.

O STF tem muito a melhorar em seus procedimentos; por exemplo, a quantidade excessiva de decisões monocráticas e o prazo irrazoável para apreciação pelo plenário e pelas turmas dessas decisões. Algumas vezes, decisões judiciais refletem incompreensões a respeito da própria Constituição e representam interferências indevidas sobre competências de outros Poderes; por exemplo, a liminar suspendendo a figura do juiz de garantias. Tudo isso tem reflexo direto no respeito a garantias e direitos fundamentais.

No entanto, essa reflexão crítica deve buscar o aperfeiçoamento da Corte e seu livre funcionamento. Nunca deve ser coação sobre ministros ou atropelamento de suas competências. É controle institucional, dentro do devido processo legal, pelos caminhos previstos na Constituição e na legislação. A garantia do duplo grau de jurisdição é parte essencial do regime democrático.

Por mais equivocada que possa ser, nenhuma decisão judicial é motivo para pedir o fechamento do Supremo ou a redução da autonomia do Judiciário. A crítica deve fortalecer a institucionalidade, e não atacá-la. Em vez de afronta à Justiça, é preciso promover maior rigor técnico e jurídico no trabalho de todos os envolvidos no sistema de Justiça. O aprimoramento da atividade jurisdicional – o que significa, entre outros aspectos, uma mais efetiva defesa da Constituição e dos direitos e garantias fundamentais – demanda um tratamento mais científico dos casos analisados. A profundidade na análise dos temas, o respeito à racionalidade, a abertura à interdisciplinaridade e tantas outras exigências de um trabalho efetivamente científico, tudo isso propicia decisões mais adequadas e equilibradas, mais acessíveis à compreensão, mais capazes de suscitar adesão e respeito. Nessa seara, junto a outras instituições e pessoas, o IBCCRIM tem a missão de contribuir para o aprimoramento técnico-científico das decisões judiciais, por meio do estudo, pesquisa e reflexão sobre as Ciências Criminais.

Poucas vezes na história o STF foi tão atacado, o que traz tensões não apenas sobre a independência da Justiça, mas sobre o próprio funcionamento do Estado Democrático de Direito. É preciso defender, sem cansaço, o Judiciário. Mas essa defesa institucional é também atividade crítica. Uma crítica que é, às vezes, contundente e dura, mas sempre é diálogo, sempre é respeito ao interlocutor, sempre é compromisso com o livre exercício jurisdicional.


Notas de rodapé


Pelo abandono da abstração racionalista moderna: por uma fenomenologia decolonial do Processo Penal (Parte 1)


Aury Lopes Jr. 

Doutor em Direito Processual Penal (Universidad Complutense de Madrid, 1999). 

Professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS e professor permanente do PPG em Ciências Criminais da PUC-RS. Advogado.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4629371641091359

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7489-3353

aurylopes@terra.com.br 


Salah H. Khaled Jr. 

Doutor em Ciências Criminais (PUCRS). Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e professor permanente do PPG em Direito e Justiça Social da FURG.

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6155872393221444

ORCID:https://orcid.org/0000-0003-4918-1060

salah.khaledjr@gmail.com

 


Resumo: Este texto propõe uma abordagem decolonial e fenomenológica do Processo Penal, representando um esforço inicial de releitura e desconstrução dos fundamentos processuais penais contemporâneos assentados na modernidade/colonialidade, compreendidos como facilitadores de violências e práticas punitivas autoritárias. No curso da exposição, os argumentos são desenvolvidos de forma a integrar a emergente perspectiva decolonial, aqui representada por autores como Quijano,  Vazquez, Maldonado-Torres e Mignolo, com a tradição fenomenológica do Processo Penal que remete a Goldschmidt, bem como a outras leituras que contestam as bases da razão moderna abstrata e violenta, que perpetua, ainda que de forma velada, a ambição de verdade inquisitorial.

Palavras-Chave: Decolonialidade – Colonialidade – Modernidade – Processo Penal – Fenomenologia.

Abstract: This paper proposes a decolonial and phenomenological approach to criminal proceedings, representing an initial effort to reread and deconstruct contemporary criminal procedural foundations committed to modernity/coloniality, understood as facilitators of violence and authoritarian punitive practices. During the exposition, the arguments seek to integrate the emerging decolonial perspective, represented here by authors such as Quijano, Vazquez, Maldonado-Torres and Mignolo, with the phenomenological tradition of criminal proceedings that refers to Goldschmidt, as well as other readings. that contest the foundations of abstract and violent modern reason, which perpetuates, albeit in a veiled way, the inquisitorial ambition of truth.

Keywords: Decoloniality – Coloniality – Modernity – Criminal proceedings – Phenomenology.

Data: 01/08/2022
Autor: Aury Lopes Jr. e Salah H. Khaled Jr.

1.      Introdução

Nas últimas décadas, o debate sobre o colonialismo, a colonialidade e a perspectiva decolonial assumiu centralidade nas ciências humanas latino-americanas. Existe uma consciência crescente sobre o quanto é importante repensar a recepção e reprodução acrítica de teorias produzidas em outros contextos históricos e geográficos, fundamentalmente distintos da realidade periférica de quem se encontra na margem. Tais teorias capacitam práticas violentas, destrutivas e discriminatórias, legitimadas por uma retórica racionalista, abstrata e desvinculada da realidade de sofrimento vivenciada pelos povos latino-americanos, particularmente por aqueles que experimentam as violências perpetradas por sistemas que subalternizam categorias inteiras de pessoas com base em critérios de gênero, orientação sexual, etnia e raça, que remetem à modernidade.

