01 de Outubro de 2020
Neste mês de outubro, a condenação do Brasil no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde completa quatro anos.1 O precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos pode servir de base para uma guinada paradigmática na aplicação da lei penal nos casos de trabalho escravo no Brasil, sob a perspectiva da vítima, rompendo com a tradição de discursos jurídicos discriminatórios, que banalizam violações à dignidade, invisibilizando pessoas em situação de vulnerabilidade, sobretudo trabalhadores negros e de origem muito pobre, que acabam submetidos a condições de escravidão no país.
A sentença da Corte IDH no caso
No julgamento do caso, a Corte IDH reconheceu a existência de uma discriminação estrutural histórica em razão de posição econômica no Brasil, que coloca milhares de trabalhadores em posição de vulnerabilidade. De acordo com o precedente, as vítimas em geral são homens pobres, negros, originários de estados muito pobres, sendo muitos analfabetos, sem identificação civil, e com histórico de deslocamento contínuo para buscar sustento econômico.
Foi preciso que um, entre os tantos casos de exploração de trabalho escravo no país, fosse levado a uma corte internacional, para que se chegasse à conclusão de que as condições degradantes de trabalho no Brasil carregam a marca da discriminação histórica e estrutural de trabalhadores, fundada em raça, origem e posição econômica. É nesse sentido que o precedente internacional, que deve servir de base ao controle de convencionalidade no julgamento de outros casos, representa uma guinada paradigmática em relação ao discurso jurídico discriminatório que costumava vir estampado na jurisprudência brasileira.
Em primeiro lugar, a sentença estabeleceu o dever do Estado de respeitar e garantir direitos, sem discriminação. Para tanto, assentou que Estados devem abster-se de ações que, direta ou indiretamente, venham a criar situações de discriminação, de direito e de fato, além de adotar medidas positivas para reverter ou mudar situações discriminatórias existentes nas sociedades, em prejuízo de determinado grupo de pessoas. Assim, não basta que os Estados se abstenham de violar direitos, sendo imperativa a adoção de medidas positivas, determináveis em função das necessidades particulares de proteção do sujeito de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontra, como a pobreza ou a marginalização.2 Por fim, a Corte entendeu que o Estado incorreu em responsabilidade internacional por ter sido omisso no dever de adotar medidas específicas a respeito da vulnerabilidade das pessoas recrutadas na Fazenda Brasil Verde.
Para fundamentar a conclusão de discriminação estrutural no caso concreto, a Corte identificou algumas características de particular vitimização entre os trabalhadores resgatados: a situação de pobreza dos trabalhadores; o fato de serem provenientes de regiões muito pobres do país, com menor desenvolvimento humano e perspectivas de trabalho e emprego; o fato de serem analfabetos, com pouca ou nenhuma escolarização; o fato de serem suscetíveis a recrutamento mediante promessas falsas e enganosas.3 Esse conjunto de fatores ensejou a conclusão de existir tratamento discriminatório em razão da posição econômica das vítimas resgatadas de condições de escravidão no caso concreto.
Entre as omissões do Estado brasileiro, constatou-se omissão em relação ao lapso temporal, eis que o Estado não atuou com prontidão dentro das primeiras horas e dias logo depois da denúncia de escravidão e violência, além da ausência de coordenação entre as ações de inspeção e demais medidas de devida diligência em relação às vítimas e à própria investigação do caso. Constatou-se, então, que o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de realizar ações efetivas para eliminar trabalho forçado, tráfico de pessoas e servidão por dívidas, assim como de remover obstáculos de acesso à justiça com fundamento na origem, etnia, raça e posição econômica das vítimas, que permitiu a manutenção de fatores de discriminação estrutural, que facilitaram que os trabalhadores da Fazenda fossem vítimas de tráfico, escravidão e trabalho forçado.
No que diz respeito à ausência de proteção judicial às vítimas e à razoável duração dos processos, concluiu-se que restou caracterizada a violação aos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana, em razão da demora injustificada de processar e julgar o caso; a ausência de uma autêntica vontade de investigar com devida diligência; a opção de suspensão condicional do processo ao perpetrador; e a extinção da punibilidade pela prescrição, não obstante as condutas de escravidão e trabalho forçado constituírem graves violações de direitos humanos, cuja proibição absoluta por norma de jus cogens inadmite a possibilidade de prescrição.4 No caso, considerou-se que a discriminação estrutural a que estavam submetidas as vítimas era também perpetrada pelo Estado, que não lhes garantiu o acesso à justiça, na medida em que não houve instauração de processo criminal quando identificadas as irregularidades trabalhistas, além de ter sido firmado acordo com o empregador sem levar em consideração os interesses dos trabalhadores.
