Boletim - 330 - Especial Lei Anticrime
Maio de 2020
Pacote Anticrime e Lei 13.964/19 em tempo de coronavírus

Editorial de apresentação da edição especial sobre o Pacote de Lei Anticrime. Nesta edição consta a primeira parte da coletânea de artigos sobre a Lei 13.964/19. 

Data: 30/04/2020
Autor: Ibccrim

“Pour les gens riches, le coronavirus est une maladie comme une autre. Pour les gens pauvre, çaveut dire la mort” (Para as pessoas ricas, o coronavírus é uma doença como outra. Para as pessoas pobres, isso quer dizer a morte).

(Le Monde, 27.03.20)

Com esta frase impactante, mas realista, Carlos Augusto, morador do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, conversou com o jornal francês no dia 22.03.20. Ela mostra o estado da arte da pandemia do coronavírus no Brasil. Parece que se vive, de certa forma, as narrativas de Albert Camus, José Saramago e, sobretudo, Giovanni Boccaccio. O mundo, hoje, gira em torno das notícias sobre o Covid-19 e espera pelo número de mortos e doentes como quem espera pela hora de encarar o pior.

Uma trégua poderia vir com medidas governamentais inteligentes, que levassem em consideração a vida humana antes da economia, mas não foi assim. Enquanto o governo federal claudicava em contraditórias declarações, que colocavam em conflito a área de saúde com o presidente da república, os governos estaduais e municipais, cientes de que as pessoas vivem e morrem nos seus quintais, começaram, de forma um tanto amadora, pela inexperiência, a ditar as regras, dentre elas o isolamento social. Com as determinações conflitantes dos diferentes “governos” de uma mesma república, passou-se a viver “uma pandemia e um pandemônio” (João Almeida Moreira, Diário de Notícias, 28.03.20).

Todos tiveram que permanecer em suas casas, ressalvados aqueles que trabalham em serviços essenciais. Dois problemas imediatamente se colocaram: fazer os mais pobres, em geral sem renda, sobreviver; e garantir que o Covid-19, mais pela velocidade com a qual se transmite que pela própria transmissão, contaminasse um número menor de pessoas, de modo a que o sistema de saúde pudesse tratá-las adequadamente. Era o cenário adequado para vir à luz a batalha que nunca calou: vida versus dinheiro, capital versus trabalho, ricos versus pobres, e assim por diante. Veio à tona, também, como não poderia deixar de ser, a discussão sobre o papel do Estado, sempre lembrado, nessas horas, para pagar a conta.

Diante desse quadro, o governo federal, mais uma vez, comportou-se mal. De um lado, com um atraso inexplicável, só em 26.03.20 fez aprovar, na Câmara dos Deputados, uma ajuda humanitária aos trabalhadores informais de R$ 600,00, sem que se soubesse como iria funcionar, como se todos pudessem esperar. Depois, em visível desprezo pela vida humana, com apenas uma semana de isolamento social, o presidente da república, empurrado por empresários desprezíveis ligados à sua base política, começou a pregar – sendo seguido por alguns políticos e pouca gente do povo – a volta ao trabalho e ao convívio social, contra todas as indicações científicas, a começar por aquelas da OMS.

Estava aberta a porta para a mais forte ameaça de contaminação. Arrisca-se ter um montante de contaminados que ninguém teve, nem os EUA que, seguindo diretrizes do presidente Trump, foi ao primeiro lugar, no mundo, no volume de infectados, projetando-se um desastre.

Esse modo de agir atabalhoado do governo federal reflete-se em todos os campos e mostra quão despreparada é grande parte dos seus integrantes, começando pelo próprio presidente da república e seus ministros. Isso, como não poderia deixar de ser, aparece nas propostas que avançam, dentre elas, o famoso “Pacote Anticrime”, um complexo de reformas na legislação do campo criminal de tal forma confusas, que se tornou difícil achar algo que não fosse inconstitucional.

Na Câmara dos Deputados, um Grupo de Trabalho fez tudo o que pôde para dar ao referido Pacote (ao qual se agregou uma proposta proveniente de uma Comissão presidida pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes) alguma dignidade jurídica e técnica. Do difícil trabalho que teve resultou o pouco de proveitoso que, aprovado ali e depois no Senado, veio à luz como a Lei 13.964, de 24.12.19. O resultado, porém, foi um mostrengo. O que é bom não é do governo; e o que é do governo não é bom. Como lembrou Patrick Mariano (Cult, 09.12.19) em análise precisa sobre a tramitação: “Se o texto que Moro apresentou não poderia ser levado a sério, pois sequer foi acompanhado de justificativa – nem mesmo se observou alguma sistemática ou atenção às regras mínimas do processo legislativo em seu conteúdo, sendo mais um apanhado de ideias punitivistas populistas salpicadas ao léu e enviadas ao Congresso –, o da Comissão presidida pelo ministro do STF tampouco poderia ter algo digno de nota. Ambos representam aquilo que existe de mais torpe na ciência penal”.

O pouco que se louvou, na referida lei, foram as alterações introduzidas pelo Grupo de Trabalho. Delas, destacam-se as reformas que instituíram alguns institutos de processo penal e, dentre eles, a assunção do Juiz das Garantias, em que pese sejam importantes, também, o chamado acordo de não persecução, a impossibilidade do juiz que conheceu do conteúdo de prova inadmissível proferir sentença ou acórdão, as regras que asseguram a cadeia de custódia, assim como as regras que tentam rearranjar as medidas cautelares, mormente as que dizem com a privação da liberdade.

Esse conjunto tenta introduzir, no processo penal brasileiro, um arremedo de sistema acusatório, do qual o sintoma é o preceito do art. 3º-A (copiado do art. 4º, do PLS 156/09): “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”

A tentativa é louvável – porque é na direção do sistema acusatório que se deve caminhar – mas, como mostra a experiência de inúmeras e desastradas reformas parciais, nada disso vinga quando a base do sistema segue inquisitorial. E o brasileiro seguirá assim, com o juiz como senhor absoluto (ou quase) do processo, mormente se não passarem as regras que a decisão do Ministro Luiz Fux, do STF, suspendeu sine die, por uma liminar, como relator das ações diretas de inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Com um processo penal assim, nada obsta que o juiz prejulgue (embora não sejam todos que o façam) e, depois, teste a sua decisão no curso do processo para, ao final, sentenciar. Não raro, tudo é previsível. O resto é ou pode ser tão só retórica, como facilmente se percebe pelo jogo de relativização que se tem feito, principalmente, em relação à aplicação dos princípios e regras constitucionais no processo (quem sabe principalmente para a presunção de inocência e o livre convencimento), além do manejo deletério do pas de nullité sans grief. O processo penal, como mecanismo de garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado, está em ruínas.

Até agora, como se viu, tratou-se das coisas boas. As ruins, contudo, dizem com o resto da lei; e não é pouco. Afinal, nunca se viu, no país, alguma lei tão assistemática, punitivista e reacionária. Nesse sentido, o gravíssimo aumento exponencial dos lapsos de progressão, sem qualquer estudo precedente de impacto no sistema carcerário, afigurase como dispositivo que, previsivelmente, levará ao incremento do encarceramento em massa em dimensões imprevisíveis. É certo que, ainda assim, o Grupo de Trabalho da Câmara atenuou a proposta original do Ministério da Justiça, mas o texto aprovado, que aumenta os lapsos de progressão para até 70% da pena, terá consequências que não foram sopesadas.

Os penalistas e penitenciaristas estão até agora atordoados. O volume de inconstitucionalidades é de tal monta que seria preciso imaginar aquilo que pudesse escapar de um controle efetivo nessa direção.

Urge, portanto, discutir o conteúdo da Lei 13.964/19 e organizar as medidas sérias, que possibilitem um controle sério e efetivo de constitucionalidade, torcendo para que o STF tenha consciência de seu papel diante da Constituição da República. Isso se faz de forma propícia neste Boletim, mostrando a preocupação do IBCCRIM na defesa intransigente da Constituição da República e do regime democrático.

Boa leitura.

A justiça restaurativa e o acordo de não persecução penal

Resumo: Abordaremos a relação entre dois institutos com aplicação definida recentemente no Sistema de Justiça Brasileiro. Por um lado, a Justiça Restaurativa (JR), que já tem sido aplicada no exterior e no Brasil, mas ainda pendente da inclusão expressa no Código de Processo Penal (CPP). Por outro lado, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) definido no recente artigo 28-A do CPP. Buscamos, através de revisão de literatura, identificar as possibilidades de utilização de ambos os institutos, nomeadamente acerca da possível conexão entre eles, para um melhor resultado no Sistema Penal. Verificamos o status quo, o histórico e as críticas a ambos os institutos, que seguem em evolução com precauções no Sistema Judiciário brasileiro. Com a análise de questões polêmicas acerca do ANPP, bem como da devida cautela na aplicação da JR, vislumbramos a possibilidade de bons resultados desde que se utilizem bons procedimentos.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa; Acordo de Não Persecução Penal; Sistema Acusatório.

