.
Não há como discutir o sistema de justiça penal sem enfrentar a questão racial. O racismo permeia todo o funcionamento do sistema de justiça criminal, sendo elemento estruturante que viabiliza, sustenta e normaliza suas práticas violentas, arbitrárias e incompatíveis com as finalidades formais do Direito Penal. Não cabem ingenuidades. O Brasil é um país de passado e presente colonial escravista. Se não houver hoje um efetivo enfrentamento das causas e dos mecanismos de reprodução do racismo, será um país de futuro colonial escravista.
A luta antirracista não é mera escolha política. É uma consequência necessária do Estado Democrático de Direito. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a Constituição de 1988 lista “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Toda vez que o Estado brasileiro não enfrenta o racismo, ele se contradiz, perde legitimidade, perpetua um estado de coisas inconstitucional.
Na luta antirracista relativa ao sistema criminal, dois aspectos se sobressaem. Em primeiro lugar, há grande quantidade de dados e estudos indicando a opressão e a seletividade do sistema de justiça penal contra a população negra. A afirmação de que o sistema é racista não se baseia numa hipótese. É um fato, comprovado sob as mais variadas perspectivas, análises e recortes. No entanto, continua existindo na sociedade um marcado negacionismo a respeito da questão racial, com o objetivo de minimizar suas consequências, desqualificar a luta antirracista e rejeitar a responsabilidade da branquitude na opressão da população negra. Eis o paradoxo causado pelo negacionismo da questão racial. Faz falta tornar visível aquilo que talvez seja a característica dominante e mais visível da sociedade brasileira: o racismo presente em toda e qualquer relação para a qual se direcione o olhar. Diante do eficaz e onipresente mecanismo de normalização do racismo, é necessário desvelar o evidente. Há uma urgente tarefa de comunicação, que inclui também a desconstrução da sensibilidade colonial escravista e o reenquadramento afetivo da questão racial.
O segundo aspecto refere-se à efetividade da luta antirracista no sistema de justiça penal. É preciso ir além da denúncia dos números da seletividade desde a abordagem policial até o sistema carcerário. Urge qualificar o debate, começando por corrigir sua perspectiva e suas cegueiras: (i) explicitar as contribuições diretas e indiretas dos movimentos negros para a produção acadêmico-criminológica sobre a violência estatal; (ii) evidenciar o papel da branquitude na perpetuação do controle penal seletivo e na própria discussão acadêmico-criminológica; e (iii) empregar, na produção acadêmica, os termos raça e racismo de forma direta, não apenas implícita ou genérica, para expor e qualificar a seletividade racial do sistema.
Além disso, a efetividade da luta antirracista exige avançar em questões concretas. A esse respeito fazemos referência ao trabalho da “Comissão de juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país”, instaurada pela Presidência da Câmara dos Deputados e que contou, entre outras muitas entidades e movimentos, com a participação do IBCCRIM. Concluído em novembro de 2021, o relatório final da comissão é uma excelente síntese de propostas para a luta antirracista.
No âmbito da segurança pública e do sistema de justiça criminal, destaca-se a necessidade de combate à violência institucional contra a população negra, que se manifesta especialmente nas “operações policiais” das favelas e periferias, na discriminação racial nas abordagens policiais e na condução racista do instituto do reconhecimento de pessoas no Processo Penal. Também é preciso enfrentar o genocídio da juventude negra, o encarceramento em massa da população negra e um dos principais eixos de reprodução de violência no país, a “guerra às drogas”. São desafios gigantescos e, por isso mesmo, seu enfrentamento não pode ser adiado.
Recentemente, houve avanços importantes na jurisprudência a respeito do reconhecimento fotográfico e dos critérios para a abordagem policial na rua. Mas é preciso ir além; por exemplo, fortalecer os parâmetros legais para o uso da força, incluir na formação policial o combate ao racismo institucional, assegurar câmeras corporais nas forças de segurança de todos os Estados, criar cotas raciais para o ingresso nas carreiras policiais.
O racismo é elemento estruturante da sociedade e do Estado brasileiro, especialmente do seu sistema de justiça penal. É preciso identificá-lo e combatê-lo. Ontem, hoje e sempre.
.
Saulo Murilo de Oliveira Mattos
Promotor de Justiça do MP/BA. Associado do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Mestre em Segurança Pública, Justiça e Cidadania pela UFBA. Doutorando pela UNB.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6733-5735
mattossaulo@gmail.com
Resumo: O presente artigo, a partir da análise de alguns dados referentes à composição racial do Poder Judiciário brasileiro e informações sobre o perfil etnorracial da população carcerária, pretende indicar que a atuação da justiça criminal é atravessada por uma historicidade escravocrata que marca a seletividade de um poder punitivo que se mostra como uma instância colonial. Sugere-se que a justiça criminal é sobretudo antinegra, pois manifesta um mortífero desprezo por pessoas negras que figuram como réus.
Palavras-chave: Justiça Criminal – Colonial – Antinegritude.
Abstract: This article, based on the analysis of some data referring to the racial composition of the Brazilian Judiciary and information on the ethnoracial profile of the prison population, intends to indicate that the performance of criminal justice is crossed by slavery historicity that marks the selectivity of punitive power. It is shown that criminal justice is above all anti-black, in the sense of showing a deadly contempt for black people who appear as defendants.
Keywords: Criminal Justice – Colonial – Anti-blackness.
Há uma importante crítica interseccional em relação à operatividade da justiça criminal, que a coloca na dimensão de um sistema punitivo seletivo, classista, misógino e racista (ALVES, 2017, p. 103; BORGES, 2019, p. 62). A ideia é de que a justiça criminal já saberia –considerados os aspectos de raça, gênero e classe – quem deve ser massivamente encarcerado, ainda que ocorram repetidos e evidentes erros judiciais.
Para amparar discursivamente esse modelo de punir, conta-se com formulações teóricas de uma Dogmática Penal e Processual Penal tecnicista, que tende a neutralizar as sistêmicas disparidades punitivas raciais, e que parece ter assimilado a quimérica premissa de que a previsão constitucional de direitos e garantias fundamentais é suficiente à consolidação de uma justiça criminal democrática.
É como se o país experimentasse uma democracia racial e de gênero, que materializa o princípio da igualdade jurídica e declara que Themis se faz presente nas audiências e processos criminais. Acontece que a democracia racial é um artifício teórico pensado para evitar a enunciação do racismo e permitir a continuidade histórica das assimetrias raciais que se manifestam nas institucionalidades públicas e privadas do país, da qual faz parte a justiça criminal (FLAUZINA; FREITAS, 2017, p. 48; NASCIMENTO, 2021, p. 64). No campo sociológico, no ano de 1933, a obra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, redigida em um estilo quase literário, permite que a elite brasileira publicize nos diálogos acadêmicos e do dia a dia o equivocado fato histórico referente a uma fluida miscigenação entre portugueses, negros/as escravizados/as e indígenas, que teria sido regada por um tom lascivo dengoso característico dos povos de matriz africana e indígena.
O ponto de inflexão que contorna o engodo sociológico da democracia racial é que se mostra ilógico conceber que a escravização multissecular brasileira, com um processo pós-abolicionista excludente e criminalizante em relação aos ex-escravos/as negros/as, tenha sido capaz de formar uma sociedade racialmente democrática. Nesse contexto, o massivo encarceramento de negros/as indica como não há uma neutralidade racial no país e como a prisão continua sendo um potente instrumento de controle sociorracial e espacial, fomentando a constelação de castas raciais (ALEXANDER, 2017, p. 36).
Embora bem demarcada e relevante a afirmação de que o Direito Penal tem funções oficialmente declaradas e tantas outras não declaradas (SANTOS, 2006, p. 8-14), e que o avanço do Estado Penal tem como objetivo punir os pobres e ser um instrumento de gestão da miséria social (WACQUANT, 2015, p. 110), a questão criminal no Brasil não pode ser reduzida à discussão incolor sobre poder, estratificação socioeconômica e sua repercussão criminógena. Ana Flauzina (2017, p. 51-52) registra que “foi na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se consolidar, e é na lógica da dominação étnica contemporânea que continua a operar seus excessos”.
Tentar esconder essa influência escravagista na conformação do sistema penal brasileiro só reafirma a perspectiva de que “a perversão do discurso jurídico penal o caracteriza como um ente que se enrosca em si mesmo de forma envolvente, a ponto de imobilizar frequentemente seus críticos mais inteligentes, especialmente quando estes possuem alguma relação com a prática dos órgãos judiciais” (ZAFFARONI, 2014, p. 29).
Duas afirmações, portanto, embasam a proposta reflexiva que, de forma inicial, apresenta-se neste texto. A justiça criminal brasileira é colonial. Essa justiça criminal é, sobretudo, antinegra.
Quando se diz que a justiça criminal opera sob o influxo de um arquétipo colonial escravizante, pretende-se apontar para sua violenta dinâmica de encarceramento de corpos negros que se dá por deliberações processuais de uma casa grande institucional formada por pessoas brancas (Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública).
Visualiza-se, dessa forma, o exercício de um poder punitivo colonial, que tem como fundamento significativo a hierarquização racial entre pessoas não negras e negras, estas quase sempre no polo passivo da demanda criminal, nulificadas em sua existência a partir de investigações rasas, acusações irresponsáveis, defesas vazias, prisões e decisões condenatórias sem provas.
Denise Carrascosa (2018, p. 34) considera que “a prisão como suplemento ativo que é da escravidão comporta o olho do sumidouro, onde se deposita, na zona abismal do que nem se deseja, nem se pode enxergar, o além do limite da humanidade.”
De acordo com pesquisa sociodemográfica sobre a magistratura brasileira elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça no ano de 2018, constatou-se que a maioria se declarou branca (80,3%), 18,1% negros (16,5% pardos e 1,6% pretos), e 1,6% de origem asiática (amarelo), sendo que apenas 11 magistrados se declararam indígenas. Além disso, mulheres representam apenas 38% da magistratura brasileira, percentual que reduz para 23% quando analisada a presença feminina no 2º grau.
No entanto, segundo os dados do Departamento Penitenciário Nacional, referente ao período de julho a dezembro de 2021, quando se observa a caracterização da população carcerária, mais de 67% são negros. Essa breve confrontação de dados sugere que, num país em que 56% da população é negra (IBGE), há uma sobrerrepresentação racial de pessoas negras na população carcerária e uma sub-representação no Poder Judiciário, uma das principais instituições do sistema penal.
Deve-se lembrar também do caso Simone André Diniz, apreciado no ano de 2006 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que responsabilizou internacionalmente o Brasil por não assegurar às vítimas do racismo e dos crimes raciais acesso à justiça, evidenciando-se a atuação negligente de instituições vinculadas ao sistema penal, como o Ministério Público e o Poder Judiciário, que reproduzem o racismo institucional. Além disso, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), o Comitê para Eliminação de Discriminação Racial elaborou a Recomendação Geral n. 36/2020, que visa prevenir e combater o perfilamento racial que tem acontecido nos diversos níveis da justiça criminal no mundo, especialmente quanto à atuação policial.
Esses são apenas alguns dados – rastros também – que indicam como a justiça criminal brasileira reproduz uma lógica colonial desumanizante, capturando sistematicamente pessoas negras, enjaulando-as, explorando-as economicamente dentro e fora das prisões, silenciando-as com processos criminais de duração irrazoável até que se chegue a sentenças penais condenatórias de frágil justificação probatória. De fato, a sentença penal condenatória é a máscara de flandres da contemporaneidade. É o açoite jurídico-penal que busca silenciar a todo custo as insurgências que se revelam nas comunidades periféricas e negras.
Frantz Fanon (1961, p. 34) descreve a cidade do colonizado como “um mundo sem intervalos, em que se morre em qualquer parte e não se sabe nunca de quê, é uma cidade de negros, de ruminantes, uma cidade esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos, sem luz, uma cidade de joelhos, a chafurdar.” Ao se debruçar sobre o cotidiano do sistema penal, pode-se dizer que essa cidade, a do colonizado, é integrada pelos que são atravessados pela justiça criminal, os atuais “condenados da terra” (FANON, 1961, p. 143). É preciso entender, portanto, que “o sistema penal representa o ponto de gravidade que estabiliza sentidos sobre o ser negro no projeto colonial da Modernidade” (DUARTE, 2017, p. 186).
Para além da atmosfera colonial do exercício do poder punitivo, que se caracteriza tanto pelos comportamentos dos sujeitos processuais que simbolizam reedições históricas do modo de se viver na casa-grande quanto pela colonialidade intrínseca do poder punitivo forjado em retórica normativa criminológica positiva, há algo perversamente genocida que acontece na justiça criminal e desborda dos limites de uma análise enquadrada unicamente na perspectiva colonial.
A justiça criminal brasileira é, sobretudo, antinegra. A antinegritude é um marcador teórico-reflexivo que, sem desconsiderar digressões sobre o colonialismo histórico e contemporâneo da justiça criminal, consegue escancarar a política de ódio racial dedicada a pretos e pardos lançados no cativeiro do sistema penal.
João H. Costa Vargas (2020, p. 22) explica que “a antinegritude torna abjeto tudo o que é supostamente ligado à negritude. A antinegritude torna não lugares todos os espaços marcados pela negritude: espaços físicos, espaços metafísicos, espaços ontológicos, espaços sociais.” Para o referido autor, a antinegritude delimita quem é a não pessoa, o não lugar. E, portanto, ao considerar a díade relacional negro/não negro, sinaliza-se que o critério de afirmação de humanidade de pessoas não negras (brancos, asiáticos etc.) é pautado pelo seu afastamento existencial e racial da condição negra. Por isso, “ser humano é ser não negro” (VARGAS, 2017, p. 86).
Porém, embora pessoas negras sejam consideradas abjetas, descartáveis, deploráveis, é a partir de sua sistemática e trans-histórica morte social que a política, economia e sociedade se estabelecem como estruturas ocidentais exploratórias (VARGAS, 2017, p. 96). Portanto, concebível que esse antagonismo estrutural explicado pela antinegritude – essas não pessoas a que chamamos de negros que são ao mesmo tempo descartáveis e essenciais à lógica de espoliação do mundo não negro – também constitua o agir do sistema penal.
Nessas condições de violência gratuita e contínua contra negros/as, que prioriza sua morte social, nem mesmo supostos discursos progressistas sobre Direitos Humanos, que tendem a seguir uma linhagem patriarcal eurocêntrica, conseguem evitar que a roda do genocídio antinegro patrocinado pelo sistema penal continue a girar. Por isso, Thula Pires (2018, p. 67), ao propor a racialização sobre o debate dos Direitos Humanos no Brasil, destaca que “a crença nas ideias de universalidade e neutralidade dos Direitos Humanos produziram uma apropriação dessa agenda de forma hierarquizada e violenta para grupos sociais minorizados e alijados dos bens materiais e simbólicos para o bem viver.”
A construção desse imaginário no qual o corpo negro aparece como um receptáculo infinito de atos violentos sem poder reclamar a condição de vítima, como também personaliza a fábula de uma condição racial que seria naturalmente propensa à prática delitiva, permite que o sistema jurídico (penal e não penal) permaneça indiferente ao sofrimento negro e continue a praticar o genocídio antinegro. (FLAUZINA; FREITAS, 2017, p. 51).
Existe uma certa oposição jurídico-política, marcada por um bacharelismo europeu e neocolonial, em reconhecer a categoria genocídio como apta a adjetivar o massacre sistemático e trans-histórico de pessoas negras no país e em diáspora africana. Mostra-se, com isso, o conceito embranquecido de genocídio, que o associa apenas ao fato histórico do holocausto (FLAUZINA, 2014, p. 134).
No entanto, devemos recordar o que ficou registrado por Abdias Nascimento (2016, p. 84), quando afirmou que o coativo processo de miscigenação, ancorado na exploração sexual da mulher negra, aparece como genuíno fenômeno de genocídio da população negra no Brasil, na tentativa de fazê-la desaparecer pelo clareamento da epiderme.
A justiça criminal tem promovido institucionalmente o intenso e alargado sequestro de pessoas negras, interrompendo-as em seu existir mais simples, inviabilizando a concepção de sonhos intergeracionais positivos. Política criminal de drogas que derramam sangue (BATISTA, 1998). Prisões processuais fundamentadas em álbuns de suspeitos. Abordagens policiais arbitrárias. Assassinatos em camburões da polícia transformados em calabouços que gotejam sangue e trancam respirações. Omissões institucionais quanto à apuração de ações policiais que invadem comunidades periféricas, desrespeitando-se decisões da Suprema Corte como a proferida na ADPF nº 635. São corpos negros que caem, e continuam caindo, no chão, isso porque, “operando à margem da legalidade, sem qualquer tipo de censura mais consequente, os sistemas penais têm a morte como seu principal produto” (FLAUZINA, 2017, p. 37).
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 informam que o perfil das vítimas de intervenções policiais letais continua sendo do gênero masculino (98,4%), jovens (76,2%), pretos e pardos (78,9%). Por sua vez, o Atlas da Violência de 2021 registrou a informação de que a taxa de violência letal contra pessoas negras tende a ser 162% maior que a prevista para pessoas não negras.
É preciso dizer, portanto, que a polícia exerce um controle racial e mortífero da geografia urbana. Mas, se assim procede, conta com a validação institucional da justiça criminal, que pratica uma espécie de violência silenciosa na medida em que não confronta os executores dessa violência ilegal. Tal (anti) justiça criminal despreza os relatos de vítimas sobreviventes e respectivos familiares, e se conforma com um discurso sobre direitos e garantias fundamentais que – dada à sua imprestabilidade prática aos que estão nas zonas brutais do não ser – colabora para imunizar, pela via retórica do abstracionismo jurídico, quem protagoniza as deliberações de encarceramento (DUARTE, 2020, p. 97; FREITAS, 2020, p. 107).
Aqui estão alguns rastros de ideias sobre a justiça criminal brasileira, que é, sobretudo e por todos os lados, antinegra.
Referências
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.
ALVES, Dina. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. CS, n. 21, p. 97-120, 2017.
BATISTA, Nilo. Política Criminal com derramamento de sangue. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v. 5/6, 1998.
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019.
BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de. (coord.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. Ano 16. São Paulo: FBSP 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5 Acesso em: 03 out. 2022.
CARRASCOSA, Denise. Direito Humano. In: FREITAS, Felipe; PIRES, Thula;. Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
CERQUEIRA, Daniel (coord.). et al. Atlas da violência. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 03 out. 2022.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Simone André Diniz. Relatório de Mérito, nº 66/2006. OEA/CIDH, 21 out. 2006. Disponível em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Acesso em: 30 set. 2022.
DUARTE, Evandro Piza. Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras?. Revista Eletrônica Direito e Sociedade-REDES, v. 8, n. 2, p. 95-119, 2020.
________. Ensaio sobre a hipótese colonial: Racismo e Sistema Penal no Brasil. In: Criminologia do Preconceito: racismo e homofobia nas ciências criminais. CARVALHO, Salo de; DUARTE, Evandro Piza. São Paulo: Saraiva, 2017.
FANON, Frantz. Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. As fronteiras raciais do genocídio. University of Brasília Law Journal (Direito, UnB), v. 1, n. 1, p. 119-136, 2014.
_______. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2ªed. Brasília: Brado Negro, 2017.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; FREITAS, Felipe da Silva. Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a negação do sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 135, p. 49-71, 2017.
FREITAS, Felipe da Silva. Polícia e Racismo: uma discussão sobre mandato policial. 2020. 264 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.
NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
PIRES, Thula. Racializando o debate sobre direitos humanos. SUR-Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 15, n. 28, p. 65-75, 2018.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006.
UNITED NATIONS. General recommendation nº 36 (2020) on preventing and combating racial profiling by law enforcement officials. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G20/349/53/pdf/G2034953.pdf?OpenElement. Acesso em: 14 out. 2021.
VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 18, n. 45, 2020.
______. Por uma mudança de paradigma: Antinegritude e Antagonismo Estrutural. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014
Autor convidado
Lucas da Silva Santos
Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0228508315055981
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4524-0035
lucassantospf@gmail.com
Ana Paula Graboski de Almeida
Mestranda em História pela UPF. Advogada.