Sem sombra de dúvida, este debate é pertinente para as Ciências Criminais. Pode ser dito inclusive que ele já se fez presente de forma precursora no Direito Penal e na Criminologia pensada desde a margem, com Eugenio Raúl Zaffaroni e Lola Aniyar de Castro, respectivamente com o “realismo marginal” e a “criminologia da libertação”, por exemplo. De modo geral, a perspectiva decolonial já foi introduzida de forma significativa no Direito, mas permanece pouco explorada no campo processual penal, para a qual é de extraordinária importância.

Todo conhecimento é datado, ou seja, é produto de um conjunto de interesses fortemente localizados e historicamente situados, inclusive politicamente, motivo pelo qual é necessário um escrutínio constante sobre os efeitos resultantes da adoção e reprodução de premissas potencialmente violentas, particularmente em uma área tão sensível quanto o Direito Processual Penal. Poucas áreas do saber têm uma capacidade tão grande para produzir um discurso que, inadvertidamente ou não, legitima práticas autoritárias de imposição de dor e sofrimento.

A “razão moderna” ainda conforma o postulado orientador e fundante de uma parcela significativa da literatura processual penal, que continua a reproduzir as premissas violentas de subalternização da colonialidade. Nesse sentido, não se trata somente de uma reprodução de categorias oriundas de sistemas repressivos inquisitoriais e fascistas, mas fundamentalmente, de uma conexão muitas vezes não explicitada entre razão moderna e colonialidade, enquanto expressão de domínio sobre o outro. A colonialidade é a faceta sombria e destrutiva da modernidade, legitimada pela retórica abstrata e racionalista que oculta o exercício autoritário de poder que lhe é constitutivo e que deve ser confrontado para que outros mundos se tornem possíveis.

As epistemologias processuais contemporâneas alicerçadas na razão moderna ainda estão impregnadas de colonialidade. Tais teorias propõem um afastamento completo das vívidas realidades de risco, incerteza e conflito que são constitutivas da experiência concreta do Processo Penal, propondo sistemas abstratos e simplificadores que não conseguem se desvencilhar de sua gênese violenta. Ao reproduzir premissas que estiveram à serviço do colonialismo e, portanto, a propósitos de domínio, elas ainda conformam um repertório de veias abertas para práticas punitivas autoritárias.

Nesse sentido, este texto é um manifesto politicamente comprometido. Pelo abandono da abstração racionalista moderna: por uma fenomenologia decolonial do Processo Penal.

2.      Modernidade, colonialidade, colonização e decolonização do Processo Penal

Inicialmente, é preciso definir o que representa a decolonialidade enquanto matriz compreensiva oriunda da realidade periférica e projeto político para ela. Em apertada síntese, pode ser dito que a decolonialidade é uma perspectiva de resistência e desconstrução da modernidade e das hierarquias de superioridade e inferioridade por ela estabelecidas. Nesse sentido, seu escopo não se esgota no colonialismo em termos de domínio e reorganização do espaço segundo perspectivas eurocêntricas, mas sim compreende a colonialidade (QUIJANO, 1992) fundada na cisão cartesiana, da qual se extraem conceitos que subalternizam categorias inteiras de pessoas e seres, com base em dicotomias opressoras: razão (homem) x emoção (mulher); razão (branca) x irracionalidade (nativa, negra e indígena, por exemplo); razão (homem) x irracionalidade (animal), o que legitima o patriarcalismo, o racismo, o heterossexismo, o imperialismo, o antropocentrismo e também o epistemicídio (SANTOS, 2014), no sentido de que modelos compreensivos que se diferenciam da matriz moderna eurocêntrica devem ser silenciados e apagados da história pelo pensamento único, compreendido como única leitura racional e, logo, verdadeira, do mundo. No entanto, como Dussel  (1995) pontuou, a filosofia europeia não é universal.

Desse modo, o termo colonialidade indica a permanência de padrões de exercício de poder de longa duração, que permanecem em jogo em diferentes avenidas contemporâneas, envolvendo, dentre outras, relações étnico-raciais, questões de gênero e orientação sexual, bem como diferentes epistemes ou formas de conhecimento. A perspectiva decolonial considera que a colonialidade é constitutiva e enraizada, conformando um movimento de silenciamento, apagamento e negação, que estabeleceu e ainda sustenta a modernidade e as suas estruturas violentas (VAZQUEZ, 2017). A modernidade é indissociável da colonialidade, que é “a lógica subjacente da fundação e do desenvolvimento da civilização Ocidental” (MIGNOLO, 2011, p. 2).

Portanto, a perspectiva decolonial está comprometida com premissas que contestam, denunciam, resistem e visam transformar padrões enraizados de exercício autoritário de poder, cujas trajetórias e efeitos permanecem em curso na atual quadra histórica (MALDONADO-TORRES, 2007; QUIJANO, 1992).

