.
O ano de 2023 se inicia com um novo Presidente da República e, também, com um novo Congresso Nacional. No dia 1º de fevereiro, os parlamentares eleitos no ano passado tomam posse na 57ª Legislatura da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Com isso, assumem não apenas projetos que já estavam em andamento, como também desafios a serem enfrentados com novas proposições.
Se, de um lado, o novo mandatário nacional segue uma política progressista, que provavelmente norteará os rumos do Poder Executivo Federal, por outro lado o novo Congresso Nacional será composto por maioria ligada à ideologia conservadora.
Fato ilustrativo desse novo cenário são as bancadas eleitas do Partido Liberal (PL), ao qual é filiado o ex-Presidente da República e que, inclusive, está mudando o seu estatuto para se alinhar à denominada “pauta de costumes”.(1) Tanto no Senado Federal como na Câmara dos Deputados, o partido terá a maior bancada: 14 senadores e 99 deputados (sendo que, na última casa, a federação partidária do Presidente eleito, PT-PV-PCdoB, elegeu 81 parlamentares).(2)
Esse contexto desperta preocupação para as Ciências Criminais, pois pode não só gerar dificuldades para o avanço de pautas importantes, como também causar retrocessos legais. Para tudo isso, o IBCCRIM está (e sempre estará) atento e atuante.
Assim, por exemplo, há de se acompanhar com atenção o andamento do Projeto de Lei 2.253/2022 do Senado Federal,(3) que promove retrocessos na Lei de Execução Penal, 7.210/1984. Dentre outros pontos, ressaltem-se a extinção das saídas temporárias de presos e a obrigação de exame criminológico para a progressão de regime. Oriundo da Câmara dos Deputados, onde foi aprovado em 3 de agosto de 2022, é fruto do substitutivo apresentado pelo então relator, deputado Guilherme Derrite (PL-SP), atual Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo.
Também causa preocupação o andamento do Projeto de Lei 1.515/2022 da Câmara dos Deputados, que visa regulamentar a proteção de dados pessoais para fins de atividades de segurança do Estado, de defesa nacional, de segurança pública e de investigação e repressão de infrações penais (lacuna deixada expressamente pelo art. 4º, § 1º, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, 13.709/2018). Apesar da urgente necessidade de regulamentação do tema, o projeto colide com os ideais postos na LGPD de proteção primordial do indivíduo, ao priorizar “o dever estatal de eficiência nas atividades de segurança do Estado e de defesa nacional e de garantia do direito à segurança pública” (art. 2º, VI, do projeto). Espera-se que, em seu lugar, seja debatido o anteprojeto elaborado em 2020 por comissão de juristas da sociedade civil e do Superior Tribunal de Justiça.(4)
Outro projeto de grande importância para o processo penal (sobretudo para evitar condenações injustas) é o 676/2021 da Câmara dos Deputados,(5) que altera o art. 226 do Código de Processo Penal para modificar as regras de reconhecimento de pessoa. O debate, inclusive, pode ser enriquecido pelos substanciais estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, cujo relatório final foi divulgado recentemente.(6)
Por fim, mas não menos importante, destaca-se o projeto de novo Código de Processo Penal (8.045/2010 da Câmara dos Deputados),(7) que o IBCCRIM há muito tempo acompanha (desde o início da tramitação legislativa, com boletim especial no ano de 2010)(8) e sugere modificações(9) (muitas delas aceitas, inclusive). Apesar de avanços em alguns pontos, em tantos outros houve retrocessos – que se espera não venham a prosperar.
Nesse contexto, o IBCCRIM se faz presente por diversas maneiras – seja na elaboração de notas técnicas, seja na promoção de debates, seja na organização de eventos e seminários, entre tantas outras. O cenário legislativo é muito caro às Ciências Criminais, por ser o seu instrumento de concretização. E é por isso que o IBCCRIM segue atento e atuante nesses e em tantos outros projetos que surgirem e tramitarem nessa nova legislatura.
Notas
1. Disponível em: encr.pw/IUgmT. Acesso em: 5. jan. 2023.
2. Disponível em: l1nq.com/Yjcyr. Acesso em: 5. jan. 2023.
3. Disponível em: l1nq.com/Z9dT5. Acesso em: 5. jan. 2023.
4. Disponível em: l1nq.com/8rFEh Acesso em: 5. jan. 2023.
5. Disponível em: encr.pw/uXIrb. Acesso em: 5. jan. 2023.
6. Disponível em: encr.pw/95sNz. Acesso em: 5. jan. 2023.
7. Disponível em: encr.pw/xaxhf. Acesso em: 5. jan. 2023.
8. Disponível em: l1nq.com/gjTux. Acesso em: 5. jan. 2023.
9. Disponível em: l1nq.com/UQGVO. Acesso em: 5. jan. 2023.
Camila Torres Cesar.
Doutoranda em Direitos Humanos pela USP. Mestra em Direito Político e Econômico pela Mackenzie. Cofundadora do Instituto Formação Antirracista. Diretora Tesoureira do IBCCRIM. Advogada.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0492406138113389
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6190-2102
camilatorres@adv.oabsp.org.br
Resumo: O presente artigo busca, a partir de sintética revisão bibliográfica, apresentar a violência simbólica e física com o meio utilizado para construção de uma sociedade alicerçada no racismo estrutural. A institucionalização da violência permitiu uma política criminal pautada na dominação, inferiorização e opressão de corpos negros.
Palavras-chave: Racismo; Necropolítica; Política criminal; Encarceramento em massa.
Abstract: This article uses a synthetic bibliographic review to present symbolic and physical violence as a means used to build a society based on structural racism. The institutionalization of violence allowed a criminal policy based on domination, inferiority, and oppression of black bodies.
Keywords: Racism; Necropolitics; Criminal Policy; Mass Incarceration.
Negar a humanidade da população negra é um projeto político também forjado na naturalização de uma suposta incivilidade e normalização do imaginário de que as pessoas negras são inferiores ou subalternizáveis.
