Editorial do Boletim 323 - Outubro de 2019
O debate recente sobre os 19 pontos vetados pelo presidente da República na Lei 13.869/2019, mais conhecida como “nova” Lei de Abuso de Autoridade, trouxe à tona a discussão sobre direito de defesa, combate à corrupção, presunção de inocência e devido processo legal.
É louvável a preocupação do legislador em atualizar a defasada Lei de Abuso de Autoridade, que é de 1965. A antiga lei, editada durante os “anos de chumbo” da Ditadura Civil-Militar brasileira, vem sendo criticada desde o início, eis que se voltava, na verdade, à proteção de autoridades que incorressem em abuso, mediante a cominação de penas muito inferiores àquelas cominadas a fatos análogos praticados por particulares. A nova lei define os crimes de abuso de autoridade e pretende alterar esse estado de coisas, violador da proporcionalidade e da igualdade, definindo de forma mais objetiva os crimes e cominando penas mais consentâneas com a gravidade dos delitos cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído (art. 1º).
É inegável que a discussão se dá em boa hora, pois os vazamentos do site The Intercept mostram abusos reiterados praticados por membros do Ministério Público Federal e Magistratura, subvertendo o sistema acusatório e o devido processo legal.
Todavia, em um cenário de inchaço legislativo penal, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais tem a obrigação de buscar elementos para a reflexão e racionalização do debate.
Mais uma vez, assiste-se a uma polarização da política nacional. De um lado, alguns magistrados, promotores e policiais se contrapõem à novel Lei, alegando cerceamento de suas atividades profissionais. De outro, uma parcela de profissionais do Direito aguarda a atualização e aprimoramento da antiga Lei de 1965.
Por que, afinal, seria oportuna, hoje, a nova Lei de Abuso de Autoridade?
Quando o legislador constitucional inseriu o artigo 133 na Carta Magna, reconhecendo que o exercício da advocacia é fundamental para a realização da Justiça, quem ganhou foi a própria cidadania. Em um país democrático, o agente público que comete abusos, por óbvio, deve ser responsabilizado. Observamos uma tendência dos meios de comunicação de desprestigiar a figura do defensor, de desacreditá-lo, fato que colabora para o déficit democrático do sistema de Justiça. Quando essa tendência se transforma em desrespeito a direitos, como a violação de escritórios de advocacia, impedimento de comunicação reservada do defensor com a pessoa presa ou, ainda, quando é dada voz de prisão ao advogado no exercício do seu mister, sem fundamento jurídico válido, quem perde é a própria cidadania. Tais violações são preocupantes e geram um desequilíbrio no processo democrático.
Porém, a expectativa de que uma lei penal vá promover a democratização do sistema de Justiça, contudo, não deixa de afigurar-se como ilusória. Diante de uma reflexão mais aprofundada sobre o tema, soa ingênuo apostarmos que mais uma medida simbólica, como tantas outras, seria capaz de mudar esse déficit democrático do nosso sistema de Justiça. A reforma processual capaz de retirar das autoridades judiciárias poderes absolutos e instituir, finalmente, o sistema acusatório no processo penal brasileiro, retirando sua matriz inquisitorial, perpassa por questões mais complexas e a mudança de toda uma cultura jurídica.
Ainda que se promova com rigor a criminalização primária de atos de abuso de autoridade, sabe-se que o Direito Penal não é instrumento hábil ao enfrentamento dos problemas estruturais que marcam as práticas do sistema de justiça brasileiro.
É bastante previsível que os dispositivos incriminadores apenas se abatam contra indivíduos dos estratos mais baixos do serviço público, ou contra juízes e promotores que não gozem de cobertura política suficiente no interior de suas instituições, que os protejam contra as tentativas de criminalização secundária com base na nova lei. Como qualquer lei penal, não há como se desconsiderar que sua aplicação se dará de forma essencialmente seletiva.