Link Lattes: https://lattes.cnpq.br/5582812764615765
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5384-7315
anap.graboski@gmail.com
Resumo: A pesquisa tem como tema a(s) violência(s) de Estado, especialmente, a(s) cristalizada(s) no poder de polícia. A partir de leituras da criminologia crítica e do pensamento anarquista, bem como por meio do método abordagem hipotético-dedutivo, em conjunto com a técnica de pesquisa da documentação indireta, o estudo inicialmente apresenta um breve panorama sobre a cegueira e imobilismo social em relação às violências operacionalizadas pelas polícias brasileiras. Ademais, o ensaio busca complexificar o que seria violência legítima e/ou legal. Conclui-se que o poder de polícia é o operador direto do racismo enquanto dispositivo de intervenção mortal sobre os corpos matáveis e que é tarefa urgente enxergamos aquilo que se vê, ou seja, entender que a abolição da polícia não é mera utopia, mas condição de sobrevivência da juventude negra.
Palavras-chave: Violência Policial Colonial e Racista – Racismo – Abolicionismo Policial.
Abstract: The research focus on State violence(ies), especially those crystallized in the police power. Based on readings of critical criminology and anarchist thought, as well as through the hypothetical-deductive approach, with the research technique of indirect documentation, the study initially presents a brief overview of the blindness and social immobilism in relation to violence operationalized by the Brazilian police. Furthermore, the essay seeks to complex what would be legitimate and/or legal violence. It concludes that the police power is the direct operator of racism as a device of deadly intervention over killable bodies, and that it is an urgent task to see what is seen, i.e., to understand that the abolition of the police is not a mere utopia, but a condition for the survival of black youth.
Keywords: Colonial and Racist Police Violence – Racism – Police Abolitionism.
Em que pese a expansão e consolidação de pesquisas acadêmicas e universitárias sobre as violências policiais a partir da década de 1990 no Brasil, especialmente as promovidas pelos movimentos negros, feminismos e pela criminologia crítica, bem como as diversas resistências individuais e coletivas de movimentos sociais e familiares e amigos de vítimas diretas da violência de Estado, a cegueira em relação às violências policiais permanece intacta. Isso significa dizer que, em determinados corpos, a legitimação da violência é sustentada não apenas pelo ordenamento jurídico, sob o manto da legalidade, mas, também, socialmente a partir de uma estrutura social atravessada diretamente pelo racismo enquanto mecanismo de poder que constitui os Estados modernos.
O título deste artigo é inspirado na crítica de Luciano Góes, que sustenta que “a morte negra é sustentáculo da arquitetônica racista brasileira, manifestada no âmbito formal com o controle de nossos corpos por meio do uso da violência legítima, monopolizada pelo Estado e, por quase quatro séculos, legalizada pela escravidão”.(1) Em síntese, a presente pesquisa mobiliza como objeto de estudo a “legitimação” das violências policiais que tem como alvo preferencial a juventude negra, pobre e periférica do Brasil, portanto, visa-se debater, mesmo que brevemente, que tais violências articuladas pelo Estado não são inevitáveis, naturais e/ou normais em uma sociedade democrática e, por tais razões, é imprescindível questionar, denunciar e visibilizar as históricas violências operacionalizadas pelos aparatos policiais.
Amparados nas teses de autores como Piotr Kropotkin e Frantz Fanon, podemos afirmar que o militarismo e o assassinato do rebelde, do trabalhador e do escravizado, bem como o aprisionamento desses corpos são inerentes à constituição histórica do Estado europeu (KROPOTKIN, 2000) que, em suas colônias, aparece como instrumento que impede a revolta do colonizado e, mais que isso, fundamenta-se no direito soberano de matar (FANON, 1961).
A abolição formal da escravatura não impediu e não impedirá a distribuição de mortes e violências contra a população negra, posto que a estrutura/arquitetura do sistema penal brasileiro é construída, (re)construída e atualizada a partir de pilares escravocratas, só que agora envernizados sob o mito da democracia racial. A fixação com os corpos negros historicamente estimula anseios e medos ilógicos. O imaginário fantasioso das elites permanentemente foi constituído por uma obsessão paranoica no que concerne aos corpos negros. A referida paranoia alimentou o terror racial desde o Brasil Colônia a partir das teorias eugenistas do século XIX, dos territórios das cidades, bem como da emergência dos aparatos policiais. Não se pode olvidar que as narrativas atuais das violências urbanas, portanto, estão alicerçadas em critérios raciais (DUARTE; FREITAS, 2019, p. 174). Efetivamente, o Estado brasileiro se mostra como um legítimo herdeiro do princípio do poder soberano de matar que fundou o Estado moderno europeu, sendo, portanto, intrinsecamente racista (MORAES, 2020).
A legitimação da violência ampara-se em uma dinâmica que não se reduz apenas ao regime jurídico, essa legitimação também é medida a partir dos corpos (figura/perfil) da vítima das violências, se este corpo enquadra-se no rótulo de “bandido”, suspeito e/ou inimigo(2) social, em razão de sua cor de pele, classe e o local de moradia, a legitimidade da violência será infinitamente superior, o imobilismo social corrobora a manutenção do altíssimo índice de letalidade e violências (lato sensu) das polícias brasileiras, uma vez que a divisão maniqueísta do social permite a aceitação e naturalização da lógica de cidadãos inferiores que merecem a violência do Estado (KOHARA, 2017, p. 164).
O sistema penal tem como função principal a de definir condutas desviantes, partindo de conflitos sociais específicos, dessa maneira, este dispositivo de controle social não exerce outra função senão determinar quais vidas importam menos e devem ser consideradas como fontes de ameaça à coletividade, por consequência, acaba-se por autorizar a violência do Estado contra elas, e do “outro lado” quais vidas merecem respeito. A partir desses recortes abalizadamente seletivos e desiguais, os poderes Legislativo, Judiciário, o Ministério Público, as polícias e a prisão, elegem quais corpos e formas de vida são dignas de proteção ou tomadas como matáveis (PIRES, 2013, p. 223; RODRIGUES, 2021, p. 62).
Não há como não se reconhecer, neste sentido, o pacto denegatório do Estado e de grande parcela da população brasileira com as violências policiais que, evidentemente, não se tratam de desvios ou erros individuais, tampouco dependem de “bons” ou “maus” profissionais; as instituições policiais e suas culturas/mentalidades de organizações são intrinsecamente autoritárias e preservaram os ideários de Segurança e Justiça, fixados no extermínio de outrem. A legitimidade dessas atuações assenta-se em supostas legalidades e valores sociais; um conluio formado por muitos cúmplices, que não compreendem ou não querem compreender a intensidade dessas violências cotidianamente normalizadas (KOHARA, 2017, p. 172).
Nessa senda, a polícia comprova a realidade do poder do Estado. Sendo assim, não seria o caso de reivindicar o que significaria “violência legítima” e/ou excessos de “violência policial”? Do mesmo modo, questionar os aspectos que foram naturalizados no transcurso histórico? Se as forças policiais, de segurança privada e forças armadas, têm como instrumento de trabalho a sua relação inerente com a(s) violência(s), essas relações poderiam ser mensuradas exclusivamente por critérios de Direito? (AUGUSTO et al., 2020, p. 4-5).
As violências como dispositivo de garantia da manutenção da “ordem”, podem(riam) ser legítimas ou legais? Essas violências do Estado que matam uma parcela considerável da população brasileira, respaldadas no uso seletivo e elástico da força letal, direta, individual ou coletiva, para assegurar a “segurança pública” e o Direito à propriedade privada de “uns” em detrimento de “outros” (AUGUSTO et al., 2020, p. 2). Tais “noções” de violências legais ou legítimas, seriam a forma mais consciente de se cumprir com as “promessas” de garantia da ordem pública ou segurança pública? Seria indispensável essa atuação seletiva e que distribui violências desiguais sob uma parcela da população, para a manutenção dessas ilusões jurídicas? (SANTOS, 2021, p. 34).
O monopólio do uso da força estatal/pública trata-se de um poder amplo e ilimitado, que autoriza o uso da violência para se fazer cumprir a “legalidade”, e para o cumprimento da garantia da “ordem” e da “Justiça”, não há restrição do uso desse poder. A polícia se enxerga como responsável não apenas pela garantia de cumprimento das Leis do país, igualmente, pensa estar servindo à Justiça. Portanto, crer na contenção/limitação do poder de polícia pelo Estado, trata-se de acreditar que o Estado tem mais realidade do que a polícia (AUGUSTO et al., 2020, p. 7), não se necessita mais de Leis e normas para a contenção e/ou o “policiamento” da polícia, emerge-se a indispensabilidade de se compreender as práticas profundas dessas violências policiais exercidas contra a população.
Recentemente, a título de exemplo, surgiu no debate público brasileiro a possibilidade de uso de câmeras nos uniformes policiais como forma de contenção da violência policial. Ainda que esta seja uma alternativa aceita pela maioria da população, a crença na eficácia desse tipo de ação se assenta sobre a falta de consciência não apenas com relação ao racismo estatal, mas sobre a própria história do país e sobre o funcionamento do sistema. O roubo de vidas negras à mão armada nas periferias, tanto quanto o encarceramento em massa dessa parcela da população, são apenas as provas mais escancaradas e violentas de uma história que se repete no presente.
Ocorre que a própria ideia de controle da violência policial e de uma eventual responsabilização individual parte de uma premissa falsa. Assassinatos policiais não ficam impunes porque eles não vêm à tona, mas porque são parte de um sistema que nos diz que a morte de determinados corpos é razoável. Desde legisladores, juízes e promotores até jurados, cidadãos e veículos de mídia, todos os níveis da sociedade acriticamente apoiam e reproduzem o ponto de vista policial. Nessa atmosfera, a polícia pode matar sem medo da repercussão (COLETIVO CRIMETHINC, 2017).
Mais que isso, o poder de polícia é um poder que se emancipou das condições que o originaram. No processo histórico de apropriação da Justiça pelo Estado, a instituição de uma força armada funcionarizada se justificava como momento instituinte do poder, ao passo que, posteriormente, a instituição polícia encontra na manutenção do Direito a sua justificação (BENJAMIN, 1986; FOUCAULT, 2020). Efetivamente, a violência policial é fundadora do Direito. Não obstante:
Ao contrário do direito que, na “decisão” fixada no espaço e no tempo, reconhece uma categoria metafísica, graças à qual ele faz jus à crítica, a observação da instituição polícia não encontra nenhuma essência. Seu poder é amorfo, como é amorfa sua aparição espectral, inatacável e onipresente na vida dos países civilizados. E, apesar da polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é menos arrasador na monarquia absolutista – onde ela representa o poder do soberano, que reúne plenos poderes legislativos e executivos – do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma relação desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginável do poder (BENJAMIN, 1986, p. 167).
Hoje, a urgência de abolição da polícia – ou pelo menos de controle da letalidade policial – salta aos olhos frente ao fato de que não é nenhum exagero falar de um genocídio da população negra. Esse genocídio tem bases históricas que não dizem respeito somente ao Brasil, mas são inerentes à própria constituição dos Estados modernos, que têm no racismo de Estado uma das suas principais estratégias de exercício de poder sobre o corpo social. Há, em verdade “toda uma vida social que, se negra, será sempre limitada de alguma forma. [...] Sempre há um limitador que encerra a vida, seja impondo limites e não deixando viver, seja dando fim físico a ela, fazendo morrer” (RAMOS, 2020, p. 83).
Conclui-se que polícia cumpre a função de operadora direta do racismo enquanto dispositivo de intervenção mortal sobre alvos racializados, de tal maneira que os episódios de violência não são meros desvios de conduta ou excesso de força ocasional, mas o modo exato de funcionamento desse dispositivo (AUGUSTO, 2022). Não sejamos, por outro lado, ingênuos de supor que uma vez eliminado o racismo da equação social, a polícia assumiria a pacífica função de protetora da população. Em um sistema assentado sobre outras bases de opressão, outro seria o grupo vítima da violência policial, na medida em que a atividade-fim da polícia é a distribuição da violência. O ponto que ressaltamos é que o discurso antirracista não deve ignorar o papel da polícia na perpetuação do racismo e do genocídio da população negra. Mais que isso, trata-se de entender que a abolição da polícia não é mera utopia, mas condição de sobrevivência da juventude periférica.
Notas
1 O referido texto intitula-se “Ebó criminológico: malandragem epistêmica nos cruzos da criminologia da libertação negra”, publicado no Boletim IBCCRIM, em fevereiro de 2021 (GÓES, 2021).
2 Zaffaroni realiza uma abordagem precisa sobre a ideia de inimigo. A essência é ofertar um tratamento diferenciado para os definidos como inimigos, ou seja, nega-se o status de pessoa. Fundamentalmente, busca-se dividir os cidadãos (pessoas) e os inimigos (não pessoas), logo, quando se recebe o rótulo de inimigo (considera-se puramente uma pessoa perigosa), esses seres humanos são privados de determinados direitos individuais pelo Estado, visto que não são mais conhecidos como pessoas. Com isso, ao retirar o status de pessoa/sujeito de direitos, coisifica-se o inimigo e autoriza-se toda forma de controle e neutralização imposta sobre ele (ZAFFARONI, 2006, p. 11-12).
Referências
AUGUSTO, Acácio. Abolir a polícia, uma antipolítica. Kratos-Revista de la Red Iberoamericana de Filosofía Política, v. 1, n. 1, 2022.
AUGUSTO, Acácio (coord..) et al. Manifesto pela supressão geral da polícia nacional. Boletim (Anti)Segurança, n. 1. Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec); UNIFESP, 10 ago. 2020. Disponível em: https://lasintec.milharal.org/files/2020/08/Boletim-AntiSeguran%C3%A7a-n1-1.pdf. Acesso em: 02 set. 2022.
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie (escritos escolhidos). São Paulo: Cultrix; Editora da USP, 1986.
COLETIVO CRIMETHINC. Cameras everywhere, safety nowhere: why police body cameras won't make us safer. 2017. Disponível em: https://pt.crimethinc.com/2017/03/16/cameras-everywhere-safety-nowhere-why-police-body-cameras-wont-make-us-safer. 2017. Acesso em: 03 set. 2022.
DUARTE, Evandro Piza; FREITAS, Felipe da Silva. Corpos negros sob a perseguição do Estado: políticas de drogas, racismo e direitos humanos no Brasil. Revista Direito Público, n. 89, p. 174, 2019.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Tradução de Serafim Ferreira Lisboa. Lisboa: Ulisseia, 1961.
FOUCAULT, Michel. Teoria e instituições penais: curso no Collège de France (1971-1972). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.
GÓES, Luciano. Ebó criminológico: malandragem epistêmica nos cruzos da criminologia da libertação negra. Boletim IBCCRIM, ano 29, n. 339, fev. 2021.
KOHARA, Paulo Keishi Ichimura. Letalidade policial e segurança pública: uma análise metapsicológica da violência legítima. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 130, ano 25, p. 145-176, abr. 2017.
KROPOTKIN, Piotr. O Estado e seu papel histórico. São Paulo: Imaginário, 2000.
MORAES, Wallace de. As origens do necro-racista-estado no Brasil: crítica desde uma perspectiva decolonial e libertária. Revista Estudos Libertários, v. 2, n. 6, p. 5-27, 2020.
PIRES, Thula Rafaela Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos? 2013, 23 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
RAMOS, Paulo César. Quantas vidas contam para um genocídio? In: OLIVEIRA, Vanessa et al. (eds.). De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro. São Paulo: Elefante, 2020.
RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
SANTOS, Lucas da Silva. Polícia versus Democracia: a produção acadêmica sobre violência policial no Brasil. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el derecho penal. Bueno Aires: Ediar, 2006.
Recebido em: 06.09.2022 - Aprovado em: 22.09.2022 - Versão final: 11.10.2022
Thainá Barroso Vieira Costa
Graduanda do 10º período no curso de Direito pela UFC. Coordenadora Discente do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais da UFC.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0290579373927524
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3822-1709
thainabvcosta@gmail.com
Resumo: O presente artigo busca, por meio do conceito de rotulacionismo da Criminologia Crítica, compreender os processos raciais, sociais e de gênero que legitimam a violação da proteção da inviolabilidade do domicílio nos casos de mulheres – em sua maioria pretas e pobres – presas em flagrante em suas próprias casas pelo crime de tráfico de drogas.
Palavras-chave: Inviolabilidade domiciliar – Mulheres – Rotulacionismo.
Abstract: This article seeks, through the concept of the labeling approach of the Critical Criminology theory, to understand the racial, social and gender processes that legitimize the violation of the protection of the inviolability of the home in the cases of women – mostly black and poor – arrested in their own homes for the crime of drug trafficking.
Keywords: Inviolability of the home – Women – Labeling.
1. Introdução
A inviolabilidade do domicílio é uma das vertentes do direito à privacidade, tendo sido erigida pela Constituição Federal como direito fundamental. Não obstante, na prática, esse direito é constantemente mitigado, notadamente para legitimar incursões policiais em residências e prisões em flagrante. Apesar de a jurisprudência dos Tribunais Superiores estar evoluindo para impor limites à relativização dessa cláusula de proteção, as decisões de muitos Juízes brasileiros reiteradamente desnaturam a inviolabilidade domiciliar a partir da interpretação da circunstância do flagrante delito (mormente em crimes permanentes, como o tráfico de drogas) em favor da persecução penal.
Esse cenário, todavia, levanta questões: como uma garantia de tão grande importância pode ser tão frequentemente violada? Aliás, quem são os principais destinatários dessas arbitrariedades? As estatísticas indicam um palpite: a maior parte das pessoas encarceradas por tráfico de drogas são negras e pobres. Somado o aspecto gênero, verifica-se uma conjuntura parecida, mas com ainda mais estigma, advindo de uma sociedade patriarcal e sexista.
Nessa ótica, destaca-se a busca por teorias, no ramo da Criminologia, que expliquem a naturalização desses abusos por parte de agentes estatais cometidos em desfavor de uma parcela específica da população, com o fito de efetivamente conseguir combatê-los.
Sob esse viés, o rotulacionismo busca explicar a legitimação de sanções estigmatizantes a partir do conceito de criminalidade como um status social atribuído a determinados sujeitos por meio da seleção dos indivíduos estigmatizados no processo de criminalização das sociedades capitalistas.
O presente artigo busca, mediante uma análise crítica e do conceito de etiquetamento, compreender os processos raciais, sociais e de gênero por trás da violação da proteção da inviolabilidade do domicílio nos casos de mulheres presas em flagrante pelo crime de tráfico de drogas.
2. Inviolabilidade domiciliar, tráfico de drogas e gênero
No Brasil, a doutrina discorre acerca da inviolabilidade domiciliar, garantia destinada à proteção dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, majoritariamente a partir da redação do enunciado normativo do art. 5º, XI, da Constituição Federal, que dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Desastre e socorro seriam situações emergenciais que irradiam sentido para a interpretação do “flagrante”. Dessa forma, não obstante, no direito brasileiro, o termo "flagrante delito" abranger os cenários de flagrante próprio, impróprio e permanente, nem toda hipótese estaria albergada como fundamento idôneo de restrição, mas sim somente as com esse caráter de urgência (PINHEIRO, 2016, p. 67).
Outro ponto que pode ser depreendido é que as restrições diretamente constitucionais da inviolabilidade deveriam ser utilizadas em favor do destinatário da proteção (SILVA, 2001, p. 437), e não do Estado. Assim, por exemplo, a restrição do flagrante delito deveria operar em favor do próprio titular da residência, tal como para salvá-lo de um assaltante que o fizesse refém (PINHEIRO, 2016, p. 63).
A restrição da inviolabilidade da morada ao interesse da Justiça, e não para proteção do morador, portanto, apenas poderia ser admitida durante o dia e com mandado judicial, expedido em conformidade com as regras processuais da busca e apreensão. Todavia, na prática, verifica-se que o ingresso de agentes policiais em residências, muitas vezes, é embasado na cláusula restritiva “flagrante delito”.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal fixou o tema 280, o qual apresenta a tese de que: “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito [...]”. Em sequência, o Superior Tribunal de Justiça também vem firmando balizas para a apreciação das fundadas razões, estabelecendo que a suspeita deverá estar embasada em elementos concretos e não pode se fundar em alegações genéricas.
Entretanto, as decisões de muitos Juízes brasileiros, a despeito dos limites assentados pelos Tribunais Superiores, reiteradamente interpretam a circunstância do flagrante delito, notadamente em relação ao flagrante permanente, em favor da persecução penal, com base em elementos subjetivos, desnaturando em termos absolutos a proteção da inviolabilidade domiciliar (PINHEIRO, 2016, p. 63).