[...] de fato, o ser branco é uma grande e insuperável contradição: só se é branco na medida em que se nega a própria identidade enquanto branco. Ser branco é atribuir identidade aos outros e não ter identidade. É uma raça que não tem raça. Por isso, é irônico, mas compreensível que alguns brancos considerem legitimo chamar de identitários outros grupos sociais não brancos, sem se dar conta de que esse modo de lidar com a questão é um traço fundamental da sua própria identidade (ALMEIDA, 2018, p. 60).
Como em outros países onde a escravização centrou-se em explorar pessoas vindas de África e não houve a segregação formal no pós-abolição, no Brasil, as relações sociais se pautaram na inferiorização da pessoa negra, africana e de sua cultura, colocando-as em um não lugar(1) ou no lugar de indesejadas.
Sem políticas públicas ou privadas de inclusão, o Estado centrou a produção legislativa na penalização de práticas religiosas e culturais – como a capoeira, fortalecendo o consciente e o inconsciente social que ligava a imagem do negro ao crime(2) e ao ócio,(3) eternizando a dita vadiagem como imoral e nociva.
O discurso de que pessoas negras, sobretudo homens, são indivíduos que devem ser temidos e por isso, sujeitos à repressão, espraiou-se na sociedade assim como o medo que corrobora e incentiva a violência, a tortura, as prisões e o genocídio. E é este estereótipo criado no período pós-abolicionista que segue perpetuando, nas mais diversas esferas, a lógica de exclusão e consequente extermínio da população negra brasileira (BORGES, 2019).
No Brasil, país em que a estrutura social se transforma e ressignifica a todo tempo os modos de subalternação de grupos inferiorizados, ser pessoa negra, significa ser: “desde sempre, excluído das esferas de cidadania, do consumo, de pertencimento político”, perder sua humanidade, ou seja: “não ser, significa ser, socialmente, desde sempre, socialmente morto” (VARGAS, 2017, p. 85).
A Constituição Federal aponta como objetivo da nação uma sociedade justa, solidária, com igualdade e sem discriminação (art. 3º, incisos III e IV, art. 5º, caput, CF/88), que reconhece a dignidade humana (art. 1º, inciso III, CF/88), repudia o racismo (art. 4º, inciso VIII, CF/88) e o classifica como crime imprescritível e inafiançável (art. 5º, inciso XLII, CF/88).
As normas do Direito Penal integram este sistema formalmente alicerçado em direitos e garantias fundamentais, que asseguram a presunção de inocência, o devido processo legal, o in dubio pro reo, a impossibilidade de aplicação de penas de morte, penas perpétuas, de trabalhos forçados e cruéis e que resguardam a integridade física e moral da pessoa presa (art. 5º, CF/88).
O racismo, por sua vez, produz violência física e simbólica para punir a racialidade negra,(4) transformando atos infracionais em: “consequência esperada e promovida da substância do crime que é a negritude” (CARNEIRO, 2020), delito para o qual, largas vezes, pressupõe-se condenação sem defesa e julgamento.
Trata-se de uma tecnologia de poder que utiliza a raça como estratégia de controle de vida e morte, atribuindo diferentes significados e resultados a um mesmo fato, a depender de quem o protagoniza.
As instituições do sistema de justiça criminal brasileiro refletem: “conflitos, antagonismos e contradições que não são eliminados, mas absorvidos, mantidos sob controle por meios institucionais” (ALMEIDA, 2018, p. 30), que favorecem a população branca, ocupante do lugar de verdadeira cidadã.
Não é difícil perceber que a seletividade da repressão penal se manifesta no tratamento dispensado a pessoas negras vítimas de crimes de racismo e injúria racial, neste caso, demonstrando a irrelevância do delito para o Estado, minimizando a importância do sofrimento e culpabilizando a vítima.
Nosso ordenamento tipificou o racismo, mas a todo tempo vemos reforçado o caráter apenas simbólico destas leis que, quando utilizadas: “reafirmam as condições de manutenção do racismo estrutural ao tratarem de condutas individualizadas que, dentro da lógica binária, se afastam da ‘normalidade’ sustentada, no caso do racismo, pelo mito da democracia racial” (BAGGIO; RESADORI; GONÇALVES, 2019, p. 1857-1858).
Ilesa ao que Mbembe (5) chamou de necropolítica, a pessoa branca não se racializa mas, ao contrário, de seu lugar distanciado do abuso estatal e dos prejulgamentos da Justiça Criminal, é estimulada: “à intelectualidade e a construir aspirações a partir do acesso à educação, saúde, habitação, bens de consumo, lazer, etc.” (BATISTA et al., 2022, p. 95), sem jamais pensar sobre si.
Este lugar de privilégio é compartilhado pela esmagadora maioria dos atores e atrizes judiciais: juízes(as), promotores(as), defensores(as), delegados(as), advogados(as) cuja atuação, quando não pautada em uma criminologia crítica e antirracista, apenas reproduz opressões, sob o pretexto de legalidade e neutralidade.
Nosso sistema de justiça criminal se apresenta como garantidor da propriedade privada, protetor dos grupos dominantes e não inibidor de práticas de agentes policiais que selecionam pessoas negras como inimigas, suspeitas e culpadas antes mesmo do trânsito em julgado (BATISTA et al., 2022).
Enquanto isso, a sociedade permanece estruturada no racismo, classismo e machismo. Mais da metade da população, 56% conforme dados do IBGE, é alvo de violência, que vai das batidas policiais ilegais e autos de resistência a inúmeras tentativas de apagamento, silenciamento e epistemicídio.
Para esta maioria, a ideia de impunidade não se mostra factível, porque a punição é fato cotidiano e se revela sempre que: “pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões corporais, homicídios)” (BATISTA, 1990, p. 38).
O sofrimento psíquico e físico também se apresenta a essa população, a partir da consciência de que além de seus próprios corpos, seus filhos(as), pais/mães, irmãos(ãs), parentes são alvo de um sistema criminal que atua como instrumento de controle social e de manutenção do “estado inconstitucional de coisas”.