Nesse sentido, as formas de criminalização da dita “cifra dourada”, visando à penalização de atos dos poderosos, provavelmente se converterá em medida meramente simbólica, conclusão que se extrai das recentes experiências de movimentação da máquina penal contra indivíduos que não se enquadram no estereótipo delinquencial clássico. Por outro lado, não se pode desconsiderar a hipótese de que a criminalização do abuso de autoridade seja utilizada como instrumento de lawfare (criminalização por falta de cobertura), promovendo a persecução apenas daquelas autoridades que não demonstrem adesão ideológica ao projeto autoritário de encarceramento em massa encampado pela cúpula do Poder Judiciário brasileiro e pelo Ministério Público.
A democratização do sistema de Justiça, assim, demanda muito mais que a edição de uma norma penal. Há que se repensar a seleção dos magistrados e promotores, a ausência de participação social e de ouvidorias externas nessas instituições, a implementação de cotas nos concursos de ingresso e promoção, o estabelecimento de formas de responsabilização político-criminal e publicização das decisões etc.(1)
O IBCCRIM sedia a Plataforma Justa, que se propõe a coletar dados e avaliar as distorções havidas no sistema de Justiça no que diz respeito à representatividade, ao orçamento e ao teor das decisões. Nesse diapasão, a partir dos dados de 2018, a Plataforma identificou que, nos Tribunais Estaduais, a probabilidade de um homem branco tornar-se desembargador é 33,5 vezes maior que a possibilidade de uma mulher negra alçar a esse cargo. Dentre os juízes de primeira instância, 48,3% são homens brancos e 31,8% são mulheres brancas, sendo que apenas 11,8% dos juízes declaram-se como homens negros e 6,6% das juízas são mulheres negras.
No que toca aos dados orçamentários do sistema de justiça, a situação de falta de transparência e distorção acerca de prioridades também é evidente. Tomando-se por exemplo o Estado de São Paulo, verificou-se que, em 2018, 5,14% de todo o orçamento estadual foi destinado ao Tribunal de Justiça, sendo um montante superior à soma do orçamento destinado às áreas de assistência social, habitação, saneamento, direitos e cidadania, trabalho, ciência e tecnologia, ambiental, comunicação, esportes e energia.(2) Do orçamento do TJSP, 79% foi destinado exclusivamente ao pagamento de pessoal. Nesse diapasão, a plataforma revela que as remunerações de juízes e promotores no Estado superam em muito, na média, o teto constitucional.
Assim, o déficit democrático do sistema de Justiça é um problema muito mais complexo e que demanda propostas estruturais mais amplas do que a criminalização simbólica de algumas condutas, no sentido de desconstituição da cultura que alça as “castas judiciárias” a um estamento acima da regência da lei.
Se as investidas anteriores de endurecimento penal com vistas à mudança da cultura jurídica no país não foram bem-sucedidas, a repetição dessa fórmula não deverá contribuir significativamente para uma mudança estrutural e efetivação do sistema processual penal acusatório no país. Por outro lado, não se pode negar que o debate sobre as mais diversas formas de abuso de autoridade, ainda que pela via ilusória da edição de uma lei penal, aponta para o reconhecimento da lesividade desse tipo de conduta abusiva praticada por quem historicamente se comporta como se estivesse acima da lei. O reconhecimento da falta de controle das autoridades reforça o quanto precisa ser combatido o elitismo e o autoritarismo presentes sobretudo nas carreiras jurídicas, visando à efetivação de leis já existentes que protegem e garantem o respeito às prerrogativas profissionais e os direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs. A nova Lei de Abuso de Autoridade, assim, está muito longe de promover uma “revolução democrática da Justiça”, conforme preconizada por Boaventura de Souza Santos.(3) Contudo, o debate sobre a imposição de limites às autoridades e às práticas palacianas que marcam a cultura jurídica brasileira é urgente, o que se demonstra pela reação das corporações do sistema de Justiça contra o debate legislativo sobre o tema, no afã da manutenção de seus privilégios e de sua recusa em submeter-se à regência do ordenamento jurídico.
Notas
(1) Dentre essas medidas, a criação de ouvidorias externas do sistema de justiça e a criação de responsabilidade político-criminal para a criminalização de novas condutas encontram-se propostas nas “16 medidas contra o encarceramento em massa” do Ibccrim, Pastoral Carcerária, AJD e CEDD/UnB. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/docs/2017/16MEDIDAS_Caderno.pdf.