Abstract: We will discuss the relationship between two institutes with recently defined application in the Brazilian Judicial System. On the one hand, Restorative Justice (RJ), which has already been applied abroad and in Brazil, but still pending the literal inclusion in the CCP. On the other hand, the Non-Prosecution Agreement (NPA) defined in the recently article 28-A of the CCP. We seek, through literature review, to identify the possibilities of use of both institutes, namely about the possible connection between them, for a better result in the Criminal System. We verified the status quo, the history and the criticisms of both institutes, which continue to evolve with precautions in the Brazilian Judicial System. With the analysis of controversial issues about NPA, as well as the due caution in the application of the RJ, we glimpse the possibility of good results provided that good procedures are used.

Keywords: Restorative Justice; Non-Prosecution Agreement;([i]) Accusatory System.

Data: 30/04/2020
Autor: Guilherme Augusto Souza Godoy, Amanda Castro Machado e Fabio Machado de Almeida Delmanto

O presente artigo([i]) tem a finalidade de analisar a possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa (JR) no novo Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no art. 28-A do CPP, fruto da Lei 13.964/2019.([ii])

De início, cabe ressaltar que a Lei 13.964/2019 – a chamada “Lei Anticrime” - tem inegável caráter inquisitorial, com recrudescimento indisfarçável no tratamento conferido ao acusado e ao condenado. Alguns exemplos disso são: o aumento das hipóteses de legítima defesa,([iii]) o agravamento dos requisitos do livramento condicional,([iv]) o aumento das hipóteses de suspensão do prazo prescricional,([v]) o endurecimento das regras de progressão de regime prisional,([vi]) dentre outras alterações de viés inegavelmente punitivista.  

Os valores que nortearam a elaboração da “Lei Anticrime” não se coadunam, absolutamente, com os valores da JR. Enquanto naquela busca-se, a todo custo, a punição do autor do crime, com pouquíssima ou nenhuma atenção para as necessidades da vítima e do autor, na JR o  objetivo é a restauração dos danos causados pelo delito, com a responsabilização([vii]) do infrator e aumento do protagonismo da vítima, sobretudo através do diálogo e busca de um consenso, tudo num procedimento que não é obrigatório, mas voluntário.

Assim, não obstante os valores que nortearam a criação da “Lei Anticrime” e da JR serem diametralmente opostos, o ANPP previsto no art. 28-A do CPP, apesar de apresentar inúmeros problemas diante de possíveis violações de garantias constitucionais,([viii]) abre as portas para a aplicação concreta da JR no processo penal brasileiro, uma vez que possibilita a participação efetiva da vítima na realização do ANPP, melhorando as chances de sua efetividade e eficácia.

Como se sabe, desde o advento da Lei 9.099/95, alguns paradigmas da justiça penal têm sido quebrados (como é o caso do princípio da obrigatoriedade da ação penal), o que se deu graças ao surgimento da justiça consensual (não punitivista) no processo penal brasileiro. A justiça consensual entre nós iniciou-se com a Lei 9.099/95, que previu os institutos da composição civil e da transação penal (ambos para os delitos de menor potencial ofensivo([ix])), bem como da suspensão condicional do processo.([x]) Outro exemplo de justiça consensual penal é a colaboração premiada, ou seja, um “negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova”,([xi]) pelo qual o juiz poderá (i) conceder o perdão judicial, (ii) reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou (iii) substituí-la por restritiva de direitos.([xii]) Em 2015, seguindo a tendência mundial de autocomposição dos conflitos e solução dialógica das controvérsias, surge a Lei da Mediação (Lei 13.140, de 26.6.2015), com previsão de técnicas e regras para que um terceiro imparcial (mediador), sem poder decisório, escolhido e aceito voluntariamente pelas partes, possa auxiliar e estimular a solução consensual da controvérsia.([xiii]) Vale lembrar que o novo Código de Processo Civil (CPC) prevê que o juiz, assim que receber a petição inicial, e não sendo o caso de improcedência liminar do pedido, designará audiência de conciliação e mediação (art. 334), sendo fundamental o papel dos novos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) espalhados pelas Comarcas do Brasil, os quais podem atuar tanto na fase pré-processual quanto na fase processual, inclusive perante os Tribunais.     

Pois bem, diante de todo esse atual cenário, que estimula a autocomposição dos conflitos, tanto na área penal quanto na área cível, a Justiça Restaurativa (JR) surge como um novo paradigma, um novo olhar para o fenômeno do crime e do processo, contrário ao que se pratica na chamada Justiça retributiva, modelo que ainda vigora em nosso sistema.

Embora os fundamentos da JR sejam ancestrais, e, via de regra, as práticas antecedem, em muito, a teoria e os registros, os autores geralmente fixam como marco de sua origem o ano de 1974, no Canadá, tendo surgido diante de necessidades práticas para solucionar casos de adolescentes infratores (ZEHR, 2014; ACHUTTI, 2016), e depois foi se consagrando em outros países, tais como Austrália, Nova Zelândia,([xiv]) Bélgica,([xv]) Estados Unidos e Canadá.([xvi]) A JR, enfim, procura fornecer uma lente alternativa para pensar sobre crime e justiça, com uma visão diversa da denominada Justiça retributiva (ZEHR, 2014; SCURO, 2007). É importante ressaltar que a JR não se limita a infrações praticadas por adolescentes ou a crimes de menor ou médio potencial ofensivo, previstos na Lei 9.099/95, mas tem aplicação em todo e qualquer tipo de crime ou ofensa, ainda que graves ou praticados mediante violência ou grave ameaça.

Em virtude do avanço dos estudos da criminologia crítica, em 1990, e com a chamada “criminologia da integração”, o convite da JR é para que se olhe o crime como “um acontecimento global”, que não diz respeito somente à pessoa do infrator, sendo “um fenômeno complexo”, de múltiplas causas e consequências, que exige o desenvolvimento de um pensamento diferente daquele que vem sendo praticado na Justiça retributiva, isto é, um “novo olhar integrativo” (ZEHR, 2014).

Nesse novo contexto, ao contrário de se buscar, a todo custo, a punição do autor do delito, almeja-se a sua responsabilização, com foco, sobretudo, no atendimento das necessidades da vítima (v.g., a reparação dos danos), mas também sem desmerecer as necessidades do autor do delito e de todos os que de alguma forma foram afetados pelo evento danoso, sejam eles familiares ou mesmo a própria comunidade. Ao contrário do que ocorre na Justiça retributiva, em que a vítima praticamente é ignorada, sendo muitas vezes ouvida apenas para fazer prova contra o acusado, na JR pretende-se a abertura do diálogo, com a efetiva participação da vítima e de todos os envolvidos. Na JR, busca-se a compreensão do que ocorreu, como ocorreu, por que ocorreu, e como podemos restaurar os danos oriundos da prática delitiva. Com o apoio dos facilitadores e uso de técnicas específicas, na JR, todos os participantes do processo têm a possibilidade de se manifestarem livremente, dizer como se sentem e o que precisam, permitindo-se atingir resultados restaurativos jamais imaginados na Justiça penal tradicional.

Dentre as práticas restaurativas existentes, destacam-se os Processos Circulares para resolução de conflitos,([xvii]) as Conferências Familiares([xviii]) e a Mediação entre Vítima, Ofensor e Comunidade.([xix])

No Brasil, embora ainda de aplicação tímida, a JR é uma realidade que vem se desenvolvendo a cada dia. Em 2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), baseado nas recomendações da ONU para fins de implantação da JR nos Estados membros,([xx]) editou a Resolução 225, que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. No TJSP, a implementação da JR nas varas da infância e da juventude encontra-se regulamentada tanto na Corregedoria Geral de Justiça([xxi]) quanto no Conselho Superior da Magistratura.([xxii]) A Resolução 225 também instituiu o Comitê Gestor de JR através do CNJ (art. 27). Em 2019, o CNJ, considerando (i) o aumento acelerado da taxa de encarceramento, (ii) o reconhecimento pelo STF na ADPF 347 de que o sistema penitenciário nacional se encontra em “estado de coisas inconstitucional”, (iii) o Acordo de Cooperação Técnica 6/2015, celebrado entre o CNJ e o Ministério da Justiça, editou a Resolução 288, que estabeleceu como política institucional do Poder Judiciário a promoção e aplicação de “alternativas penais”, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade. Dentre essas “alternativas penais”, encontram-se: as penas restritivas de direitos, a transação penal e a suspensão condicional do processo; a suspensão condicional da pena privativa de liberdade; a conciliação, mediação e técnicas de justiça restaurativa; as medidas cautelares diversas da prisão; e as medidas protetivas de urgência.

Embora já existam algumas iniciativas legislativas no Brasil acerca da JR, que, por exemplo, se tornou política pública municipal em Santos/SP,([xxiii]) São Vicente/SP([xxiv]) e Santa Maria/RS,([xxv]) como forma de solução de conflitos em escolas públicas e na administração pública, e embora também já exista previsão legal para sua aplicação em casos que envolvem menores infratores,([xxvi]) além de projetos de lei para inclusão da JR no Código de Processo Penal (CPP),([xxvii]) a aplicação da JR no processo penal brasileiro, apesar de fortemente estimulada pelo CNJ, como visto, é ainda bastante reduzida, sobretudo em virtude da falta de previsão na legislação penal.

Voltando ao novo ANPP previsto no art. 28-A do CPP, trazido pela Lei 13.964/2019, embora o novel instituto apresente inúmeros problemas de natureza constitucional – como é o caso das controvertidas exigência de confissão e aplicação de condições que mais se afiguram como verdadeiras penas sem processo,([xxviii]) sendo criticado pela doutrina e, como dito, já objeto de ação declaratória de inconstitucionalidade perante o STF, vislumbramos a possibilidade concreta de aplicação da JR durante a realização do ANPP.