A transição da escravização para o trabalho livre teve preço, que ainda é pago por meio da política de encarceramento e de morte – não apenas física como simbólica – reproduzida pelo Estado brasileiro e suas instituições contra a população negra, ao som do silêncio da branquitude, representada por suas pessoas físicas e jurídicas.
Notas
1 No racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão “fora do lugar” e, por essa razão, não podem pertencer. Corpos brancos ao contrário, são construídos como próprios, são corpos que estão “no lugar”, “em casa”, corpos que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares: na Europa, na África, no norte, no sul, leste, oeste, no centro, bem como na periferia. A partir de tais comentários, intelectuais negras/os são convidadas/os persistentemente a retornar a “seus lugares”, “fora” da academia, nas margens, onde seus corpos são vistos como “apropriados” e “em casa” (KILOMBA, 2019, p. 57).
2 Com o Código Penal de 1890 (art. 399), a vadiagem e a capoeira tornaram-se crimes.
3 Florestan Fernandes destaca que após a abolição, fazendeiros brancos e imigrantes europeus acabaram ocupando os trabalhos remunerados disponíveis (2021).
4 O depoimento de Malkia Cyril. Diretora-Executiva da Center for Media Justice, no documentário A 13ª Emenda de Ava DuVernay destaca o peso deste imaginário: “Homens negros, e pessoas negras em geral, são representados excessivamente nos noticiários como criminosos. Significa que são mostrados como criminosos de modo exagerado, mais do que o número real de criminosos [...]. Então, você educou um povo, deliberadamente, por anos, por décadas, para crer que homens negros, em especial, e pessoas negras, em geral, são criminosos. Quero ser clara. Não estou falando só de pessoas brancas. Pessoas negras também acreditam e morrem de medo de si mesmas” (2016).
5 As “novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo ‘massacre’” (MBEMBE, 2016, p. 141).
REFERÊNCIAS
A 13ª EMENDA. Direção: Ava DuVernay. Produção: Howard Barish, Ava DuVernay e Spencer Averick. Roteiro: Ava DuVernay e Spencer Averick. Música: Jason Moran. Kadoo Films; Netflix, EUA, 2016.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
BAGGIO, Roberta Camineiro; RESADORI, Alice Hertzog; GONÇALVES, Vanessa Chiari. Raça e biopolítica na América Latina: os limites do direito penal no enfrentamento ao racismo estrutural. Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 3, p. 1834-1862, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2018/34237. Acesso em: 01 out. 2022.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
BATISTA, Waleska Miguel; SANTOS, Julio Cesar Silva; SANTOS, Lídia Carolina Nascimento dos; SILVA, Ariella Luiza Rodrigues da. Sistema de justiça criminal brasileiro e o racismo institucional. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 9, n. 2, p. 93-119, 2 maio 2022. Disponível em: https://revista.abrasd.com.br/index.php/rbsd/article/view/645. Acesso em: 07 nov. 2022.
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra, 2020.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 6. ed. São Paulo: Contracorrente, 2021.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios: Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, n. 32, 2016.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5. ed. rev., amp., 2 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
VARGAS, João. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 48, n. 2, p. 83-105, jul./dez. 2017.
Autora convida
Pedro Luís de Almeida Camargo.
Mestrando em Direito Processual Penal pela USP. Especialista em Obtenção, Interpretação e Valoração da Prova pela Universidade de Salamanca. Bacharel em Direito pela USP. Advogado.
Link lattes: http://lattes.cnpq.br/8451429372152340
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1330-0929
pedro.la.camargo@gmail.com
Resumo: O presente artigo visa analisar brevemente a decisão monocrática proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski sobre o HC 222.141 no Supremo Tribunal Federal, que invalidou operação na qual o Ministério Público requereu diretamente e sem autorização judicial a provedores de aplicações de internet a preservação e a indisponibilidade de dados de indivíduos investigados. A partir de uma análise da concepção contemporânea do direito à privacidade e do princípio da legalidade processual, será demonstrada a correção de referida decisão no que diz respeito à proteção de direitos fundamentais.
Palavras-chave: Investigação criminal; Reserva judicial; Apreensão de dados; Legalidade processual.
Abstract: This article aims to briefly analyze the individual ruling made by Justice Ricardo Lewandowski on HC 222.141 at the Supreme Court, which invalidated an investigation in which the Prosecutors asked directly to internet service providers the preservation and unavailability of data produced by individuals who were being investigated. After analyzing the contemporary concept of the right to privacy and the principle of procedural legality, it will be demonstrated the correctness of said decision with regard to the protection of fundamental rights.
Keywords: Criminal investigation; Judicial authorization; Data seizure; Procedural legality.
A decisão monocrática ora analisada se insere no contexto da definição jurisprudencial dos limites da ação estatal na persecução penal envolvendo meios de obtenção de prova relacionados à tecnologia. Diversas decisões em temas correlacionados já foram proferidas, a exemplo da jurisprudência existente sobre acesso a dados de celulares apreendidos (2021b), obtenção de dados de geolocalização (BRASIL, 2022), as discussões sobre criptografia forte em aplicativos de mensagens (2021a),(1) entre outros.
No presente caso, a decisão não se refere exatamente à necessidade de decisão judicial para obtenção em si de dados telemáticos. Ao contrário, a questão versa sobre uma “etapa preparatória” para essa obtenção. Devido à volatilidade inerente ao domínio probatório digital, com a possibilidade de fácil adulteração e apagamento de arquivos e dados (ALMEIDA, 2018, p. 43), há sempre o justo receio por parte das autoridades responsáveis pela persecução penal de que elementos essenciais para a apuração dos fatos que pertençam ao mundo virtual sejam perdidos antes da apreensão e análise.
Nesse contexto, o requerimento feito diretamente pelo Ministério Público sem autorização judicial se refere à preservação dos dados a provedores de aplicação, incluindo informações cadastrais, históricos de localização e pesquisas, conteúdo de correspondência eletrônica, fotos e nomes de contato.
Isso significa que o próprio Ministério Público não acessou os conteúdos até que fosse proferida decisão judicial autorizando a quebra de sigilo, mas pediu somente sua preservação. Como consequência necessária dessa preservação, os serviços ficaram indisponíveis para os usuários. A controvérsia se refere justamente à possibilidade desse requerimento direto.