Um dos tipos penais que se notabiliza nesse cenário é o de tráfico de drogas, que, por dispor de verbos como “guardar”, é um delito classificado como permanente, de maneira que a situação flagrancial se protrai no tempo. Dessa forma, quando, por exemplo, uma composição policial invade uma residência em busca de drogas e as localiza, o Estado diz que a intervenção era justificada porque a guarda de drogas configuraria como uma situação de flagrante (PINHEIRO, 2016, p. 68), em que pese a absoluta ausência do caráter emergencial que seria necessário e até mesmo de qualquer elemento objetivo que embasaria suspeitas acerca do cometimento do delito anteriores à entrada. Esse panorama, embora não seja o recomendado pelos Tribunais Superiores, é frequente na prática forense e usualmente aceito por Juízes de 1ª instância e Tribunais locais.
Tal conjuntura afeta, de maneira especial, a população feminina, cuja taxa de encarceramento, principalmente em relação a crimes relacionados à política criminal de drogas, vem crescendo expressivamente.(1) Verifica-se, preliminarmente, que a estrutura do tráfico de entorpecentes reflete a do mercado formal de trabalho, de modo que está presente em medidas similares os graus de exploração do trabalho feminino, cabendo às mulheres, em sua maioria, posições subalternas (BARCINSKI, 2012, p. 54) e, portanto, mais vulneráveis às agências de controle.
Além disso, a mulher, diante do processo da feminização da pobreza,(2) vê a rede de substâncias ilícitas como uma possibilidade de exercer simultaneamente papéis produtivos e reprodutivos, intentando cumprir a normativa socialmente estabelecida (TORRES ANGARITA, 2007, p. 38), de maneira que, aliando a fonte de renda com o cuidado dos filhos e da casa, a maior parte das mulheres envolvidas com a rede de drogas trabalha em suas próprias residências.
Esse contexto demonstra como a deturpação do princípio da inviolabilidade domiciliar, a partir da interpretação viciada da cláusula restritiva do flagrante delito em favor da persecução penal, pode afetar de maneira própria o público feminino, o qual permanece mais dentro de suas próprias casas e está mais vulnerável ao narcotráfico, tendo seus direitos desrespeitados e abusos contra elas legitimados.
3. Rotulacionismo e criminologia crítica no contexto brasileiro
A legitimação dos abusos perpetrados por meio da distorção da proteção da inviolabilidade domiciliar, a qual afeta, de maneira particular, as mulheres que estão envolvidas com o mercado de substâncias entorpecentes, motiva a busca por teorias, na Criminologia, que expliquem a naturalização de arbitrariedades.
O labeling approach foi teoria precursora ao tratar sobre o conceito de rotulacionismo, que objetiva compreender o curso do etiquetamento de indivíduos, a partir do qual, quando a sociedade e o Poder Público decidem que determinada pessoa é delinquente, eles legitimam que se tome contra ela atitudes que não seriam adotadas normalmente (SHECAIRA, 2013, p. 294).
A recepção alemã do labeling approach, em especial a partir de Fritz Sack, teria produzido uma ampliação da fundamentação teórica original, de maneira a considerar a criminalidade como um status atribuído com base na estratificação social (CIRINO DOS SANTOS, 2021, p. 182-183). Percebe-se, portanto, avanços em relação ao próprio conceito de rotulacionismo até o adotado pela Criminologia Crítica (CIRINO DOS SANTOS, 2021, p. 186-187).
Para a Crítica, o labeling acerta ao definir o desvio como aplicação de rótulos por grupos de poder contra subordinados, mas falha ao não identificar esses grupos no contexto dos conflitos de classes. Tal identificação, portanto, reclama uma análise socioestrutural dos processos de desigualdades econômica e política da sociedade capitalista (CIRINO DOS SANTOS, 2021, p. 189-190).
A partir dessa análise, vê-se que as maiores chances de ser rotulado como criminoso estão, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social. O pertencimento a uma classe social subalterna, que nas criminologias positivista e liberal é indicado como causa da criminalidade, revela ser, antes, conotação sobre a base da qual o status de criminoso é atribuído (BARATTA, 2002, p. 165).
O classismo de tal conjuntura se demonstra somado ao racismo presente na sociedade brasileira. No período de junho a dezembro de 2021, 67,34% das pessoas privadas de liberdades se consideravam negros ou pardos (BRASIL, 2021). Outrossim, nos dados mais recentes obtidos quanto a este critério, em junho de 2017, 79,3% dos presos brasileiros tinham até o ensino médio incompleto, um indicador de baixa renda (BRASIL, 2019, p. 34). Quando é considerado, ainda, o fator gênero, verifica-se a interseccionalidade das opressões: em análise do perfil das mulheres encarceradas, percebe-se que a maioria das custodiadas também são pretas ou pardas (55,5%) (BRASIL, 2021), pobres e com baixa escolaridade (aproximadamente 66% delas têm, no máximo, o ensino fundamental completo) (BRASIL, 2017, p. 43).
Esses indivíduos tendem a ser mais rotulados não porque têm uma tendência a cometer crimes, mas porque têm maiores chances de serem categorizados como delinquentes. Para Michelle Alexander (2017, p. 190), pessoas brancas guardam mais propensão a se envolverem em crimes ligados a drogas do que não brancos. As penitenciárias, todavia, transbordam pretos e pardos presos por tais delitos. Esse panorama se desenvolve porque as possibilidades de uma pessoa resultar etiquetada, com suas graves implicações, ainda maiores para mulheres, como será demonstrado adiante, encontram-se distribuídas de acordo com as leis de um second code, constituído por uma imagem estereotipada da criminalidade (ANDRADE, 2003, p. 54).
Assim, o entendimento do rotulacionismo é a compreensão acerca de quem tem o poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização. Esse etiquetamento, somado a opressões de classe, raça e, ainda, gênero, resulta em estigmatização e criminalização de pessoas pobres e negras, com o crescente realce, também, para mulheres, em todo o mundo, inclusive no Brasil.
4. O etiquetamento em razão de raça, classe e gênero e a (in)violabilidade domiciliar
De fato, as consequências da construção de uma imagem categorizada de criminalidade, que advém do rotulacionismo, manifesta-se na legitimação das reiteradas violações ao princípio constitucional da inviolabilidade de domicílio, como o que ocorre quando órgãos policiais ingressam em residências, sem determinação judicial, sob o pretexto de proteger a sociedade de supostas atitudes suspeitas e encontrar substâncias ilícitas.
Visualizar a seletividade dessas condutas estatais e quem são os destinatários delas não é difícil. Abordagens de composições policiais que ingressam em casas são costumeiras, sobretudo, em comunidades periféricas (PINHEIRO, 2016, p. 26) e quase nunca são vistas em bairros mais ricos. A atitude suspeita alegada pelos agentes policiais, sistematicamente, na realidade, consiste em características pessoais e sociais do indivíduo, que, na maior parte das vezes, é pobre, negro e encontra-se nos estratos inferiores das redes de tráfico de drogas, estando mais vulnerável.
Nesse sentido, adicionado o quesito gênero, as mulheres, pobres e negras, como observado nos dados da população feminina encarcerada, usualmente em posições precarizadas no mercado de substâncias entorpecentes, estão ainda mais suscetíveis às arbitrariedades das forças policiais. Esse contexto é mais grave quando é considerado o fato de que o público feminino, em tese, com a afronta ao princípio da inviolabilidade do domicílio, encontra-se ainda mais exposto, haja vista as expectativas sociais de que mulheres permaneçam em suas residências.
Assim, nos termos do rotulacionismo, o ingresso das composições policiais na residência dessas mulheres demonstra que as ingerências do sistema penal foram historicamente formatadas para o controle da população negra, nesse caso especificamente a feminina, de maneira a lhes monitorar em uma sociedade na qual predomina os interesses patriarcalistas de indivíduos brancos (FLAUZINA, 2006, p. 132). A partir desses interesses, nos estratos sociais inferiores, o comportamento criminoso é considerado fenômeno normal (CIRINO DOS SANTOS, 2021, p. 275), o que legitima o abuso perpetrado pela invasão do domicílio.
A rotulação do público feminino, no entanto, ainda encontra mais complexidades. Por um lado, a justificação das arbitrariedades incorridas ocorre por elas serem negras e pobres. Por outro, o fator gênero também é muitas vezes utilizado como razão para agravar o tratamento punitivo concedido, com fundamentos em premissas machistas. Isso ocorre porque, por mais que a ideologia dominante presuma o cometimento de crimes por elas, simultaneamente é socialmente menos esperado que mulheres se envolvam com essas mesmas atividades ilícitas, gerando uma coação moral maior e que poderá ter como consequência a maior punição de uma mulher que comete o mesmo tipo de crime que um homem (CARLEN, 1983, p. 34).
Nesse sentido, a mulher que pratica um delito, tal como estar envolvida com o narcotráfico, é vista pela ideologia dominante como tendo transgredido a ordem em dois níveis: a ordem da sociedade e a ordem da família, abandonando seu papel de mãe e esposa. Essas mulheres são criminalizadas por sua conduta ilícita e também estigmatizadas pela violação do comportamento socialmente esperado. A rotulação da mulher como transgressora dupla da ordem dominante, em um ciclo vicioso, continua a justificar que sejam praticados contra essas mulheres abusos, tal como a invasão de seus domicílios.
A deturpação do princípio da inviolabilidade domiciliar encontra, na mulher que está envolvida com o tráfico de drogas, a naturalização por parte do estado e da sociedade, em razão da opressão interseccional que existe. Essa mulher é etiquetada como criminosa e como, em geral, mãe ou esposa ruim, de maneira que as agências de controle social invadem a sua intimidade para prendê-la em flagrante (o que não aconteceria se elas fossem de classes sociais mais altas do corpo social e do próprio mercado de tráfico de drogas, usualmente compostos por homens, ricos e brancos).
5. Conclusões
O tema em estudo se faz de extrema relevância, haja vista as reiteradas relativizações da proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar notadamente para legitimar investidas policiais em residências e prisões em flagrante, regularmente pelo delito de tráfico de drogas. A legitimação de tais arbitrariedades ilustra a facilidade de aplicação de sanções estigmatizantes a determinados indivíduos, mormente em razão de critérios como raça, classe e gênero, aludindo ao conceito de rotulacionismo.
Em tal contexto, fatores interseccionais influenciam o tratamento deferido pelas agências de controle, entre os quais, além do gênero em si, destacam-se classe e raça. Assim, o etiquetamento de mulheres, negras e pobres como criminosas que mereceriam a violação de seus direitos legitima a invasão de suas casas por policiais para a busca de drogas.
Tal rotulação, ainda, recai de maneira mais incisiva sobre as mulheres também em razão da violação do comportamento socialmente esperado delas, e, no que se refere à deturpação do princípio da inviolabilidade domiciliar, afeta-as de maneira particular, haja vista que, em razão dessas mesmas expectativas sociais e patriarcais, as mulheres envolvidas com o tráfico de drogas tendem a estar em posições precarizadas e mais vulneráveis e, muitas vezes, permanecem mais dentro de suas próprias casas.
Notas
1 Conforme dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o encarceramento feminino percebeu, do ano 2000 até o ano 2021, um crescimento de 446%. Durante o período de julho a dezembro de 2021, o crime de tráfico de drogas foi o principal motivador da privação de liberdades das mulheres, sendo responsável por aproximadamente 55,9% das prisões femininas.
2 Esse conceito representa a ideia de que as mulheres vêm se tornando ao longo do tempo mais pobres que os homens, um fenômeno que ocorre primordialmente quando a mulher passa a ter a responsabilização do sustento da família. Além disso, a feminização da pobreza é ainda mais consolidada com a forma que o gênero feminino está presente no mercado de trabalho (maior proporção de mulheres trabalhando em tempo parcial ou em regime de trabalho temporário, a desigualdade salarial, maior participação no trabalho informal por parte das mulheres, etc.).
Referências
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução de Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 3ª ed. 2002.
BARCINSKI, Mariana. Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina. Contextos Clínicos, v. 5, n. 1, p. 52-61, 2012.
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Infopen Mulheres. Thandara Santos (org.); Marlene Inês da Rosa (colab.) et al. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública; Departamento Penitenciário Nacional, 2017.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Atualização jun. 2017. Marcos Vinícius Moura (org.). Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública; Departamento Penitenciário Nacional, 2019.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Período de julho a dezembro de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso em: 10 out. 2022.
CARLEN, Pat. Women’s imprisonment: a study in social control. London: Routledge & Kegan Paul, 1983.
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2021.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
PINHEIRO, Lucas Corrêa Abrantes. Fundamentos teórico-constitucionais de proteção ao domicílio em flagrantes de crime permanente: análise do tema 280 da sistemática da repercussão geral à luz da teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. 2016. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2016.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
TORRES ANGARITA, Andreina Isabel. Drogas y criminalidad femenina en Ecuador: el amor en la experiencia de las mulas. Quito: FLACSO, 2007.
Recebido em: 07.09.2022 - Aprovado em: 02.10.2022 - Versão final: 17.10.2022
Karyna Batista Sposato
Doutora em Direito pela UFBA. Professora de Direito na UFS. Coordenadora dos Observatórios Sociais na UFS.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6457328773061506
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8764-7258
karyna.sposato@gmail.com
Victória Cruz Moitinho
Mestranda e graduada em Direito pela UFS. Advogada
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4570941238468519
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5211-0090
vick_moitinho@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho busca analisar a relação da violência policial com o racismo no Brasil a partir dos dados disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que atestam que as principais vítimas das polícias nos últimos anos correspondem à população não branca (pretos e pardos). Como se observará, tais dados refletem uma política criminal de controle social, decorrente do exercício da necropolítica e da relação de inimizade.
Palavras-chave: Raça – Violência Policial – Letalidade – Polícia – Racismo.
Abstract: The research seeks to analyze the relationship between police violence and racism in Brazil based on data provided by the Brazilian Public Security Forum (FBSP), which attest that the main victims of the police in recent years correspond to the non-white population. As will be seen, such data reflect a criminal policy of social control, resulting from the exercise of necropolitics and the relationship of enmity.
Keywords: Race – Policy Violence – Letality – Policy – Racism.
1. Violência policial no Brasil
Nas palavras de Luiz Soares (2019, p. 14), a violência não é apenas sintoma, reflexo ou consequência. Ela tem sua própria realidade, ou melhor, cria suas próprias e complexas dinâmicas, quaisquer que sejam suas origens (SOARES, 2019, p. 14). A violência não é uma novidade, sobretudo no Brasil, que registrou mais vítimas de mortes violentas intencionais (ou pessoas assassinadas) em cinco anos do que a Guerra na Síria no mesmo período. Segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2016), entre março de 2011 a novembro de 2015, foram assassinadas 279.567 mil pessoas no Brasil, em comparação com as 256.124 pessoas mortas na Síria.
A violência, ao menos, a violência controlada, passa a ser exercida pelas polícias brasileiras (Civil e Militar) sob o fundamento do monopólio exclusivo da força. De acordo com Bergalli e Ramírez (2015, p. 94), a função da polícia, surgida no Estado Moderno, é a sua integração como parte da organização política para a manutenção da ordem. Os autores distinguem as atribuições das forças armadas e das polícias, argumentando que àquela compete a salvaguarda da ordem externa correspondente ao Estado; enquanto à polícia, compete a ordem interna, ou seja, dos nacionais (BERGALLI; RAMÍREZ, 2015, p. 94).
As forças armadas são responsáveis para lidar com o inimigo, já a polícia, com os nacionais, com os próprios cidadãos do Estado. Esta seria a diferença de função entre as duas instituições do ponto de vista do controle e, por conseguinte, também a diferença no que tange aos meios utilizados. Em um caso, dirigida ao extermínio do inimigo, em outro, para submeter os desordenados (BERGALLI; RAMÍREZ, 2015, p. 94-95).
No Brasil, as instituições policiais são regidas pelo art. 144, da Constituição brasileira, que dispõe que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Segundo Luiz Soares (2019, p. 37-38), as polícias são destinadas a garantir direitos e liberdades dos cidadãos que estejam sendo violados ou na iminência de sê-lo, por meios pacíficos ou por uso comedido de força, associado à mediação de conflitos, nos marcos da legalidade e em estrita observância dos Direitos Humanos.
Muito embora as agências de segurança pública tenham funções delimitadas legalmente, sabe-se que, no Brasil, o problema do uso indiscriminado da força, dos relatos sobre violência policial, bem como das denúncias envolvendo tortura e corrupção, perduram ao longo dos anos. Conforme Rosa (2012, p. 54), as instituições responsáveis pela manutenção da ordem só contribuem para o aumento da violência, extrapolando constantemente a sua especificidade – o uso da força. Contudo, é importante frisar que, ainda assim, não é possível generalizar a atuação das instituições policiais, apesar dos traços comuns a muitos segmentos (ROSA, 2012, p. 55). Não é papel do presente estudo estigmatizar os profissionais da segurança pública, tampouco retirar a importância do serviço prestado pelas polícias.
Cabe aqui destacar, tão apenas, a reprodução por parte das agências de controle formal do racismo estrutural já entranhado, bem como o papel desempenhado pelas polícias no estado de exceção, a partir do manejo da necropolítica, ou seja, do poder de determinar quem deve morrer. Nesse sentido, sabe-se que as instituições policiais são as que mais detêm uma ampla gama de discricionariedade, vindo a decidir sobre quem são os suspeitos, quais bairros, lugares e demais critérios aptos a fornecer um indício de criminalidade (REIS, 2006). Ademais, são as polícias a força de combate mais letal no Estado, tendo em vista o seu poder bélico.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2019), em 2018, 6.220 pessoas foram vítimas de violência policial no país, sendo 75,4% negras; 99,3% correspondente ao gênero masculino e 77,9%, entre a faixa etária de 15 a 29 anos. No ano de 2019, esse total sobe para 6.357 pessoas vítimas de intervenção policial (FBSP, 2020). Neste total, 79,1% representam pessoas negras, sendo 99,2% homens; e 74,3% jovens até 29 anos de idade. Durante a pandemia, como aponta o 15º Anuário produzido pelo FBSP (2021), cerca de 6.416 foram vitimizadas pela polícia no ano de 2020: 78,9% negros; 76,2% entre 12 e 29 anos; e 98,4% do sexo masculino.
Como é possível observar, as taxas referentes à letalidade policial no Brasil nos últimos anos apontam não para uma coincidência, e sim para a configuração, o exercício e o controle discricionário e seletivo do poder punitivo, tendo em vista o perfil dos vitimizados. A violência policial tem cor. Ela representa o modus operandi das agências de segurança pública, estas que detêm o poder de matar em um estado de exceção permanente.
2. A bala não erra o alvo
O racismo não se restringe a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado das instituições (ALMEIDA, 2019, p. 37). Conforme Silvio de Almeida (2019, p. 32), pode-se dizer que racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem. Por se constituírem como parte do mundo, as instituições também operam com base na raça, por meio de práticas discriminatórias.
Uma vez que o Estado é a forma política(1) do mundo contemporâneo, o racismo não poderia se reproduzir se, ao mesmo tempo, não alimentasse e fosse também alimentado pelas estruturas estatais (ALMEIDA, 2019, p. 87). O racismo atua como fator determinante das ações estatais, estas que visam sobretudo a perseguição e o controle de parcelas da sociedade tidas como perigosas, sendo uma prova disso os dados referentes à abordagem policial no Brasil, divulgados pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), e aqueles produzidos pela pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ) acerca das prisões oriundas do reconhecimento fotográfico.
Segundo o relatório produzido pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Data Lab, em 2022, a cada 10 pessoas abordadas pela polícia, oito são negras. Isto é, pessoas pretas e pardas detêm o risco 4,5 vezes maior de sofrer uma abordagem policial, em comparação com uma pessoa branca. Além disso, cerca de 83% dos presos (G1, 2021) injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil também são negros, o que referenda o controle racial exercido pelo Estado a partir das agências de segurança pública. Destarte, de acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2020), das 599.932 pessoas presas em que há informação da cor/raça disponível, constata-se que 397.816 são pretos e pardos, ou seja, cerca de 56% da população carcerária brasileira.