Todavia, para que tal ocorra, é necessário mudar a mentalidade dos operadores do direito, migrando-se de um sistema punitivista para um sistema restaurativo.

Diante disso, cumpre-nos analisar qual seria o momento em que a JR poderia interagir com o ANPP. Segundo o artigo 28-A, o acordo é feito entre o promotor e o investigado mediante algumas condições, das quais destacamos: (i) a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima (inciso I); e (ii) outra condição estabelecida pelo MP (porém não especificada pela lei) (inciso V). Pois bem, é com base nesses dois incisos que verificamos a possibilidade concreta de aplicação na JR no ANPP.

Quanto ao inciso I, acreditamos que a aplicação de práticas restaurativas durante a realização do ANPP pode servir para, realmente, reparar os danos, atingindo-se, com isso, a vontade do legislador. Isso porque, segundo a visão da JR, a “reparação de dano” não se limita a uma reparação exclusivamente pecuniária (como definido nos artigos 63 e 387, IV do CPP), sendo mais ampla e abrangente, de forma a contemplar uma verdadeira reparação do dano social ou mesmo das relações sociais, com viés integral, inclusive dos danos psicológico e emocional decorrentes da prática do crime. Com isso, almeja-se atingir a harmonização entre o autor, a vítima e demais envolvidos, com o objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos, conforme equiparação disposta no art. 3º, VIII da Resolução 288/CNJ([xxix]) e no art. 13 da Resolução 118/2014 do CNMP.([xxx])

Embora a lei preveja que a vítima somente será intimada da homologação do acordo, não há qualquer óbice para que a vítima seja antes convidada a participar da realização do ANPP, aplicando-se aí as práticas restaurativas. Pelo contrário, como visto, em decorrência das Resoluções do CNJ (225 e 288), entendemos que o juiz tem toda liberdade e autonomia para aplicar a JR durante o ANPP, tornando, quem sabe, mais eficiente e eficaz o acordo, tudo em atendimento da vontade última do legislador. Com isso, ao invés de se realizar um acordo apenas formal, de reparação meramente pecuniária dos danos, sem maior significado para a vítima e para os demais envolvidos (ofensor e demais atingidos, como familiares e comunidade), acredita-se que a aplicação da JR no ANPP trará resultados restaurativos mais significativos, o que se coaduna perfeitamente com a atual Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, prevista na Resolução 225 do CNJ. 

O inciso V do art. 28-A, por sua vez, traz outra importante janela para a aplicação da JR no ANPP. O referido dispositivo prevê que, dentre as condições ajustadas no acordo, o investigado deverá cumprir, por prazo determinado, “outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal”. Ora, acreditamos que, para a realização do ANPP, o Ministério Público e o Juiz poderão convidar o investigado, a vítima e demais envolvidos no crime a participarem de práticas restaurativas existentes na Comarca, com o fim de se chegar, quem sabe, a um bom acordo restaurativo. É verdade que a participação é sempre voluntária, não podendo nunca ser obrigatória. Por outro lado, diante da forte recomendação do CNJ em prol da aplicação da JR no Brasil, entendemos que esta é uma oportunidade muito interessante para o emprego da JR no processo penal brasileiro, e o convite pode e deve ser feito nesse sentido, cabendo aos interessados a aceitação ou não. Caso não haja aceitação, o ANPP pode seguir normalmente, sendo, daí, realizado apenas entre o Ministério Público e o investigado, seguindo-se para o juiz apenas para homologação, sendo somente aí a vítima intimada.

Ora, se a aplicação da JR no Brasil encontra total apoio do CNJ, que por sua vez embasou-se em Resoluções da ONU, a ponto de ter sido reconhecida como uma Política Nacional no âmbito do Poder Judiciário, não se deve negar esforços à efetiva aplicação da JR no processo penal brasileiro.

É preciso atentar para que não ocorra uma banalização do novo instituto, a exemplo do que ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do processo, em que o acusado, muitas vezes, comparece a audiências coletivas, sem a presença do Juiz e do Ministério Público, e, na presença de serventuários, se limita a “assinar um papel”, desperdiçando-se oportunidade única de se aplicar as práticas e conceitos da JR no processo penal brasileiro. Aliás, nada impede, e tudo recomenda, que os juízes apliquem a JR também nas audiências de transação penal e suspensão condicional do processo, conferindo-se maior efetividade e significado a esses acordos penais.

É bem verdade que toda mudança causa certo desconforto e perplexidade aos operadores do Direito. Todavia, é justamente desta forma que os avanços ocorrem no sistema de justiça penal brasileiro, a exemplo do que sucedeu por ocasião do advento da Lei 9.099/95, das penas alternativas, das medidas cautelares diversas da prisão, da audiência de custódia, dentre outras significativas alterações legislativas, sendo todas mudanças que, no início, tiveram resistência, porém, depois, foram aceitas pela comunidade jurídica e pelos Tribunais.

É o que se espera que ocorra, em breve, com a Justiça Restaurativa no âmbito no processo penal brasileiro.


Referências

ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. New York: Oxford University Press, 2002.

CHECKER, Monique. A Lei nº. 13.964/2019 e os acordos de não persecução penal. JOTA. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-no-13-964-2019-e-os-acordos-de-nao-persecucao-penal-2-06012020>. Acesso aos 01.mar.2020.

SCURO, Pedro. Latin America. Regional Reviews. The Global Appeal of Restorative Justice. Handbook of Restorative Justice. Edt. by Gerry Johnstone  and Daniel W. Van Ness. Devon (UK) & Oregon (USA): Willan, 2007.

STUART, Barry & PRANIS, Kay. Peacemaking circles - Reflections on principal features and primary outcomes. Restorative Justice Processes and Practices. Handbook of Restorative Justice - A Global Perspective. Edt. by Dennis Sullivan and Larry Tifft. London and New York: Routledge, 2006.

UMBREIT, Mark S. et al. Victim offender mediation - An evolving evidence-based practice. Restorative Justice Processes and Practices. Handbook of Restorative Justice - A Global Perspective. Edt. by Dennis Sullivan and Larry Tifft. London and New York: Routledge, 2006.

ZEHR, Howard. The little book of Restorative Justice. New York: Good Books, 2014.


Notas de rodapé

([i]) Diferente do que ocorre nos EUA, onde o acordo de não persecução penal – non-prosecution agreement (NPA) – feito entre uma agência do governo dos EUA – como o Departamento de Justiça (DOJ) ou a Comissão de Valores Mobiliários (Securities and Exchange Commission – SEC) – e uma pessoa jurídica ou física que enfrenta uma investigação criminal ou civil, independe de homologação judicial, a Lei 13.964/2019 dispõe que a análise e homologação do acordo de não persecução penal é de competência do juiz de garantias (CPP, art. 3º-B, XVII) que é o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais. (CHECKER, 2020).

([i]) O presente artigo contou com a colaboração dos seguintes membros da Comissão Especial de Justiça Restaurativa da OAB/SP, criada através da Portaria 237/2019: Viviane Pereira de Ornellas Cantarelli (presidente), Ana Sofia Schimidt de Oliveira (vice-presidente), Luis Fernando Bravo de Barros e Adriana Haddad Uzum.

([ii]) Referida lei é oriunda do chamado “Projeto Anticrime”, de autoria do Ministro Sérgio Moro.

([iii]) A legítima defesa passou a abranger a hipótese do agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a prática do crime (art. 25, parágrafo único, do Código Penal).

([iv]) A nova Lei 13.964/2019 acrescentou novos requisitos para a concessão do livramento condicional, previstos no  art. 83 do Código Penal.

([v]) As novas hipóteses impeditivas da prescrição estão previstas no art. 116 do Código Penal. É curioso anotar que, dentre as referidas novas hipóteses impeditivas (ou suspensivas) da prescrição, encontra-se o período enquanto não cumprido ou rescindido o ANPP.

([vi]) A progressão do regime passou a contar com novos percentuais, agravando, em muitos casos, o tratamento conferido anteriormente pela Lei de Execução Penal (vide, dentre outros, seu art. 112).

([vii]) É importante ressaltar que a responsabilização difere, em vários aspectos, da punição; por exemplo, enquanto aquela é fruto de um diálogo aberto, horizontal, em que se estimula a autorresponsabilidade das partes, nesta existe um terceiro estranho ao conflito (isto é, o juiz), que vai impor, verticalmente, a pena ao infrator, a fim de puni-lo.

([viii]) Diversos aspectos do novo art. 28-A do CPP tiveram sua constitucionalidade questionada perante o STF. Conferir Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 6304/2020, que foi ajuizada pela Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas.

([ix]) Conforme o art. 61 da Lei 9.099/95, consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. 

([x]) Conforme o art. 89 da Lei 9.099/95. 

([xi]) Vide art. 3-A da Lei  12.850, com redação dada pela Lei 13.964/2019.

([xii]) Para que a colaboração premiada seja aplicada, exige-se que o beneficiado tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, e desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos resultados previstos em lei (vide art. 3-A da Lei 12.850, com redação dada pela Lei 13.964/2019).

([xiii]) A Lei de Mediação é aplicável para a solução de controvérsias entre particulares e no âmbito da administração pública.