A decisão do Ministro Ricardo Lewandowski foi justamente no sentido de que esse pedido foi ilegal, porque, mesmo sem o acesso, o pedido de indisponibilidade deveria ser precedido de autorização judicial. O raciocínio empregado versa tanto sobre a interpretação das garantias constitucionais do art. 5º, incisos X e XII, quanto em razão das disposições legais da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
Em relação à interpretação constitucional, a decisão dá a entender que o congelamento e a perda da disponibilidade violariam ambos os incisos supracitados. Já em relação ao Marco Civil da Internet, o Ministro indica que o texto legal não dá autorização ao requerimento cautelar de preservação de dados em geral, mas somente de registros de conexão e de acesso às aplicações.
Inicialmente, deve se analisar se o requerimento do Ministério Público entra em colisão com os direitos fundamentais supracitados. Não se pode adentrar essa questão sem fazer o breve esclarecimento de que a revolução da tecnologia da informação na contemporaneidade alterou completamente o paradigma do que se pode ter como direito à privacidade, especialmente na esfera digital.
Se antes o domicílio era considerado o paradigma da intimidade, hoje se pode dizer que tanto o uso extensivo da tecnologia – em especial, da internet – quanto a captura em grande escala de dados pessoais faz com que os dispositivos informáticos e os dados armazenados de maneira remota representem mais a projeção de direitos fundamentais da personalidade do que a própria residência (ZILLI, 2018, p. 85-88).(2) Com efeito, uma enorme gama de atividades humanas somente é possibilitada, ou ao menos muito facilitada, pela internet, e os dados pessoais coletados capturam essencialmente tudo sobre a experiência humana contemporânea: relacionamentos profissionais e sociais, gostos e preferências, localização e deslocamento, hábitos de consumo, informações financeiras.
Em uma concepção contemporânea de privacidade, que leve em conta o peso que a dimensão digital da projeção da personalidade exerce, não se pode ficar restrito à ideia de que a violação da vida privada só se pode dar por meio da invasão desses conteúdos por terceiros ou pelo Estado. Ao contrário, é indispensável também uma concepção positiva de privacidade,(3) que entenda que o direito fundamental também inclui a possibilidade de construção de uma esfera de vida privada (QUEIROZ; PONCE, 2020, p. 75).(4) Em uma sociedade altamente integrada e permeada por tecnologias da informação, qualquer medida estatal no sentido de impedir o livre exercício da construção da esfera digital da vida privada precisa ser compreendida como uma colisão com esse direito fundamental (SOLOVE, 2008, p. 105).(5)
A modernização da concepção do direito fundamental à privacidade encontra ecos na normatização recente (BRASIL, 2020).(6) Não apenas a constitucionalização da proteção de dados pessoais, nos termos do art. 5º, LXXIX, mas também a legislação infraconstitucional reflete essa atualização, como disposto no próprio Marco Civil da Internet, especialmente nos dispositivos relacionando diretamente o uso da internet com o direito à privacidade, e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), porque consagra a autodeterminação informativa e a liberdade, além da própria privacidade, como fundamentos da disciplina legal da proteção de dados pessoais.
Por sua vez, o direito ao sigilo das comunicações, previsto no art. 5º, XII, também precisa ser analisado sob uma perspectiva contemporânea. Sem pretensão de esgotar o complexo debate sobre a construção da noção de que tal inciso protege somente as comunicações em fluxo ou em trânsito ou se comunicações armazenadas também são abrangidas pelo direito fundamental,(7) tem-se que a transformação tecnológica também se operou no seio das formas de transmissão de informação. Devido à capacidade de armazenamento e a possibilidade de comunicação escrita em tempo real, tanto por e-mail quanto por aplicativos de mensagens, a existência de um histórico organizado de comunicações faz com que seja necessário o reconhecimento de uma dimensão de tal direito fundamental que proteja, também, as comunicações armazenadas. A proteção do sigilo das comunicações também deve impor o reconhecimento de uma dimensão histórica e organizacional das informações transmitidas: o indivíduo deve ter direito a organizar e armazenar o que lhe interessa, sem interferências indevidas.(8)
A conclusão dessa análise deve ser, portanto, justamente no sentido de que o pedido de congelamento dos dados efetuado pelo Ministério Público atinge o direito fundamental à privacidade e o direito fundamental ao sigilo das comunicações.
Isso é verdadeiro mesmo para o caso de não ter havido o efetivo acesso a esses dados. Ao serem congelados os dados, os provedores impediram os usuários de acessarem e utilizarem os serviços e os dados armazenados (incluindo os de comunicação), bem como de organizarem os dados e conteúdos como bem entendessem. A extensão dos dados preservados também chama a atenção, já que cobriu período superior a dois anos.
Sendo esse o caso, é inafastável a conclusão de que se exige tanto uma previsão legal específica quanto uma autorização judicial para que haja legitimidade na restrição do direito fundamental.(9)
No caso subjacente à decisão ora analisada, ambos os pressupostos estão ausentes. Foi incontroverso que o congelamento não se amparou em decisão judicial anterior, mas constituiu uma medida preparatória para a autorização judicial da efetiva quebra de sigilo dos dados. No entanto, ainda deve ser feita uma análise sobre o teor dos dispositivos legais do Marco Civil da Internet citados pelo Ministro Lewandowski para verificar se, excepcionalmente, existe uma autorização legal para tais requerimentos sem prévia autorização judicial.
O Marco Civil da Internet prevê limitadíssimas hipóteses de requerimentos diretos que podem ser feitos pela Polícia ou pelo Ministério Público, nos termos do art. 13, § 2º, e do art. 15, § 2º. Em ambas as hipóteses, o pedido cautelar atinge unicamente a possibilidade de manutenção de registros de conexão e de registros de acesso às aplicações de internet por prazo superior àqueles aos quais os provedores estão ordinariamente obrigados.