(2) Os dados podem ser conferidos em justa.org.br.
(3) Santos, Boaventura de Souza. Por uma revolução democrática da Justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
CORTES INTERNACIONAIS E SUAS DECISÕES COMENTADAS -
1 Introdução
Quando o professor Nilo Batista saudava os “colegas da garoa” pelos seus 15 anos, conheci o Boletim de Jurisprudência e o IBCCRIM.(1)
Encontro necessário. No dia a dia corrido de uma defensora, mãe solteira de dois filhos, não sobra tempo para pesquisas apuradas de Jurisprudência, época em que a internet não era uma ferramenta tão importante. Daí o encanto da descoberta! Graças a ele, o trabalho se qualificou e o STF, STJ e outros tribunais, até de terras longínquas, passaram a fazer parte da Vara de Execuções Penais, órgão em que atuei por oito anos.
Essa mesma felicidade da descoberta senti ao ter acesso ao Boletim nº 319, especialmente quando li o artigo “Um convite para pensar as Ciências Criminais a partir de uma perspectiva de direitos”.(2) Mais uma vez, a “turma da garoa” saindo na frente. A importância de se estudar o que as Cortes Internacionais de Direitos Humanos têm para oferecer ao estudo das ciências criminais é genial!
Importância esta que salta aos olhos nos tempos em que vivemos. Mas que se soma à necessidade de que o Brasil saia do “marasmo” imposto por sua histórica “condição de império”.(3) Explico-me: ao contrário das outras nações americanas, nosso país, em especial seu sistema de Justiça, recusa-se a aplicar os padrões (estândares) internacionais de direitos humanos dos tratados a que voluntariamente se submeteu. O senso comum é sempre no sentido de que as decisões dos Sistemas Internacionais não têm aplicabilidade, pois são políticas, ou são usadas como direito comparado,(4) ou a recusa se baseia na ideia de que “somos soberanos”.(5)
Felizmente esta mentalidade está mudando. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, os juízes da VEP estão fazendo “controle de convencionalidade” para aplicar as Decisões da Corte Interamericana no “Caso Medidas Provisionais do Presídio Plácido Sá Carvalho”: “Assim, considerando que a República Federativa do Brasil reconhece a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos desde 1998, em estrito cumprimento à Resolução de 22.11.2018, referente às medidas provisórias a serem adotadas para proteger a vida e a integridade das pessoas privadas de liberdade no Instituto Penal Plácido Sá carvalho, elabore-se manualmente cálculo penal, computando-se em dobro cada dia de privação de liberdade cumprido no IPPSC...”.(6)
Ventos de mudanças assolam nossa terra. Prova disso é nossa Corte Suprema. De acordo com Ramos: “A visão tradicional acima mencionada do STF no que tange aos tratados de Direitos Humanos passou por forte revisão. No recém julgado R.E 466.343, simbolicamente também sobre a prisão civil do depositário infiel, a maioria de votos sustentou novo patamar normativo para os tratados internacionais de Direitos Humanos, inspirados pelo § 3º do art. 5º da CF/88 introduzido pela EC 45/04.13/14 A nova posição prevalecente no STF foi capitaneada pelo Min. Gilmar Mendes, que, retomando a visão pioneira de Sepúlveda Pertence (em seu voto no HC 79.785-RJ15) sustentou que os tratados internacionais de Direitos Humanos, que não forem aprovados pelo Congresso Nacional no rito especial do art. 5º, § 3º da CF/88, têm natureza supralegal: abaixo da Constituição, mas acima de toda e qualquer lei. No mesmo sentido formaram a nova maioria os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Esta corrente, agora majoritária, admite, contudo, que tais tratados tenham estatuto constitucional, desde que aprovados pelo Congresso pelo rito especial do parágrafo 3º ao art. 5º (votação em dois turnos nas duas Casas do Congresso, com maioria de três quintos). Foram votos parcialmente vencidos, no tocante ao estatuto normativo dos tratados de Direitos Humanos, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie, que sustentaram a hierarquia constitucional de todos os tratados sobre Direitos Humanos, aprovados ou não pelo rito especial do art. 5º, § 3º. De fato, para Celso de Mello trata-se de adaptar a CF/88, pela via interpretativa, ao novo contexto social de aceitação da internacionalização dos Direitos Humanos. Assim, o Ministro Celso de Mello, revendo sua posição anterior, sustentou que os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil integram o ordenamento jurídico como norma de estatura constitucional. De acordo ainda com a posição do Ministro Celso de Mello, a CF/88 em sua redação original determina a prevalência dos Direitos Humanos (art. 4º, inc. II da CF/88) e reconhece o estatuto constitucional dos tratados internacionais de Direitos Humanos (art. 5º, § 2º da CF/88). Desta forma, os tratados de Direitos Humanos, mesmo que anteriores a EC 45/04, seriam normas consideradas constitucionais”.(7)
E que agora esta sessão ganha mais um aliado na luta pela internalização do Direito Internacional dos Direitos Humanos: a sessão do Boletim de Jurisprudência do IBCCRIM.
