É com pesar que o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) recebe a notícia de falecimento do criminólogo argentino Roberto Bergalli aos 86 anos, em Barcelona. Bergalli trouxe grandes contribuições para o campo das Ciências Criminais na América Latina, dedicando-se, sobretudo, à análise do sistema de justiça criminal e do controle social punitivo na região.
Formado em Direito pela Universidade de Buenos Aires, Bergalli concluiu o doutorado em 1966 e, um ano depois, cursou Criminologia em Cambridge, seguindo para a Itália, onde estudou Criminologia na Universidade de Roma. Foi bolsista da Alexander von Humbolt-Stiftung em Colônia, na Alemanha, concluindo seu doutorado em Sociologia Criminal. Parte da vasta obra do autor pode ser encontrada na Biblioteca IBCCRIM, com artigos disponíveis também na versão digital.
A pedido do IBCCRIM, a professora Ana Lucia Sabadell, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreveu uma nota de pesar em que destaca a trajetória de Bergalli e seu legado para os estudos em Ciências Criminais.
Hoje faleceu o Mestre de muitos entre nós, o professor e criminólogo Roberto Bergalli, aos 86 anos em Barcelona. Isso causa muita tristeza a todas as pessoas que tiveram sua formação marcada pelos seus ensinamentos.
Pensei em escrever uma nota sobre os preciosos ensinamentos do  Professor, que dedicou grande parte de sua vida ao estudo da criminologia e do  controle social punitivo na América Latina. Escreveu também muito sobre problemas  da Europa, mas tinha um compromisso político e científico conosco, latinos,  mesmo residindo, desde seu exílio, em Barcelona.
Preciso contar uma história que mostra a importância de Roberto Bergalli  para a América Latina e acho que será a melhor forma de homenageá-lo. Em 1987-89  se realizava um dos primeiros cursos de pós-graduação em Criminologia critica na  Espanha, em Barcelona, vinculado à Comunidade Européia (Common Study Programme on  Criminal Justice and Critical Criminology). Bergalli fundou esse curso  juntamente com Alessandro Baratta, Juan Bustos Ramirez e Jock Young. A versão  espanhola do curso foi inicialmente ministrada na faculdade de direito da  Universidade Autónoma de Barcelona. Ele se empenhou muitíssimo com esse curso.  Era a oportunidade de difundir a criminologia crítica e formar massa crítica de  juristas com pensamento antagónico às ortodoxias doutrinárias.
Na América do Sul vivíamos uma fase de  transição para a democracia. Éramos jovens e tínhamos a cabeça povoada de  esperanças e também muita indignação contra um sistema de justiça penal que  reproduzia a violência do Estado e reafirmava a exclusão social. E creiam-me,  eram tempos difíceis. Tempos da Rota (paulistana) que matava dois civis para  cada policial morto em serviço (eles diziam, “policiais em confronto”). Tortura  e maus tratos eram comumente empregados nas delegacias de polícia Brasil afora,  apesar dos esforços que muitos faziam para combater tais práticas. Igualmente  comum era também a cegueira do Ministério Público e da magistratura para tais  práticas que alimentavam a “legalidade” do sistema de justiça penal.
Neste período, não tínhamos cursos de  criminologia no Brasil. Além dos professores Nilo Batista e Juarez Cirino dos  Santos, ninguém mais sabia no Brasil o que era “criminologia crítica. Bergalli conhecia  muito bem essa realidade. Era um homem extremamente culto, cosmopolita e  poliglota. Argentino, cursou direito na UBA e se doutorou em 1966. Estudou  Criminologia em Cambridge em 1967, posteriormente estudou direito penal e  Criminologia na Universidade de Roma. Também foi bolsista da Alexander von  Humbolt-Stiftung na Colônia, onde obteve doutorado em Sociologia Criminal. Foi  diretor científico do prestigioso Instituto Internacional de Sociologia do  Direito Oñati (país Basco- Espanha). Bergalli foi perseguido político e passou por  todas as arguras da ditadura militar em seu país, até ser exilado na Espanha.
Roberto, como carinhosamente muitos de nós o  chamavam, era um profundo conhecedor das mazelas dos sistemas de justiça da  América Latina. Consciente dessa realidade empenhou-se em organizar a versão  espanhola do referido curso de máster no final dos anos de 1980, junto com o  professor chileno (também exilado) Juan Bustos Ramirez. Ele começou a receber  dezenas de estudantes latinos todos os anos. Era um compromisso político do  qual ele nunca abriu mão. Foi neste período que tive a oportunidade de estudar  com o professor Bergalli. Em uma turma de pouco mais de 20 alunos em 1988, 12  eram da América Latina e praticamente todos com bolsa de estudos. É incrível  pensar que até uma consciência política do que significa ser latino americano  este professor nos propiciou. Seguramente eram outros tempos e não se  “flertava” com os regimes militares.
Roberto era um professor dedicado e não era nada  fácil estudar com ele. Dizia que para enfrentar o sistema era preciso dominar o  discurso científico. Poder se combate com domínio sobre o ‘poder”. Aprovar uma  disciplina com ele exigia de nós um esforço hercúleo. Passei noites me  preparando para os seus seminários. Depois do retorno de Juan Bustos Ramirez  para o Chile, ele fez algumas alterações no programa do curso de Mestrado em Sistema Penal y Problemas Sociales e o  levou para a faculdade de Direito da  Universidade de Barcelona, onde era professor concursado. Roberto Bergalli  continuou formando estudantes latinos por mais de duas décadas. Fui a sua  primeira aluna brasileira, mas não a última. Graças ao seu empenho muitas e  muitos de nós, deste lado dos trópicos, tivemos acesso a um conhecimento inacessível  ou mesmo “proibido” nos anos da ditadura militar.
Nesse dia de dor interessa mais resgatar o  perfil político e humanitário deste grande homem, talvez pouco conhecido do  público afeito ao estudo de suas teorias sobre o controle social e o pensamento  criminológico. Nos últimos anos o grande mestre, que publicou mais de 200  estudos, sobretudo na Europa e na América Latina, parou de escrever. Foi vítima  de um Alzheimer que afetou sua capacidade de cognição. Porém, seu legado  continua. Meus colegas de máster no final dos anos de 1980, hoje docentes na  Espanha e em muitos países da América Latina beneficiaram-se de seu legado. Bergalli  foi fonte de inspiração para o Manual de sociologia jurídica que escrevi ao  retornar ao Brasil. Sua visão crítica sobre o controle social e o controle  punitivo do sistema de justiça penal formou dezenas de combatentes  intelectuais, pessoas lúcidas e comprometidas com a construção de um mundo que  incluísse a todas e todos.
Descanse em paz professor, fica aqui a infinita saudade e a justa homenagem da Criminologia brasileira nesta data, de uma tarde ensolarada desde uma janela reclusa, mas não fechada à reflexão.
Ana Lucia Sabadell