Esses registros são expressamente definidos pelo próprio Marco Civil, considerando-se registro de conexão: “o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados” (art. 5º, V, do Marco Civil) e registro de acesso a aplicações de internet: “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP” (art. 5º, VIII, do Marco Civil). Ou seja, não há menção alguma à possibilidade de guarda de conteúdos, mas somente de conexão ou acesso nos estritos termos delineados pela própria lei.
No âmbito da persecução penal, a necessidade de interpretação estrita dos dispositivos legais que atingem direitos fundamentais, já bem assentada na doutrina,(10) atinge, por óbvio, os meios de obtenção de prova digitais devido aos potenciais danos aos direitos fundamentais analisados. O fato de o caso concreto se referir à indisponibilidade de conteúdos e dados especialmente sensíveis, tais como dados de localização, fotos e conteúdos de comunicações privadas, apenas amplifica a necessidade dessa proteção.
Dessa forma, diante da análise empregada, fica evidente o acerto da decisão proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski nos autos do HC 222.141/PR. O requerimento de indisponibilidade dos dados efetuado pelo Ministério Público no caso atinge os direitos fundamentais à privacidade e ao sigilo das comunicações e, portanto, exige decisão judicial. Ademais, uma análise cuidadosa do texto do Marco Civil da Internet indica que não existe autorização legal para o acautelamento de dados telemáticos em geral, mas somente para registros de conexão e acesso.
A decisão é, portanto, um importante passo para a construção de uma cultura e de uma prática judicial que, cientes dos riscos que as investigações criminais representam na era digital, avançam na proteção dos direitos fundamentais em uma sociedade tão dependente das tecnologias da informação.
Notas
1 Importante mencionar que o mesmo tema atualmente encontra-se pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 403.
2 Examinando a revolução tecnológica e as transformações provocadas por ela em relação à privacidade, Marcos Zilli rejeita a equiparação do celular ao domicílio, mas reconhece a importância da proteção da privacidade no contexto tecnológico em razão das funções exercidas por dispositivos como celulares.
3 A respeito de uma possibilidade de conceituação plural da privacidade, ver Leonardi (2011, p. 78-83).
4 Conforme afirmado por Rafael Mafei Rabelo Queiroz e Paula Pedigoni Ponce (2020, p. 75): “A privacidade, com os instrumentos jurídicos à sua disposição – dentre os quais o sigilo – serve para garantir aos cidadãos espaços de autonomia indispensáveis ao florescimento humano individual. Sem esses espaços de autonomia, corre-se o risco de aniquilamento do indivíduo [...]”.
5 Dentro da taxonomia de privacidade proposta por Daniel Solove, poderia se qualificar essa interferência como uma “interferência decisional”, ou seja, uma incursão estatal nas decisões do indivíduo em relação à sua vida privada.
6 A atualização da interpretação do conceito de privacidade em decorrência dos avanços tecnológicos e das mudanças normativas infraconstitucionais encontra eco na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal, especialmente no voto do Ministro Gilmar Mendes no âmbito do HC 168.052. Nesse contexto, o Ministro destaca que houve mutação constitucional, apta a estender a necessidade de autorização judicial para o acesso a dados armazenados em telefones celulares.
7 Para verificar o estado atual da discussão, ver o precedente do Supremo Tribunal Federal no HC 168.052, já citado, bem como: Queiroz e Ponce (2020, p. 64-90); e Ferraz Júnior (2021).
8 Na já exposta concepção plural de privacidade, que inclui questões atinentes ao sigilo, também se pode conceber isso como uma interferência indevida nas escolhas do indivíduo de como construir sua própria esfera privada.
9 Esses são dois dos pressupostos para o exame de proporcionalidade de medidas restritivas de direitos fundamentais e, tendo em vista que foram a base para a decisão ora analisada, não se adentrará ao exame de proporcionalidade propriamente dito. Para um exame detalhado dos pressupostos e requisitos da restrição legítima de direitos fundamentais no processo penal, ver Zanoide de Moraes (2010, p. 310-329).
10 “A legalidade processual penal, como pressuposto formal para o exame da proporcionalidade, aufere toda sua justificação e impositividade do texto expresso da Constituição. O preceito do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR), em sua feição material (substantive due process of law), associado às regras da legalidade geral (art. 5º, inciso II, CR) e penal material (art. 5º, XXXIX, CR), formam a base jusfundamental que determina a imprescindibilidade de que toda medida estatal processual penal restritiva de direito fundamental seja prévia, escrita, estrita e se dirija a um fim constitucionalmente legítimo.” (ZANOIDE DE MORAES, 2010, p. 315).
Referências
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Autor convidado
Fernando Henrique Santos Terra.
Mestrando em Direito Processual Penal pela USP. Pós-graduado em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional. Promotor de Justiça.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8308530358715219
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8019-0921
fhsterra@usp.br/fhsterra@gmail.com
Resumo: No julgamento do HC 222.141, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandoswki anulou todas as provas produzidas a partir do congelamento de conteúdos de contas de internet vinculadas à pessoa investigada, cujo pedido para a deflagração da providência foi formulado pelo Ministério Público com fundamento no previsto no Art. 13, § 2º, da Lei 12.965/2014, o cognominado “Marco Civil da Internet”. Neste artigo, pondera-se sobre o acerto da decisão tomada que, sob a alegação maior de violação ao direito fundamental à privacidade, reputou ilegal o atendimento da medida pelos provedores de internet, ainda que tenha sido sucedida por autorização judicial, nos termos legais. Obtempera-se que a posição suprema destoa da práxis probatória penal, notadamente por se tratar de solução que conflita com a sistemática das nulidades processuais e seus princípios.
Palavras-chave: Processo penal; Provas; Congelamento de conteúdos virtuais; Marco Civil da Internet; Direito à privacidade; Teoria das nulidades.
Abstract: In the judgment of HC 222.141, Supreme Court Justice Ricardo Lewandowski annulled all the evidence produced from the freezing of the contents of internet accounts linked to the person under investigation, whose request for the triggering of the measure was formulated by the Public Prosecutor’s Office based on the provisions of Art. 13, § 2, of Law 12.965/2014, the so-called “Civil Rights Framework for the Internet”. In this article, we ponder on the correctness of the that, under the major allegation of violation of the fundamental right to privacy, considered illegal the fulfillment of the measure by internet providers, even if it was succeeded by judicial authorization, under legal the legal terms. It should be noted that the supreme position is not in line with the practice of criminal evidence, notably because it is a solution that conflicts with the system of procedural nullities and its principles.