Para efeito da presente análise, é importante enfatizar que o que denota o pertencimento de uma dada matriz compreensiva à colonialidade é a sua reprodução de premissas racionais, abstratas e potencialmente violentas da modernidade. Assim, uma teoria produzida no que já foi definido como Norte Global pode estar alicerçada na pluriversalidade, enquanto uma teoria produzida no Sul Global pode, diferentemente, reproduzir violentas premissas modernas universalizantes e, logo, ser objeto de uma contestação e de uma desconstrução decolonial, como a que é proposta aqui.

Para autores como Dussel e Vazquez, não é com o “Iluminismo” que nasce a modernidade, mas com a conquista das “Américas”, que se inicia no final do século XV, sustentada por uma missão “civilizatória” e pela “cristianização” que colocaram sob o domínio da racionalidade europeia branca um conjunto de populações “irracionais” colonizadas e escravizadas.

No entanto, para efeito de uma compreensão histórica da constituição da colonialidade no campo processual penal, existe um precedente que é ainda mais significativo: o esquadrinhamento da realidade em nome da erradicação da diferença, movido inicialmente pela Inquisição no século XIII. Nos séculos seguintes, o poder punitivo inquisitorial veio a recair de forma quase genocida sobre expressões religiosas dissidentes e, posteriormente, sobre mulheres acusadas de feitiçaria, para enfim se tornar, na pré-modernidade, a prática comum na jurisdição laica e eclesiástica que acompanhou a revolução mercantil e o colonialismo e assegurou a “superioridade” do inquisidor frente ao “herege” e ao “criminoso” (ZAFFARONI, 2007, p. 39). O sistema inquisitório efetivamente reintroduziu a cognitio, o aparato processual penal do inimigo da Roma Antiga e estruturou um ritual em que o sujeito do conhecimento confronta um corpo objetificado, do qual deve ser arrancada uma “verdade”, que confirma o que desde o princípio o inquisidor elegeu como “verdade”. Em um sistema assim configurado, prospera o primado das hipóteses sobre os fatos (CORDERO, 1986, p. 51), assim como a ambição de verdade (KHALED JR., 2021).

Uma perspectiva decolonial evidencia o fato de que a razão moderna não rompeu com a sistemática de anulação, subalternização e objetificação do outro que era subjacente ao engenho inquisitório. Pelo contrário. Ela veio a velar e a constituir várias formas de exercício autoritário de poder colonial europeu, com base em critérios de racionalidade e cientificidade amparados nas emergentes ciências naturais. Com o advento do pensamento científico moderno no século XVII, desponta a ciência como campo privilegiado para a revelação da verdade segundo o modelo galilaico-newtoniano, que fundou a matriz mais relevante da tradição ocidental moderna. Foi sob a chancela desse paradigma científico que a “verdade” encontrou nova fundamentação para amparar-se na ideia de adequação entre a coisa e o juízo do sujeito racional, proposta por Descartes, surgindo uma ambição de “[...] comprovação de uma nova verdade, precisamente a que é ditada pela ciência” (GAUER, 2004, p. 1). As premissas que complementam e demarcam o conhecimento científico e que serviram como pressupostos para o Direito estão estruturadas na experimentação, objetividade, neutralidade e generalização. Enquanto a experimentação trouxe a primazia da técnica, a objetividade sustentou o discurso da neutralidade do cientista, assim como a do juiz (GAUER, 2006, p. 9).

O método seria, assim, o caminho para a verdade, que decorreria da assunção de uma onipotência: a essência do objeto seria conquistada pelo sujeito do conhecimento, de modo que a ciência moderna, com base na filosofia da consciência cartesiana, desfigurou o fenômeno da compreensão (GADAMER, 1992, p. 184). O esquema sujeito-objeto foi incorporado ao Processo Penal em construtos simplificadores e abstratos de “busca” da verdade por correspondência (KHALED JR., 2022), de modo que existe uma imbricação entre o sistema inquisitório e a filosofia da consciência (COUTINHO, 2018, p. 123; STRECK, 2010, p. 13; 32).

Tais critérios ainda orientam a produção de conhecimento processual penal e a produção da “verdade” no Processo Penal, demonstrando, mais uma vez, como a colonialidade sobreviveu ao ocaso do colonialismo. Os pilares da colonialidade ainda são reafirmados e reproduzidos em artigos e livros científicos, bem como conformam um critério para reconhecimento de excelência acadêmica entre pares, de orientação para políticas-criminais e migratórias e para a elaboração de legislação penal e processual penal. Ela está inscrita em nossas formas de pensar, sentir, representar, perceber, conhecer e estar no mundo e molda não só a nossa experiência subjetiva, como um conjunto de práticas circunscritas aos seus parâmetros, o que é visível nas práticas punitivas e nos discursos que as legitimam.

Ao denunciar essa complexa rede estrutural e fundante, a perspectiva decolonial explicita as diferentes formas de opressão, dano e epistemicídio que fazem parte dela. Nesse sentido, a “inferioridade” do criminoso e do colonizado legitimaram, respectivamente, o poder punitivo e o neocolonialismo, no século XIX (ZAFFARONI, 2013, p. 76). O pensamento político moderno construiu a ideia do criminoso como inimigo do corpo social que não vive de acordo com a regra da razão (LOCKE, 1998, p. 386), princípio que também pode ser encontrado em autores como Rousseau, Fichte e Kant e que de diferentes formas contrapõe a “sociedade civil” e seus “inimigos”, conformando prenúncios para teorias de “defesa social” como a de Ferri, que incorporou em sua criminologia positivista a noção racista generalizada associada à antropologia colonial de que os nativos eram cerebralmente imaturos, intelectualmente inferiores, impulsivos e, portanto, propensos ao crime. Com sua “tradução” de Lombroso, Nina Rodrigues esboçou um modelo de controle racial que definiu a negritude como “inferior” propondo um paradigma de “criminalidade nata” que fundou um estoque de imagens lombrosianas da periculosidade negra que ainda orienta parcela significativa da atuação policial seletiva no Brasil e que sem dúvida é relevante para a sorte dos acusados no processo (GÓES, 2016).