A Corte também demonstrou sua intenção de beneficiar a maior quantidade possível de vítimas de trabalho escravo. Nesse sentido, afastou a preliminar de incompetência ratione personae a respeito de supostas vítimas não identificadas; de vítimas identificadas que não outorgaram procuração; e de vítimas não relacionadas no relatório de mérito da Comissão. Assim, estabeleceu-se a desnecessidade de outorga de procuração pela coletividade de vítimas de trabalho escravo, afastando, com isso, qualquer exigência de formalidade que não sirva para garantir direitos, ou que tenha sido apresentada com o intuito de obstaculizar o acesso a mecanismos de proteção. Consagra-se, aqui, o princípio do acesso à justiça, por meio da garantia judicial insculpida no artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, combinada com a garantia de proteção judicial estabelecida no artigo 25, conferindo máxima efetividade ao princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Para garantir o direito à reparação integral às vítimas, com fundamento no artigo 63.1 da Convenção, a Corte determinou a reabertura das investigações, com devida diligência, para, em prazo razoável, identificar, processar e, se for o caso, sancionar os responsáveis, assegurando, em particular, o pleno acesso às vítimas e seus familiares em todas as etapas da investigação. Quanto à compensação pelos danos imateriais, a Corte fixou indenização pelos sofrimentos causados pela violação, por equidade, no valor de 30 e 40 mil dólares para cada um dos trabalhadores, sendo, respectivamente, aqueles identificados na fiscalização de 23 de abril de 1997 e de 15 de março de 2000.5
Precedentes de trabalho escravo na jurisprudência criminal brasileira
Em contraposição à identificação de discriminação histórica estrutural de determinados grupos sociais no Brasil, a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais no Brasil, apesar de reconhecer a violação à dignidade humana como suficiente para caracterizar o crime de trabalho escravo, não raro, vinha se firmando no sentido de banalizar situações recorrentes de violações à dignidade humana de trabalhadores, em evidente discriminação das pessoas pertencentes a determinados grupos sociais vulneráveis.
Destacam-se, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a decisão proferida no bojo do Inquérito INQ 00268232620124010000, referente a caso em que não foi caracterizado trabalho escravo, apesar da submissão de trabalhadores à jornada exaustiva, por se tratar de situação que envolvia “necessidade de colheita imediata de safra perecível, considerada circunstância comum no campo, exigindo um esforço extra da mão de obra”,6 assim como a decisão de absolvição proferida no bojo da apelação criminal ACR 2008.43.00.001748-0, fundamentada no entendimento de que “condições degradantes de trabalho são um retrato da própria realidade interiorana do país”.7
Por seu turno, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região é a corte que reúne parte mais significativa de precedentes de banalização da exploração do trabalho escravo. É o caso da decisão proferida no bojo da apelação criminal ACR 00037397720134058300, no sentido de que ausência de local para se abrigar do sol e da chuva, para realizar necessidades fisiológicas, e ausência do fornecimento de água suficiente para hidratar quem trabalha exaustivamente sob o sol seriam condutas que violam apenas direitos trabalhistas.8 Na decisão proferida na ação penal APN 00054681220114058300, entendeu-se que condições de ausência de locais adequados para troca de vestimentas, ausência de exames médicos periódicos, ausência de fornecimento de equipamento de proteção individual adequado aos riscos a que são expostos os trabalhadores, inclusive, daqueles expostos a agrotóxicos, ausência de instalações sanitárias em estado de asseio e higiene adequados, ausência de fornecimento adequado de água potável e ausência de refeitório, embora representem graves infrações à legislação trabalhista, “não são elas diferentes da realidade de trabalho de muitos dos empreendimentos agrícolas da região Nordeste”.9 Ainda, na apelação criminal ACR 200782020041980, consta da fundamentação da decisão que os fatos “não se afastam da realidade social, infelizmente, vivenciada pelas pessoas pobres residentes nas cidades do interior nordestino, que delas saem para arriscar uma ocupação qualquer em outras plagas”. 10 Nessa mesma linha, na apelação criminal ACR 200783000177204, entendeu-se que as condições, “de fato, precárias, não destoam, entretanto, da realidade vivida na zona rural nordestina”. 11 Por fim, o posicionamento discriminatório do Tribunal, aumentando o fosso da desigualdade social, restou estampado na decisão proferida no HC 00030912720144058312, em que se entendeu que a conduta estaria justificada pela situação de emergência da obra, que não poderia parar, sob pena de acarretar “prejuízos inimagináveis”. 12
O que, numa análise perfunctória, poderia ser interpretado como um posicionamento garantista desses tribunais, a rigor, retrata a banalização da violação à dignidade humana das pessoas pertencentes a grupos mais vulneráveis, histórica e estruturalmente discriminados no Brasil. A discriminação histórica e estrutural, fundada em raça, origem e posição econômica, conforme parametrizada pela Corte IDH, é o que, ao mesmo tempo em que invisibiliza as vítimas de trabalho escravo e de outras violações de direitos humanos perpetradas contra grupos sociais vulneráveis, por outro lado, dentro da seletividade do processo penal, também incrimina e encarcera essas mesmas pessoas, quando estão no banco dos réus, em outros tipos penais.