Keywords: Criminal procedure; Evidences; Virtual content freezing; Civil Rights Framework for the Internet; Right to privacy; Theory of nullities.
1. O Habeas Corpus 222.141
Impetrado contra decisão do Superior Tribunal do Justiça (STJ), o HC 222.141 teve por objetivo desconstituir sucessivas decisões que mantiveram a regularidade de medida deferida sob os auspícios da Lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet. No caso, o Ministério Público do Paraná solicitou extrajudicialmente aos provedores de internet (Apple e Google), que congelassem de forma preventiva conteúdos específicos de contas virtuais de pessoas investigadas em razão da suspeita da prática de infrações penais no contexto de licitações no Detran daquele Estado.
O pedido formulado visava à “preservação dos dados e IMEI coletados a partir das contas de usuários vinculadas, tais como dados cadastrais, histórico de pesquisa, todo conteúdo de e-mail e iMessages, fotos, contatos e históricos de localização” (BRASIL, 2022a, p. 3). De acordo com a impetrante, o conteúdo indicado não se enquadrava nos conceitos de “registros de conexão” ou de “registros de acesso a aplicações de internet”, para os quais o Marco Civil da Internet possibilita a formulação de requerimento administrativo de guarda cautelar, respectivamente no Art. 13, § 2º,(1) e no Art. 15, § 2º.(2)
E mesmo que o Parquet tenha obtido, posteriormente, provimento jurisdicional favorável ao acesso especificamente de todo o conteúdo solicitado, que, por sua vez, foi formulado com fundamento e no prazo do Art. 13, § 3º,(3) do Marco Civil, defendia a impetrante que além da ilegalidade pela inadequação às mencionadas hipóteses, ocorreu também violação ao direito fundamental à privacidade em virtude de terem sido impedidos de utilizar livremente os dados que foram armazenados em decorrência do requerimento apresentado às plataformas.
A tese da impetrante, acolhida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi essencialmente pela violação do direito à privacidade. Para a concessão da ordem e anulação de todo o acervo probatório produzido no contexto da diligência provocada pelo Ministério Público, o Ministro concluiu que houve contrariedade à Constituição Federal e ao Marco Civil da Internet, pois a medida se constituiu em verdadeira medida cautelar ordenada por conta própria, sem autorização judicial, de todo conteúdo de comunicações telemáticas da impetrante.
Além disso, observou que o congelamento – e, conforme por ele destacado –, a: “consequente perda da disponibilidade [...] de todo o conteúdo de e-mails, mensagens, contatos e históricos de localização” (BRASIL, 2022b, p. 8), estaria albergada pela reserva de jurisdição, à vista do direito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, à luz do Art. 5º, X, da Constituição Federal.
Por fim, assentou que a medida solicitada pelo Ministério Público se afastou completamente do que o Marco Civil definiu conceitualmente para a guarda cautelar de: “registros de conexão” e de: “registros de acesso a aplicações de internet”,(4) de forma que a providência, tal como se deu, tratou-se de efetiva busca e apreensão prévia de conteúdos telemáticos para posterior formalização por ordem judicial: “em prática vedada por qualquer standard que se extraia da ordem constitucional vigente” (BRASIL, 2022b, p. 15).
2. A Decisão Foi Correta?
Não. Com todas as vênias ao Ministro e a suas colocações, pondera-se que a decisão caminha até certo ponto na jornada legítima e escorreita da tutela dos direitos e garantias fundamentais, mas se distancia de outros pontos igualmente relevantes, equivalentes ou até superiores, que envolvem mais do que somente a posição jurídica da paciente no HC 222.141.
De fato, o conteúdo indicado pelo Ministério Público na solicitação formulada aos provedores de internet não se enquadra no teor dos dispositivos que o legitimavam a adotar a providência estudada; vai além. No entanto, a casuística ganha outra dimensão quando observado que, a despeito do parcial descompasso, os provedores de internet Apple e Google acataram a solicitação administrativa na sua integralidade quando podiam recusar o seu cumprimento, em razão do que preconiza a legislação.
Além disso, é de bom alvitre pressupor que o Ministério Público não tenha agido de má-fé, seja por não ser comum a atuação deliberadamente ilegal, seja porque, consoante a máxima do Direito: a boa-fé se presume; a má-fé se comprova. Frise-se, porém, que não se quer estabelecer nenhuma espécie de defesa ou justificativa para eventuais violações a direitos fundamentais, com ou sem intenção.
Almeja-se, na verdade, salientar a circunstância da possibilidade de haver dúvida e boa-fé de todos os envolvidos quando a solicitação foi formulada aos provedores de internet para o congelamento dos dados dos investigados, até mesmo do próprio juízo de primeiro grau, que, poucos dias depois de o pedido de congelamento dos dados ter sido acatado, deferiu a sua disponibilização ao Ministério Público.
Esse detalhe não poderia ter sido meramente desconsiderado porque não há como negar que, para todos os efeitos, o Ministério Público sempre atua no sentido de cumprir um mister investigativo de ordem constitucional, que prima pela tutela de outros interesses também de cariz fundamental – como, em último grau, o de segurança, expresso em diversas passagens do texto constitucional (Arts. 5º e 6º, 144, capita).
Logo, ao ser redesenhado o quadro julgado no HC 222.141 para incluir outros aspectos merecedores de ponderação, constata-se: i) a existência de interesses fundamentais de ambas as partes – investigador/Estado e investigado; ii) a possibilidade de dúvida quanto aos termos e alcance da medida de congelamento dos dados virtuais; iii) a existência de indícios da prática de infrações penais em desfavor dos investigados, sem os quais a medida não obteria chancela jurisdicional posterior;(5) iv) o estado e as consequências da reclamada violação ao direito de privacidade da impetrante.