Mas o esquema sujeito-objeto e a construção do inimigo são apenas uma parte da história que funda a colonialidade e que conforma um aspecto do legado epistemológico violento da modernidade para o Processo Penal. Para efeito de uma decolonização do Processo Penal, existem outras instâncias de inserção de colonialidade que também devem ser levadas em consideração.

A primeira delas é de caráter legislativo. Com a implementação na França do sistema “misto” de Processo Penal pelo Code d‘instruction criminelle de 1808, de Napoleão, ocorreu uma “restauração inquisitória”, que sepultou o sistema acusatório introduzido após a revolução francesa. Esse é o sistema processual penal recepcionado pela legislação pátria no Código de Processo Penal de 1941, que incorpora os subsídios político-criminais persecutórios do Processo Penal fascista italiano, reproduzindo os postulados de Manzini (GLOECKNER, 2020). Na exposição de motivos do CPP, Francisco Campos refere ser injustificável a primazia de pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum, reproduzindo o argumento presente no Manual dos Inquisidores de que o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando o bem de um indivíduo (EYMERICH, 1993, p. 122).

A segunda diz respeito aos horizontes compreensivos que, no Brasil, viriam a conformar duas interpretações distintas e divergentes sobre o Processo Penal, que ainda estão em questão na atual quadra histórica. Uma delas acena com um sopro de esperança fenomenológico passível de refundação decolonial. A outra, diferentemente, encontra-se comprometida com os postulados abstratos e violentos da colonialidade moderna.

3.      A fenomenologia do Processo Penal e a colonização do Processo Penal pela colonialidade moderna

Fenomenologia soa como uma palavra sofisticada e de difícil compreensão. Em apertada síntese, pode ser dito que ela remete a uma tradição filosófica significativa, cuja maior virtude consiste no engajamento com a experiência vivida e no abandono da abstração que é constitutiva da modernidade/colonialidade. Enquanto a razão moderna funda uma perspectiva que legitima o exercício de poder autoritário em diferentes campos, a fenomenologia está comprometida com o encontro e a compreensão da realidade que pretende retratar. Para efeito da presente proposta, uma “leitura fenomenológica” será utilizada com a intenção de descrever de modo rico e denso as experiências do “mundo vivido” e, em especial, as singularidades da realidade situada do Processo Penal, enfatizando o risco que lhe é inerente e, portanto, o perigo que representa a abstração racionalista dogmática, especialmente no que diz respeito ao conceito de verdade e à ideologia de “busca da verdade” que legitima a interferência do juiz na gestão da prova.

Um olhar fenomenológico exige uma atenção especial para o que efetivamente ocorre no processo, de modo a produzir uma descrição detalhada de seus limites, peculiaridades e riscos. Ele é, por definição, decolonial no sentido de que se contrapõe ao reducionismo simplificador, abstrato e silenciador de violências da episteme moderna fundada na filosofia da consciência.

Não se trata de uma proposta inteiramente inovadora e sim de uma ampliação e de um refinamento de uma das mais lúcidas interpretações sobre as duras realidades do Processo Penal. Nas primeiras décadas do século XX, James Goldschmidt (2010) desenvolveu uma concepção de processo como conjunto de “situações jurídicas” em constante fluxo e movimento. O autor foi criticado devido à suposição equivocada de que a sua teoria seria “sociológica” e não “jurídica”. Incompreendido inicialmente e posteriormente reconhecido como um “mestre do liberalismo processual”, Goldschmidt realizou o que possivelmente foi o primeiro esforço de compreensão fenomenológica do Processo Penal. Deixando de lado a abstração típica das teorias de seu tempo, Goldschmidt atentou para o que o processo efetivamente é, não para aquilo que outros sustentavam que ele seria ou deveria ser. O autor ousou pensar para além do já pensado, propondo uma releitura do Processo Penal na qual a vívida realidade triunfou sobre a abstração dogmática que então era dominante. Para ele, o processo é dinâmico e se encontra em constante movimento, tensão e transformação. É marcado pela incerteza e pelo risco, o que visibiliza o quanto é necessária a ênfase nas regras do devido Processo Penal, devendo ser essa a sua opção política.

Ao desenvolver seu esforço compreensivo fenomenológico, Goldschmidt especificamente apontou o equívoco da visão “estática” de Bülow, bem como as equivocadas consequências político-criminais da noção de “segurança jurídica” por ela aludida. A leitura de Goldschmidt também representa um contraponto significativo ao arbítrio inquisitorial, pois não se limita a explicitar o risco, indicando que a posição do juiz deve ser exclusivamente receptiva. Ao compreender e elucidar a dinâmica instável do processo, Goldschmidt se posicionou intelectualmente de modo favorável a produzir uma concepção político-criminalmente responsável e sensata de Processo Penal, capacitada para conter o arbítrio punitivo. Ela representa uma fundação em torno da qual pode ser erguida uma leitura engajada e comprometida com a defesa de direitos fundamentais, como a que é encontrada em Lopes Jr. (2022) e Khaled Jr. (2022).