Tais dados se justificam pela incorporação do racismo e dos elementos que conformam a raça no Brasil como “centro fundamental da constituição dos sistemas de punição” (RAMOS, 2020, p. 18). É o racismo que orienta a atuação dos instrumentos que operam na realização de fenômenos diversos da violência, e que conforma os produtos discursivos numa composição que vai das abordagens policiais às mortes e às prisões de jovens negros das favelas e acaba nas notícias cotidianas sobre guerra às drogas e à criminalidade (RAMOS, 2020, p. 18).
Em um estudo realizado por Dyane Reis, ainda em 2002, constatou-se que a abordagem policial admitida com base na fundada suspeita é carregada de valores e pré-noções de cunho discriminatório. A partir de entrevista coletada junto a policiais militares, foi possível demonstrar que pessoas pretas figuravam como suspeitas em potencial em virtude de características fenotípicas e sociais, associadas ao estigma da periferia. Como aponta a autora, o que mais se destacava nos relatos era o cabelo rastafari, o jeito de andar meio gingado, tatuagens no corpo, tipo físico denominado malhado, com correntes de ouro e brinco na orelha (REIS, 2006, p. 190).
Em seu livro, Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro, Vera Malaguti Batista (2020, p. 102) também demonstra que a atitude suspeita dos policiais não se relaciona a nenhum ato suspeito, não sendo atributo de fazer algo suspeito, mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social. Vera Batista (2020, p. 104) realiza ainda um paralelo entre o artifício da atitude suspeita e a denominada estratégia de suspeição generalizada, de Sidney Chalhoub, utilizada para o controle das populações recém-libertas no final do século XIX.
No final do século XX essa estratégia continua entranhada na cultura e nos procedimentos policiais como forma de manter sob o controle os deslocamentos e a circulação pela cidade de segmentos sociais muito bem delimitados. A atitude suspeita carrega um forte conteúdo de seletividade e estigmatização (BATISTA, 2020, p. 104).
A partir da ótica da biopolítica, tem-se que a função do racismo seria permitir a categorização dos indivíduos entre aqueles que seriam mais humanos que outros, o que possibilitaria, para Foucault (2020, p. 215), “a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização”. Para Mbembe (2020, p. 17), o poder de matar é a expressão máxima da soberania, sendo o estado de exceção e as relações de inimizade a sua base normativa.
O poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo (MBEMBE, 2020, p 17). Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, o poder se define em relação a um campo biológico, do qual toma o controle e no qual se inscreve (MBEMBE, 2020, p. 17). As agências de segurança pública, mais precisamente, as polícias Civil e Militar, deteriam esse poder de matar, vindo a exercer o controle sobre os corpos negros.
Por conseguinte, consistiria a soberania no poder de fabricar toda uma série de pessoas que, por definição, vivem no limite da vida, ou no limite externo da vida – pessoas para quem viver é um constante acerto de contas com a morte, em condições em que a própria morte tende cada vez mais a se tornar algo espectral, tanto em termos de como é sofrida, quanto pela forma como é infligida (MBEMBE, 2021, p. 68). De regra, trata-se de uma morte à qual ninguém se sente obrigado a buscar responsabilização, tendo em vista ser uma morte sem valor.
O poder necropolítico opera por uma espécie de reversão entre a vida e a morte, como se a vida não fosse outra coisa senão o veículo da morte. Ele busca sempre abolir a distinção entre meios e fins. É por essa razão que lhe são indiferentes os sinais objetivos de crueldade. Aos seus olhos, o crime constitui parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos é, em princípio, desprovida de qualquer simbolismo. [...] Em grande medida, o racismo é o motor do princípio necropolítico, na medida em que esse é o nome dado à destruição organizada, é o nome de uma economia sacrifical cujo funcionamento exige, de um lado, redução generalizada do preço da vida e, de outro, a familiarização com a perda (MBEMBE, 2021, p. 69).
Conforme Juliana Borges (2021, p. 57), o estereótipo formulado no período pré-abolicionista perpetua uma lógica de exclusão e consequente extermínio da população negra brasileira. É o racismo o motor da política de genocídio empreendido pelas agências de segurança pública, como demonstram as taxas de letalidade policial no Brasil, produzidas e divulgadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entre os anos de 2018 a 2020.
Mais do que exercer o poder de matar, ou, em termo mais preciso, a necropolítica, as polícias brasileiras referendam uma política de diferenciação entre os ditos cidadãos, detentores de direitos e garantias fundamentais, e os inimigos, estes carentes de qualquer sentido de humanidade. Como reporta Mbembe (2021, p. 65), o vínculo de inimizade justifica a relação ativa de dissociação da qual a guerra é uma das expressões violentas, a fim de tornar possível instituir e normalizar a ideia de que o poder só pode ser obtido e exercido à custa da vida dos outros.
Dito isso, tem-se que a inimizade, como base operacional do estado de exceção, entrelaça-se com a soberania para forjar um Estado racial, este que atinge sua função primordial no sistema de justiça criminal, com a segregação, neutralização e, no extremo, a eliminação dos sujeitos não brancos, como demonstrado pelos dados constantes no trabalho, em especial, aqueles referentes à vitimização policial no Brasil.
O discurso do inimigo torna possível a mobilização do direito de guerra no próprio Estado. O inimigo se reveste como esse outro que põe em risco a existência de uma gama de valores, representando uma suposta ameaça à segurança e à ordem. Assim, tem-se que, com base na raça e, portanto, no racismo, o inimigo passa a ser vislumbrado enquanto uma pessoa não branca, vindo a legitimar as ações repressivas das instituições policiais no combate ao crime e, em especial, à guerra às drogas.
Reportando às palavras de Conceição Evaristo (2008), a bala não erra o alvo, porque no escuro um corpo negro bambeia e dança.
Notas
1 “A reprodução do capitalismo se estrutura por meio de formas sociais necessárias e específicas, que constituem o núcleo de sua própria sociabilidade. As sociedades de acumulação do capital, com antagonismo entre capital e trabalho, giram em torno de formas sociais como valor, mercadoria e subjetividade jurídica [...]. A forma-valor somente se estabelece quando ao mesmo tempo se apresenta, enreda-se, enlaça-se e reflete-se em várias outras formas sociais correlatas. [...] a forma política estatal é também um tipo específico de aparato social terceiro e necessário em face da própria relação de circulação e reprodução econômica capitalista.” (MASCARO, 2013 apud ALMEIDA, 2019, p. 222).
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
BATISTA, Vera Mallaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed., 3. reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2020.
BERGALLI, Roberto; RAMÍREZ, Juan Bustos. O pensamento criminológico II: estado e controle. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Jandaíra, 2021.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008
DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional – SISDEPEN. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen. Acesso em: 08 set. 2022.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2016. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-11-2016-retificado.pdf. Acesso em: 08 set. 2022.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). 13º Anuário de Segurança Pública. 2019. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Infogra%CC%81fico-2019-FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em: 08 set. 2022.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). 14º Anuário de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-14. Acesso em: 08 set. 2022.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). 15º Anuário de Segurança Pública. 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-15. Acesso em: 08 set. 2022.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.
G1. Exclusivo: 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil são negros. G1, 21 fev. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/02/21/exclusivo-83percent-dos-presos-injustamente-por-reconhecimento-fotografico-no-brasil-sao-negros.ghtml. Acesso em: 04 ago. 2022.
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA (IDDD); DATA LAB. Relatório Por que eu? Como o racismo faz com que as pessoas negras sejam o perfil das abordagens. 2022. Disponível em: https://datalabe.org/relatorio-por-que-eu. Acesso em: 07 ago. 2022.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 5. reimp. São Paulo: N-1 edições, 2020.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 edições, 2021.
RAMOS, Sílvia. Racismo, motor da violência: um ano da Rede de Observatórios da Segurança. / Sílvia Ramos et al. (coord.). Rio de Janeiro: Anabela Paiva; Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC), 2020. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/1154/o/Racismo-motor-da-violencia.pdf?1599239741. Acesso em: 07 ago. 2022.
REIS, Dyane B. A marca de Caim: as características que identificam o “suspeito”, segundo relatos de policiais militares. Caderno CRH, v. 15, n. 36, (2002), publ. 2006. DOI: 10.9771/ccrh.v15i36.18627. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/18627. Acesso em: 8 set. 2022.
ROSA, Susel Oliveia da. A biopolítica e a vida que se pode deixar morrer. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.
Recebido em: 09.09.2022 - Aprovado em: 25.09.2022 - Versão final: 09.10.2022
Priscila Coelho
Doutoranda e Mestra em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da FGV Direito SP. Beneficiária da Bolsa Mário Henrique Simonsen de Ensino e Pesquisa. Assessora acadêmica da FGV Direito SP. Editora-Adjunta da Revista Jurídica Profissional. Especialista em proporcionalidade penal no Programa Fazendo Justiça (PNUD/CNJ).
Link lattes: http://lattes.cnpq.br/6467908944672969
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8391-0963
priscila.coelho@fgv.edu.br
Resumo: Este texto pretende discutir a questão racial no sistema de justiça criminal a partir da problematização sobre o perfil de quem ocupa cargos de poder e decisão na magistratura. O foco no poder judiciário se justifica pela atuação decisória sobre a manutenção do aprisionamento ou concessão da liberdade. O objetivo é compreender a sub-representação de pessoas negras no judiciário e o seu impacto na sobrerrepresentação de pessoas negras nas prisões. O texto conclui apontando a necessidade de investigar a questão racial a partir da atividade judicial, compreendendo o seu impacto na alteração ou permanência de situações de desigualdade.
Palavras-chave: Gênero – Raça – Sistema de justiça criminal – Mulheres negras na magistratura criminal – Juízas negras.
Abstract: This text intends to discuss the racial issue in the criminal justice system from the problematization of the profile of those who occupy positions of power and decision in the judiciary. The focus on the judiciary is justified by the function of decision-making on the maintenance of imprisonment or granting freedom. The objective is to understand the underrepresentation of black people in the judiciary and its impact on the overrepresentation of black people in prisons. The text concludes by pointing out the need to investigate the racial issue from the point of view of judicial activity, understanding its impact on the alteration or permanence of situations of inequality.
Keywords: Gender – Race – Criminal justice system – Black women in the criminal judging – Black and female judge.
1. Raça e representatividade: dados quantitativos
De acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias,(1) a população negra no sistema prisional representa 66,98%, somando-se pretos (16,7%) e pardos (50,28%). Os brancos constituem 29,5% da população prisional. Ao observar especificamente os dados referentes ao aprisionamento de mulheres, a porcentagem negra total é de 65,9% e a branca de 31%. Com relação aos dados da população livre, as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD – 2020-2021) apontam que a população branca constitui 43%, enquanto a população parda é de 47% e a preta de 9,1%. A partir da comparação desses percentuais, é possível observar uma sobrerrepresentação de pessoas negras no sistema prisional,(2) com taxas sempre maiores que a sua proporção correspondente na população livre.
Em contrapartida, ao analisarmos os dados sobre a quantidade de pessoas negras em cargos de poder como a magistratura, é possível identificar uma perceptível sub-representação. Essa situação evidencia uma profunda desproporção entre magistrados(as) negros(as) e brancos(as). De acordo com o mais recente Censo do Poder Judiciário, cujos dados foram coletados em 2020 sobre 88 tribunais,(3) consta a informação de que há 12,8% de magistrados e magistradas negras no Poder Judiciário, o que equivale a um total de 1.534 pessoas. Pessoas brancas exercendo a magistratura constituem 85,9%, o equivalente a 10.267 juízes e juízas.
A discrepância nos dados é ainda mais desproporcional quando observamos o percentual de pessoas negras e brancas na população. Somando pretos (9,1%) e pardos (47%), temos um total de 56,1% da população negra no Brasil, o que torna questionável a presença de apenas 12,8% dessas pessoas na magistratura. De igual modo, a diferente proporção de pessoas brancas na população brasileira (43%), e na magistratura (85,9%) é outro ponto que evidencia uma profunda divergência no acesso de pessoas negras e brancas ao Poder Judiciário.
2. Rompendo com o mito da “democracia racial”
Diferente do que uma interpretação superficial e meritocrática possa fazer parecer, a escassa presença de pessoas negras na magistratura, em detrimento de uma maior representação na população carcerária, não ocorre por inaptidão para o ingresso no poder judiciário ou maior tendência à entrada no sistema prisional. Compreender a questão racial a partir de um contexto histórico auxilia na desconstrução de discursos que naturalizam a omissão estatal no campo assistencial, enquanto reforçam e legitimam uma atuação penal ostensiva e direcionada a determinados grupos sociais.
É imprescindível que qualquer análise sobre a questão racial considere o longo processo de escravização ocorrido no Brasil. A existência de uma operação violenta, que sequestrou pessoas negras de suas terras para a realização de um trabalho forçado e desumano por mais de 300 anos, não pode ser ignorada quando analisamos a situação de pessoas negras na sociedade brasileira atual. Compreender esse processo histórico é importante para identificar fissuras que podem ser observadas ainda hoje em um país em que o debate sobre o racismo é constantemente suprimido, silenciado e questionado.
A partir desse panorama, é preciso expor e discutir como o mito da “democracia racial” oculta mecanismos cruéis e muito sofisticados que perpetuam o racismo, ao mesmo tempo em que retiram a responsabilização estatal sobre a dívida histórica com o povo negro e indígena. Nas palavras de Beatriz Nascimento: “é como conflito não manifesto que atualmente se encaram o preconceito e a discriminação racial no Brasil” (NASCIMENTO, 2021, p. 65). No mesmo sentido, Lélia Gonzalez aponta como: “o racismo no Brasil, enquanto construção ideológica e um conjunto de práticas, passou por um processo de perpetuação e reforço após a abolição da escravatura, na medida em que beneficiou e beneficia determinados interesses” (GONZALEZ, 2020, p. 28). A autora aponta como o discurso de que “somos todos iguais ‘perante a lei’ e que o negro ‘é um cidadão igual aos outros’” aparenta um “grande complexo de harmonia interracial”. A partir do mito da existência de uma democracia racial: “o grupo racial dominante justifica sua indiferença e sua ignorância em relação ao grupo negro”, atribuindo a responsabilização pela opressão e vulnerabilização destas pessoas à sua própria falta de esforço individual (GONZALEZ, 2020, p. 31).
Analisar a questão racial sob esta perspectiva nos possibilita questionar a própria ocupação de cargos de poder nas instituições brasileiras. A existência de um discurso meritocrático quando se questiona a ausência de pessoas negras e, principalmente, de mulheres negras em espaços como a magistratura, oculta a ausência de integração da população negra na sociedade após a abolição formal da escravidão. Essa população “permaneceu discriminada, à margem das mudanças estruturais que ocorreram na economia” (CARNEIRO, 2020a, p. 156). Nesse contexto, Sueli Carneiro aponta a necessidade de “rompimento com o ‘conforto’ do mito da democracia racial, em prol do reconhecimento de que é imperiosa a correção das injustiças sociais motivadas pela exclusão dos negros, em especial das mulheres negras em nossa sociedade” (CARNEIRO, 2020b, p. 141).
A baixa quantidade de magistrados(as) negros(as) (1.534 – 12,8%) em comparação com brancos(as) (10.267 – 85,9%) evidencia a diferença de tratamento, oportunidades e privilégios que estes grupos vivenciam na sociedade. A sub-representatividade de pessoas negras na magistratura não se constitui como um reflexo de incapacidade intelectual. Ao contrário, representa a crueldade do racismo e o produto de um processo histórico que dividiu, discriminou e subjugou pessoas a partir de sua cor. Como salientado por Sueli Carneiro, o racismo faz com que “a excelência e a competência passem a ser percebidas como atributos naturais do grupo racialmente dominante, o que naturaliza sua hegemonia em postos de mando e poder” (CARNEIRO, 2020c, p. 280).
É importante destacar que a crítica à sub-representatividade de pessoas negras na magistratura não pressupõe que a diversidade de perfis de juízes e juízas na instituição irá, necessariamente, representar decisões menos encarceradoras para a população negra, pobre e periférica. O tema aqui discutido apenas evidencia mais uma perspectiva de uma problemática profunda, estrutural e sistêmica, que precisa ser pesquisada sob diferentes frentes de análise. Neste texto, mais do que tecer hipóteses sobre quão melhores poderiam ser decisões proferidas por um judiciário mais representativo da sociedade brasileira, chamamos atenção para como a estrutura de poder vigente, sedimentada em um processo escravocrata violento, desumano e mantido no período pós-abolição, ainda hoje informa e modela instituições como o Poder Judiciário.
Deste modo, pretende-se evidenciar e compreender como o perfil dos membros que integram a instituição, relaciona-se com o modo como se decide sobre o encarceramento ou a concessão da liberdade de pessoas selecionadas pela atuação ostensiva das polícias. Ao mesmo tempo, essa mesma estrutura judicial procura se isentar de sua responsabilidade pelo encarceramento em massa e a manutenção de jovens negros, pobres e periféricos, em condições desumanas e degradantes. A análise aqui apresentada, busca identificar correlações entre o perfil da magistratura e o seu modo de atuar no campo criminal.
3. A experiência vivenciada por mulheres negras na magistratura
A partir da pesquisa realizada por Raíza Gomes com juízas negras, é possível perceber como a magistratura é vivenciada de maneira distinta por mulheres que se deparam com um “racismo velado” no cotidiano profissional. Inseridas em um ambiente majoritariamente masculino e branco, as opressões se manifestam “através de ‘códigos não falados’, do estranhamento dos advogados e dos jurisdicionados, do não reconhecimento da qualidade do seu trabalho, de comentários dos colegas em relação ao seu cabelo crespo ou trançado” (GOMES, 2018, p. 24). Essas mulheres apontam gestos sutis e explícitos que evidenciam a resistência com relação à imagem e à presença de uma juíza negra (GOMES, 2018, p. 71).
Esse tipo de racismo, que as entrevistadas pela pesquisadora Raíza Gomes expõem como um “racismo velado”, manifesta-se em pequenas ações cotidianas, como serem confundidas com funcionárias do fórum, perguntarem pela juíza na frente delas, serem desdenhadas, desrespeitadas ou afrontadas por testemunhas que não respondem dirigindo-se a elas,(4) ouvirem comentários não solicitados sobre as suas vidas pessoais,(5) dentre outras violências cotidianas. Além destas agressões mais veladas, o racismo que estas mulheres sofrem também pode ocorrer de modo explícito e declaradamente ofensivo, como o ataque em redes sociais ou o desrespeito em audiência.(6)
Estes relatos trazem outra perspectiva à problemática apresentada: para além da dificuldade de ingresso na instituição, a permanência no espaço é permeada por reiteradas violências que objetivam deslegitimar a presença e atuação de pessoas negras nesse cargo de poder. Nesse sentido, Luciana Costa Fernandes destaca como “juízas(es) negras(os) mobilizam um poder cuja história está inscrita nas opressões que carregam na pele, compondo o lugar enunciativo conflitivo, entre o domínio e a dominação” (FERNANDES, 2020, p. 87).
Novamente, salientamos que o objetivo aqui não é indicar que mulheres negras, inseridas na magistratura criminal, irão necessariamente proferir decisões menos racistas, machistas e contrárias ao encarceramento desenfreado, utilizado como política de controle social de corpos pobres, negros e periféricos. Contudo, as escassas pesquisas realizadas com essas mulheres, com objetivo de obter a sua percepção sobre a atuação e presença em um ambiente institucional predominantemente masculino, branco e elitizado, indicam o enfrentamento de violências que podem, inclusive, influenciar as suas escolhas decisórias.
A colonialidade do poder, isto é, a inserção do conhecimento europeu como paradigma racional, foi constituído como uma estrutura de poder que impôs a “dominação colonial europeia sobre o resto do mundo”, deslegitimando saberes e práticas divergentes (QUIJANO, 1992, p. 16). Na dinâmica do processo de subjugação e eliminação da produção de conhecimento local, os colonizadores difundiram e estabeleceram uma determinada perspectiva histórica como “hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial do poder” (QUIJANO, 2005, p. 122). Contudo, a presença de uma exígua minoria de colonizadores no controle de instituições públicas, não pode ser considerada representativa de toda uma população colonizada.
