03 de Abril de 2010
A República Federativa do Brasil constituiu-se em Estado Democrático de Direito por intermédio da Constituição Federal de 1988. Trata-se de modelo de Estado que deve ser edificado racionalmente por meio da obtenção discursiva do entendimento entre os seus cidadãos, respeitando-se sempre o piso teórico (historicamente conquistado) dos direitos e das garantias fundamentais.
Neste contexto, advém a ideia de processo como instrumento de concretização dos direitos fundamentais da pessoa. O processo, na contemporaneidade, passa a ser compreendido como “braço” executor da Constituição, empenhado que está em assegurar e efetivar os direitos fundamentais normatizados.
É, pois, dessa perspectiva, que se pretende questionar os fundamentos apontados pela doutrina para legitimar a prisão em flagrante, a qual sabidamente implica uma severa restrição ao direito constitucional de liberdade da pessoa.
Como se trata de prisão efetuada antes de qualquer condenação (antes mesmo da investigação preliminar) e visando a observar o princípio constitucional da presunção de inocência, a doutrina, há muito, foi buscar seu fundamento na teoria da cautelaridade: a prisão em flagrante se justifica por ser uma modalidade de prisão cautelar e, assim, poderá ser determinada sempre que presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis.
Mas, ao afirmar a natureza cautelar dessa modalidade de prisão, a doutrina logo encontrou um obstáculo: segundo o art. 304, § 1º, do Código de Processo Penal, a prisão em flagrante é uma medida determinada pela autoridade policial, e não pelo Poder Judiciário.
Sabe-se que o poder de cautela é inerente à atividade jurisdicional(1). Se nem mesmo no processo civil se admite a concessão de cautela por órgão que não possua poder jurisdicional, como aceitá-la no processo penal, quando se sabe que dela resultará privação da liberdade de uma pessoa?
Para “driblar” esse primeiro obstáculo, a doutrina se apoiou na noção de “atuação jurisdicional a posteriori”: como o juiz deverá confirmar posteriormente a prisão, quando da análise da cópia do Auto de Prisão em Flagrante (APF), é possível seguir afirmando o caráter cautelar (jurisdicional) da prisão em flagrante.
Mas há outro obstáculo à atribuição de natureza cautelar ao instituto. Como se sabe, para que o Judiciário possa determinar uma prisão cautelar, é necessário que estejam presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis. Ocorre que o fato de uma pessoa ser surpreendida em uma situação de flagrante nada informa sobre o periculum libertatis.
Em outros termos, a circunstância de uma pessoa ser surpreendida em flagrante pode sim traduzir a existência de fortes indícios de autoria do crime (aquilo que a doutrina tem denominado “certeza visual do crime”). E é também certo que a presença desses indícios pode conduzir a um juízo de existência do fumus commissi delicti. Mas isso em nada ajuda no tocante ao juízo de necessidade cautelar da prisão (periculum libertatis).
Logo, a fim de “salvar” a natureza cautelar dessa espécie de prisão, muitos autores passaram a defender que, na prisão em flagrante, o periculum libertatis seria avaliado posteriormente pelo juiz, quando do recebimento da cópia do APF. Nesse momento, o Judiciário corroboraria ou não o juízo de existência do fumus commissi delicti, feito inicialmente pela autoridade policial, e, analisando a presença do periculum libertatis, decidiria pela manutenção da prisão (cautelar) ou pela concessão de liberdade provisória, conforme o caso.
Tal entendimento, embora sedutor, traz alguns problemas que merecem ser destacados.
Preocupa, inicialmente, que a prisão em flagrante, a partir do instante em que é concluída a lavratura do APF, não tenha qualquer argumento de legitimidade, a não ser o argumento normativo (positivista), que se extrai das normas previstas no art. 304, § 1º, do CPP e no art. 5º, LXI, da CR.
É preciso, então, para melhor compreensão da questão que se quer colocar, que se discriminem alguns momentos da dinâmica procedimental da prisão em flagrante, que ora chamaremos “fases procedimentais da prisão em flagrante”.
A primeira fase, que chamaremos “fase da situação flagrancial”, inicia-se com a captura da pessoa em situação de flagrante delito pelo agente policial ou por qualquer do povo, e se encerra com a condução da pessoa à presença da autoridade policial. Segue uma “fase de documentação do flagrante”, que começa com a lavratura do APF e termina com a conclusão deste. Há, ainda, uma terceira fase, que chamaremos “fase administrativa”, que tem início com a decisão da autoridade policial, determinando a prisão em flagrante do conduzido (art. 304, § 1º, do CPP) e que perdura até a análise judicial da cópia do APF. Por fim, segundo a doutrina, há uma última fase, que denominaremos “fase jurisdicional”, que se inicia com a decisão judicial que ratifica a prisão em flagrante e que termina com a extinção, por qualquer motivo, dessa modalidade de prisão.
Pois bem. Feito esse desmembramento procedimental, faz-se necessário analisar a legitimidade de cada uma das fases do procedimento da prisão em flagrante. Para isso, é preciso ter em mente os motivos históricos apontados pela doutrina para legitimar a adoção do instituto.
O instituto da prisão em flagrante, abstraindo o caráter retributivo e antecipatório da culpabilidade que o marcou ao longo de sua evolução histórica, sempre esteve vinculado a duas funções fundamentais: a) uma função material, que consiste em interromper a ação do agente, visando a evitar que ela cause danos ao bem jurídico tutelado ou, caso impossível a interrupção, que pelo menos sejam minimizados os danos ou as suas consequências; b) uma função formal, que consiste em acautelar as provas do fato aparentemente delituoso, o que se conseguiria com a sua quase imediata documentação (lavratura do APF). São estas as duas funções que parecem justificar a existência do instituto(2). Diante dessa premissa, é fácil perceber que, naquela fase inicial do procedimento da prisão em flagrante (“fase da situação flagrancial”), o Estado consegue atingir a função material dessa espécie de prisão: com a captura e condução do flagrado se impede ou se reduz os danos ao bem jurídico e/ou as suas consequências.