Diferentemente da proposta de Goldschmidt, a leitura do processo como “relação jurídica”, de Bülow, está fundada na razão moderna e, logo, na abstração. Embora Bülow não tenha escrito especificamente sobre o Processo Penal, disse que eventualmente sua teoria poderia lhe ser de alguma valia (1964). Suas ideias podem ser percebidas nas obras de Wach, Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Liebman, entre tantos outros. Foi com o processualista italiano Liebman que a teoria de Bülow veio a ser introduzida e difundida no Brasil, posteriormente vindo a assumir caráter de verdade insuperável, apesar de seu distanciamento da realidade (COUTINHO, 1998, p. 122).

Com relação a essa recepção, pode ser constatada uma espécie diferente de colonialismo. Ela não é circunscrita ao domínio sobre o território, mas sobre um campo de atuação específico, que é o do Processo Penal, objeto de um esforço colonizatório que visa transformá-lo em um apêndice do Processo Civil. O movimento reproduz os fundamentos da colonialidade não só por estar alicerçado na episteme moderna, mas também no sentido de que consiste na negação, silenciamento e apagamento do outro (o que inclui povos, civilizações e conhecimentos) de forma concomitante com uma ocultação dessa negação, mediante uma narrativa universalizante e racionalizadora, típica de práticas de epistemicídio. Desse modo, a dinâmica da colonialidade é fortemente visível na teoria geral do processo, tão difundida no Brasil pela escola paulista de Direito Processual.

Mas o reducionismo e a simplificação teórica do Processo Penal não se restringem a Bülow e às diferentes teorias que foram construídas com base em sua perspectiva. De modo contemporâneo, esforços teóricos simplificadores procuram racionalizar o Processo Penal por meio de abstrações racionalistas totalizantes, que resultam em construtos artificiais e epistemologicamente estéreis, que esvaziam de significado as realidades complexas da experiência efetivamente vivida do e no Processo Penal, reproduzindo a colonialidade e os pressupostos oriundos do Processo Civil, que desconsideram a complexa fenomenologia do Processo Penal (LOPES JR., 2022, p. 163).

Por um lado, tendo sido criada a abstração racionalista fundada na colonialidade da epistemologia moderna, os processualistas passam a se dedicar ao seu estudo e a sua inserção em sistemas mais amplos e ainda mais afastados da realidade específica do Processo Penal; por outro lado, tais abstrações epistemológicas são facilmente cooptáveis para os piores propósitos imagináveis, facilitando um alargamento do arbítrio punitivo que demonstra que o pensamento simplificador não é apenas conhecimento rudimentar – ele produz dor e sofrimento real (MORIN, 2005, p. 83).

Na segunda parte deste texto, será desenvolvida uma desconstrução e contestação decolonial das teorias contemporâneas assentadas nos postulados da modernidade, bem como será delineada, de modo inicial, uma fenomenologia decolonial do Processo Penal, comprometida com a compreensão dos seus múltiplos significados e com o desenvolvimento de conceitos capacitados para a contenção do arbítrio punitivo.

Afinal, como escreveu Quijano (1992, p. 20), a libertação da prisão da colonialidade significa a libertação de todo poder organizado como desigualdade, discriminação, exploração e dominação.


Notas de rodapé


Referências

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Autores convidados

A (in)aplicabilidade da suspensão de prazos em processos penais: garantir férias à advocacia criminal é uma dilação excessiva?


Bruno Cavalcante Leitão Santos. 

Doutor em Direito pela PUCRS. Mestre em Direito Público pela UFAL. 

Professor no Centro Universitário Cesmac–AL. Advogado. 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9699629460607799

ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7556-2348

brunoleitao.adv@hotmail.com 


Francisco de Assis de França Júnior. 

Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Professor no Centro Universitário Cesmac–AL. Advogado 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2739102277898461

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6958-920X

francajuniordireito@gmail.com 


Resumo: O presente artigo tem como objetivos principais diagnosticar e refletir criticamente sobre os argumentos mais significativos no debate sobre a (in)aplicabilidade da suspensão dos prazos nos processos penais, experimentando-se como hipótese central a necessidade de se respeitar o período entre 20 de dezembro e 20 de janeiro como lapso de tempo também insuscetível de escoamento de prazo processual penal em qualquer circunstância. A problemática proposta, que questiona o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça – STJ, vai se desenvolver a partir do método hipotético-dedutivo e da técnica da revisão de literatura, com o que se concluirá que as soluções apresentadas, tanto pela jurisprudência quanto pelo legislador (vide o novo art. 798-A do Código de Processo Penal), não são as mais coerentes.

Palavras-chave: Processo Civil – Processo Penal – Prazos – Suspensão – Prorrogação.

Abstract: The main objective of this article is to diagnose and critically reflect on the most significant arguments in the debate on the (in)applicability of the suspension of deadlines in criminal proceedings, experiencing as a central hypothesis the need to respect the period between December 20 and January 20 as a period of time also insusceptible to the execution of the criminal procedural deadline under any circumstances. The proposed problem, which questions the position of the Superior Court of Justice - STJ, will be developed from the hypothetical-deductive method and the technique of literature review, with which it will be concluded that the solutions presented, both by jurisprudence and by the legislator (see the new article 798-A of the Criminal Procedure Code), are not the most coherent.