O “encanto da descoberta” esteve na primeira vez que li a sentença de Cabrera Garcia e Montiel Flores. O comando convencional reafirmou que os direitos de defesa existem desde que a pessoa é apontada como possível autora de um delito; que tem direito a contar com um advogado; que tem o direito ao tempo adequado para preparar sua defesa; que a tortura e os tratos cruéis produzem efeitos deletérios na confissão; que as vítimas de violação de direitos humanos têm direito a uma investigação séria, independente e imparcial, especialmente no contexto de usurpação militar de função policial; que todos os órgãos jurisdicionais devem fazer o controle de convencionalidade a fim de adequar a norma interna não só ao Pacto, como também à interpretação que lhe dá a Corte Interamericana, seu “intérprete último”.
Por essas e por outras é um caso paradigmático no Sistema Interamericano. Um artigo não seria suficiente. Por isso, tentarei resumir o máximo possível.
2 O caso
Trata-se de operação protagonizada pelo Exército Mexicano na comunidade Pizotla, Município de Ajuchitlán, no Estado de Guerrero, com intenção de combater o tráfico de drogas visto que havia a informação de que um chefe do narcotráfico ali se abrigava. Os militares chegaram ao local dia 2 de maio de 1999, por volta das 10 horas da manhã. Houve disparo de arma de fogo que vitimou uma pessoa; e, então, os senhores Cabrera Garcia e Montiel Flores foram se abrigar na floresta, quando foram encontrados e presos. Ambos ficaram detidos às margens do Rio Pizotla até o dia 4 de maio de 1999, quando foram transportados para o Batalhão de Infantaria na cidade de Altamirando e, de lá, responderam à acusação de porte de arma de fogo e plantação de maconha.
Houve condenação no crime de porte de arma de fogo e absolvição no referente ao plantio. As defesas plantearam a questão dos maus tratos e da tortura quando estavam custodiados pelo Exército e prestaram as primeiras declarações. O MP notificou o Exército para investigar. Mas, em ambas as tentativas, a justiça militar requereu o arquivamento do feito. Ao final, os réus foram libertados por questões humanitárias.
3 Os direitos pré-processuais
Inicialmente, a Corte assinala as questões referentes ao contexto local, tendo em vista que os fatos ocorreram num momento com forte presença miliar no Estado de Guerrero, nos anos 1990, como resposta ao narcotráfico e a grupos armados. Reafirmando jurisprudência anterior, considera que a “alta presença militar e a intervenção das forças armadas em atividades de segurança pública podem implicar a introdução de um risco para os direitos humanos”. Embora reconheça que é obrigação do Estado garantir a segurança pública, tem poder limitado pelo Direito; considerando especialmente que os militares estão treinados para derrotar o inimigo e não para proteger os civis (como a polícia, por exemplo). Por isso, há uma exigência reforçada para atender aos requisitos estritos de excepcionalidade e devida diligência.
Depois, a Corte define o direito previsto no art. 7.5 da Convenção, qual seja, “o direito de a pessoa detida ser submetida sem demora à revisão judicial”. Direito que tem objetivo claro de evitar arbitrariedade ou ilegalidade das detenções. O critério é “levar ante o juiz o mais rápido possível”, sendo a obrigação deste reforçada nos casos ocorridos nas zonas de alta presença militar. No caso concreto, a violação foi reconhecida, uma vez que se passaram cinco dias até a apresentação dos acusados.