As respectivas sociedades, baseadas na dominação colonial de índios, negros e mestiços, não poderiam tampouco ser consideradas nacionais, e muito menos democráticas. Isto coloca uma situação aparentemente paradoxal: Estados independentes e sociedades coloniais. O paradoxo é somente parcial ou superficial, se observamos com mais cuidado os interesses sociais dos grupos dominantes daquelas sociedades coloniais e de seus Estados independentes (QUIJANO, 2005, p. 134).
Nesse contexto, evidenciar o modo como o poder permanece colonizado em instituições que decidem sobre a liberdade, o futuro e, também, sobre a vida da parcela mais vulnerável da população, configura-se como tarefa relevante e necessária para compreender e alterar esse “estado de coisas inconstitucional” em que nos encontramos. Desvelar práticas racistas e machistas que se entrecruzam e se legitimam com a atuação do aparato de poder penal que sistematicamente (re)produz ilegalidades no cárcere, também requer investigar a fundo a formação, estrutura e funcionamento da magistratura brasileira. Aníbal Quijano apresenta como democratização possível a “descolonização” e a “redistribuição do poder” nos países que passaram pelo processo de dominação europeia (QUIJANO, 2005, p. 138).
Considerando a organização institucional vigente, denunciar a escassa participação de pessoas negras na estrutura judiciária, além de exigir uma adequada representatividade social sobre a ocupação deste cargo de poder, pode representar uma medida inicial no sentido de desencadear uma possível descolonização de práticas penais desumanas, bem como uma redistribuição do poder de maneira menos hegemônica. Ainda que a diversidade não necessariamente implique em mudança estrutural e, dificilmente, promoverá a alteração do status quo, ela pode abrir margem para questionamentos, rupturas e eventuais fissuras na organização existente.
4. Considerações finais
Direcionar a análise sobre a questão racial em interface com o sistema de justiça criminal, demanda uma observação atenta sobre o locus de produção de ilegalidades, que terá como consequência a sobrerrepresentação de pessoas negras no sistema prisional. Um judiciário branco, masculino e elitizado dificilmente compreenderá como o processo histórico de escravização influencia a situação de pessoas negras na sociedade. Isso não significa que magistradas e magistrados negros irão necessariamente atuar com maior conscientização sobre o papel do Poder Judiciário na dinâmica do hiperencarceramento, bem como as relações que este estabelece com questões de classe, raça e gênero. Contudo, desvelar e questionar as práticas vigentes, conectando-as com o modo como a instituição opera, também tem seu grau de relevância na investigação de um problema complexo e multifatorial.
Nesse contexto, torna-se relevante considerar o Poder Judiciário como um espaço de poder central para a compreensão das violências perpetradas no cárcere. Destacando, portanto, a sua parcela de responsabilização – comumente omitida – no sistemático encarceramento de jovens negros e periféricos. Ana Flauzina e Thula Pires mostram como o próprio reconhecimento da falência do sistema prisional é anunciado no julgamento cautelar da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347: “sem que isso se converta na responsabilização dos órgãos públicos pelas violências e inconstitucionalidades que reproduzem e sustentam” (FLAUZINA; PIRES, 2020, p. 1224). Ainda, as autoras argumentam como: “o Judiciário cumpre um papel precípuo na sustentação do estado de coisas inconstitucional” (FLAUZINA; PIRES, 2020, p. 1218).
É neste panorama e na tentativa de compreender o problema prisional a partir da instituição que determina “aprisionamento” ou “liberdade”, que este texto aponta a necessidade de se inserir a estrutura judiciária em lugar de destaque nos estudos sobre violências reproduzidas no interior do sistema de justiça criminal. Localizar, compreender e questionar a atribuição judicial neste campo é tarefa fundamental na busca pela promoção de uma efetiva alteração de padrões históricos de desigualdade.
Notas
2 Este texto tem como foco discutir a questão racial no sistema prisional. Contudo, é importante destacar que esse problema não apenas aponta a predominância de pessoas negras nas prisões em decorrência de uma política de controle social seletiva e racista, mas também aponta a falta de políticas públicas e assistência social para estas pessoas. A maior presença de pessoas negras nas prisões e periferias e sua sub-representação em cargos de poder e liderança não é um reflexo da falta de “esforço”, tal como defende o discurso meritocrático. Ao contrário, trata-se de um projeto estatal de abandono, desassistência e controle social. Estas questões serão melhor abordadas mais adiante no texto.
3 Neste levantamento consta a informação de que “somente o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas e o Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul não enviaram os dados” (BRASIL, 2021, p. 52).
4 Nas palavras da magistrada entrevistada: “Então, por exemplo, é a testemunha que fala com você sem olhar para você, fingindo que você não está na sala, você tá entendendo? Que é o tipo de coisa que se você disser, as pessoas vão dizer: ‘Ah! Você está exagerando!’ Mas você está percebendo aquele código, a pessoa, ela não está. Você está entendendo? É aquela pessoa que você dá bom dia ela não te responde, aí ela senta e não olha para sua cara, você faz as perguntas e ela vai responder olhando para outra pessoa, você está entendendo? Então são códigos não falados. E que você precisa ir... e aí a pessoa tenta te dar uma resposta atravessada você tem que... né? Então é um... e aí, assim, são coisas que demandam uma energia, né? Eu acho que é isso que as pessoas não entendem, nunca vão entender e eu... hoje em dia não me dou mais nem o trabalho de tentar explicar, assim. E isso é uma coisa assim, que drena a sua energia que devia estar concentrada em outras coisas, então…” (GOMES, 2018, p. 74).
5 “Quando pergunto sobre os efeitos da carreira na vida pessoal, Dandara afirma que na sua vida foi um desastre, a ponto de as pessoas dizerem constantemente para ela parar de estudar. Ela relata que houve uma ocasião em que um desembargador disse para ela: ‘Dandara, você tem que casar! Porque você sabe que a mulher, ela fica obsoleta ginecologicamente’”. Outros exemplos de situações similares são relatados em seguida no texto: “[...] por exemplo, outro dia eu estava discutindo com um colega e aí ele: ‘Por isso que vocês não casam! Por isso que vocês juízas não casam!’ Entendeu? Então assim, acho que aí é o recorte de gênero, entendeu? Porque assim, na cabeça dele uma mulher não pode contrapô-lo, não importa que a gente esteja ali num... né? E tem ali a intersecção, às vezes tem situações... essa mesma figura, uma vez chegou pra mim e falou assim: ‘Ah! Chegou a mulata mais bonita da Justiça Federal!’ Eu dei uma baixa nele! Entendeu? Eu falei: ‘Eu não sou mulata, eu sou negra, eu sou juíza e não lhe dou essa liberdade.’ E aí no dia que isso aconteceu, eu me lembro a reação das pessoas que estavam em volta ‘Ai, Dandara, coitado!. ‘Coitado por quê? Por que vocês tão com pena dele? Tem que ter pena de mim!’ Entendeu? Então quando você reage... porque as pessoas acham que a gente tem que tolerar!” (GOMES, 2018, p. 90).
6 Neste sentido, a pesquisa apresenta o seguinte relato: “Em outro episódio, durante uma audiência, uma mulher, segundo Dandara, “totalmente desequilibrada”, avançou para agredir fisicamente a juíza e a xingou utilizando expressões como “criola safada”. Uma baixaria, nas palavras da magistrada. Ela afirma que essas são situações muito complicadas e sente que, sozinha nesses lugares, sendo mulher, está o tempo todo sendo testada pelas pessoas. Dandara conta que no seu caso existe uma peculiaridade: a sua personalidade incisiva. A magistrada acredita que muita coisa não chega até ela porque isso intimida as pessoas, que têm medo da sua reação, da sua resposta. Ela acredita que essa postura acaba servindo para blindá-la bastante do racismo.” (GOMES, 2018, p. 73-74).
Referências
BRASIL. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018. CNJ, 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a18da313c6fdcb6f364789672b64fcef_c948e694435a52768cbc00bda11979a3.pdf. Acesso em: 09 jul. 2021.
BRASIL. DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Período de julho a dezembro de 2021). DEPEN, 2021. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiOWYwMDdlNmItMDNkOC00Y2RmLWEyNjQtMmQ0OTUwYTUwNDk5IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 08 set. 2022.
BRASIL. IBGE, Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Pesquisas por Amostra de Domicílios. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012/2021. IBGE, 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101957_informativo.pdf . Acesso em: 08 set. 2022.
CARNEIRO, Sueli. Gênero e raça na sociedade brasileira. In: CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra, 2020a.
CARNEIRO, Sueli. Por um multiculturalismo democrático. Debates: Multiculturalismo e Educação, TV Escola. In: CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra, 2020b.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência. In: CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra, 2020c.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2021.
FERNANDES, Luciana Costa. Como juízas mulheres julgam mulheres pelo tráfico de drogas: discursos criminológicos reforçando privilégios e silenciamentos na cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: IBCCRIM, 2020.
FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula. Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Rev. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1211-1237, 2020.
GOMES, Raíza Feitosa. Magistradas negras no Poder Judiciário Brasileiro: representatividade, política de cotas e questões de raça e gênero. 2018. 129 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018.
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-Latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020. p. 20-38.
NASCIMENTO, Beatriz. Nossa democracia racial. In: Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. p. 62-70.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. In: Perú Indígena (Lima) Vol. 13, Nº 29, 1992.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), Buenos Aires, 2005.
Recebido em: 08.09.2022 - Aprovado em: 04.10.2022 - Versão final: 17.10.2022
Gabriela de Oliveira Jardim
Mestranda em Ciências Sociais pela PUCRS. Bolsista CAPES. Pós-Graduanda em Processo e Direito Penal pela UniAmérica. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UniRitter. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC), do Grupo de Estudos em Criminologias Contemporâneas (GECC) e do Núcleo de Criminologia Feminista (NCFema – GECC).
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6688314269156816
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0924-690X
g.jardim002@edu.pucrs.br
Resumo: A violência sexual contra mulheres negras, em altos índices, em razão de uma cultura misógina, escravocrata, que objetifica e controla os corpos negros femininos, é a principal discussão deste artigo. Pretende-se aqui estudar como o sexismo, o racismo e a cultura do estupro vitimizam mais essas mulheres, bem como evidenciar como a história tem contribuído para tal.
Palavras-chave: Violência sexual – Mulheres pretas – Escravidão – Cultura.
Abstract: Sexual violence against black women, at high rates, due to a misogynistic, slave culture that objectifies and controls black female bodies, is the main discussion of this article. We intend to study how sexism, racism and rape culture victimize more of these women, as well as how history has contributed to this.
Keywords: Sexual violence – Black women – Slavery – Culture.
1. Introdução
“Brasil tem sete estupros por hora; mulheres negras são as principais vítimas.” A reportagem da agência de jornalismo Alma Preta: jornalismo preto e livre, noticia a fatídica realidade no que concerne violência sexual e seus alvos preferidos: mulheres negras. Nesse sentido, as mulheres negras por muito tempo foram vistas unicamente com intuito reprodutivo e escravocrata e assim foram caminhando. Contudo, em que pese o tempo tenha passado e a cultura mudado, ainda são as principais vítimas quando falamos desta violência (ALMA PRETA, 2022).
É sobre esta temática que este artigo se desdobra. Estando intitulado a partir da expressão racista “não sou tuas negas”(2), tem-se por intuito desde logo trazer uma crítica. Importante destacar que a expressão se refere ao fato de a mulher negra ser vista, socialmente, enquanto propriedade. Nessa perspectiva, linkando-se com a manchete ora destacada, tem-se também que, para além da noção de propriedade, ela ainda carrega a objetificação sexual advinda da herança escravocrata sob a qual de desenvolveu o nosso país, sendo alvo mais perseguido da violência sexual.
Nesta senda, cumpre evidenciar que, frente ao presente estudo, surge a problemática de entender como e por que a cultura do estupro vitimiza mais mulheres negras, e qual a relação guardada para com o peso advindo do peso seletivo do racismo e do sexismo, diante da violência sexual empregada em detrimento destas mulheres. Ainda, considera-se todo o caminhar histórico em que se desenvolveram as mulheres negras neste país e por que a violência sexual galga maiores números quando direcionada a elas, compondo assim o objetivo central deste artigo.
Serão abordados os conceitos de cultura do estupro, violência de gênero e sexual, com o olhar à mulher preta, perquirindo de que forma estes se relacionam com racismo e sexismo. Nesse sentido, busca-se elucidar por meio da pesquisa se um novo olhar criminológico pode trazer uma nova ótica de proteção.
Diante deste propósito, a pesquisa partiu do método dedutivo, no qual realiza-se um estudo acerca da constituição do racismo que culminou em altos patamares permissivos de violência sexual contra mulheres negras. A abordagem foi qualitativa, uma vez que se analisa criticamente o tema em debate e traz a visão dos autores de forma subjetiva. Já quanto ao objetivo, a pesquisa é descritiva, pois baseia-se em revisão bibliográfica em artigos científicos e doutrinas a respeito do tema, bem como analisam-se casos concretos para se obter a melhor desenvoltura do problema em debate.
Tendo, então, como método de procedimento, o monográfico e documental. Outrossim, a pesquisa tem uma finalidade básica, considerando que tem por intuito aprofundar estudo geral sobre o tema. Investiga-se sobre assunto já debatido e traz uma abordagem específica, do ponto de vista dos efeitos no mundo jurídico criminológico.
A violência contra a mulher definida como: “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher”, tem ganhado importância nos debates combativos de violência (BRASIL, 1996).
Propõe-se com este estudo uma nova perspectiva ao se pensar essa violência, posto que é fomentada pela lógica misógina que nossa sociedade ainda enfrenta. Nesse sentido, criar-se uma criminologia crítica, apta a estudar o fenômeno da branquitude, é uma hipótese deste trabalho, sobretudo, uma esperança de mudança de um mundo racista, machista, excludente e doente.
2. A mulher negra e as heranças escravocrata e patriarcalista
De pronto, já cabe destacar que a história do Brasil, na forma como é reportada e ensinada nas séries escolares, em verdade é contada de forma ludibriante, eis que o país se constituiu a partir da dominação de um povo que aqui já vivia e se assevera com o sequestro de pessoas africanas de outros países, a fim de serem utilizadas como mercadorias sob as quais se exercia posse, em face de um sistema escravocrata.
Embora a escravidão brasileira tenha aniquilado indígenas e africanos, para a construção desta pesquisa apenas se abordou acerca da história, cultura e afins no que diz respeito às mulheres pretas, com o objetivo central de estudar sobre as relações entre cultura do estupro, racismo e sexismo e quais os motivos que fazem das mulheres pretas maiores alvos da violência sexual (GUIMARÃES, 2022).
A lógica patriarcal brasileira se estabelece a partir do colonialismo e da escravidão – primeiro marco histórico que se origina da vinda dos europeus. Para se atingir por completo a dominação escravocrata, estes agiram de forma a catequizar os escravos, obrigando-os a abandonar suas culturas e religiões e a utilizar suas forças de trabalho para produção, sem lhes oferecer sequer condições de humanidade.
É neste cenário que, no Brasil, inaugura-se a cultura do estupro. A partir desta lógica de dominação, os homens que aqui viviam, que tratavam os escravos como propriedades, julgavam-se detentores dos corpos femininos, apropriando-se deles e compelindo-os às práticas sexuais sem consentimento – estupro.
Por oportuno, define-se estupro como sendo o: “constrangimento de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso”. A partir de tal definição, cuja advém do artigo 213 do Código Penal, observa-se que se trata hoje de crime punido com pena de reclusão de 6 a 10 anos (BRASIL, 1940).
Importante destacar que tal lógica já se amoldava a todas as nações e ao resto do mundo, antes de sua inauguração no Brasil, já que todas as mulheres, independentemente de serem escravas ou não, eram vistas e tidas como instrumento de pertencimento e de propriedade, devendo cumprir com todos os encargos e desejos sexuais masculinos (COULANGES, 2009, p. 35-39).
Contudo, impera que as mulheres pretas sempre foram vistas como símbolos de força, mas não de uma perspectiva positiva e sinônima de aguerrida. Quando se trata de uma mulher preta, a força delas era equiparada à animalização e desumanização, justificando serem tratadas como selvagens e mercadorias com ínfimo valor (FARIAS, 2018, p. 20).
Amparada no contexto histórico, a violência de gênero sempre foi mais pesada no que diz respeito às mulheres. Isso porque as bases de formação da sociedade implicam numa construção de preceitos patriarcais, sendo um deles estabelecer relações formadas por homens e mulheres em que coloquem a mulher em posição inferior. Assim, as teorias aristotélicas já traziam a definição dessas relações, vez que apontavam que a sociedade tinha de ser governada por homens. Nesta senda, os cargos em que se desenvolviam intelectualidade eram ocupados exclusivamente por homens, não cedendo espaço às mulheres (SOUZA, 2013, p. 108).
Nesse contexto que se desenvolveram as desigualdades de gênero, eis que a mulher sempre, histórica e socialmente, esteve em posição de inferioridade. Paulatinamente, as mulheres carregam este peso consigo. Em que pese seja forte e resistente e diversos os movimentos de luta por igualdade de gênero, é incontestável a imagem subversiva e subordinativa que a mulher tem socialmente.
Com o recorte racial e histórico, observa-se que sob as mulheres pretas foram edificados pilares do estupro que as destinavam à procriação de novos escravos e a serem objetos de prazer dos seus senhores. Destaca-se que não eram estupradas apenas por homens brancos, pois estes que escolhiam tinham por hábito selecionar um homem negro, forte e de boa saúde, ao qual era conferido tratamento diferente dos demais, uma vez que sua função era estuprar mulheres pretas, para gerarem mais escravos que gozassem de boa saúde (KOLLONTAI, 2016).
O racismo atravessa diversos conceitos, até chegar na concepção estrutural e abordar que institucionalmente reproduzem-se regras e padrões racistas vinculados à ordem social. Isto é: “as instituições são racistas, porque a sociedade é racista”. Nesse sentido, importante destacar que quando se chega à esfera institucional e estrutural, é pelo fato de que a discriminação baseada em raça já se tornou enraizada (ALMEIDA, 2019, p. 38-39).
Até a década de 1930, tem-se a edificação do racismo por meio de teorias raciais que pregavam que todos os ambientes deveriam ser frequentados por pessoas brancas. Desde os primórdios da constituição do país, com o estupro das mulheres indígenas e pretas, estabeleceu-se o movimento de miscigenação, o que fazia que, com o transcorrer do tempo e da sociedade, não houvesse mais uma raça pura, conforme pregavam estas teorias (FARIAS, 2018, p. 27).
Outra conceituação de extrema importância para a construção deste trabalho é a noção de sexismo que, a priori, já se pode destacar que vai para muito além da ideia de ser uma discriminação baseada no gênero. Ele cumpre o papel social de colocar as pessoas em determinadas posições a partir de seu gênero. É mediante sua construção que se tem os padrões sociais por meio dos quais costuma-se ouvir: “lugar de mulher é dentro de casa cuidando dos filhos”. Ou seja, com esta definição se propaga uma ideia de pertencimento social, fazendo com que a mulher esteja limitada neste papel (KERNER; TAVOLARI, 2012, p. 49-57).
O racismo, o sexismo, a exploração de classe e as outras possíveis interconexões de opressões estruturais e institucionais históricas, são reflexos de uma escolha sistemática e estatal de manutenção das hierarquias sociais, das desigualdades, marginalização e discriminação da população negra no país. Esse processo se deu na mesma medida da preservação e intensificação dos privilégios da branquitude. Optou-se pela continuidade de um sistema que essencialmente marginaliza, promove oportunidades e acessos desiguais a direitos e bens produzidos, e que inerentemente tenta negar a humanidade de um povo (FARIAS, 2018, p. 32).
Dessa forma, pode-se apontar que é nesse deslinde que relacionam o racismo e o sexismo, posto que colocam a mulher preta em posição de subserviência, de modo a ser vista como ser humano apto a ser violado, cujo corpo pode ser prontamente utilizado ao trabalho e ao sexo. Aqui pode-se citar o surgimento da “mulata rainha que representa o carnaval”, eis que a este espaço, cultural e socialmente, somente a mulher preta faz jus por estar ligada à ideia de seu corpo exposto e nu representar a imagem de beleza e sedução (FARIAS, 2018, p. 35). Isto está longe de ser visto como ideia que enaltece a beleza preta, e sim atrela-se a um fato que desumaniza a mulher preta, visto que a trata unicamente como a mulher que tem corpo bonito a ser exibido em carnaval, anulando completamente a sua essência. Nunca vista em posição de cuidado e afeto, mas sim de mulher apta à servidão e à sexualidade.