Possibilidades de repercussão do precedente no processo penal brasileiro
Além da banalização das situações que configuram exploração de trabalho escravo, mesmo nos casos em que a violação é constatada, as vítimas costumam ficar invisibilizadas no processo criminal, e raramente figuram como assistentes de acusação,13 fazendo com que a repressão criminal não acarrete efetiva compensação a esse grupo vulnerável.
No sistema de justiça brasileiro, a repressão criminal ainda está muito mais focada na sanção aos perpetradores do que na compensação às vítimas, ao contrário do caminho que aponta a jurisprudência da Corte IDH. Com efeito, as vítimas de uma violação de direitos humanos, como é o caso da exploração do trabalho em condições de escravidão, podem figurar no respectivo processo criminal na qualidade de assistentes de acusação, com base no artigo 387, IV do Código de Processo Penal. Com o advento da reforma do Código em 2008, pela Lei 11.719, o referido dispositivo legal passou a contar com nova redação, conferindo ao juiz criminal a competência para, na sentença penal condenatória, fixar o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido – o que antes era diferido para o momento da ação civil ex delicto. Figurando no processo como assistente de acusação, a vítima pode participar de toda a dilação probatória – e, pelo parâmetro da Corte IDH, inclusive da fase de investigação ,– o que tende a garantir maior efetividade à repressão criminal, sobretudo na perspectiva do interesse das vítimas, para garantia de proteção, assistência e acesso a reparações efetivas. Durante a instrução criminal, além da busca de provas para a condenação, o assistente de acusação pode instruir o processo com informações que comprovem os danos suportados pelas vítimas e forneçam base para a fixação da respectiva indenização.
Ressalte-se que eventual demora no processo criminal, com reconhecimento de prescrição em relação à pena criminal, poderia, em tese, alcançar a indenização fixada, porquanto efeito secundário da condenação, possibilitando à vítima a via remanescente da ação civil ex delicto, sujeita ao prazo prescricional de três anos previsto no artigo 206, §3º, V do Código Civil, com possibilidade de interrupção da prescrição durante a tramitação do processo criminal, nos termos do artigo 202, parágrafo único, do mesmo diploma legal. No entanto, o caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde reconheceu a imprescritibilidade do crime de submissão à condição de escravidão contemporânea por se tratar de uma grave violação de direitos humanos. E, se há imprescritibilidade no processo criminal, que é a ultima ratio do direito, é possível defender a tese da imprescritibilidade também perante a Justiça do Trabalho nos casos de trabalho escravo.
Não obstante, o instituto da reparação ao ofendido ainda é pouco utilizado na prática do processo penal brasileiro, em que as vítimas costumam participar apenas na condição de testemunhas de acusação, com o objetivo de produzir a prova para a condenação do acusado, sem o devido recebimento de indenização pelas violações suportadas e, muitas vezes, sem mesmo qualquer observância de medidas de proteção e para evitar a revitimização. Ao participar do processo penal como testemunha de acusação, a vítima se expõe, revive o trauma, passa por processos de revitimização e fica numa posição passiva, sem qualquer ingerência na busca da verdade e do direito à reparação em decorrência da violação suportada.
Num dos poucos casos de condenação a título de reparação ao ofendido, em caso concreto em que as vítimas figuraram como assistentes de acusação no processo penal, além de os depoimentos terem causado muito sofrimento e o processo ter tido longa duração, o valor fixado a título de compensação pelas violações perpetradas foi de apenas 5 mil reais por trabalhador.14 Assim, os valores objeto da condenação do Brasil no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde também devem servir de parâmetro para fixação de reparação ao ofendido em decisões internas de casos semelhantes pelo controle de convencionalidade.