Com isso, a questão relativa à violação ao direito de privacidade, antes de ser o argumento silenciador da discussão, merecia, no mínimo, que fosse cotejada com aqueles outros aspectos, ainda que para rejeitá-los. Além de não os abordar, a decisão estabelece como o único viés apenas a perspectiva da paciente, o que torna a solução sedimentada pelo STF, indiscutivelmente, limitada.
Com efeito, não houve o exame sob a ótica da teoria das nulidades, que, mesmo em relação às de caráter absoluto – como se dá em casos de violações a direitos fundamentais –, autoriza a aplicação do princípio do prejuízo ou da instrumentalidade das formas.(6) Esta regra é: “a viga mestra em matéria de nulidade”.(7)
Em verdade, dados os inúmeros inconvenientes e perdas que a decretação de uma nulidade representa à persecução penal, não é razoável: “que a simples possibilidade de prejuízo dê lugar à sanção; o dano deve ser concreto e efetivamente demonstrado em cada situação” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2011, p. 28). Tanto que o próprio STF admite a manutenção do ato judicial ainda que infirmando por nulidade absoluta quando não demonstrado haver prejuízo.(8)
Ainda nesse sentido:
A manutenção da eficácia do ato atípico ficará na dependência da demonstração de que a atipicidade não causou prejuízo algum. E será o juiz ‒ a quem incumbe zelar pela regularidade do processo e observância da lei ‒ que, para manter a eficácia do ato, deverá expor as razões pelas quais a atipicidade não impediu que o ato atingisse sua finalidade (BADARÓ, 2015, p. 790).
Portanto, se ao longo de todas as decisões nas instâncias inferiores a ausência de prejuízo não só foi um ponto discutido, como foi o próprio fundamento para a manutenção da investigação no primeiro grau, era mais do que razoável esperar que o Supremo Tribunal Federal também se debruçasse sobre essa questão.
No caso concreto, entre a solicitação do Ministério Público, o atendimento pelos provedores e a obtenção da autorização judicial de acesso ao que foi demandado (e não só aos “registros de conexão” e de “registros de acesso a aplicações de internet”) se passaram pouco menos de duas semanas (de 22/11 a 3/12/2019).
Nesse período, conforme a impetrante e o Ministro Ricardo Lewandowski, teria havido a perda da disponibilidade, por seus titulares, sobre os conteúdos telemáticos congelados. Com arrimo em passagem do voto do também Ministro Edson Fachin na ADPF 403/DF, estabeleceu o Ministro Relator que a violação ao direito de privacidade se deu pela afronta ao: “direito de manter o controle sobre a sua própria informação e de determinar a maneira de construir sua própria esfera pública” (BRASIL, 2022b, p. 11).
Ocorre que, do ponto de vista semântico, e salvo melhor juízo, “perda” se relaciona com a ideia de definitividade, ou seja, deixo de poder fazer o que quiser, quando quiser e como quiser com o conteúdo privativo.
Entretanto, o que houve na hipótese fática foi de que, por 13 dias, os investigados até poderiam exercer o controle sobre os conteúdos telemáticos congelados, mas apenas parcialmente, pois continuariam guardados junto aos provedores de internet por força de medida inicialmente administrativa e, depois, judicial.
Logo, verifica-se ter ocorrido mera suspensão da possibilidade do controle absoluto sobre o conteúdo privativo, tornando-se definitiva a partir do momento em que, constatados os indícios da prática de ilícitos penais e procedido conforme a legislação de regência, aqueles elementos passariam a pertencer à investigação.
Vale dizer que, durante todo o período da alegada indisponibilidade, o conteúdo foi mantido sob absoluto sigilo, de forma que somente quem sempre teve, em tese, conhecimento dos dados virtuais – os investigados e os provedores de internet – assim permaneceu até o deferimento de acesso ao Ministério Público.
Sendo assim, realmente não se compreende qual foi o prejuízo experimentado pela impetrante se, em termos práticos, nada em sua situação jurídica foi alterada até ser expedida ordem judicial. Efetivamente, não há nem que se falar em “ameaça a direitos”, pois, se havia indícios de ilícitos criminais que pesavam em desfavor dela e dos demais investigados, isso é justamente razão para que se autorizam medidas de ingerência à esfera individual ou patrimonial de uma pessoa, e não o contrário.
3. Considerações Finais
Da mesma forma que não se tolera lesão ou ameaça de lesão a direitos, principalmente os de caráter fundamental, do mesmo modo não se admite que nenhuma pessoa se arvore neles para cometer ilícitos e se furtar à aplicação da lei.
Ao conceder a ordem no HC 222.141 e anular todas as provas de operação levada a efeito pelo Ministério Público do Estado do Paraná, entende-se, com a devida vênia, que o Supremo Tribunal Federal se afastou da integralidade dos standards da ordem constitucional por ele mesmo preconizados, os quais, certamente, acolhem a sistemática das nulidades previstas na legislação processual penal.
Assim agindo, descurando-se da inexistência de prejuízo que autorizaria a manutenção de toda a investigação, a Corte Constitucional caminhou exclusivamente na direção do indivíduo, ainda que contra ele pesassem informações do cometimento de crimes e outras circunstâncias que, no caso, reclamavam por maior atenção.
Sob outro viés, a sociedade se viu descoberta e sozinha – nem sequer lembrada em seus interesses –, a qual, representada não só pelo Parquet, como também por todos os juízes de instância inferior (o Superior Tribunal de Justiça inclusive), laborou para manter tão custosa e desgastante hipótese de persecução penal.
A forma superou a finalidade.
Notas
1 Art. 13. Na provisão de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento. [...] § 2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderá requerer cautelarmente que os registros de conexão sejam guardados por prazo superior ao previsto no caput (BRASIL, 2014, grifo nosso).
2 Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. [...] § 2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do Art. 13 (BRASIL, 2014, grifo nosso).
3 Art. 13. [...] § 3º Na hipótese do § 2º, a autoridade requerente terá o prazo de 60 (sessenta) dias, contados a partir do requerimento, para ingressar com o pedido de autorização judicial de acesso aos registros previstos no caput (BRASIL, 2014).