No que concerne às ciências sociais, destaca-se que o capitalismo instaura o movimento de maior exploração feminina e destina a mulher a uma posição social de submissão que lhe confere desvantagens políticas, sociais e trabalhistas, sendo que tal cenário se assevera quando se trata da mulher preta. Quando relacionado com o patriarcado, que estabelece uma dominação do homem sob a mulher, a industrialização e o capitalismo ganham força, posto que a forma como se estabelecem fomentam mais as desigualdades de gênero que, por sua vez, corroboram com a imagem social de inferioridade que a mulher carrega e permitem a instauração da violência contra a mulher. Tal desenvolvimento acentua-se quando se trata da mulher preta, devido ao peso social que ela carrega advindo da escravidão (LIMA; LIMA, 2017, p. 4).
Por fim, a interseccionalidade entre a cultura do estupro, racismo e sexismo, permite observar que a mulher preta ainda é enxergada como subserviente e unicamente pela exposição sexual de seu corpo. Assim, a sociedade, com a sua construção racista e misógina, não permite que as mulheres pretas ocupem outro espaço, reafirmando a posição histórica e social que a escravidão, a cultura do estupro e o colonialismo as colocaram.
Essa permissão não ocorre pelo único fato de que, mesmo que haja dados que apontem que as mulheres pretas são as maiores vítimas dos crimes de estupro, não se tomam medidas combativas. Dessa forma, importante as discussões acerca de racismo e sexismo como forma de entender que não bastam as discussões sobre violência de gênero, sendo necessário o enfrentamento em conjunto contra a violência de raça, posto que incide diretamente na esfera da liberdade dessas mulheres. Mulheres pretas que um dia foram escravas e estupradas carregam para sempre este peso histórico e de condenação, o qual atravessa gerações.
3. Considerações finais
O decorrer histórico nos permite analisar que nossa sociedade se constituiu a partir de uma política de dominação estatuída pelo período colonial e pela escravidão. O Brasil, último país do mundo a abolir a escravidão, propagou a cultura escravocrata, eis que essa fomentava a economia do país, mesmo após a abolição.
Isto é, mesmo libertos, os negros, agora livres, passaram a não ter locais onde morar, sequer condições de subsistência permanecendo a lógica escravocrata. Importante dizer que a cultura não mudou, posto que após anos, o racismo se tornou arraigado e instituído.
Nesse intento, destaca-se que as mulheres pretas são as mais estigmatizadas e selecionadas pelo sistema de justiça penal e pela sociedade. Tratadas como mercadorias e tendo seus corpos destinados ao uso sexual, doméstico e qualquer outra finalidade que seus senhorios as predestinassem, constituiu sua figura perante a sociedade com uma imagem de subserviência e dominação. Prova é que até hoje ouvimos falar na “solidão e dor da mulher preta”, uma vez que foram ensinadas a sempre aguentar qualquer situação sem reclamar.
Isso tende a se agravar quando falamos de violência sexual. As mulheres pretas ainda são as maiores vítimas destes crimes, justamente pela imagem cultural que carregam de pertencimento ao homem e homem branco. A elas jamais foi reservado espaço para serem ouvidas, muito embora as resistências estejam cada vez mais presentes. Ainda permanece a cultura machista, misógina, racista, sexista e excludente do “não sou tuas negas”, que se presta muito bem a destacar que qualquer mulher tem mais direitos do que a mulher negra e que seu corpo carrega o dogma de pertencimento e poder a outrem.
Notas
1 Dissertação em preparação para qualificação sob orientação do Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.
2 “Não sou tuas negas”. A expressão significa ver a mulher negra como “qualquer uma” ou “de todo mundo”, indica a forma como a sociedade a percebe: alguém com quem se pode fazer tudo. Escravas negras eram literalmente propriedade dos homens brancos e utilizadas para satisfazer desejos sexuais, em um tempo no qual assédios e estupros eram ainda mais recorrentes. Portanto, além de profundamente racista, o termo é carregado de machismo (ESPÍRITO SANTO, 2020).
Referências
ALMA PRETA. Mulheres negras são percebidas como as principais vítimas de violência sexual. Alma Preta: Jornalismo Preto e Livre. 29 mar. 2022. Disponível em: https://almapreta.com/sessao/cotidiano/mulheres-negras-sao-percebidas-como-as-principais-vitimas-de-estupro#. Acesso em: 29 ago. 2022.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm. Acesso em: 16 ago. 2022.
BRASIL. Decreto nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 16 ago. 2022.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2009.
ESPÍRITO SANTO (Estado). Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH). Novembro Negro: conheça algumas expressões racistas e seus significados. 2020. Disponível em: https://sedh.es.gov.br/Not%C3%ADcia/novembro-negro-conheca-algumas-expressoes-racistas-e-seus-significados. Acesso em: 31 ago. 2022.
FARIAS, Carolina Barros Santos. Rompendo o silêncio diante do racismo e do sexismo: um debate interseccional sobre resistências de mulheres negras no âmbito da universidade. 2018, 120 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Serviço Social) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/32527. Acesso em: 15 ago. 2022.
GUIMARÃES, Juca. Brasil tem sete estupros por hora; mulheres negras são as principais vítimas. Terra, 28 jun. 2022. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/brasil-tem-sete-estupros-por-hora-mulheres-pretas-sao-as-principais-vitimas,a945775b6bcf75c5a8d4a08bd4aa1e9dcx44vdyq.html. Acesso em: 20 ago. 2022.
KERNER, Ina; TAVOLARI, Bianca. Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexismo. Novos estudos CEBRAP [online], n. 93, p. 45-58, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/xpdJwv86XT8KjcpvkQWHKCr/?lang=pt#. Acesso em: 25 ago. 2022.
KOLLONTAI, Verinha. A cultura do estupro da sua origem até a sua atualidade. Portal Geledés, 28 jun. 2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/cultura-do-estupro-da-sua-origem-ate-atualidade/. Acesso em: 28 ago. 2022.
LIMA, Aryadna Pereira de; LIMA, Tatiane de. Joga pedra na Geni: um estudo sobre a cultura do estupro e sua relação com a negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Revista Eletrônica da Estácio Recife, v. 3, n. 2, 2017. Disponível em: https://reer.emnuvens.com.br/reer/article/view/149. Acesso em: 14 ago. 2022.
SOUZA, Dayane Santos de. História, psicanálise e sociologia: notas acerca da dominação masculina. Revista Ágora, n. 16, 2013. Disponível em: https://www.periodicos.ufes.br/agora/article/view/5019. Acesso em: 29 ago. 2022.
Recebido em: 09.09.2022 - Aprovado em: 04.10.2022 - Versão final: 17.10.2022
Fausy Vieira Salomão
Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia da UEMG, Unidade Frutal.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4643632795666504
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9133-9066
fausy.salomao@uemg.br
Resumo: A segurança pública brasileira que, nos termos do art. 144 da Constituição Federal, deveria ser direito de todos, na verdade é executada de modo discriminatório, racista e se dirige contra a população negra. Assim, e tendo em vista os recentes dados divulgados, buscou-se analisar a incompatibilidade desse modelo de segurança pública com os preceitos fundamentais da ordem constitucional estabelecida em 1988, concluindo-se, portanto, pela necessidade premente de modificação de tal modelo para um que tenha negros e quaisquer outros indivíduos como cidadãos destinatários de um serviço público.
Palavras-chave: Segurança Pública – Constituição Federal – Racismo – Discriminação.
Abstract: The Brazilian public security that, under the terms of art. 144 of the Federal Constitution, it should be everyone's right, in fact it is carried out in a discriminatory, racist way and is directed against the black population. Thus, and in view of the recent data released, we sought to analyze the incompatibility of this model of public security with the fundamental precepts of the constitutional order established in 1988, concluding, therefore, by the urgent need to change this model to one that have blacks and any other individuals as citizens who are recipients of a public service.
Keywords: Public security – Federal Constitution – Racism – Discrimination.
1. Introdução
A Constituição Federal é inovadora em vários aspectos e, ao disciplinar a segurança pública, ela o faz de modo absolutamente diferente das redigidas no Brasil até então, pois, apesar de previsões pontuais nas constituições anteriores, somente na Carta de 1988 é que a segurança pública ganha capítulo próprio.
Prevista no art. 144, a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio dos seguintes órgãos: Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária Federal; Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; e Polícias Penais federais, estaduais e distritais.
Há uma estruturação bem definida na Constituição daqueles órgãos que executam a segurança pública, há também uma delimitação, em termos constitucionais, das atribuições de cada um deles e há ainda a previsão de que ela – segurança pública – é direito e responsabilidade de todos. Contudo, quando se compara o previsto na letra fria da lei e o que é vivenciado pela população, em especial a negra, verifica-se que ela é, na verdade, muitíssimo discriminatória e racista, tratando de modo absolutamente diferente as pessoas ou grupo de pessoas a depender da cor da pele.
Assim, o presente artigo analisa o modelo de segurança pública brasileiro e os números relacionados à sua atuação, em especial aqueles publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tendo em vista tais dados e por meio do método quantitativo-indutivo e bibliográfico, pode-se observar que o modelo de segurança implementado no Brasil e sistema de justiça criminal brasileiro tratam de modo diverso os indivíduos tendo em vista a cor da pele, o que caracteriza preconceito e discriminação, estando absolutamente desconforme com a Constituição Federal de 1988.
2. O modelo de segurança pública brasileiro e o racismo que o rege em números
Sobre o modelo de segurança pública, Souza Neto (2013, p. 1586) define duas concepções possíveis:
A primeira concebe a missão institucional das polícias em termos bélicos; seu papel é “combater” os criminosos, que são convertidos em “inimigos internos”. As favelas são “territórios hostis” que precisam ser “ocupados” através da utilização do “poder militar”. A política de segurança pública é formulada como “estratégia de guerra”. E, na “guerra” medidas excepcionais se justificam. A segunda concepção está centrada na ideia de que a segurança é um serviço público a ser prestado pelo Estado. O cidadão é o destinatário desse serviço. Não há mais “inimigo” a combater, mas cidadão para servir. Para ela, a função da atividade policial é gerar “coesão social, não pronunciar antagonismos; é propiciar um contexto adequado à cooperação entre os cidadãos livres e iguais. O combate militar é substituído pela prevenção, pela integração com políticas sociais, por medidas administrativas de redução dos riscos e pela ênfase na investigação criminal.
[...] a segurança pública é um serviço público que deve ser universalizado de maneira igual.
Sobre essa política de segurança pública fundada no combate contra os criminosos, Christie (2011, p. 160) nos alerta que o termo criminoso “pode vir a ser tornar um eufemismo para as classes perigosas ou, em certos países, pessoas da cor de pele ‘errada’”. Infelizmente, o que ocorre no Brasil.
No caso da política de segurança pública vivenciada pelos brasileiros, a despeito de ter a Constituição feito previsão dela como direito e responsabilidade de todos, o que se pode concluir quando se analisa os dados relacionados à atuação de seus órgãos é que ela é adepta do modelo bélico em que o criminoso deve ser combatido. Ademais, esse modelo é discriminatório e racista, tendo a população negra sido eleita como seu alvo e são os negros o inimigo a ser combatido, o que ofende os valores mais fundamentais da nossa Constituição.
3. Racismo e discriminação travestidos de segurança pública
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) é uma organização não governamental, apartidária, sem fins lucrativos, e é integrada por pesquisadores, cientistas sociais, gestores públicos, policiais federais, civis e militares, operadores da justiça e profissionais de entidades da sociedade civil. Essa organização publica periodicamente o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em que são compiladas informações fornecidas pelas Secretarias de Segurança Pública Estaduais, pelas Polícias Civis, Militares e Federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública.
Segundo a publicação de agosto de 2022 disponível no site do FBSP, o Brasil registrou 47.503 vítimas de morte violenta intencional, o que nos dá uma taxa de 22,3 mortes dessa natureza a cada 100 mil/hab. Quando se considera raça, idade e gênero, observa-se que 77,9% das vítimas são negros, 50% com idades entre 12 e 29 anos, sendo 91,3% do sexo masculino.
Especificamente no que se refere à letalidade policial, de 2013 a 2021, o Brasil atingiu a marca de 43.171 mortes em intervenção policial. Somente no ano de 2021 foram 6.145 mortes, ou seja, 2,9 mortes a cada 100 mil/hab. No entanto, deve-se observar que negros são maioria entre as vítimas. Ainda de acordo com a publicação, negros somam 84,1% dos mortos em intervenção policial. A realidade não é diferente quando se pesquisa a vitimização policial. Foram 190 policiais assassinados em 2021, sendo eles 67,7% negros e 97,7% indivíduos do sexo masculino.
Sobre o sistema prisional, de início, é preciso esclarecer que estabelecer um número exato de indivíduos presos no Brasil sempre foi problemático. Isso porque, a depender de quem e como se faz o cálculo, chega-se a uma cifra diferente. Na tentativa de se resolver esse problema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implantou o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU), ferramenta digital em que ficam centralizados os dados da execução penal no país e de onde se extraem os dados que alimentam as estatísticas do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP) e são disponibilizadas eletronicamente no site do CNJ.
Segundo o BNMP, em 18 de agosto de 2022, havia 910.666 pessoas privadas de liberdade, número esse que engloba 908.508 indivíduos presos e 2.158 internados. Desses indivíduos presos, 859.410 são homens e 49.098 são mulheres. Devendo ser mencionado ainda que, segundo BNMP, existem 360.074 mandados de prisão pendentes de cumprimento. Isso nos leva a concluir que, caso fossem cumpridos todos os mandados de prisão em aberto, o Brasil teria mais de 1.200.000 pessoas presas!
Já o World Prison Brief, banco de dados on-line sobre os sistemas prisionais no mundo mantido pelo Institute For Crime & Justice Policy Research, da Universidade de Londres, informa que o Brasil tem 835.643 presos, ocupando a terceira posição no ranking mundial em número absoluto de detentos. Considerando o número de presos a cada 100 mil/hab, o Brasil é o 13º país no ranking com uma taxa de 389x100mil/hab.
Número semelhante é apontado pelo FBSP. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, o Brasil conta, em número absoluto, com 820.689 indivíduos privados de liberdade e a uma taxa de 384,7 presos a cada 100 mil habitantes. Quando se analisa o gênero das pessoas presas, verifica-se que 45.436 são do sexo feminino. Trazendo dados mais detalhados, o Anuário desse ano nos informa ainda que 65,8% dos encarcerados brasileiros têm entre 18 e 34 anos, sendo 67,5% negros.
Como se pode observar, o perfil das pessoas vitimadas pela política de segurança pública no Brasil é sempre o mesmo: jovens, negros e do sexo masculino. Vejamos: 77,9% das vítimas de morte violenta intencional são negros, 50% com idades entre 12 e 29 anos, sendo 91,3% do sexo masculino; negros somam 84,1% dos mortos em intervenção policial; dos 190 policiais assassinados em 2021, 67,7% negros e 97,7% do sexo masculino; no sistema prisional, negros são 67,5% e as pessoas com menos de 35 anos somam 65,8% dos presos.
Almeida (2019, p. 12) define discriminação racial como “atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados” e o racismo é por ele definido como “forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a que pertençam”.
Sobre a política de segurança pública executada pelo Brasil, em especial quando se considera os números apresentados, pode-se afirmar que ela é discriminatória, isso porque confere tratamento diferenciado a grupo racialmente identificado. Ademais, pode-se afirmar também que ela não é só discriminatória, mas é também racista. Afinal, essa discriminação fundada na raça praticada de modo sistemático cria desvantagens e privilégios imensos a depender do fato de ser o indivíduo negro ou branco.
4. Considerações
Quando os dados da política de segurança pública levada a cabo pelo Brasil são analisados, deparamo-nos com uma realidade muitíssimo triste e cruel: das 47.503 vítimas de morte violenta intencional, 77,9% são negros; 84,1% dos mortos em intervenção policial são negros; 67,7% dos policiais assassinados em 2021 são negros; 67,5% dos encarcerados brasileiros são negros. Tais números levam à conclusão de que a política de segurança pública que se executa no Brasil é absolutamente contrária ao que está previsto na Constituição. Primeiro porque, nos termos do art. 144 da Constituição Federal, a segurança pública é um direito de todos. Todavia, o que se observa é que ela não é executada em benefício da população negra, mas sim considerando pretos e pardos como alvos.
Não bastasse isso, a Constituição prevê em seu art. 1°, inciso II, que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil. O art. 3°, inciso IV, determina que a república tem como objetivo fundamental “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O art. 5º, caput, diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança”.
Dessa forma, faz-se absolutamente necessário ouvir o que tais números demonstram e confrontá-los com o conceito fundamental de democracia, os Direitos Humanos, bem como os preceitos e garantias fundamentais da Constituição. A segurança pública deve ser vista, efetivamente, como serviço público, direito de todos os cidadãos e de modo igual, buscando promover coesão social e a redução dos antagonismos que nos assolam.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
BNMP. Banco Nacional de Mandados de Prisão. Brasília, DF: CNJ – Conselho Nacional de Justiça, 2022. Disponível em: https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas. Acesso em: 06 set. 2022.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06 set. 2022.
CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crimes. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=4. Acesso em: 18 ago. 2022.
SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Art. 5º, caput. In: Canotilho, J. J. Gomes et al.. Comentários à Constituição do Brasil. cap. I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 236.
WORLD PRISON BRIEF. World Prison Brief 2022. Disponível em: http://www.prisonstudies.org/world-prison-brief. Acesso em: 06 set. 2022.
Recebido em: 09.09.2022 - Aprovado em: 29.09.2022 - Versão final: 19.10.2022
Hélen Rejane Silva Maciel Diogo
Mestranda em Direito, Linha de Pesquisa: Constitucionalismo, Democracia e Organização do Estado, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. Especialista em Direito Processual Penal. Especialista em Ensino da Filosofia.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9122155374736575
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6893-8060
helendiogo@hotmail.com
Rita de Araujo Neves
Doutora e Mestra em Educação pela UFPel. Professora Adjunta na Faculdade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9961853471247895
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9958-0313
profarita@yahoo.com.br
Resumo: A presença, participação e ocupação feminina negra numa sala de aula de Direito Processual Penal é uma insurgência. Logo, desafiamos e ousamos pensar e propor um Processo Penal Feminista Negro, no qual mulheres negras possam ser as protagonistas da justiça e assumam a posição da “Neguinha Metida”.
Palavras-chave: Feminismo negro – Insurgências no Direito Processual Penal – Processo Penal Feminista Negro.
Abstract: The presence, participation, and occupation of black women in a Criminal Procedure Law classroom is an insurgency. Therefore, we challenge and dare to think and propose a Black Feminist Criminal Process, in which black women can be the protagonists of justice and assume the position of the “Neguinha Metida”.
Keywords: Black feminism – Insurgencies in Criminal Procedure Law – Black Feminist Criminal Procedure.
1. Introdução
A presente escrita dispõe-se a (re)pensar o Processo Penal Feminista, a partir do território dos saberes negros apresentados na literatura feminista negra. Desafiamos e ousamos pensar e propor um Processo Penal Feminista Negro, no qual mulheres racializadas possam ser as protagonistas da justiça. A ideia de protagonistas parte da perspectiva de subverter um sistema que sempre escolheu corpos específicos para criminalizar, mas na nossa ótica e narrativa começamos por um outro campo de visão, o da experiência vivida.
Partimos de um relato de experiência, o qual não foi, e nem é, meramente simbólico, mas de significado(s) da presença, da participação e da ocupação de diversos corpos femininos negros em uma sala de aula da disciplina de Direito Processual Penal, no curso de Direito, noturno, da Universidade Federal de Rio Grande (FURG/RS), ministrada pela Prof.ª Dr.ª Rita de Araujo Neves. O termo “diversos” é utilizado no sentido de que não era apenas um único corpo feminino, mas várias mulheres sendo protagonistas de um “novo” Direito, sobretudo, de uma “nova” justiça, com mulheres negras se encarregando de aprimorar seus conhecimentos e, quiçá, operarem um Direito mais equânime, pois, sim, há de se pensar – e de se buscar por – uma justiça feminina negra.
