Alinhado à tradição crítica das ciências criminais, o IBCCrim sempre
questionou o axioma da neutralidade política do Direito e das instituições
judiciais, que no âmbito da justiça criminal permite que polícias,
Ministério Público e Judiciário atuem com seletividade e arbitrariedade
contra os setores mais vulneráveis da sociedade. Justamente por compreender
essa tendência política do Direito e da justiça é que o Instituto sempre se
posicionou a favor de reformas legislativas e práticas processuais que,
reconhecendo o caráter político da lei e de sua aplicação, buscassem
efeitos reparadores de desigualdades e preservassem o devido processo
legal, as liberdades fundamentais e a efetiva independência judicial.
Isso vale também e muito especialmente para o STF, mais alta instância
judicial e corte constitucional do país. É ingênuo esperar que o Supremo
seja politicamente neutro, em face dos mecanismos de recrutamento e
investidura de seus ministros no cargo e da natureza das questões a eles
submetidas. A indicação de Alexandre de Moraes para a vaga deixada pela
morte de Teori Zavascki no STF, contudo, ultrapassa todos os limites
aceitáveis do caráter político que se espera de qualquer corte
constitucional.
Em primeiro lugar, pelas ideias e teses que Moraes defende e representa.
Como Secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, adotou
práticas repressivas autoritárias e coniventes com a violência policial.
Sob sua gestão, nada foi feito para conter os crescentes índices de
letalidade policial, o número de chacinas aumentou e a Secretaria foi
acusada por organizações de direitos humanos e pela imprensa de alterar e
omitir estatísticas oficiais.
Foi também durante a sua gestão que a Polícia Militar reprimiu
violentamente estudantes secundaristas em legítima mobilização democrática.
Moraes chegou a desafiar o Judiciário nessa questão, quando assumidamente
descumpriu determinação judicial para que a Tropa de Choque da PM deixasse
o prédio do Centro Paula Souza, instituição da rede estadual de ensino
técnico na capital paulista, ocupado por estudantes em 2016. Antes de
deixar a Secretaria de Segurança Pública, Moraes elaborou consulta à
Procuradoria-Geral do Estado sobre a possibilidade do Executivo realizar
diretamente a reintegração de posse de prédios públicos ocupados por
movimentos políticos, com o emprego de força policial e sem o recurso ao
Judiciário. Com parecer positivo do Procurador-Geral, a PM iniciou a
desocupação de escolas técnicas estaduais ainda ocupadas, ao arrepio da
Constituição, no mesmo dia em que Moraes assumiu o Ministério da Justiça e
anunciou sua disposição em reprimir os movimentos sociais que àquela época
protestavam em todo o país.
Como Ministro da Justiça, Moraes foi na contramão do amplo consenso mundial
que progressivamente se forma pela descriminalização das drogas, e anunciou
o objetivo – sabidamente inalcançável e custoso de vidas e recursos
financeiros – de erradicar a maconha da América Latina. Pouco tempo após
remanejar recursos do Fundo Penitenciário para investimento em políticas
repressivas, presenciou no início deste ano a maior crise do sistema
prisional desde o massacre do Carandiru, em 1992, à qual respondeu com um
plano de segurança repleto de soluções comprovadamente equivocadas e com o
emprego inconstitucional das Forças Armadas para controlar rebeliões em
presídios. Com a eclosão de uma nova crise de segurança pública, dessa vez
no Espírito Santo, Moraes mostrou descaso ao se licenciar do Ministério da
Justiça para realizar de maneira acintosa – inclusive porque
escancaradamente às raias das regras constitucionais que disciplinam
sabatina pública com ritual adequado – sua campanha por uma vaga no
Supremo.
Não bastassem esses fatos incontestes que demonstram visões e práticas de
política criminal e de direitos humanos contrárias à Constituição e ao
Estado Democrático de Direito, pairam ainda dúvidas sobre Moraes que
justificariam, no mínimo, o adiamento de sua sabatina e nomeação, para o
melhor esclarecimento dos fatos – se não a retirada de sua indicação.
A primeira dessas dúvidas diz respeito aos interesses de um governo
altamente implicado em ruidosa investigação criminal, que tramita inclusive
no STF, em ter um membro de seu núcleo político com assento na Corte.
A segunda dúvida diz respeito às acusações de conduta acadêmica indevida e
às suspeitas sobre a qualidade da produção científica que produziu em uma
carreira meteórica.
Por isso, dado o descompasso de suas práticas e ideias com os princípios
constitucionais e democráticos, bem como as dúvidas sobre seu saber
jurídico e sua reputação, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
repudia veementemente a indicação de Alexandre de Moraes para o Supremo
Tribunal Federal, e conclama a sociedade brasileira e a comunidade jurídica
para um amplo debate sobre os mecanismos de seleção das pessoas indicadas a
exercerem cargo de ministros do STF e sobre os sentidos politicamente
democráticos que deve assumir sua atuação como corte constitucional.