([xiv])BRAITHWAITE, 2002.

([xv]) Analisado em ACHUTTI, 2016

([xvi])ZEHR, 2014.

([xvii])STUART & PRANIS, 2006.

([xviii])MAXWELL et. al, 2006.

([xix])UMBREIT et al, 2006.

([xx]) Resoluções 1.999/26, 2.000/14 e 2.002/12.

([xxi]) Provimento CGJ 35/2014.

([xxii]) Provimento CSM 2.416/2017.

([xxiii]) Lei Municipal 3.371/2017.

([xxiv]) Lei Municipal 3.658-A/2017.

([xxv]) Lei Municipal nº 6.185/2017.

([xxvi]) Art. 35, III da Lei 2.594/2012 (SINASE).

([xxvii]) Desde 2006, há um Projeto de Lei (PL 7.006/2006) para inclusão expressa da JR no CPP. Hoje, esse projeto está apenso ao PL 8.045/2010, junto com diversos projetos que pretendem alterar o CPP.

([xxviii]) O art. 28-A do CPP impõe algumas condições, que devem ser cumpridas para a realização do ANPP, porém muitas delas se confundem com verdadeiras penas, que somente poderiam ser aplicadas após o trâmite do processo e sentença transitada em julgado. São elas: a renúncia voluntária dos instrumentos, produto ou proveito do crime (tal condição se confunde com os efeitos genéricos da condenação previstos no art. 91, II, a e b, do CP); prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas (tal condição se confunde com a pena restritiva de direitos prevista no art. 43, IV, do CP); pagamento de prestação pecuniária (tal condição se confunde com a pena restritiva de direitos prevista no art. 43, I, do CP).

([xxix]) Art. 3º - A promoção da aplicação de alternativas penais terá por finalidade: VIII - a restauração das relações sociais, a reparação dos danos e a promoção da cultura da paz.

([xxx]) Art. 13. As práticas restaurativas são recomendadas nas situações para as quais seja viável a busca da reparação dos efeitos da infração por intermédio da harmonização entre o (s) seu (s) autor (es) e a (s) vítima (s), com o objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos. 


Guilherme Augusto Souza Godoy

Mestre em Criminologia pela Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal  na UFMT e em Direito Público ICE-MT. Pesquisador e Mediador.

Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5740-977X

Amanda Castro Machado

Pós-graduanda em Direito Público pela PUC-MG e em Direito Internacional Aplicado pela Escola Brasileira de Direito. pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Antropologia do Direito da USP. Advogada.

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2552-501X

Fabio Machado de Almeida Delmanto

Mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mediador, conciliador e facilitador de Justiça Restaurativa. Advogado.

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8228-0215


Autores(as) convidados(as)


La reforma al proceso penal chileno y el juez de garantia

Resumen: La reforma del proceso penal chileno fue un proceso estructural complejo que se diseñó e implementó a partir de un amplio consenso político. La estructura del proceso se corresponde con un modelo acusatorio y adversarial trifásico. En ese contexto, la función del juez de garantía en las fases preliminares constituye un componente decisivo para el aseguramiento de la legalidad del procedimiento y la efectiva tutela de los derechos fundamentales. La figura del juez de garantía permite, estructuralmente, una diferenciación entre la etapa investigativa y el juicio oral.

Palabras claves: Proceso penal, acusatorio, adversarial,  juez de garantía, etapa de investigación,  juicio oral.   

Abstract: The chilean reform of the criminal procedure was a complex structural process, designed and implemented under a broad consensus. The procedural structure is three phase accusatorial and adversarial model. In that context, the warranty judge’s role in the preliminary stages is a decisive component for the assurance of the legality of the proceedings and the effective tutelage of fundamental rights. The warranty judge enables,  structurally, a differentiation between the investigative stage and the oral trial. 

Keywords: Criminal procedure, accusatorial, adversarial, warranty judge, investigative stage, oral trial. 

Data: 30/04/2020
Autor: Eduardo Gallardo Frías

Cuestiones Preliminares

El propósito de estas líneas apunta a mostrar un panorama de la reforma al del proceso penal chileno, centrada en la función del juez de garantía. No pretendemos hacer una descripción detallada de las reglas procedimentales específicas adscritas a la función del juez de garantía, sino más bien intentar justificar su existencia a la luz de la imparcialidad estructural que debe tener un juez penal.  Aspiramos a contribuir con argumentos para defender con entusiasmo la incorporación del juez de garantía en Brasil.

Sin embargo, nos parece importante realizar dos advertencias preliminares que consideramos relevantes para abordar el tema que nos ocupa.

La primera cuestión radica en la idea de que el proceso penal se inserta en un fenómeno mucho más amplio y complejo como lo es el sistema de justicia criminal,  en el cual convergen y coexisten muchos otros elementos de carácter normativo, culturales, institucionales, etc. El proceso penal  existe en un sistema que comprende a las policías, al derecho penal sustantivo, la cultura y estructura institucional de la judicatura y otros actores, las orientaciones  político - criminales, sólo por citar algunos ejemplos. Y esto no es menor, pues la transición de un modelo inquisitivo a uno de corte acusatorio – como en el caso chileno - sin duda conlleva avances civilizatorios trascendentales para cualquier sociedad democrática, tales como la reconfiguración institucional y cultural del papel del juez como un tercero   imparcial garante de derechos fundamentales; pero ese avance, por muy sustantivo que sea, es sólo una parte de una lucha mucho más extendida en pos de la humanización del sistema penal. De hecho, pese al relevante avance que hemos tenido en muchos países latinoamericanos con las reformas al proceso penal de las últimas décadas, paralelamente en esos mismos países se han venido promoviendo agendas político criminales que de manera inequívoca se orientan en la dirección opuesta al ideal del derecho penal mínimo y liberal. En pocas palabras, la implantación del sistema acusatorio es un gran paso civilizatorio, pero está lejos de constituir per se la panacea.

El caso Chileno en esto es bastante ilustrativo, pues no deja de llamar la atención que pese al revolucionario cambio estructural de nuestro proceso penal, en Chile seguimos conviviendo con un Código Penal decimonónico de 1874, lo que sin duda revela una contradicción evidente. Por otro lado, nuestras policías muestran importantes deficiencias con relación a las exigencias de sofisticación operativa que impone nuestro actual sistema de instrucción criminal, en que la investigación dirigida por fiscales está sometida a un intenso control jurisdiccional por parte del juez de garantía; control ejercido la mayoría de las veces en el contexto de audiencias públicas, orales y contradictorias. La cuestión descrita no es menor, pues coloca de relieve uno de los grandes desafíos (y deudas) de los procesos de reforma en la región: la reforma estructural a las policías. Hoy en Chile, recién se está produciendo – en buena hora  un consenso transversal en la clase política que apunta a una profunda transformación estructural de la policía centrada en la modernización operativa, el respeto a los derechos humanos y la transparencia.  Esto revela que la realidad nunca es inequívoca, pues está llena de contradicciones, tensiones y expectativas e intereses contrapuestos en lucha.

Es pertinente destacar que la reforma procesal penal chilena nace de sectores de la sociedad civil como una exigencia de organizaciones y académicos de mayor protección a los derechos humanos, tras la experiencia traumática de la dictadura de Pinochet. Lo interesante es que ese impulso - que forma parte de la llamada “justicia transicional”-   a la larga se articuló como una política de estado al alero de la cual se configuró un delicado consenso entre esos sectores más preocupados de los derechos fundamentales y otros sectores más conservadores preocupados por la eficiencia persecutoria penal en un país cuya principal agenda – en la década del noventa- era la de emprender un proceso modernizador a tono con la globalización de los mercados en línea con el “consenso de Washington” y las exigencias del Fondo Monetario Internacional. Con todo, la viabilidad y concreción de la puesta en marcha del proceso penal acusatorio en Chile hace poco más de veinte años se explica fundamentalmente por un amplio acuerdo político y social. Lo dicho queda en evidencia si se tiene en cuenta que desde la tramitación legislativa hasta la última etapa de su efectiva implementación, se sucedieron tres gobiernos, a saber: Eduardo Frei (1994-2000), Ricardo Lagos (2000-2006) y Michelle Bachelet (2006-2010). Es decir, se trató en rigor de lo que genuinamente solemos denominar “Política de Estado”.

Una segunda advertencia deriva del hecho de que si bien los sistemas procesales penales no aparecen en la realidad fáctica como modelos puros, lo cierto es que tratándose del modelo acusatorio hay ciertos rasgos distintivos que se repiten tanto en la literatura procesal penal como en la concreción histórica de los sistemas de justicia criminal.  Por consiguiente, el hecho de que en el contexto de un modelo inequívocamente acusatorio podamos encontrar manifestaciones normativas o en algunos casos prácticas reñidas con dicho sistema  no debe llamarnos la atención.