Com a segunda fase (“fase de documentação do flagrante”), o Estado atinge a segunda finalidade da prisão em flagrante (função formal do flagrante): consegue documentar as provas do fato aparentemente delituoso, quase que imediatamente após a sua ocorrência.
Mas observe que, a partir de então, as duas funções legitimadoras do instituto já foram alcançadas, o que nos leva a indagar: o que legitimaria, portanto, as duas últimas fases procedimentais da prisão em flagrante (“fase administrativa” e “fase jurisdicional”)?
Dito de outro modo: no exato instante em que a autoridade policial lavra o APF as duas funções que legitimam o instituto já estão cumpridas. Mas é exatamente neste momento que o nosso Código estabelece que seja determinada a prisão do conduzido, se presente o fumus commissi delicti – início da “fase administrativa” da prisão em flagrante. O que justificaria, então, a prisão a partir deste momento?
Não pode ser uma razão de natureza cautelar por dois singelos motivos: a) a decisão não foi jurisdicional, mas de agente do Poder Executivo; b) não se analisou a necessidade da prisão (periculum libertatis), o que somente ocorrerá na “fase jurisdicional” do procedimento da prisão em flagrante. Também não pode ser para que o instituto cumpra suas relevantes funções, porque estas, neste momento, já estarão cumpridas.
Desse modo, se toda prisão anterior à condenação definitiva somente pode ser fundamentada em um discurso cautelar, como justificar a privação da liberdade do conduzido do momento em que é lavrado o APF até o momento em que o magistrado verifica a necessidade de adoção da medida cautelar?
Nesse interregno, a liberdade do acusado pode ficar cerceada por dias sem qualquer fundamento cautelar (o juiz, posteriormente, pode até mesmo constatar a inexistência de fundamentos que justifiquem a adoção da cautela). Qual seria, então, o fundamento legitimador da prisão do conduzido neste período?
De qualquer forma, ainda que abstraíssemos esse primeiro problema de legitimidade da prisão em flagrante, esbarraríamos com outro obstáculo logo à frente.
Isso porque, iniciada a “fase jurisdicional”, o juiz, de posse do APF, deverá, segundo a doutrina, ratificar a presença do fumus commissi delicti e verificar a presença do periculum libertatis. E, para a verificação desse último requisito, o juiz irá recorrer às hipóteses previstas no artigo 312 do CPP, legitimadoras da prisão preventiva.
Mas, é de se perguntar, qual é a necessidade de dois institutos jurídicos (prisão em flagrante e prisão preventiva) quando as suas hipóteses legitimadoras, ao menos na fase jurisdicional do flagrante, são as mesmas?
Soma-se a isso o conhecido fato de que, de um modo geral, no cotidiano forense, os juízes não têm realizado análise profunda da cópia do APF que recebem – isto quando realizam alguma análise. Dessa forma, lamentavelmente, aqueles conduzidos que não possuem condições financeiras de custear uma defesa eficaz permanecem presos indefinidamente.
Estaria, de fato, havendo confirmação ex officio da prisão em flagrante pelo juiz, com a necessária fundamentação (afinal, trata-se de decisão que impõe medida cautelar), ou isso só ocorreria com eventual provocação da defesa, por meio do pedido de liberdade provisória?
A teoria jurídica não pode se afastar de tal modo da realidade sobre a qual pretende incidir, sob pena de cairmos naquele “autismo jurídico”, mencionado por Aury Lopes Jr.
Diante dos problemas levantados, é forçoso tentar reconstruir a teoria da prisão em flagrante a partir de um paradigma racional e democrático. Para tanto, em muito pode contribuir a concepção de Aury Lopes Jr. acerca da natureza pré-cautelar da prisão em flagrante(3).A prisão em flagrante, nessa ótica, cumpriria um papel relevante no Estado Democrático de Direito, qual seja, o papel de viabilizar a aplicação de eventual medida cautelar que se considere necessária. Com essa teoria, aliás, seria possível justificar a terceira fase procedimental da prisão em flagrante (“fase administrativa”).
A prisão determinada pela autoridade policial após a lavratura do APF teria a função (terceira função, portanto, da prisão em flagrante) de assegurar a aplicação de um medida cautelar, caso esta se faça necessária. Assim, ficaria o réu custodiado (pré-cautelarmente) até que o juiz recebesse a cópia do APF e verificasse a necessidade ou não de aplicação de medida cautelar (prisão preventiva).
Com isso, se, de um lado, legitima-se a “fase administrativa” da prisão em flagrante, de outro, exclui-se a necessidade da reclamada “fase jurisdicional” do instituto, já que, no momento em que o juiz toma posse do APF, incumbe a ele decidir se é caso de decretação da prisão preventiva (verdadeira medida cautelar) ou de concessão de liberdade provisória, não mais se fazendo necessária, em qualquer caso, a prisão em flagrante – que a essa altura já teria cumprido as suas funções.
NOTAS
(1) Segundo THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo cautelar. 17. ed. São Paulo: LEUD, 1998. p. 55: “modernamente, já não se põe em dúvida que a cautela é poder implícito dentro da jurisdição”.
(2) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Regimes constitucionais da liberdade provisória. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 103.
(3) LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 62-66.
Galvão Rabelo
Especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.
Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, em Ubá, Minas Gerais.
Advogado.