Keywords: Civil Procedure – Criminal Proceedings – Deadlines – Suspension – Extension.

Data: 01/08/2022
Autor: Bruno Cavalcante Leitão Santos e Francisco de Assis de França Júnior

1.      Introdução

Não seria exagero se disséssemos que o Processo Penal é um instrumento que – dentre outras coisas – está destinado a administrar o tempo a ser percorrido entre a suposta infração e a decisão sobre a possibilidade (ou não) de responsabilização do(s) suposto(s) autor(es). Um dos grandes problemas da processualística, no entanto, tem sido identificar com algum grau de segurança uma delimitação temporal encarada como razoável entre uma coisa e outra, como, aliás, é garantia da própria Constituição de 1988 (art. 5º, LXXVIII).1 O fato é que, razoabilidade é critério aberto,2 passível de ser instrumentalizado até para expandir o poder punitivo.

Demonstrada, portanto, a importância do tema da gestão do tempo no processo, sobretudo, dado seu caráter de condição para que se consiga provocar legitimamente a jurisdição na busca pelo respeito a direitos e garantias fundamentais – deixando-se consignado desde já que não advogamos a possibilidade de uma teoria geral do processo, com o Processo Penal incluso, para o que entendemos como suficientes as críticas já conhecidas de Aury Lopes Jr.3 –, a problemática a ser enfrentada aqui é a possibilidade (ou não) de aplicação da previsão do art. 220 do Código de Processo Civil – CPC4, diante da previsão do art. 798 do Código de Processo Penal – CPP,5 no que se questiona: a solução apresentada atualmente pelo STJ6 seria aceitável?

Desse modo, com o objetivo de diagnosticar (e de refletir criticamente sobre) os argumentos mais significativos no debate proposto, tendo como hipótese a possibilidade de se respeitar o período entre 20 de dezembro e 20 de janeiro como lapso de tempo também insuscetível de escoamento de prazo processual penal, o enfrentamento da problemática se desenvolverá a partir do método hipotético-dedutivo e da técnica da revisão de literatura, com o que se concluirá que as soluções apresentadas pelo STJ, e as exceções previstas pelo novo art. 798-A do Código de Processo Penal – CPP,  não se sustentam como as mais aceitáveis e coerentes.

2.      A problemática da (in)aplicabilidade da suspensão de prazos em processos penais

Para François Ost,7 “«dar tempo» é a condição para «exprimir o direito». E não será pelo facto do tempo ser dado que se (em)presta justiça?”. Segundo o autor, “o tempo é uma instituição social antes de ser um fenómeno físico e uma experiência psíquica”. E conclui:

depende da experiência mais íntima da consciência individual que pode experienciar um minuto de relógio, ora como tempo interminável, ora como como instante fulgurante. [...] o tempo é antes do mais uma construção social […], uma questão de poder, uma exigência ética e um objecto jurídico.8

Assim, o tempo é circunstância relativa, não capturada pelo jurídico.9 Como o tempo, o processo também terá sua relatividade, sobretudo quando se pretender conter o poder. Aury Lopes Jr.,10 por exemplo, reconhece que “o sistema penal (material e processual) não pode ser objeto de uma análise estritamente jurídica, sob pena de ser minimalista, ingénua até”. Para ele, “O processo penal não está em um compartimento estanque, imune aos movimentos sociais, políticos e económicos”. Segundo o autor, “o processo, enquanto instrumento, exige uma abordagem interdisciplinar, a partir do caleidoscópio, isto é, devemos visualizá-lo desde vários pontos e recorrendo a diferentes campos do saber”.

Claro, portanto, que as previsões legais não são absolutas, nem incomunicáveis umas com as outras; deve-se recordar que, quando da elaboração do CPC, uma das demandas da advocacia era justamente pelo reconhecimento de um período de recesso que prestigiasse o Direito Constitucional (art. 7º, XV e XVII) ao descanso,11 sem preocupações com prazos.

Daí porque não seria possível o desprezo a críticas diante da paralização, sem ressalvas, do escoamento dos prazos processuais, que tem beneficiado civilistas, previdenciaristas, trabalhistas etc., mas não os criminalistas, sob o argumento de que, nesses casos, deveria imperar o art. 798 do CPP. Mesmo com a vigência do art. 798-A do CPP, diante das exceções previstas, a discussão persiste, uma vez que o dispositivo privilegia apenas alguns criminalistas.

Nesse contexto, aliás, a seccional da OAB de Pernambuco havia ingressado com uma Reclamação (0006866-92.2016.2.00.02000) no Conselho Nacional de Justiça – CNJ, argumentando que “a tramitação apenas dos processos criminais nesse período, implicaria em convocar para atuação tão-somente os advogados criminalistas”, o que retiraria desses profissionais “prerrogativas”, que foram asseguradas aos que atuam nas outras áreas da advocacia, ferindo “violentamente o princípio da isonomia”, o que foi negado pelo CNJ.12

Note-se o art. 3º da Resolução 244/2016 do CNJ: “Será suspensa a contagem dos prazos processuais em todos os órgãos do Poder Judiciário, inclusive da União, entre 20 de dezembro a 20 de janeiro”.