Por lo mismo, aquello que comúnmente llamamos modelo acusatorio en contraposición al modelo inquisitorial, no está exento de algunos matices. Sin embargo, cuando hablamos de “modelos” en el mundo real  nos estamos refiriendo a sistemas que se articulan en base a ciertos elementos preponderantes que permiten clasificarlos en esas categorías analíticas. Es bien sabido que contemporáneamente existe una especie de convergencia promiscua entre elementos del modelo inquisitivo y el acusatorio. No en vano, en los Estados Unidos de Norteamérica, probablemente el paradigma contemporáneo del modelo acusatorio en el imaginario colectivo, el profesor John Langbein en su trabajo “Torture and Plea Bargaining”, ha descrito como la práctica extendida del plea bargain, muestra semejanzas asombrosas con la tortura del sistema medieval de Europa continental.[1]

Mirjan Damsaka, a propósito de la contraposición entre sistema inquisitivo y sistema acusatorio, anota que “Solo el significado básico de la oposición permanece razonablemente cierto. El modelo procesal ‘adversarial’ surge a partir de una contienda o disputa: se desarrolla como el compromiso entre dos adversarios ante un juez relativamente pasivo, cuyo deber  primordial es dictar un veredicto. El modo no adversarial está estructurado como investigación oficial. Bajo el primer sistema los dos adversarios se hacen cargo de la acción judicial; bajo el segundo, la mayor parte de las acciones son llevadas a cabo por los funcionarios encargados de administrar justicia.           Más allá del significado esencial, comienzan las incertidumbres. No está claro hasta qué punto el proceso adversarial depende de los deseos de las partes (‘¿Cuán  pasivo puede ser un juez?’) y cuán omnipresente es el control oficial en el modo inquisitivo (‘¿Cuán activos pueden ser los administradores de justicia?’). Cada concepto está dotado de rasgos diferentes cuando la discusión se centra en casos criminales, litigios civiles, o en la administración de justicia en general. En particular confunde el hábito de incorporar en los dos modelos de procedimientos diversos rasgos cuya relación con la oposición de las ideas de contienda o investigación son, en el mejor de los casos, tenues”.[2]

Lo que si resulta relevante es comprender que hay principios fundamentales que son irrenunciables: primero, separación estricta entre acusador y juzgador; segunda, la consagración del principio de congruencia entre la acusación y la condena, y tercero, privar al juez de poderes de dirección en la producción de pruebas o información, lo cual compete exclusivamente a las partes.

Generalidades

Para comprender en toda su dimensión la magnitud de la reforma al proceso penal chileno es ineludible enfatizar que se tuvo la convicción de que  la transformación debía ser algo radical y profundo, pues nuestro viejo proceso penal  que venía del Código de Procedimiento Penal de 1906 era una de las versiones más puras y ortodoxas que contemporáneamente se haya conocido del modelo inquisitivo en el concierto de las democracias occidentales. Todo el procedimiento, desde la fase de investigación preliminar, era dirigido por un juez penal que actuaba de oficio, decretaba medidas cautelares, producía pruebas, procesaba, acusaba y juzgaba. Además, el juez administraba y gerenciaba el tribunal, ocupándose hasta de las cuestiones más domésticas.  No está demás decir que en ese contexto se producía en los hechos una extendida delegación de potestades en funcionarios subalternos, algo típico de los sistemas escritos sin una praxis cultural de audiencias contradictorias. El abuso policial era bastante extendido y en los hechos la única forma de tutelar derechos fundamentales era por medio del habeas corpus, que en el contexto descrito no operaba como un remedio institucionalmente efectivo para cautelar las garantías de los ciudadanos. Por lo mismo, quienes impulsaron la reforma desde un principio estaban conscientes que no se trataba de una simple modificación legal, pues lo que debía hacerse era una transformación cultural, institucional y normativa muy profunda. Había que enterrar el sistema inquisitivo.

Lo antes dicho revela una exigencia fundamental para cualquier país que quiera emprender con relativo éxito un proceso de la magnitud referida: el mayor desafío radica en modificar la cultura inquisitiva. Si una reforma al proceso penal no asume como desafio principal que la transformación cultural es lo más importante, cualquier reforma legal por muy profunda que sea estará destinada al más absoluto fracaso, pues la cultural inquisitiva tarde o temprano termina imponiendo sus prácticas milenarias.

Se crearon dos tipos de jueces penales: los jueces de garantía y los jueces orales, actuando los primeros en la fase de investigación y en la etapa intermedia (fase de control de la acusación y legalidad de las evidencias) y los segundos como panel colegiado en el juicio oral. Es relevante destacar que el juez de garantías que interviene en la fase de investigación jamás puede participar en el juzgamiento durante el juicio oral. Y los jueces orales por su parte no tienen ningún contacto con la información y  las cuestiones debatidas y resueltas en la fase de investigación. Ni siquiera tienen acceso físico a los registros o “autos” de la etapa previa. Es decir, epistémicamente son absolutamente “ignorantes” al momento de iniciarse el juzgamiento.  

La estructura básica del procedimiento está dividida en tres fases: i, La fase de investigación, donde interviene el juez de garantía a través de la función cautelar y de control de legalidad de las actuaciones del Ministerio Público y las policías; ii, la etapa intermedia, en donde ante el juez de garantía se verifica el control de admisibilidad de las pruebas del Ministerio Público contenidas en la acusación y las de la defensa, y; iii, el juicio oral, ante tres jueces que no actuaron en las etapas previas.

¿Por qué el  Juez de Garantía?

Hecho este panorama general, explicaremos algunas cuestiones acerca de la función que compete al juez de garantía en el contexto de la fase preliminar de investigación y, más precisamente, justificar la necesariedad de su existencia como condición sine qua non de un proceso penal acorde con las exigencias de un estado democrático de derecho.

Como cuestión previa que facilita el entendimiento acerca de la importancia de este acto procesal, me parece importante destacar que la denominación de “juez de garantía” funcionalmente se refiere a la idea de un juez de control de investigación, es decir, aquel juez cuyo rol esencial radica en controlar y limitar el ejercicio de las actividades de persecución penal encomendadas al Ministerio Público y a la policía, tutelando la efectividad de los limites que a la averiguación de la verdad derivan de un estado democrático de derecho.

En esta materia es importante enfatizar que mero ejercicio de la persecución penal envuelve una afectación de derechos fundamentales cuya legitimidad se sustenta en el respeto a los límites constitucionales. Y eso exige la figura institucional de un juez imparcial que no tenga ningún compromiso con el éxito de la investigación. Por lo mismo, es siempre bueno recordar que la función garantista de la jurisdicción no constituye una fuente de “impunidad” como suele repetirse desde el populismo penal. Por el contrario, la función cautelar y garantista mas bien cumple una función legitimadora del ius puniendi estatal. Como sostiene Binder, “Tampoco es imaginable un sistema procesal concreto que consista en puras garantías y resguardos. Ellas, por su misma definición, se oponen a las normas que instrumentan la aplicación de la coerción procesal y buscan su mayor eficiencia”.[3]

Lo afirmado no solo exige separar las funciones de persecución  y juzgamiento, sino también las de control de investigación y las de juzgamiento, esto es, demanda la abolición de la prevención de la competencia, conocida en Brasil como el “juiz prevento”. El juez de garantía que interviene en la fase de investigación no puede luego participar en el juicio oral,  pues ello resulta estructuralmente incompatible con el principio de imparcialidad.  

En esto no hay dos lecturas posibles: quien conoció de los autos y registros en la etapa preliminar, decretando muchas veces medidas restrictivas de derechos fundamentales no está en condiciones de actuar como juez imparcial en el juicio.  Supongamos que un juez en la etapa de investigación decretó una prisión preventiva, un levantamiento del sigilo bancario, interceptaciones de comunicaciones privadas, leyó informes policiales para adoptar decisiones, conoció las circunstancias de una detención flagrante, etc. ¿Cómo puede ese  mismo juez después sacar todo eso de su cabeza y por arte de magia, en una especie de “auto lobotomía epistémica”, decidir en un juicio oral donde se supone que solo se debe resolver en base a las pruebas producidas por las partes en esa audiencia? La respuesta es demasiado evidente. La prevención de la competencia impide concretizar los principios de imparcialidad y de presunción de inocencia, desde que no hay forma de excluir la información reunida en la fase preliminar de investigación,  pues el propio juzgador ya la conoce. En el fondo en ese esquema la fase de investigación pierde en los hechos su naturaleza preliminar o preparatoria y pasa a constituir el núcleo  central de la información en base a la cual se adopta la decisión de absolución o condena en el juicio.  

Desde otro ángulo, si quien actúa en la fase de investigación sabe que luego deberá juzgar al investigado (el juez provento), ¿cómo hacemos para garantizar que sus decisiones en esa fase preliminar de investigación no sean condicionadas por la natural inclinación humana de intentar contar con la mayor cantidad de información de calidad para una decisión que deberá adoptarse en el futuro? La sola pregunta revela que la institución del juez de prevención compromete también la imparcialidad de ese mismo juez durante la etapa de investigación y lo que es más grave se generan incentivos que sin duda pueden inclinarlo a producir información o fomentar líneas investigativas destinadas a corroborar sus propios prejuicios e hipótesis. Ello explica que en los modelos con prevención de la competencia se producen fuertes síntomas de injerencia y dirección judicial en la tarea del Ministerio Público.  

La negación de este problema esencial y que subyace al núcleo del rol del juez de garantía, solo puede sostenerse en una suerte de fe casi religiosa en la superioridad epistémica del juez profesional, o sea, en una adscripción consciente o inconsciente al modo de ser, actuar y pensar del sistema inquisitivo. 