Os representantes também assinalaram a violação do “direito à informação sobre as razões de sua detenção”. Segundo a Corte, o art. 7.4 define a obrigação do Estado de informar os motivos e as razões da detenção no exato momento que ela ocorre. Trata-se de um mecanismo para evitar detenções ilegais ou arbitrárias e garante o direito de defesa do indivíduo. Some-se ainda que o agente responsável pela detenção deve fazer uso de linguagem simples, livre de tecnicismos, com fatos e bases jurídicas essenciais. Afirma, por fim, que não se cumpre com o art. 7.4 a simples menção a sua base legal. Concretamente, o artigo refere-se a dois aspectos: a informação oral ou escrita sobre as razões da detenção e a notificação escrita da acusação. No caso, a Corte entendeu que houve violação visto que não havia no expediente prova da notificação nem oral e nem escrita.
Há, no caso, uma importante discussão sobre os direitos de defesa. Reiterando jurisprudência anterior, a Corte determina que estes devem ser exercidos desde que uma pessoa é apontada como possível autora de um delito; e somente termina quando se finaliza o processo, incluindo a execução penal. Impedir seu exercício desde o início da investigação é potenciar os poderes investigativos do Estado em desrespeito aos direitos fundamentais. Assim sendo, o direito de defesa obriga o Estado a tratar o indivíduo a todo o momento como verdadeiro sujeito do processo, no mais amplo sentido, e não como objeto do mesmo.
A defesa deve ser diligente, inclusive a ministrada pelo Estado. E isso significa que a pessoa apontada como possível autora de um delito deve ter acesso à defesa técnica, especialmente antes de prestar a primeira declaração. Impedir o acesso ao advogado é limitar severamente o direito de defesa, o que ocasiona desequilíbrio processual, deixando a pessoa sem tutela frente ao exercício do poder punitivo. E reitera que não basta ao Estado nomear um advogado para cumprir sua obrigação, a defesa deve ser diligente, ou seja, que atue com o fim de proteger as garantias processuais do acusado.
Afirma também que uma das garantias inerente aos direitos de defesa é contar com tempo e meio adequado para preparar a mesma, fato que obriga o Estado a permitir o acesso do inculpado ao expediente, ao seu advogado, com tempo adequado para preparar sua primeira declaração. Mas, no caso concreto, a Corte não reconheceu a violação por ausência de prova suficiente da violação.
4 Padrões interamericanos de investigação dos crimes de tortura
A Corte inicia afirmando que há um dever do Estado de investigar possíveis atos de tortura e outros tratos cruéis, obrigação reforçada pela Convenção contra a Tortura.(8) Para tanto, diz a Convenção contra a Tortura que quem denuncia tem o direito de ser examinado imparcialmente e que o Estado deve iniciar de ofício a investigação.
No caso concreto, consta que a defesa havia informado ao Ministério Público sobre a tortura, cuja investigação foi iniciada três meses depois. Afirma que a falta de investigação dirigida contra os responsáveis limita a possibilidade de concluir sobre as alegações de tortura.
Há também a responsabilidade do Estado em dar uma explicação plausível para aqueles casos onde a pessoa é presa sem nenhum problema de saúde e, posteriormente, tem a sua integridade física ou mental prejudicada
Assim, afirma que em todo caso que existam “indícios da ocorrência de tortura, o Estado deverá iniciar de ofício e de imediato uma investigação imparcial, independente e minuciosa que permita determinar a natureza e a origem das lesões advertidas e identificar os responsáveis bem como iniciar seu processamento”. Para tanto, deverá o Estado organizar apoio e atendimento médico e de saúde para prestar assistência aos detidos.
Obrigação esta que existe também nos casos em que a “pessoa alegue dentro do processo que sua declaração ou confissão foi obtida mediante coação”, quando os Estados devem verificar a veracidade da denúncia através de uma investigação levada com a devida diligência.