4 Nos termos do Marco Civil da Internet, registros de conexão são: “o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados” (Art. 5º, VI) e registros de acesso a aplicações da internet: “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP” (Art. 5º, VIII) (BRASIL, 2014).
5 O Art. 22 do Marco Civil da Internet define que: “a parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet. Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade: I - fundados indícios da ocorrência do ilícito; II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e III - período ao qual se referem os registros”. Vale, ainda, a menção ao Art. 23, pelo qual: “cabe ao juiz tomar as providências necessárias à garantia do sigilo das informações recebidas e à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do usuário, podendo determinar segredo de justiça, inclusive quanto aos pedidos de guarda de registro” (BRASIL, 2014, grifo nosso).
6 Vale a menção de que, em seu Art. 563, o Código de Processo Penal prevê que: “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa” (BRASIL, 1941, grifo nosso).
7 TOURINHO FILHO apud BADARÓ, 2015, p. 790.
8 BRASIL, Supremo Tribunal Federal apud BADARÓ, 2015, p. 791.
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Autor convidado
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Em dezembro de 2022, o Excelentíssimo Ministro Ricardo Lewandowski proferiu decisão monocrática acerca da impossibilidade de o Ministério Público requerer diretamente a provedores de conexão e a plataformas de acesso a aplicações de internet a preservação de dados e conteúdo eletrônicos. Da leitura da decisão, verifica-se que, no caso, o pedido do MP/PR envolve a guarda de “dados e IMEI coletados a partir das contas de usuários vinculadas, tais como dados cadastrais, histórico de pesquisa, todo conteúdo de e-mail e iMessages, fotos, contatos e históricos de localização, desde a data de 01.06.2017 até o presente momento”.
O pedido de Habeas Corpus está fundamentado na divergência existente entre os termos “conteúdo” e “registros de conexão e registros de acesso”, sendo que o “congelamento” daquele dependeria de prévia autorização judicial. Além disso, o requerimento de preservação do conteúdo eletrônico seria restritivo ao Paciente de dispor de forma livre os seus dados, alegando ser essa uma interferência indevida do órgão persecutório.
Em contrapartida, o Ministério Público Federal reitera que a solicitação direta do MP/PR às provedoras não teve por finalidade o acesso direto ao conteúdo dos dados objeto de “congelamento”, mas tão somente a sua preservação. Isso para que futuro pedido de quebra de sigilo telemático não fosse protocolizado já natimorto, sendo possível o cumprimento de seu objeto em caso de eventual autorização pela autoridade judicial. Registrou, ainda, que o pedido de quebra foi deferido em 03/12/2019. Assim, não se verificaria qualquer ilegalidade no pedido direto de guarda de dados e conteúdo eletrônicos.
Após inicialmente indeferir a liminar pleiteada, tendo em vista que o pedido se confundia com o próprio mérito da impetração, o Ministro Lewandowski proferiu decisão monocrática concedendo a ordem. Em suas palavras:
A jurisprudência desta Suprema Corte tem afirmado reiteradamente que o inciso XII do art. 5º da Carta Magna protege o sigilo das comunicações em fluxo (troca de dados e mensagens). Assenta também que o sigilo das comunicações armazenadas, como depósito registral, é tutelado pela previsão constitucional do direito à privacidade, na forma do inciso X do art. 5º, CF (cito, v.g., o HC 91.867/PA, relator Ministro Gilmar Mendes). No campo infraconstitucional, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) traça os princípios aplicáveis em nosso ordenamento, enumerados no art. 3º, tal como o da proteção da privacidade e dos dados pessoais, assegurando, outrossim, a inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, ressalvada ordem judicial de sua quebra (art. 7º da mencionada lei).
Partindo dessas premissas, tenho que o pedido de indisponibilidade dos registros de que trata a Lei 12.965/2014 (dados intercambiados), seja pelo Ministério Público, seja por autoridades policiais ou administrativas, em atenção à referida cláusula constitucional, deverá, a toda evidência, ser precedido de indispensável autorização judicial. Sim, pois, na forma do art. 5º, V, da supracitada legislação, os registros de conexão se referem, tão somente, ao conjunto de informações concernentes à data e hora de início e de término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço de IP utilizado pelo terminal. Registros de acesso a aplicações de internet, por sua vez, previstos no inciso VIII do citado dispositivo, tratam apenas do conjunto de informações relativas à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço de IP.
[...]
Caso prevalecesse o entendimento esposado no acórdão combatido, toda e qualquer autoridade policial ou o próprio Ministério Público poderiam requisitar aos provedores da internet, sem a devida autorização judicial, a indisponibilidade de dados telemáticos de qualquer investigado, situação que, a toda evidência, não se concebe. Nesta senda, rememoro as palavras do Ministro Edson Fachin no julgamento da ADPF 403/DF, de sua relatoria, ao enfatizar que a privacidade é o direito de manter o controle sobre a sua própria informação e de determinar a maneira de construir sua própria esfera pública.
[...]
Conclui-se, portanto, que, na hipótese sob exame, o Ministério Público do Estado do Paraná não observou a necessária reserva de jurisdição no que toca à ordem de indisponibilidade do conteúdo telemático por parte da sua legítima titular, contrariando, na forma acima delineada, a Constituição Federal e o Marco Civil da Internet, pois decretou verdadeira medida cautelar ao ordenar, sponte propia, o “congelamento” de todo o conteúdo de comunicações telemáticas da paciente. Em suma, retirou do seu legítimo proprietário o direito de dispor do conteúdo dos seus dados para quaisquer fins, sem que houvesse autorização judicial para tanto.
Isso posto, concedo a ordem a fim de declarar nulos os elementos de prova angariados em desfavor da paciente a partir do congelamento prévio, sem autorização judicial, do conteúdo de suas contas eletrônicas, bem como de todos os demais que dele decorrem, nos autos da ação penal ora em comento. (destaques nossos – Cadastro IBCCRIM 6425).
Compilação e curadoria científica de: Gessika Christiny Drakoulakis.
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