En relación a este punto, una revisión de la literatura más allá de las complejidades en torno a la distinción contemporánea entre sistema inquisitivo y acusatorio, lleva a la conclusión de que la no producción judicial de evidencias es bastante pacífica a nivel teórico. Así, Julio Maier al ocuparse del principio de imparcialidad de los jueces, afirma de manera tajante: “Pero el juez – a quien las reglas del proceder lo empujan fuertemente a lograr determinados fines, incluso en forma de deberes establecidos para cumplir correctamente su función, como, por ejemplo, el de conocer por las suyas la verdad de un acontecimiento histórico (investigar ex officio, “ofrecer” el mismo medios de prueba para averiguar la verdad, interrogar a los órganos de prueba)-, parte de una posición que no favorece la imparcialidad, sino que, antes bien, la imposibilita en origen, pues la ley lo obliga adoptar una posición de parte en el procedimiento, a tener interés propio en la decisión, a abandonar su posición neutral frente al acontecimiento desde algún punto de vista (la ‘verdad histórica objetiva’), base de su decisión, o no condenar a un inocente o no condenarlo más allá de su merecimiento o necesidad, pese a la torpeza de su actividad defensiva). Incluso se puede decir que, frente a la solución dilemática –relativa- que hoy gobierna nuestro orden jurídico en materia de decisión judicial (condena o absolución), coincida o no coincida el juez que lleva a cabo esta actividad –extraña en sí a su concepto y función- con los intereses de los protagonistas del asunto, siempre favorecerá con su acción el interés básico de alguna de las ‘partes’ o intervinientes en el procedimiento”.[4]  El autor citado, al caracterizar el modelo acusatorio enfatiza la idea de que el papel del juzgador está acotado a los términos de la controversia planteada por el acusador y la resistencia del acusado, apareciendo el tribunal como un “árbitro” entre dos partes.[5]  Ferrajoli a su turno afirma que “si son típicamente característicos del sistema inquisitivo la iniciativa del juez en el ámbito probatorio (…).”[6]  Luego, refiriéndose a la contraposición entre sistema acusatorio y sistema inquisitivo, el autor italiano afirma que dicha dicotomía “es útil para designar una doble alternativa: ante todo, la que se da entre dos modelos opuestos de organización judicial y, en consecuencia, entre dos figuras de juez y, en segundo lugar, la que existe entre dos métodos de averiguación judicial igualmente contrapuestos y, por tanto, entre dos tipos de juicio. Precisamente, se puede llamar acusatorio a todo sistema procesal que concibe al juez como un sujeto pasivo rígidamente separado de las partes y al juicio como una contienda entre iguales iniciada por la acusación, a la que compete la carga de la prueba (…)[7] 

Las ideas que hemos venido desarrollando dan cuenta de una cuestión central y que podría decirse constituye la piedra angular del rol del juez de garantía. La misión de este actor procesal durante la etapa de investigación se vincula directamente con el problema de la ponderación que debe efectuar, “caso a caso, entre la eficiencia y fines legítimos de la persecución penal y la protección de las garantías individuales de los ciudadanos imputados. En una sociedad civilizada todos aspiramos a vivir seguros y a que el Estado nos proteja de quienes atentan contra los bienes más esenciales en que se funda nuestra convivencia colectiva. Sin embargo, al mismo tiempo le exigimos a ese Estado que respete nuestros derechos básicos cuando persigue delitos a fin de sancionar a los responsables. No queremos que ese estado encarcele inocentes, (más no sea para que los verdaderos culpables no permanezcan impunes); le exigimos que a los imputados de algún delito –por muy grave que sea, se les respete su dignidad y se les pruebe su culpabilidad en un juicio oral y público; así como no estamos dispuestos a tolerar que otros ciudadanos entren impunemente a robar a nuestras casas, tampoco estamos dispuestos a livianamente aceptar que el Estado pueda invadir nuestra intimidad y entrar en nuestras casas o dormitorios con agentes policiales armados, sin que un juez lo autorice mediante resolución fundada”.[8]

Conclusión

Hemos pretendido explicar la relevancia del juez de garantía para el debido proceso, subrayando la importancia que tiene no sólo la separación funcional entre acusador y juzgador, sino también la separación entre la función de control de la investigación y la función de juzgamiento en el juicio oral propiamente tal.

Pensando ya en el cambio transcendental que se avecina en la justicia penal brasileña, la tarea prioritaria será la transformación cultural sin la cual cualquier reforma legal, por muy profunda que sea, no tendrá éxito. Ello exigirá un fuerte compromiso de los futuros jueces de garantía.

En un estado de derecho al juez no tiene un compromiso con las políticas de seguridad pública de las agencias de persecución penal ni de los gobernantes de turno. Los jueces penales solo miran a los hechos del caso y al derecho aplicable,  no a la "calle" ni a las mayorías que claman "justicia".  Es relevante comprender que los casos penales, por muy relevantes que sean, jamás pueden ser instrumentalizados por la judicatura para propósitos o “luchas” – por muy nobles que sean- que  excedan la única finalidad que justifica la existencia de la jurisdicción en un estado democrático de derecho: decidir el caso conforme a las reglas jurídicas aplicables.

Sin vinculación a la ley, la independencia judicial termina por convertirse en una peligrosa forma de tiranía en la cual el “gobierno de las leyes”  termina siendo desplazado por el “gobierno de los jueces”.  Cuando un magistrado abandona esa premisa esencial, habrá dejado de ser juez o jueza,  para convertirse en activista o en parte, corrompiendo con ello el estado democrático de derecho.


Notas de rodapé

[1]https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.cl/&httpsredir=1&article=4154&context=uclrev

[2]Mirjan R. Damaska, Las Caras de la Justicia y el Poder del Estado. Análisis comparado del proceso legal.  Editorial Jurídica de Chile, año 2001, pags. 13-14.

[3] Binder, Alberto, Introducción al Derecho Procesal Penal, Editorial Ad-Hoc, segunda edición actualizada y ampliada, Buenos Aires, 2000, pag. 59.

[4] Julio B. J. Maier, Derecho Procesal Penal, I. Fundamentos, Editores del Puerto, 1999, pag. 740.

[5] Ver Julio Maier, ob. cit., pags. 444-445-

[6] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón. Teoría del Garantismo penal. Editorial Trotta, 2001, pag. 563.

[7] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Teoría del Garantismo Penal, Editorial Trotta, 2001, Madrid,   pag. 564.

[8] Gallardo Frías, Eduardo: “Los Jueces de Garantía y la Seguridad Ciudadana en el Contexto de la Independencia Judicial concebida como Sujeción a la Ley”,  Revista Procesal Penal. Editorial Lexis Nexis, Santiago-Chile, no. 45, 2006, pag 13.


Eduardo Gallardo Frías

Abogado, master en derecho (LLM), juez de garantía de Santiago.

egallardo@pjud.cl

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2301-9148

Autor Convidado

As regras sobre a decisão do arquivamento do inquérito policial: o que muda com a Lei 13.964/19?

Resumo: O presente artigo trata das novas regras introduzidas no art. 28, do CPP, pela Lei 13.964, de 24.12.19, cuja vigência por ora está suspensa devido à decisão do Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.395. Trata-se dos fundamentos para a modificação da “natureza jurídica” do ato de arquivamento do inquérito policial, a partir da nova redação do dispositivo legal, e as consequências para a interpretação das regras postas na estruturação do processo penal.

Palavras-chave: arquivamento, inquérito policial, Lei 13.964/19.

Abstract: The present article is about the new rules introduced in the art. 28, from the Criminal Procedure Code, brought by the Law 13,964, of 12.24.19, which is currently suspended by the Brazilian Supreme Court Minister Luiz Fux’s decision, in the Direct Unconstitutionally Action 6,395. It analyzes the fundamentals for changing the “nature” of the act of closing the police investigation, by the new text of the legal provision, and its consequences to the rules’ interpretation in the structuring of the criminal procedure.

Keywords: closure, police investigation, Law n. 13,964/19.

Data: 30/04/2020
Autor: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Ana Maria Lumi Kamimura Murata

A Lei 13.964, de 24.12.19, trouxe um novo tratamento para o arquivamento do inquérito policial e outros procedimentos de investigação preliminar, em face de nova redação do artigo 28, “caput”, do CPP:([1]) “Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. § 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. § 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”.