5 Direito absoluto a não ser condenado em processo onde há provas ilícitas: exclusão da prova obtida por coação
Segundo a Comissão Interamericana, as vítimas foram coagidas a confessar, pois se encontravam sob o efeito do medo, da angústia e dos sentimentos de inferioridade, passados uns dias de sua detenção e dos maus-tratos físicos. Para eles, a falta de investigação séria, independente e imparcial foi suficiente para que não fossem sanados possíveis vícios.
Na decisão, a Corte discute a exclusão das provas obtidas mediante coação. Afirma que tal regra é reconhecida por diversos tratados e que, de acordo com o art.8.3 da Convenção, a confissão de um imputado só será válida se feita sem coação de qualquer natureza, não se limitando à existência ou não de tortura. Além disso, entende que a confissão obtida mediante coação não pode ser considerada verdadeira, pois a pessoa coagida vai dizer o necessário para acabar com o sofrimento. E aceitar tais declarações é uma violação direta ao julgamento justo. O caráter absoluto da exclusão é reforçado, vez que não se admitem nem as provas derivadas.
No caso concreto, a Corte reconhece a coação na confissão, tendo em vista que: não sabendo ler nem escrever, colocaram somente sua digital e prestaram declarações diferentes de quando estavam em frente ao juiz.
Diz o tribunal que a situação vulnerável em que se encontram as pessoas submetidas a tratos inumanos e cruéis, para suprimir sua resistência psíquica e forçar a se declararem culpados, pode produzir sentimentos de medo, angústia e inferioridade capaz de humilhar e devastar uma pessoa, quebrando sua resistência física e moral, sujeitando-a a confessar o que não é verdade.
Outra importante questão é a referente à carga probatória. Para o Estado Mexicano, não basta a alegação dos maus-tratos; o denunciante deve provar. Mas a Corte reafirma que a carga é do Estado. E conclui que tais declarações devem ser totalmente retiradas do processo, visto que extraídas com base na confissão, reforçando a ideia de que, se estiverem no processo, a condenação é nula!
Conclui-se, portanto, que não se admite, em nenhuma hipótese, a prova obtida mediante coação de qualquer natureza. Ela dever ser retirada do processo.
6 Sobre o “controle difuso de convencionalidade”
O Estado Mexicano interpôs exceção preliminar de “quarta instância”, alegando a incompetência da Corte, tendo em vista que os tribunais nacionais efetivamente exerceram “controle de convencionalidade”, o que não pode ser mudado pelos juízes interamericanos.
Relembra o Tribunal o surgimento da Doutrina do Controle de Convencionalidade no caso Almonacid Arellano vs. Chile, que determinou que o Poder Judicial deve exercer controle de convencionalidade entre as normas internas e as internacionais, levando em consideração não só o tratado como também as decisões da Corte, intérprete última da Convenção.
No caso Cabrera Garcia, a Corte esclarece essa doutrina para estender a todos os órgãos do Estado, incluindo os juízes – que devem velar para o “efeito útil do Pacto”. Ao contrário do controle concentrado, exercido pela Corte, esse controle difuso deve ser exercido por todos os juízes nacionais, criando um dever de atuação no âmbito interno, reservando à Corte qualidade de intérprete última da Convenção Americana. Converte o juiz nacional em um juiz interamericano. Reflete a evolução na recepção nacional do Direito internacional dos direitos humanos e se manifesta em reformas legislativas nos estados nacionais.
7 Conclusão
O Brasil tem um vácuo na aplicação das normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos, fato que pode ser explicado por sua condição histórica de império. No entanto, em nome de sua “soberania”, e renegando seu próprio passado, nota-se a persistência em assinar pactos internacionais; enquanto, nacionalmente, pouco se empenha na garantia da aplicação dos mesmos. Graças aos processos de internalização dos Direitos Internacionais dos Direitos Humanos, esse vácuo está diminuindo. Prova disso é o comportamento do STF, da VEP do Rio de Janeiro e esta sessão do IBCCRIM.