Entretanto, o STJ tem argumentado que o “recesso judiciário e o período de férias coletivas, em matéria processual penal, têm como efeito, em relação aos prazos vencidos no seu curso, a mera prorrogação do vencimento para o primeiro dia útil subsequente ao seu término, não havendo interrupção ou suspensão”.13 Mas o que seria esse recesso? O dos tribunais, que normalmente voltam na primeira semana de janeiro, ou aquele dos arts. 220 do CPC e 798-A, caput,  do CPP?

Humberto Theodoro Júnior, por exemplo, conclui que o período determinado pelo art. 220 do CPC seria “um recesso especial cujo efeito, sobre os prazos, é o mesmo das férias forenses coletivas, como já vinha reconhecendo o CNJ, para outros recessos como o da Justiça Federal, antes do advento do Código atual (Resolução nº 8/2005 do CNJ)”.14 Mas o autor adverte: “O prazo decadencial continua fluindo durante as férias, mas o vencimento ficará protelada para o primeiro dia útil subseqüente ao término das férias (NCPC, art. 975, § 1º)”, o que nos faz perceber que o STJ parece ter se utilizado da conclusão a respeito dos prazos decadenciais, assim considerados nos processos civis, para aplicá-la aos processos penais, quando determina a “prorrogação do vencimento para o primeiro dia útil subsequente” ao término do recesso.

O fato é que a solução encontrada pelo STJ até teria uma certa lógica no mundo analógico, em que se exigiria que os profissionais se deslocassem até as varas para protocolarem suas petições, e que os servidores lhes dessem impulso. Atualmente, o sistema da justiça15 realiza esse impulsionamento quando programado. A possibilidade de um protocolo não está submetida, portanto, a um expediente previamente determinando.16 Os profissionais não estão impedidos, onde há processos virtuais ou digitalizados, de protocolar petições durante o recesso.

Dessa maneira, o recesso, tanto do art. 220 do CPC quanto do art. 798-A do CPP, embora não coincida perfeitamente com o dos tribunais, que geralmente retornam suas atividades na primeira semana de janeiro, não foi determinado pelo legislador por conta do não funcionamento do judiciário em sua plenitude, mas pela necessidade de se respeitar um mínimo de descanso para a advocacia, o que se reforça pelo determinado, como regra, pelo art. 133 da Constituição, de que “O advogado é indispensável à administração da justiça”.

Como observado por Daniel Blume Pereira de Almeida,17 “No período de que cuida o art. 220 do CPC […] Não há sessões e audiências. Em muitos tribunais o expediente é reduzido”, advertindo-se que “sutilezas da lei nunca devem servir para impedir o exercício de um direito”.

Perceba-se que, para grande parte dos criminalistas, mantém-se o entendimento do STJ, sendo inócua a determinação do caput do art. 798-A do CPP em razão das exceções que previu:

Art. 798-A. Suspende-se o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, inclusive, salvo nos seguintes casos:

I - que envolvam réus presos, nos processos vinculados a essas prisões;

II - nos procedimentos regidos pela Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha);

III - nas medidas consideradas urgentes, mediante despacho fundamentado do juízo competente.

A previsão legal continua discriminando parte da advocacia criminalista, olhando-se exclusivamente para a situação do réu, o que é um equívoco, uma vez que garantir férias, mínimas que sejam, para toda a advocacia criminalista, é também garantir, dentre outras coisas, que exista tempo suficiente para a maturação da melhor estratégia defensiva possível. Logo, tanto a jurisprudência do STJ (até aqui) quanto a inovação legislativa18 fazem uma interpretação que é restritiva do direito ao descanso de toda a advocacia criminalista, sem discriminações.

O fato é que, ao menos até a mencionada inovação legislativa, tem se admitido nos tribunais superiores a prorrogação do prazo apenas para depois do recesso do tribunal, ou seja, a aplicação do art. 220 mais funcionaria como uma “aplicação supletiva ou complementar”,19 dando sentido e coerência ao atual funcionamento do Poder Judiciário, ressaltado pela disparidade temporal que existia entre os diplomas em evidência.

Veja-se que, para o CNJ, o art. 220 do CPC não seria aplicável aos processos penais, tendo em consideração o direito do investigado de uma duração razoável do processo, o que mais nos parece ser uma falácia. Reiteradas vezes, os próprios tribunais têm feito questão de destacar que os prazos nos processuais penais gozam de certa relatividade, como o da prisão cautelar,20 os de duração do processo,21 ou os das razões de um recurso ou da denúncia,22 tratando-os como meras irregularidades, sem falar nas dificuldades para o andamento dos processos.23

Logo, mesmo que se faça uma autocrítica,24 é clara a contribuição do próprio judiciário à perpetuação da doutrina do “não prazo”,25 que permite dilações excessivas. Traria a suspensão dos prazos algum prejuízo ao Processo Penal com duração razoável? Pensamos que não.

Para Alberto Silva Franco,26 a razoabilidade é válida, desde que “não seja determinada por puro arbítrio judicial”. Segundo o autor, para evitar manipulação, “a operação matemática de somar os prazos individuais que compõem o processo, de forma que o resultado seja equivalente ao total máximo de duração do conjunto desses prazos, não poderá ser simplesmente desprezada e substituída pelo critério da razoabilidade”.