Da mesma forma, sinalizo que este espaço de escrita e percepção não é apenas o de uma aluna negra, mas também o de uma professora branca, a qual reconheceu naquele tempo, e na sala de aula, a semântica de ter uma aula de Direito Processual Penal com várias/os alunas/os negras/os, sobretudo, mulheres, e (re)conhece, cotidianamente, no seu ser/fazer a importância das epistemologias negras para a inversão da produção de um “Direito Penal do inimigo” para um Direito Processual Penal justo e garantidor do devido processo legal, descrito na Constituição e na legislação infraconstitucional.
Cumpre destacar que, segundo Livia Sant’Anna Vaz e Chiara Ramos (2021), há, sem sombra de dúvida, uma sub-representação, em outras palavras uma ausência, da participação majoritária de mulheres negras nos mais variados espaços de poder, dentre eles a academia jurídica e o sistema de justiça. Tal fato produz tensões na forma como a justiça mantém-se cega e neutra frente às diferenças e, o que é pior, todo o movimento tende a perpetuar convicções universalizantes que solidificam o status quo de dominação do outro.
Não menos importante, é fundamental demarcar que, na nossa leitura, protagonistas são corpos femininos negros ocupando espaços de poder e desarticulando a lógica do não ser, do não pertencer e do não ter direito, historicamente construída e ainda sustentada no imaginário social, conformando uma espécie de pacto narcísico (BENTO, 2002), no qual existe um silenciamento e um medo de expor e lidar com as profundas desigualdades vigentes no solo brasileiro.
Entendemos e não aceitamos o pacto de manutenção do status quo, pois numa posição diametralmente oposta à do silenciamento, falamos de uma experiência que não renega a dororidade experimentada pelas mulheres negras, conforme pontua Vilma Piedade (2017), contudo, asseveramos nossa filiação sobre a importância da demarcação de territórios, institucionalizados e brancos, pelo viés da matriz feminista negra, a qual empodera politicamente os espaços, de modo a admitir que a diversidade é um caminho para a ruptura com problemas seculares, os quais não se resolvem com soluções simplistas.
Na toada da poética da autora Luciene Nascimento, sinalizamos que espaços institucionalizados e demarcados pelo signo do racismo, sempre apontam que as mulheres negras são pertences – propriedades – da servilidade e quando letradas são o que ela bem intitulou, “Neguinha Metida”.
Nas minhas experiências educacionais, eu Hélen, falo enquanto uma mulher negra, que não é comum termos muitas pessoas negras na sala de aula, particularmente, mulheres. A experiência na disciplina de Direito Processual trouxe uma outra perspectiva, desconectada com a lógica colonial, onde os corpos negros são comuns, e muito bem alojados, em prisões.
Da minha parte, eu Rita, como a professora referida pela Hélen, endosso sua percepção e acrescento que na experiência docente de mais de 17 anos lecionando essa disciplina, nunca encontrei numa mesma turma, dentro da mesma sala de aula, tantas/os estudantes negras/os, o que muito me alegrou! Afinal, infelizmente, nesse considerável tempo de docência dessa disciplina, era capaz de contar nos dedos – e não enchia as duas mãos! – a parca presença de discentes negras/os nas salas de aula pelas quais passei.
A experiência da sala de aula, aqui retratada, vivenciada por uma aluna negra e uma professora branca, ambas cientes e comprometidas com a necessidade do letramento racial crítico, passam a ser objetos de uma análise teórica crítica do Processo Penal, como um campo que deve se abastecer de ferramentas analíticas que possam desarticular a lógica patriarcal e colonial producentes das iniquidades sociais, razão pela qual nossa escrita encontra assentamento no(s) feminismo(s) negro(s).
Para Soraia Mendes (2020), não se pode negar a urgência da denúncia, já realizada, desde cedo, pela epistemologia feminista e pela epistemologia feminista negra, sobre os equipamentos de exclusão no que diz respeito a gênero, raça e classe, marcadores importantes para a densidade dada aos valores, às experiências e às interpretações dos grupos hegemônicos. Acrescenta a autora que ao nos depararmos com essa reflexão, não há como não captar a racionalidade colonial de dominação e cerceamento de corpos, povos e saberes, os quais operaram, e ainda continuam operando, no campo das ciências criminais.
Nós, aqui, nos filiamos a uma escrita e a uma prática acadêmica que perceba e compreenda um Processo Penal que faça uso das múltiplas avenidas expostas pela interseccionalidade, enquanto uma categoria analítica que promova não só leituras críticas, mas sobretudo que a crítica seja um movimento emancipatório de corpos marcados pela hierarquização racial e social. O que significa dizer, conforme Carla Akotirene (2018, p. 17), nos orienta, “o feminismo negro dialoga concomitantemente entre/com as encruzilhadas, digo, avenidas identitárias do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo”.
2. Insurgências no Processo Penal: o tempo e a vez de um Processo Penal Feminista Negro
Partimos de uma análise teórico-crítica que se abastece dos múltiplos poderes das mulheres negras enquanto protagonistas de uma nova ordem do feminismo, o qual nunca pode ser lido por um único vértice, mas deve e necessita ser lido e exposto por múltiplas matrizes identitárias. O feminismo negro nunca esteve a serviço de uma separação, de um racha ou de uma narrativa em sobreposição à outra. Como bem indica Sueli Carneiro (2003), a expressão enegrecer o feminismo surge da necessidade de proposituras que desacordem com uma única identidade do feminismo, ou seja, branca, ocidental, clássica, e que coloquem no centro das discussões a carência teórica e de prática política das diferentes identidades do feminismo edificadas em sociedades multirraciais e pluriculturais.
Se enegrecer o feminismo foi, e é, uma expressão necessária para entender que o feminismo clássico colocava à margem outros corpos políticos, especialmente as mulheres negras, da mesma forma é necessário propor uma insurgência no Processo Penal para que seja um Processo Penal Feminista Negro, de modo a desenraizar as chagas que contaminam as estruturas de poder. A proposição de um Processo Penal Feminista Negro parte do entendimento de que quanto mais mulheres negras estiverem no locus da academia e do sistema judiciário, mais será possível que a justiça seja um espaço de saberes outros, os quais tenham nas suas assinaturas, uma justiça negra e, de preferência, feminina.
Romper com algumas lógicas exige outras práxis e instrumentos epistemológicos que operem contracorrente, ou seja, na dinâmica de corte, rompimento e deslegitimação de fluxos que preservam práticas e hegemonias discursivas tão somente brancas nos sistemas de justiça, uma vez que, como bem colocou Audre Lorde (2019, p. 8), de forma cirúrgica: “As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande”.
A partir dessa perspectiva, a experiência vivenciada na aula de Direito Processual Penal, tornou-se um divisor de águas, no qual nós, mulheres negras, partilhamos, ainda que num período curto, devido à suspensão das atividades acadêmicas presencias na pandemia da Covid-19, de lutas pessoais e também de lutas político emancipatórias, de modo a desacordar com estigmas e pontuar a importância do letramento racial num campo de estudo tão destinado, historicamente, a fazer valer o controle e a dominação sobre mulheres e homens negros.
A autora nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (2021), ao dissertar sobre o gênero como constructo de uma categoria analítica que processa e organiza o arcabouço colonial, destaca que a pesquisa feminista tem dado visibilidade para o corpo como um material e lugar que concentra a história e o pensamento europeu. A colaboração do pensamento feminista para o entendimento das sociedades ocidentais “é que ele explicita a natureza generificada (e, portanto, corporificada) e androcêntrica de todas as instituições e discursos ocidentais. As lentes feministas desnudam o homem de ideias para todos verem” (OYĚWÙMÍ, 2021, p. 34).
Os discursos, especialmente os saberes afrodiaspóricos, são fundamentais para o desenraizamento do poder punitivo sobre os corpos negros que são vítimas preferenciais e inequívocas das barbáries traduzidas na necropolítica, no genocídio, na presunção de periculosidade e no epistemicídio, como aponta Luciano Góes:
Voltando à encruzilhada racista criminológica para despachar seus carregos (necropolítica, genocídio, presunção de periculosidade e epistemicídio), a insurgência negra rompe os aprisionamentos colonialistas com saberes forjados nas rodas cosmo-filosóficas diaspóricas, abrindo “novos” caminhos ao que é primordial para redimensionar os cruzos, transformar sentidos e subverter lógicas racistas, pois ali reside o dínamo da desordem, Exú, o movimento em deidade, o princípio de tudo e sem o qual nada é realizado, é senhor dos caminhos de nossa libertação (GÓES, 2021, p. 17).
Em que pese haver muitas lacunas que projetam a separabilidade e o reconhecimento de um mundo de não participação das mulheres negras em posições de prestígio e destaque, contribuindo para que o imaginário social seja fortalecido pela dinâmica de que mulheres negras são indivíduos do cuidado e do espaço doméstico, nós optamos por anunciar, neste relato, como um espaço de insurgência negra e, mais do que isso, com reflexos que atinjam o Processo Penal feminista, de modo que seja este exercido por mãos negras que reconhecem em suas histórias pessoais e ancestrais, bem como na sua corporeidade, as múltiplas violências de um sistema que não as deixa, muitas vezes, viver.
O espaço da sala de aula do Processo Penal Feminista Negro, do Direito, é o espaço da “Neguinha Metida”, a qual não se cala, não se enverga e não se entrega ao aniquilamento. A “neguinha metida” sabe que seu corpo é um templo político que não se conforma e que busca, incessantemente, a liberdade.
O termo “Neguinha Metida”, é um dos poemas do livro “Tudo nela é de se amar”, e foi externalizado pela autora Luciene Nascimento (2021, n.p.), em sua rede social Facebook, onde escreveu que:
“Neguinha metida” foi um pensamento que externei despretensiosamente em meados de junho do ano passado e, mesmo não sendo um poema, eu decidi que devia fazer parte do livro.
A verdade é que não tive escolha, porque este livro fala do encontro das minhas palavras com a comunidade que me cerca. Quando publiquei esta frase, vocês compartilharam quinhentas vezes.
Sem exagero.
Quinhentas vezes.
Homens e mulheres de todo Brasil vieram relatar que ouviram essa mesma expressão, no contexto do trabalho, na família, e eu novamente entendi que se tratava de uma experiência coletiva. Não é preciso muito, basta não cumprir a expectativa colonial do corpo dócil para “merecer” o adjetivo.
Isso lhe soa familiar?
A narrativa anterior faz parte de uma publicação da autora Luciene Nascimento e, antes mesmo de escrever este texto, não tinha conhecimento de que um comentário meu fazia parte de uma postagem exemplificativa seu, confirmando, assim, que muitas pessoas tiverem familiaridade com a expressão.
Reitero minhas palavras sobre minha percepção do ser “Neguinha Metida” (DIOGO, 2021, n.p.):
[...] tenho escutado e quando não escuto chega aos meus ouvidos o posicionamento dos que se incomodam, e muito, quando uma mulher negra sabe ler e escrever. Quando uma mulher negra sabe ler e se posiciona, uma vez que ela não tem que ouvir argumentos e imposições alheias, pois ela mesma sabe desenvolver argumentos e posicionamentos... Ah, como incomoda uma mulher negra que saiba ler e escrever, que não se cale e não recue para o imaginário social, da casa-grande, o qual sempre deseja o modo, único e exclusivamente, servil para os negros desse país, especialmente, se esse negro for uma mulher.
Reforça esse argumento, pela perspectiva da análise do Processo Penal feminista, conforme Soraia Mendes (2020) ensina, o fato de que o poder tem um fim específico de fabricar disparidades que atingem as relações de poder/dever, bem como as identidades. Ademais, a igualdade não é um bem de uso comum para as mulheres, pois foram e são na história atravessadas pelas desigualdades, de forma singular no campo jurídico. Na área jurídica, as mulheres sempre tiveram um lugar reservado, um lugar de uso destinado, “a nós sempre foi, preferencialmente o ‘canto’ destinado ao banco dos réus” (MENDES, 2020, p. 1).
Para Luciano Góes (2019), ao ocupar espaços inimagináveis, descendo o morro e ultrapassando os muros da academia, muda-se o tom e a cor dos espaços, os corpos negros ressignificam as suas existências, contudo, podem ser atingidos por uma política de silenciamento, estrategicamente antiga e bastante usual, do sistema racista, o qual se apropriou desta tática desde a época dos navios tumbeiros.
Revela Joice Berth (2019), por sua vez, que o papel do Feminismo Negro ou Movimento de Mulheres é incontestável para o resgaste e relevância do sentido de empoderamento. De modo a considerar que, a ocupação negra sempre esteve alocada na base da pirâmide social, esse reordenamento demostra-se fundamental para a movimentação dos corpos negros na luta e rompimento com a continuidade hegemônica.
Ensinam as autoras Mayara Nicollit Abdala e Luiza Lopes Nicollit (2019) que as mulheres negras apresentam um olhar ampliado e concentrado por humanidades nos problemas que envolvem a teia social, devido serem abarcadas por opressões de caráter racial e generificadas.
De todo modo, não há nada de depreciativo em entendermos que os espaços, sobretudo os sistemas de justiças, precisam de mulheres negras que sejam e assumam a posição da “Neguinha Metida”.
A gramática sociorracial exige, de modo a concretizar mudanças e mobilidade na pirâmide social, que se dê sentido e espaço para a relevância e significado da presença, da participação e da ocupação de corpos femininos negros em ambientes corporativos de domínio público, e privado, com destaque para a academia jurídica e os sistemas de justiça.
A presença negra na Universidade é uma insurgência. A presença, participação e ocupação feminina negra numa sala de aula de Direito Processual Penal é uma revolução. Talvez isso explique o fato de as relações raciais serem tão complexas e desafiadoras, à medida que os racializados são somente os negros, e a eles não cabem descontentamentos.
3. Considerações finais
A insurgência negra no Processo Penal feminista traduz um novo posicionamento de corpos que sempre foram alijados da não participação política e de poder, pois a cultura de domínio colonial sempre posicionou esses corpos como hábeis para o trabalho braçal e os condenou apenas a uma utilidade física. Os negros eram corpos dóceis, dados ao trabalho, a racionalidade não lhes pertencia.
A muito custo essa história vem sendo transformada com a participação e ocupação negra, ainda que ínfima, em espaços institucionalizados de poder.
As mulheres negras apresentam um capital intelectual rico, o qual advém da tecnologia ancestral que lhes permitiu viver e sobreviver a partir de políticas de resistências. Isso não é posto na mesa, pois o pacto narcísico, exposto por Maria Aparecida da Silva Bento (2002), desenvolveu um silenciamento das mazelas da sociedade, haja vista que essa é uma forma de ocultar, se é que é possível, o racismo.
Reconhecendo o capital ancestral, intelectual e político das mulheres negras, acompanhamos o pensamento de Livia Sant’Anna Vaz e Chiara Ramos (2021), ao frisarem que, ao contrário do que se pensa, a academia jurídica e o sistema de justiça são os que precisam das mulheres negras.
Não basta termos uma academia operante em cumprir conteúdos programáticos que reforçam um modelo de sociedade que performa em grau máximo o racismo, o machismo e o sexismo, sem trazer para o centro do debate, para dentro da sala de aula, a experiência vivida, simbólica e importante das mulheres negras sentadas nos bancos acadêmicos. Isto significa dizer que: nós estamos trabalhando, incessantemente, para essa desobediência hegemônica.
Referências
ABDALA, Mayara Nicolitt; NICOLITT, Luiza Lopes. Feminismo Negro, mulherismo e a contribuição para um sistema penal garantista. In: NICOLLIT, André; AUGUSTO, Cristiane Brandão Augusto (orgs.). Violência de gênero: temas polêmicos e atuais. Belo Horizonte: D’Placido, 2019.
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade. Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2018.
BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pacto narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. (Tese de doutorado) – Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Universidade de São Paulo, 2002.
BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-133, dez. 2003.
DIOGO, Hélen Rejane. Neguinha Metida. Rio de Janeiro, 24 mar. 2021. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/lucienenascimentoescritora/photos/pcb.1697614540438476/1697614380438492. Acesso em: 12 set. 2022.
GÓES, Luciano. Ebó criminológico: malandragem epistêmica nos cruzos da criminologia da libertação negra. Boletim IBCCRIM, Ano 29, n. 339, fev. 2021. Disponível em: https://ibccrim.org.br/publicacoes/visualizar-pdf/738/2. Acesso em: 15 ago. 2021.
GÓES, Luciano. 130 anos de (des)ilusão: a farsa abolicionista em perspectivas desde olhares marginalizados. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.
LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
MENDES, Soraia da Rosa Mendes. Processo Penal Feminista. São Paulo: Atlas, 2020.
NASCIMENTO, Luciene. Neguinha Metida. Rio de Janeiro, 24 mar. 2021. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/lucienenascimentoescritora/posts/neguinha-metida-foi-um-pensamento-externei-despretensiosamente-em-meados-junho-d/1697614540438476. Acesso em: 12 set. 2022.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Nós, 2017.
VAZ, Livia Sant’Anna; RAMOS, Chiara. Abayomi: o reluzir dos encontros preciosos. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021.
Recebido em: 12.09.2022 - Aprovado em: 02.10.2022 - Versão final: 16.10.2022
Victórya Vieira da Silva
Graduanda do 11° período do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/7574443870253203
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4952-8901
vicvieira0828@gmail.com
Resumo: O presente artigo propõe-se a verificar o estudo da saúde mental da população preta, baseando-se na pesquisa de casos envolvendo crime de racismo, com o objetivo de buscar resultados que possam amenizar as falhas que constituem o sistema ao todo, seja jurídico ou social. A pesquisa se justifica, pois se faz urgente o cuidado com a saúde mental destes corpos marcados pelo racismo, posto que muito se fala na educação sobre o tema, mas pouco é ilustrado sobre as consequências que se desenvolvem ao longo dos anos. Com efeito, torna-se necessário analisar decisões judiciais brasileiras recentes envolvendo, a fim de compreender os mecanismos que integram a estrutura racista e seu impacto na construção das vítimas como “não sujeitos”, ou seja, pessoas que não são vistas como vítimas, que não têm proteção, ou que não têm direitos.
Palavras-chave: Saúde mental – Racismo – Decisões judiciais.
Abstract: The present article proposes to verify the study of the mental health of the black population, based on the research of cases involving the crime of racism, with the objective of seeking results that can alleviate the flaws that constitute the system as a whole, whether legal or Social. The research is justified because care for the mental health of these bodies marked by racism is urgent, since much is said in education on the subject, but little is illustrated about the consequences that develop over the years. Indeed, it is necessary to analyze recent Brazilian court decisions involving, in order to understand the mechanisms that integrate the racist structure and its impact on the construction of victims as ''non-subjects'', that is, people who are not seen as victims, who have no protection, or who have no rights.
Keywords: Mental health – Racism – Court decisions.
1. Introdução
Historicamente, a psicologia apresenta as transformações do pensamento a respeito da consciência, do subconsciente, bem como da conduta de cada ser, assim, identifica-se como o estudo da mente, da racionalidade, irracionalidade, ações, motivações e comportamentos. Seguindo o modelo de estudos com base na ciência, no presente artigo serão evidenciado os efeitos da psicologia jurídica no que concerne ao tema da saúde mental das vítimas de crimes racistas versus a posição dos entes responsáveis pela preservação e fiscalização desses direitos. Nessa seara, entende-se que a psicologia jurídica compete à área da psicologia ligada ao Direito, proporcionando o estudo das leis e seus impactos em cada sujeito. Apoiado nisso, aplica-se então a análise de elementos psicológicos conexos ao Direito, tal qual é a aplicação destas noções em casos relacionados à saúde mental e estudos sociojurídicos para entendimento quanto à personalidade, a partir da avaliação de aspectos conscientes e inconscientes.
Entende-se saúde mental como a tensão entre forças individuais e ambientais que determinam o estado de equilíbrio psíquico das pessoas. Manifesta-se, nas pessoas, pelo bem-estar subjetivo, pelo exercício de suas capacidades mentais e pela qualidade de suas relações com o meio ambiente. Como forças individuais, são entendidos os comportamentos, as práticas pessoais de saúde e atitudes de adaptação, as características biológicas e herança genética; e, como forças ambientais, fatores como educação, emprego e condições de trabalho, o entorno social e físico, rede de apoio social, gênero, raça/etnia, cultura, entre outros (SILVA, 2004, p. 129).