Movimento que é necessário para diminuir a violência estrutural do Sistema Judiciário contra a pessoa que é apontada como possível autora de um delito. Nesse contexto, a normativa internacional e, em especial, a interamericana é uma ferramenta de resistência e luta para um processo penal mais justo. Prova disso são as inovações trazidas na sentença do Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores pela Corte Interamericana. Na decisão, o Tribunal Interamericano começa a definir as garantias pré-processuais que estão presentes desde que uma pessoa é apontada como possível autora de um delito. Excluindo, desse modo, a discussão sobre quando iniciam os direitos de defesa.
Discute-se a confissão para definir que não só a coação física é capaz de invalidá-la, mas qualquer tipo de coação, inclusive as advindas dos tratos inumanos e cruéis; e reafirma-se a necessidade de se iniciar uma investigação séria, independente e imparcial para dirimir as dúvidas das pessoas que denunciem qualquer tipo de tortura ou trato inumano. Reforça também que as Forças Armadas não podem agir como força de segurança pública, visto que sua função é derrotar o inimigo, ao contrário das outras, que têm por função primordial a proteção dos cidadãos. Assim, só podem ser usadas contra civis em casos excepcionalíssimos, com obrigação reforçada de agir conforme o Direito em todos os casos.
Por fim, a mais importante parte da decisão transforma o controle de convencionalidade num controle difuso, qual seja, a compatibilidade entre a normativa interna e a externa deve ser feita por todos os órgãos do Estado, inclusive os juízes de primeira instância!
Dessa forma, Cabrera Garcia e Montiel Flores é um caso paradigmático do Sistema Interamericano, especialmente quando se pretende discutir investigação da denúncia de maus-tratos que permeia o dia a dia dos defensores e das defensoras criminais. Também dá sentido à luta contra a incorporação da prova ilícita, visto que liga a anuência de investigação com o contexto de violação estrutural de direitos humanos. E por isso deve ser considerado um alento em tempos de cólera!
Referências
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arellano vs. Chile. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/7172fb59c130058bc5a96931e41d04e2.pdf>. Acesso em: 12 set. 2019.
___. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Artavia Murillo vs. Chile. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_por.pdf>. Acesso em: 12 set. 2019.
Notas
Batista, Nilo. Bodas de Cristal. Boletim de Jurisprudência do IBCCRIM, São Paulo, n. 179, out. 2007. Disponível em <|https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3502-Bodas-de-cristal)>. Acesso em: 10 set. 2019.
Machado, Isabel Penido; Youssef, Surrailly. Um Convite a pensar as Ciências Criminais a partir de uma perspectiva de direitos humanos. Boletim de Jurisprudência do IBCCRIM, São Paulo,n. 319, jun. 2019.
Diz a lenda que Simon Bolívar, defensor árduo dos princípios republicanos, olhava com desconfiança o país vizinho, visto que tinha rei, o que representava os valores europeus em nosso continente. Confesso que ele tinha lá suas razões. O reino virou império e, como tal, insistia em não cumprir internamente acordos celebrados externamente. Prova disso foram as rejeições aos acordos internacionais para pôr fim à escravidão, e a aprovação das leis que não foram cumpridas. Veja-se, por todos, CHALUB, Sidney. A força da escravidão. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
Um bom exemplo é o voto concorrente da Min. Rosa Weber no HC 124. 306, sobre o aborto, que cita a sentença de Artavia Murillo vs. Costa Rica no tópico “Experiência Comparada”. STF. HC 124.306. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311410567&ext=.pdf>. Acesso em: 09 set. 2019.
Para comprovar o senso comum, repito a fala do então presidente do STF, Joaquim Barbosa: “(...)E mais, Ministro Celso: Justiça que se preza não se submete, ela própria, a órgãos externos de natureza política. E a Comissão o é.” Gomes, Luiz Flavio. Celso de Mello diz que Joaquim Barbosa (o herói nacional) está errado. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Celso-de-Mello-diz-que-Joaquim-Barbosa-o-heroi-nacional-esta-errado%2509/4/27759>.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Processo nº 0357916-09.000.
Ramos, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 104, p. 241-286, jan./dez. 2009.
OEA. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Disponível em: < http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-51.htm>. Acesso em: 12 set. 2019.
Renata Tavares da Costa
Mestranda em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.
Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, titular da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias (RJ).
ORCID: 0000-0002-6503-9884
renata-tavares1976@hotmail.com