Como se percebe, o preceito adota o sistema hierárquico de controle de legitimidade. Compatível com o sistema acusatório, o próprio Ministério Público (MP), órgão com atribuição para o caso nas ações penais públicas, decide, administrativamente, sobre a presença ou não das condições para acionar, daí decorrendo, pelo menos, três caminhos a seguir:

1º, se presentes as referidas condições da ação, deve agir. Afinal, prevalece, nessas hipóteses e como se sabe, o princípio da objetividade, pelo qual está pressuposto um agir do servidor público se previsto em lei; e para o órgão do MP não é diferente. Ora, o princípio da conformidade exige que os atos dos órgãos administrativos estejam previstos em lei, vinculando-os à legalidade e, quando possível, à discricionariedade, razão por que, em tais hipóteses, são oportunos ou convenientes, mas nunca arbitrários. O agir, contudo, está pressuposto; e obviamente não haveria sentido, a cada regra, ter-se que afirmar – nos textos – que se deve agir. Prevista a ação e conformados os requisitos ou preenchidas as condições (como normalmente se diz) para o ato, deve-se agir. Trata-se, porém, de um dever. Diferente, portanto, de algo como obrigação, poder, faculdade ou mesmo ônus.([2]) A dogmática do processo penal, por vários fatores – alguns dos quais inexplicáveis – fez e segue fazendo, em certos espaços, força para confundir conceitos de real importância e que têm lugar na chamada teoria geral do Direito, a qual deveria ser ensinada, sempre, como imprescindível. Esses (os decorrentes de tais significantes) são alguns deles. O certo, sem embargo, é que se confunde – e muito –, com consequências profundas. E confusões desnecessárias. No caso, ainda não se tem presente em uma maior escala – como se deveria –, que o chamado princípio da obrigatoriedade impõe um ato vinculado e, portanto, devido (do dever que vem da previsão); mas não como obrigação. É justo isso que faz com que a ação – mesmo sendo devida – possa ser discricionária (conforme se passa na estrutura do sistema acusatório), tudo em face das previsões expressas na lei.([3])

Por outro lado, se faltam elementos de convicção sobre o preenchimento das condições da ação, abrem-se duas possibilidades, conforme as consequências:

2º, referidos elementos não estão presentes (na avaliação que faz o órgão do MP), mas podem ser conseguidos se novas investigações forem feitas e, por primário, não estiver extinta a punibilidade. Assim, com as indicações do MP, as investigações prosseguem e devem ser realizadas pelo órgão com atribuição para tanto; ou,

3º, se referidos elementos não estiverem presentes (sempre na avaliação que faz o MP) e não for possível, no momento, consegui-los com novas investigações, aí se dará a hipótese de arquivamento, a ser determinada por ele, órgão do MP. É o que a doutrina tradicional ainda chama de “ato determinado por falta de prova”, no caso, seja em razão da tipicidade aparente, seja da justa causa.

Trata-se, portanto, de um ato administrativo decorrente de uma decisão (passível de controle), a qual ele mesmo, órgão do MP, submete ao órgão superior que a lei determina, ou seja, os Procuradores-gerais (nos MP estaduais) ou a Câmara de Coordenação e Revisão (Criminal), na forma do artigo 62, IV, da Lei Complementar 75/93, a Lei Orgânica do Ministério Púbico da União.([4])-([5]) A submissão do ato, para homologação, torna-o um ato administrativo composto,([6]) o qual só vai se consolidar – e existir como tal – com aquele da instância revisora.

Eis por que o ato ordenatório do órgão do MP, que ele submete à referida instância, é provisório quanto à perfeição, se se pensa no ato como composto; o que justifica a intervenção, nela, se for o caso, da vítima, do investigado, da autoridade policial e, ainda pela vítima, da “chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”, referindo-se, neste último caso, à União, Estados e Municípios, na forma do § 2º, do novel art. 28 que, por óbvio, não tem uma boa redação, dado deixar fora os entes públicos que têm personalidade jurídica própria e, por suposto, deveriam estar albergados no texto.([7])

Tais agentes – diz a lei – serão comunicados (“Ministério Público comunicará”([8])) do ato de arquivamento, de modo a que, cientes, possam intervir, se assim entenderem, diante da instância de revisão. A questão, porém, não é muito clara. Afinal, poder-se-ia indagar sobre a legitimidade para intervir, em face de não se ter previsão expressa. Para as vítimas, há previsão de intervenção nas regras dos §§ 1º e 2º; e seria uma ofensa à isonomia se ela (a intervenção) não incluísse o investigado, assim como a própria autoridade policial, embora em situação diversa, sem embargo de ambos não poderem impugnar, aí sim por falta de previsão legal para isso. O investigado, por primário, tem interesse em defender o arquivamento, assim como, de certa forma, pode-se imaginar hipóteses em que a autoridade policial possa querer defender a investigação que levou a efeito e esclarecê-la perante a instância de revisão ministerial. Por outro lado, há de se fazer viva a CR, por seu art. 5º, LV, ou seja, reconhecer que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Ao que parece, pode-se resolver, mais uma vez, na via da interpretação. De qualquer forma, é a teoria fazzalariana do processo constitucionalizada: os que podem ser atingidos pela decisão devem participar do processo, se assim entenderem, aí observado como um procedimento em contraditório, tudo em simétrica paridade e sem decisões surpresas.

Para ambos (investigado e autoridade policial), não se previu a possibilidade de impugnação, garantido às vítimas (no § 1º) e explicitado a legitimidade (§ 2º), nos casos penais decorrentes de crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios: “chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”.

Ela, a impugnação da vítima, refere-se, na forma do mencionado § 1º, com a discordância do ato administrativo de determinação do arquivamento, pois dele não concorda. Há de se notar que, aparentemente, não se trata de recurso para o qual se haveria de ter prejuízo e não mera discordância, algo que se justifica porque o ato, como visto, não se encontra acabado e sim em formação, dado se tratar de ato administrativo composto. É por isso também, ao que tudo indica, que o precitado § 1º não fala de recurso para a instância revisora e sim que a vítima vai “submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial...”. Ela, como se vê, participa do procedimento, perante a instância revisora, como parte, com os direitos e garantias daí decorrentes. 

Em suma, pode chegar na instância revisora os Autos conforme encaminhado pelo órgão do MP e, dentro do prazo, a impugnação da vítima. Nesse caso, por óbvio que se não fará dois procedimentos e, portanto, é recomendável que se chegue no tempo da lei (30 dias a partir da comunicação, na forma do art. 798, § 5º, “a”, do CPP) a impugnação da vítima de modo a que tudo seja apreciado em conjunto.

Decidido pelo arquivamento no órgão revisor, é recomendável que se comunique o Juiz das Garantias, ainda que se não tenha previsão legal. Por outro lado, se houver alguma cautelar em curso, o arquivamento exige que se comunique ao Juiz das Garantias, na forma do art. 3º-B, VI, do CPP, de modo a que seja revogada. 

O que parece não deixar margem à dúvida – em face da redação genérica do art. 28 – é que as regras dele atingem todos os órgãos do MP que sejam legitimados para as ações e, assim, também os Procuradores-gerais, nos casos das chamadas ações penais originárias. Tal matéria, como se viu, na estrutura atual do art. 28 (ainda em vigor em face da decisão precitada do Min. Luiz Fux), sempre foi problemática e colocava de joelhos toda a construção que a dogmática arduamente fez do princípio da obrigatoriedade, porque, no final das contas, o STF sempre se viu compelido a admitir (de um modo um tanto equivocado) que, em ultima ratio, o Procurador-geral tinha a última palavra sobre o exercício da ação ou sobre o arquivamento e, assim, fazia uma concessão à oportunidade. Isso é inconcebível em um regime democrático de legalidade como parece elementar. A questão agora está resolvida, exceto se quiserem, mais uma vez, salvar de controle, na matéria, a posição dos Procuradores-gerais.

Por fim, resta verificar, diante da nova redação do art. 28 e da sistemática adotada, o que é, do ponto de vista jurídico, o ato; ou, sempre como queriam os antigos, sua natureza jurídica.

Para tanto, há de se recordar que agora o ato é administrativo e não mais jurisdicional, o que desde logo exclui a discussão a respeito da coisa julgada. De qualquer forma, está em vigor o art. 18, do CPP,([9]) assim como diz sobre a matéria a Súmula 524, do STF,([10]) a serem adaptados, obviamente.

Nesta toada, o ato administrativo composto, tão só determinado o arquivamento com a homologação a que se refere o caput do art. 28, sujeita-se às condicionantes do art. 18, do CPP, logo, a novas e melhores provas, ou seja, substancialmente novas (como tantas vezes decidiram os tribunais), tudo de modo a não se acolher releituras apressadas, quando não tendenciosas.

Deste modo, diante do CPP/41, o que impedia – e segue impedindo – o desarquivamento puro e simples do inquérito policial era a chamada coisa julgada rebus sic stantibus.([11])

Agora, o ato administrativo, pela força do art. 18, do CPP, carrega consigo uma estabilidade provisória, em face de se tratar de ato jurídico perfeito, nos moldes do art. 5º, XXXVI, da CR.([12]) A garantia jurídica constitucional assegura a estabilidade na forma da lei. Portanto, mesmo que administrativo, não pode ser revisto a bel-prazer pelo órgão administrativo, inclusive em razão da regra constitucional da moralidade, nos termos do art. 37, caput, da CR, embora se sujeite, como qualquer ato administrativo, ao controle da higidez deles, ou seja, à análise sobre a nulidade.

O importante, então, é entender a mudança para uma estrutura ligada ao sistema acusatório e, assim, perceber a seriedade que envolve as questões referentes ao arquivamento e desarquivamento do inquérito policial e outros procedimentos de investigação preliminar, sempre em compatibilidade com a Constituição da República.

No fundo, a nova hipótese, dentro do sistema acusatório, respeita o lugar constitucionalmente demarcado do órgão jurisdicional e do órgão ministerial. Ao juiz competente, por certo, garante-se não só o poder jurisdicional como, substancialmente, reserva-se sua atuação para as decisões do processo. Assim, como se sabe desde há muito, as questões referentes à ação, ressalvadas aquelas que se referem à admissibilidade dela (já como ato processual), devem restar fora do alcance da competência do órgão jurisdicional, no caso, o Juiz das Garantias. É menos trabalho, por evidente; e assim, menos responsabilidade.