Não seriam as férias da advocacia criminalista uma dilação desarrazoada. Em nada prejudicaria o feixe de critérios mencionados por Guilherme Madeira Dezem e Gustavo Octaviano Diniz Junqueira27 sobre o que deveria ser considerado como duração indevida: “1) complexidade do caso; 2) conduta processual do acusado; 3) conduta das autoridades judiciárias”.

3.      Considerações finais

A preocupação com as garantias do investigado deve, em dada medida, estender-se ao seu defensor, que é quem realiza sua defesa técnica em Processo Penal com estrutura acusatória. Garantir um período digno de descanso, sem que tenha que se preocupar com o escoamento de prazos, seria o mínimo, especialmente no que diz respeito ao cuidado com a saúde mental,28 como já reconhecido, sem exceções, para a advocacia civilista, previdenciarista, trabalhista, etc.

Por fim, qualquer pretensão de isolamento das normas processuais penais é rompida diante da necessidade de garantir um descanso digno à integralidade da advocacia criminal, que é quem se move em favor do investigado contra a estrutura presente na persecução (polícias, MP, judiciário, etc.). Não à toa, destaca Amilton Bueno de Carvalho,29 é o criminalista o “defensor do um contra todos”, o que, por vezes, diz o autor, sofre preconceito dentro da própria profissão.


Notas de rodapé

Notas

[1] No Dec. n. 678/1992, tanto no art. 7, item 5, quanto no art. 8, item 1; e no Dec. 592/1992, no art. 9, item 3. Sobre o tema, veja-se: LOPES JR.,; BADARÓ, 2009.

[2] Sobre a “vagueza de conceitos”, a permitir dilações indevidas na persecução e uma doutrina do “não prazo”, veja-se: LOPES JR., 2004, p. 73-74.

[3] Seria um erro “pensar, que podem ser transmitidas e aplicadas no processo penal as categorias do processo civil”, advertindo-se: “O processo civil é o cenário da riqueza (de quem possui), ao passo que no processo penal, cada vez mais, é o processo de quem não tem, do excluído” (LOPES JR., 2019, p. 63 ss).

[4] Art. 220. Suspende-se o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, inclusive.

[5] Art. 798.  Todos os prazos correrão em cartório e serão contínuos e peremptórios, não se interrompendo por férias, domingo ou dia feriado.

[6] AgRg no AREsp 1612424/MG. Relator Min. Ribeiro Dantas, DJe de 18 de junho de 2020.

[7] OST, 2001, p. 434.

[8] OST, 2001, p. 12.

[9] Perceba-se que, mesmo na física, essa relatividade também tem sido perspectivada (EINSTEIN, 1984).

[10] LOPES JR., 2016, p. 44-45.

[11] Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Art. 24° – Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas”. Além do Dec. n. 591/1992: “Art. 7 – Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: […] ii) […] d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.”.

[12] Disponível na íntegra em: https://www.conjur.com.br/dl/suspensao-prazos-cpc-nao-aplica.pdf. Acesso em: 27 mar.2022.

[13] AgRg no AREsp 1612424/MG, relator Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 18/6/2020).

[14] THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 264.

[15] Embora saibamos que alguns estados ainda mantenham varas funcionando com processos físicos, mas que até admitem o protocolo por e-mail.

[16] Veja-se, por exemplo, a previsão do art. 3º, Parágrafo Único, da Lei 11.419/2006.

[17] ALMEIDA, 2022, p. 11.

[18] Publicada no Diário Oficial da União em 03.06.2022, dando conta da entrada em vigência da Lei 14.365/2022, que instituiu o art. 798-A no CPP.

[19] ZANETI JR., 2016, p. 461.

[20] Como no caso do Art. 316, Parágrafo Único, do CPP. Informativo: 995 do STF: “A inobservância do prazo nonagesimal […] não acarreta a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade dos fundamentos”.

[21] Como nos casos do art. 10 ou do art. 412, ambos do CPP. “A constatação de eventual excesso de prazo para a conclusão de inquérito e até mesmo de processo não é resultado de operação aritmética de soma de prazos”. Habeas Corpus n. 659092 - PR (2021/0106973-6). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=142240751&registro_numero=202101069736&peticao_numero=&publicacao_data=20211213&formato=PDF. Acesso em: 27 mar. 2022.

[22] AgRg no AREsp 1.079.374/PB, Rel. Min. JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 23/03/2018; No caso da denúncia, veja-se, no mesmo sentido, o Habeas Corpus 72.254 – CE.

[23] “(...) greves de serventuários, excesso de trabalho, dificuldade para a apresentação do réu preso a exames ou a audiência, inexistência de data disponível na pauta, entre outras hipóteses” (MOURA; LACAVA, 2009, p. 413).

[24] “excepcionar a aplicação das Súmulas 21 e 52, sempre que constatada a demora injustificada após estes dois marcos”. (MOURA; LACAVA, 2009. p. 413).

[25] Com “graves dificuldades para o exercício eficaz da resistência processual”. (LOPES JR., 2004, p. 69).

[26] FRANCO, 2005, p. 7.

[27] DEZEM; JUNQUEIRA, 2008, p. 29.

[28] Veja-se, por exemplo, a Cartilha da Saúde Mental da Advocacia, elaborada e publicada pela OAB Nacional. Disponível em: https://www.caasp.org.br/arquivos/cartilha.pdf . Acesso em: 28 mar. 2022.

[29] PENA de Prisão..., 2015. 

Referências

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