Outro fator importante para adicionar ao tema refere-se à saúde mental, a qual permite ocupar-se de estratégias para enfrentar emoções positivas e negativas, pois se fará determinada estabilidade para tutelar a saúde mental, apoiando-se no convívio social saudável, tal como aprimorando a qualidade das relações individuais e coletivas. Desse modo, um dos objetivos deste artigo é buscar alternativas que visam qualificar o conhecimento, a partir da promoção da saúde mental e a garantia dos direitos fundamentais conectados ao bem-estar e à qualidade de vida.
Em sucintas palavras, o estímulo à procura de profissionais para auxiliar no cuidado da saúde mental torna-se essencial, uma vez que o bom estado mental proporciona à pessoa a segurança em exercer e aprimorar as interações sociais, bem como amplia o desempenho consciente de seus direitos e deveres. Neste sentido, de um ponto de vista acadêmico, é possível afirmar que significativas alterações de emoções, em relação ao estado mental do sujeito, surgem por influência de prejulgamentos sociais impostos, principalmente em casos direcionados à população negra e periférica, pois no que se refere à saúde mental, é seguro apontar em direção ao racismo, responsabilizando-o, ao passo que esse se torna a própria reprodução de exclusão e invisibilidade social.
O negro, na sociedade brasileira, é discriminado desde cedo, enfrenta rejeição e invisibilidade nos ambientes sociais, principalmente nas escolas. Tais fatores causam impacto profundo na saúde mental, pois atuam diretamente na autoestima e no desenvolvimento desses indivíduos, vítimas do racismo, que podem desenvolver doenças como depressão e transtornos de ansiedade (RAMOS-OLIVEIRA; MAGNAVITA; SANTOS, 2017).
Isto posto, devemos observar que, para além de compreender as estruturas que compõem os estudos advindos da saúde mental, na atual conjuntura, é essencial para o desenvolvimento social destacar o cuidado à consciência e à capacitação profissional, visto que a descolonização também faz parte do processo de qualificação da saúde mental.
Afinal, a maioria dos autores estudados é de homens brancos europeus. São raras as universidades que estudam autores negros. Surge, deste ponto, a necessidade de uma especialização voltada para atender a comunidade preta. A Psicologia Preta oferece uma série de ferramentas que, em meio às violências do racismo, ajuda a promover saúde mental para a população negra (GONÇALVES et al., 2020, p. 10).
Porquanto, tem de se acompanhar o compromisso com a verdade, pois vivemos em uma sociedade estruturada na violência e no campo da questão racial, esta percorre caminhos baseados na opressão de populações em vulnerabilidade social. Versando sobre práticas, faz-se preciso uso do exercício de formação profissional para delimitar esse debate, oferecendo suporte para melhorar o atendimento à saúde mental da população preta.
2. A influência do racismo na saúde mental das vítimas
Tendo em vista a exposição acima, identifica-se que alguns eixos de formação profissional, que trabalham com a promoção de direitos, tal como o desenvolvimento comedido da saúde mental, precisam habilitar seus setores a identificar o racismo como causa determinante da saúde mental.
Observando o cenário, percebe-se que ao longo do percurso da comunidade negra, inexistiu por parte do Direito, algum tipo de política pública, amparo ou inclusão social, pelo contrário, restou o banzo, o estado de depressão, que os(as) ancestrais africanos(as) carregaram mediante nostalgia profunda, beirando a morte. Ademais, a condição de vida ocasionada pela desorganização social, provocou humilhações e isolamentos, deixando a população negra invisível ao meio social, retirando toda e qualquer garantia de direitos fundamentais.
Estatísticas oficiais demonstram que o racismo e a discriminação racial são alguns dos determinantes das condições de saúde da população negra, este preconceito resulta em altas taxas de morbidade e mortalidade da população negra e na existência de desigualdades e iniquidades que impedem o acesso a direitos à metade da população brasileira (SILVA, 2017, p. 2).
A filósofa e escritora Sueli Carneiro, desenvolve em sua tese “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser” (2005), as formas de controle que se manifestam por meio do biopoder,(1) sendo elas no domínio da reprodução em relação ao gênero feminino, que se manifesta de forma diferente segundo a racialidade, bem como ao gênero masculino, a qual apresenta-se a simples violência. À vista disso, ao adicionar ao tema a ideia de biopoder, entende-se que o mecanismo de racialidade regulará as relações raciais, assim, segundo Foucault:
Este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos, no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (FOUCAULT, 1988, p. 132).
Nesse ínterim, ao relacionar o banzo e as formas de controle que se apresentam, nota-se que a desorganização social, tal qual as desvantagens sociais e de racialidade se manifestam desde a infância, momento em que se iniciam as condições desfavoráveis de vida sob o signo da morte, visto que, para Carneiro (2005, p. 79): “A morte materna é, no Brasil, um exemplo clássico que se inscreve nessa categoria das mortes preveníveis e evitáveis.” Ademais, importa salientar que o epistemicídio também é um modo de controle, tornando-se parte da dominação racial, uma vez que nega as produções de conhecimentos advindos de grupos dominados, violência típica do processo de colonização.
O conceito de epistemicídio permite-nos adentrar essas esferas, em que a identidade negativa atribuída ao Outro, o é, particularmente no que respeita à sua incapacidade de elevar-se à condição de sujeito de conhecimento nos termos validados pelo Ocidente, ou de ser portador de conhecimentos relevantes do ponto de vista dessa mesma tradição. Tal identidade negativa impacta-o de tal modo pela internalização da imagem negativa, socialmente atribuída, que o impele à profecia autorrealizadora que referenda os termos da estigmatização, ou o conduz à autonegação ou adesão e submissão aos valores da cultura dominante (CARNEIRO, 2005, p. 277).
Ao analisar os fatos, pode-se interpretar que o racismo desperta o sofrimento psíquico, à medida que se utiliza da exclusão, falta de representações, abuso de poder ou conceitos de supremacia branca, para assim, atingir e afetar a saúde mental da população negra. Em função disso, cita-se exemplos de casos em que (algumas) vítimas de ataques racistas sentem-se esteticamente mal, quando alguém fala do tamanho do seu nariz, quando citam o formato das ondas de seus cachos ou quando tentam diminuir sua existência com base no padrão eurocêntrico, por parte, essas provocações de alguma forma podem causar desconfortos emocionais.
Sob a perspectiva científica, é seguro alegar que o estudo e orientação de profissionais relacionados à saúde mental e seu impacto na vida de pessoas negras move-se de forma lenta, mas há iniciativas que estão gerando bons resultados, como o Coletivo Adinkra,(2) o qual conduz pesquisa, capacitação de profissionais e acolhimento à população negra na cidade de Porto Alegre. Por conseguinte, a atividade baseia-se a partir do reconhecimento de que o racismo existe, causa sofrimento e está presente todos os dias, assim, estabelece que é possível a ação de legitimar a dor do(a) paciente, em que acolhe e não duvida, desdenha ou ignora as angústias que o racismo estrutural (re)produz. Assim:
[...] a saúde mental está menos estudada em comparação com a saúde física. Poucos estudos examinam a associação entre raça/cor da pele e saúde mental no Brasil, ou até mesmo incluem raça como uma unidade de análise. No geral, existe pouca pesquisa no Brasil que examinou desigualdades em saúde segundo raça/cor da pele, principalmente porque os pesquisadores não incluem questões sobre raça/cor nos instrumentos de pesquisa (SMOLEN; ARAÚJO, 2017, p. 4022).
É de conhecimento geral que um dos métodos eficazes para coletar dados é a realização da pesquisa de campo, a qual foi utilizada por meio de formulário on-line, pela plataforma Google Forms, para compreender fenômenos individuais de quem possa ajudar a ampliar o estudo sobre as consequências que o racismo carrega, ou seja, a pesquisa foi direcionada a pessoas negras, estudantes de todas as modalidades de ensino, trabalhadores e para aqueles que não têm trabalho.
Por esta forma, é viável observar que o link para a divulgação do formulário foi concedido pela página pessoal da autora na rede social Instagram, pois a ideia inicial formava-se em entrevistas presenciais, porém com o aumento do número de casos de infecções devido à pandemia de Covid-19, restou apenas a busca via rede social, o que limitou a participação de pessoas que não têm acesso à internet ou à rede social mencionada. Infere-se que ao total foram 10 contribuições à pesquisa, um número relativamente baixo, mas importante para o andamento do estudo, pois cada contribuição foi muito valiosa. Assim, a elaboração das perguntas destinou-se em atentar em dois eixos: o primeiro teve como objetivo identificar se o tema causava algum tipo de situação incômoda às pessoas, pensando no bem-estar da saúde mental de quem não se sente confortável em lembrar de situações envolvendo casos racistas; o segundo eixo focava em perguntas sobre a procura por profissionais da área da saúde, ocupando-se da ideia de atentar para o autocuidado.
Em sequência, o Gráfico 1 mostra o questionamento feito sobre o tema central da pesquisa, o objetivo foi identificar cuidados que se deve aplicar ao mencionar situações causadas pelo racismo, pois não é claro se este pode ocasionar gatilhos emocionais.
Gráfico 1 – Falar sobre o episódio de racismo incomoda?
Fonte: Elaborado pela autora (2022).
Legenda: SIM 37,5%; NÃO 37,5%; TALVEZ 25%.
Já nos Gráficos 2, 3 e 4, a ideia é entender se as vítimas de racismo têm apoio, se conseguem acompanhar os atendimentos com profissionais da saúde ou se acreditam que o racismo desencadeou algum tipo de transtorno, como ansiedade, depressão ou estresse. Todas as pessoas entrevistadas são negras, têm entre 18 e 50 anos, diferentes níveis de escolaridade (ensino médio, graduação ou pós-graduação), e foram vítimas, em sua maioria, de crimes de racismo.
Gráfico 2 – Você faz acompanhamento por algum profissional da saúde?
Fonte: Elaborado pela autora (2022).
Legenda: SIM 88,9%; NÃO 11,1%.
Gráfico 3 – Se não, pretende procurar auxílio de um(a) profissional da saúde?
Fonte: Elaborado pela autora (2022).
Legenda: SIM 62,5%; NÃO 12,5%; TALVEZ 25%.
Gráfico 4 – Em razão do racismo, você acredita ter adquirido algum transtorno?
Fonte: Elaborado pela autora (2022).
Legenda: SIM 66,7%; NÃO 22,2%; TALVEZ 11,1%.
À vista disso, entende-se que o racismo gera manifestações de problemas sociais, econômicos e psicológicos, posto que se inicia com pequenos traumas, desde acontecimentos na infância até chegar na vida adulta. Nessa etapa, tudo fica mais complicado de administrar, o que ocasiona o abandono do cuidado com a saúde mental; aproximando-se no caso de mulheres negras, a imagem de que é necessário aguentar tudo, carregar os problemas e, se der tempo, cuidar das mazelas. Essa atitude é instituída pela falácia da ideia de mulher forte e que, para tal, é preciso passar pela dor sem pedir ajuda ou questionar a re(educação) sobre autocuidado. Em resumo, as práticas racistas são agregadas às estruturas sociais, historicamente opressoras e inadequadas.
3. Justificativas jurídicas: o abandono da lei
Reposicionar as informações para prosseguir na exposição desse tema é relevante, de maneira que, neste capítulo, o intuito é entender o papel do Direito, no que tange a saúde mental pós-fato, ou seja, após o episódio, como fica a vítima? Quais amparos e garantias fundamentais poderão proporcionar às vítimas um sentimento de segurança e justiça?
Cumpre salientar que a Constituição Federal, com fulcro no art. 3º, inciso IV, dispõe sobre a promoção de direitos fundamentais, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, igualmente, a Lei 7.716/1989 prevê a punição de resultantes de preconceito de raça ou de cor, conhecida como Lei do Racismo. Por oportuno, o Direito, a partir de seus operadores, tem o dever de proteger os interesses sociais, a fim de garantir o pleno funcionamento do estado democrático de direito, bem como do sistema de justiça. Todavia, verifica-se que, na prática, dá-se de outra forma, pois ainda que dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que 54% da população brasileira é negra, o exercício das instituições do Direito ocorre em um ambiente majoritariamente branco (IBGE, 2020).
Assim, o revés da pesquisa será a análise das decisões jurisprudenciais, visto que em relação à tutela de garantias, o direito para a população negra ainda não está totalmente contemplado com uma política de formação antirracista, logo as expectativas ao longo das análises tornam-se mínimas. Não há espaço para hipocrisia, deve-se honrar com a verdade mesmo que dolorosa, pois neste momento um(a) jovem está sendo acusado(a) injustamente, em decorrência da lentidão das instituições para adaptar-se às mudanças sociais. Dessa forma, este estudo pretende analisar duas decisões jurisprudenciais de casos conhecidos, em que juízas deixaram de se preocupar com o local que a vítima ocupa no processo, para beneficiar a estrutura punitivista e racista.
O primeiro caso em análise ocorreu no ano de 2020, em que a juíza afirmou que o indivíduo praticava assaltos em Curitiba, em razão da sua etnia. Segue o texto: “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente” (CNN BRASIL, 2020).(3) O segundo caso, ocorreu na 5ª Vara Criminal de Campinas, que condenou o réu, em julho de 2016, devido ao crime de latrocínio, ainda, na sentença, comunicou que: “Vale anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido.” (SUL 21, 2019).(4)
A primeira observação recai sobre os danos aplicados aos sujeitos, pois não é correto e nem ético, proferir sentença com base na etnia ou em estereótipos de cada indivíduo, para isso, há normas fixadas no Código de Direito Penal, as quais têm o objetivo de seguir com o processo técnico do Direito Processual. Como visto, o estereótipo torna-se um dos mecanismos utilizados pelo racismo, aprisionando a ideia de “carimbar” corpos, para então serem vistos por meio de uma única imagem deturpada. Haja vista os fatos, nota-se que o sistema penal não foi constituído para abrigar causas relacionadas à população negra, uma vez que nas academias não há disciplinas eletivas para expressar outras realidades sociais que são importantes para obter o cuidado ao outro.
Posto isso, observa-se que o discurso do colonizador está presente em várias camadas sociais, as quais são regadas pelo racismo, pois tornar-se “um quase branco” colocaria o sujeito no patamar de autoridade, iniciando assim o processo de embranquecimento, ou seja, quanto mais o colonizado apropriar-se de padrões culturais do colonizador, mais perderá sua originalidade. Nesse sentido, o racismo opera de forma cruel e intrínseca, pois pode-se iniciar momentos de negação de identidade, gerando danos à saúde mental do indivíduo que está inserido em uma sociedade onde o belo é ser branco(a). Fanon (2008, p. 46) explica que: “[...] no caso do negro, nada é parecido. Ele não tem cultura, não tem civilização, nem ‘um longo passado histórico’.”
Mediante o exposto, conclui-se que viver em um país culturalmente racista, produz efeitos negativos à saúde mental, por essa razão é importante incentivar a busca por ajuda profissional, bem como encontrar outros meios de enfrentamento ao sistema, como a capacitação de profissionais para o atendimento a vítimas de racismo, pois a invisibilização do racismo como formador de sofrimento psicológico reflete na prática clínica, principalmente quando há desprezo por profissionais, sob o olhar destes corpos pretos. Para finalizar, é preciso referir que o Direito como ciência humana aplicada, ao lado da psicologia jurídica, tem responsabilidade histórica para com a comunidade negra, devendo assim, amparar e se precisar, priorizar estes casos, ouvindo, respeitando e reconhecendo que o racismo é crime e nele deve ser creditado o princípio da dignidade da pessoa humana como direito fundamental.
Sendo assim, como resultado fixa-se a ideia de ampliar pesquisas na área da saúde mental, já que esse é um fator importante, pois afeta a vida de diversas pessoas. Ainda, para os(as) futuros(as) operadores do Direito, o compromisso é validar a vivência das vítimas de racismo, não deixar de ampará-las, ampliar a necessidade por conhecimento e compreender que determinados grupos têm privilégios em detrimento de outros, evitando assim, futuras reproduções de desigualdades no atendimento ocorridas no sistema penal. É preciso oferecer um serviço humanizado, possibilitando a cooperação interdisciplinar.
Notas
1 O conceito de biopoder é compreendido aqui tal como propõe Carneiro (2005, p. 72): “a noção de biopoder emerge na reflexão foucaultiana no contexto da discussão sobre o poder sobre a vida e a morte.”
2 O Coletivo Adinkra é uma instituição com a finalidade de reunir psicólogos clínicos com interesse em pensar a clínica numa perspectiva antirracista e em oferecer psicoterapia para pessoas negras. Vide o site/blog disponível em: https://coletivoadinkra.com. Acesso em: 14 fev. 2022.
3 Para mais informações, vide notícias disponíveis em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-01/juiza-campinas-reu-nao-parece-bandido-branco; https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/tj-do-parana-arquiva-processo-sobre-racismo-contra-juiza-que-citou-raca-em-decis/. Acesso em: 15 fev. 2022.
4 Disponível em: https://sul21.com.br/ta-na-rede/2019/03/nao-possui-estereotipo-padrao-de-bandido-diz-juiza-sobre-reu-de-pele-e-olhos-claros/. Acesso em: 15 fev. 2022.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
BRASIL. Lei nº 7.716. de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 jan. 1989.
BECKER, Simone; OLIVEIRA, Deborah Guimarães. Análise sobre a (não) caracterização do crime de racismo no Tribunal de Justiça de São Paulo. Estudos Históricos, v. 26, n. 52, p. 451-470, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eh/v26n52/10.pdf. Acesso em: 04 fev. 2022.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005, 339 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf. Acesso em: 17 out. 2022.
DAMASCENO, Marizete Gouveia. Onde se esconde o racismo na psicologia clínica?: a experiência da população negra na invisibilidade do binômio racismo e saúde mental. 2018. 115 f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade I: a vontade do saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988.
GONÇALVES, Wendy; COELHO, Daniele Cristina; VIEIRA, Armanda Souza; SILVA, Priscila Chantal Duarte; FILIIPE, Anna Rita Tomich Magalhães; SHITSUKA, Ricardo. Danos causados pelo racismo por meio de termos linguísticos na saúde mental da população negra e a importância da psicologia preta para esse público: uma educação para as escolas. Revista de Casos e Consultoria, v. 11, n. 1, p. e11125, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/casoseconsultoria/article/view/22407/13452. Acesso em: 17 out. 2022.
MARTINS, Edna; SANTOS, Alessandro de Oliveira dos; COLOSSO, Marina. Relações étnico-raciais e psicologia: publicações em periódicos da SciELO e Lilacs. Revista Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 118-133, set./dez. 2013.
PEREIRA, Cícero; TORRES, Ana Raquel Rosas; ALMEIDA, Saulo Teles. Um estudo do preconceito na perspectiva das representações sociais: análise da influência de um discurso justificador da discriminação no preconceito racial. Psicologia: reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 95-107, 2003.
RAMOS-OLIVEIRA, Diana; MAGNAVITA, Pilar; OLIVEIRA, Felipe Santos de. Aspectos sociocognitivos como eventos estressantes na saúde mental em grupos étnicos e minoritários no Brasil. Summa Psicológica UST, v. 14, n. 1, p. 43-55, 2017. DOI: https://doi.org/10.18774/448x.2017.14.315
SANTOS, Gislene Aparecida dos. Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de atos de discriminação. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 62, p. 184-207, 2015. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i62p184-207
SILVA, Maria Lúcia da. Racismo e seus efeitos na saúde mental. In: SEMINÁRIO SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA, São Paulo, 2004. Anais [...]. São Paulo: Instituto de Saúde, 2004.
SILVA, Rafael Pereira da. Trauma cultural e sofrimento social: do banzo às consequências psíquicas do racismo para o negro. In: XXIX SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. Contra os preconceitos: história e democracia. Brasília, 2017. Anais [...]. Brasília: UNB, 2017. Disponível em: https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1488493521_ARQUIVO_Traumasocialesofreimentocultural.pdf. Acesso em: 17 out. 2022.
SMOLEN, Jenny Rose; ARAÚJO, Edna Maria de. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 12, p. 4021-4030, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320172212.19782016
VEIGA, L. M. Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, n. spe, p. 244-248, 2019. DOI: dx.doi.org
Recebido em: 12.09.2022 - Aprovado em: 05.10.2022 - Versão final: 18.10.2022