Notas de rodapé

([1]) O Min. Luiz Fux, do STF, de forma monocrática, decidiu: “Concedo medida cautelar requerida nos autos da ADI 6305, e suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (b1) da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (28, caput, Código de Processo Penal)”, tudo em face dos seguintes fundamentos da ADI 6305 da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público: “(c) Artigo 28 caput, Código de Processo Penal (Alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial): (c1) Viola as cláusulas que exigem prévia dotação orçamentária para a realização de despesas (Artigo 169, Constituição), além da autonomia financeira dos Ministérios Públicos (Artigo 127, Constituição), a alteração promovida no rito de arquivamento do inquérito policial, máxime quando desconsidera os impactos sistêmicos e financeiros ao funcionamento dos órgãos do parquet; (c2) A previsão de o dispositivo ora impugnado entrar em vigor em 23.01.2020, sem que os Ministérios Públicos tivessem tido tempo hábil para se adaptar estruturalmente à nova competência estabelecida, revela a irrazoabilidade da regra, inquinando-a com o vício da inconstitucionalidade. A vacatio legis da Lei n. 13.964/2019 transcorreu integralmente durante o período de recesso parlamentar federal e estadual, o que impediu qualquer tipo de mobilização dos Ministérios Públicos padra a propositura de eventuais projetos de lei que venham a possibilitar a implementação adequada dessa nova sistemática; (c3) Medida cautelar deferida, para suspensão da eficácia do artigo 28, caput, do Código de Processo Penal;”O principal fundamento da decisão (sobre o fumus boni iuris) está assim expresso: “Em análise perfunctória, verifico satisfeito o requisito do fumus boni iuris para o deferimento do pedido cautelar de suspensão do artigo 28, caput, da Lei n. 13694/2019. Na esteira dos dados empíricos apresentados pela parte autora, verifica-se que o Congresso Nacional desconsiderou a dimensão superlativa dos impactos sistêmicos e financeiros que a nova regra de arquivamento do inquérito policial ensejará ao funcionamento dos órgãos ministeriais. Nesse sentido, a inovação legislativa viola as cláusulas que exigem prévia dotação orçamentária para a realização de despesas, além da autonomia financeira dos Ministérios Públicos. Na esteira do que já argumentado no tópico anterior, vislumbro, em sede de análise de medida cautelar, violação aos artigos 169 e 127 da Constituição”. Por outro lado, o periculum in mora restou justificado porque os Ministérios Públicos não teriam tido “tempo hábil para se adaptar estruturalmente à nova competência estabelecida”. O argumento principal (quanto ao fumus boni iuris) é frágil – e depõe contra a próprio Ministério Público – porque, com a nova regra, livram-se do controle jurisdicional do arquivamento, de todo inconstitucional, em face da estrutura autônoma da instituição e da “natureza” da decisão que submetem ao controle; depois, porque têm plenas condições de operacionalizar o controle interna corporis simplesmente pela distribuição das atribuições dentre os inúmeros Procuradores lotados nas Procuradorias Gerais; e sem nenhum aumento de despesas. Tais órgãos, por evidente, terão que trabalhar mais – é verdade – e isso sempre esteve subjacente em certa má vontade de alguns, coisa que há muito se verificava, inclusive já em tempos passados, nas – um tanto antigas – tentativas de mudança do sistema de controle de legitimidade, do que foi exemplo marcante aquela verificada em relação ao chamado Projeto Frederico Marques. O Ministério Público, contudo, não merece algo assim. O MP da CR/88 não pode estar à mercê de um pensamento tão obtuso. Além do mais, a mudança – desde este ponto de vista absolutamente necessária – é imprescindível à refundação do próprio sistema processual penal, com a alteração de inquisitório para acusatório.   

([2]) Para uma diferença entre tais significantes e que se possa recomendar, vide: CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, pp. 14-17.

([3]) A matéria é muito interessante e mereceria uma análise mais alargada, que o presente ensaio não comporta. Sobre o tema da ação, porém, são imprescindíveis os ensinamentos de SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Por uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo peal brasileiro. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, 414p.  Sobre o tema específico da discricionariedade, ver: SOUZA, Bruno Cunha. Obrigatoriedade da ação penal pública: o problema da escassez dos recursos públicos para uma prestação jurisdicional eficiente. 2020. 161p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica, Curitiba, 2020.

([4]) “Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão: IV – manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”.

([5]) Neste aspecto, referente ao órgão com atribuição para a revisão – já previsto em lei – não parece ter andado bem o Min. Luiz Fux na decisão que concedeu a medida liminar precitada: “Anoto que questões operacionais simples deixaram de ser resolvidas pelo legislador, como, por exemplo, a cláusula aberta trazida no caput do artigo 28, ao determinar que o arquivamento do inquérito policial será homologado pela ‘instância de revisão ministerial’. A nova legislação sequer definiu qual o órgão competente para funcionar como instância de revisão”. Ora, por certo não se definiu porque já estava na lei, o referido órgão, como superior administrativo; e não são, sempre, os mesmos órgãos. Afinal, como se sabe, no MPF, por lei, a atribuição é da Câmara de Coordenação e Revisão (Criminal). Ademais, por certo consciente que se haveria de reformular as atribuições nas estruturas administrativas do MP, o legislador não quis vincular o agir das instituições, aí sim, quem sabe, incorrendo em inconstitucionalidade. O legislador, então, não parece ter legislado mal; e sim bem, respeitando a autonomia do MP.

([6]) Ao contrário do que podem pensar alguns, não se trata de um recurso de ofício, para o qual se teria que ter, dentre outros requisitos, um ato acabado e perfeito, o que, por evidente, não ocorre. A doutrina do direito administrativo não deixa muita dúvida a respeito do tema.

([7]) Dar-se-á, no caso, a aplicação do art. 3º, do CPP, fazendo-se interpretação extensiva. A importância do referido art. 3º está – justo – na solução interpretativa de preceitos normativos assim dispostos porque, como queriam os antigos, parece que o legislador, no caso, disse menos do que queria ou deveria dizer; e não há veto para a extensão na via da interpretação.

([8]) O preceito do caput do art. 28, como se percebe, usa o verbo comunicar, portanto, refere-se à comunicação, isto é, termo genérico utilizado para se referir à ciência do ato praticado ou do ato que se deva praticar. Essa dualidade sempre demarcou a diferença (debaixo do termo genérico comunicação) entre intimação e notificação; aquela para ciência do ato praticado e esta para ciência de que se deve praticar um ato. No CPC/73 a diferença foi abolida e se adotou, para todas as hipóteses, o significante intimação. A atitude foi louvada. Da sua parte, o CPP também tinha e tem um Capítulo II, do Título X, do Livro I, referente ao tema e que trata “das citações e intimações”. Independente disso, o CPP segue referindo-se à intimação (como no caso, por exemplo, do art. 222: “A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.”), mas também se refere à notificação (como no caso, por exemplo, do art. 600, § 4º: “Se o apelante declarar, na petição ou no termo, ao interpor a apelação, que deseja arrazoar na superior instância serão os autos remetidos ao tribunal ad quem onde será aberta vista às partes, observados os prazos legais, notificadas as partes pela publicação oficial.”), o que sempre causou dificuldades no entendimento do tema e no seu ensino, dada a confusão que se criou e cria, mormente a partir da infeliz teoria geral do processo. E isso se deu, no processo penal, porque, para ele, a opção do CPC/73 não foi a melhor, por evidente, dadas as previsões legais expressas referentes, no CPP, das notificações. Uma coisa, contudo, é certa: se os significados dos significantes são diferentes, das duas, uma: ou eles são tratados nos seus devidos lugares, ou ganham o termo genérico – e, no caso, unificador – comunicação. Deste modo, a opção do legislador natalino do novo art. 28, ao que tudo indica, foi feliz, acertando pela generalidade (usando o verbo comunicar), ainda que, como se sabe, o referido artigo estivesse se referindo à intimação do ato praticado.     

([9]) Art. 18, do CPP: “ Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”.

([10])  Observar, nesse ponto, que “enquanto o art. 18 regula o desarquivamento de inquérito policial, quando decorrente da carência de provas (falta de base para denúncia), só admitindo a continuidade das investigações se houver notícia de novas provas, a Súmula 524 cria uma condição específica para o desencadeamento da ação penal, caso tenha sido antes arquivado o procedimento, qual seja, a produção de novas provas. (...) Em resumo, sem notícia de prova nova o inquérito policial não pode ser desarquivado, e sem produção de prova nova não pode ser proposta ação penal.” (STF, HC 94.869, 26.6.13, DJ 25.2.14). A propósito, ver também: RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 228 e ss.; DUCLERC, Elmir. Curso básico de direito processual penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 162.

([11]) Sobre o argumento, ver: DIAS, Jorge Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 410.

([12]) Art. 5º, XXXI, da CR: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.


Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Doutor pela Universidade de Roma “La Sapienza”, mestre pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professor Titular de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (aposentado). Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Criminais da PUCRS. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Damas do Recife. Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória. Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6532-2460

Ana Maria Lumi Kamimura Murata

Doutoranda em Direito Penal (USP). Mestre em Direito Penal (USP). Editora adjunta do Boletim do IBCCRIM. Advogada.

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4182-4754

Autores(as) convidados(as)

Isolamento e a privacidade “tóxica” em tempos de pandemia: o sofrimento feminino

Resumo: A prática do isolamento como medida preventiva e de combate ao vírus Covid-19 trouxe à tona a discussão sobre a violência doméstica praticada contra as mulheres no Brasil. A autora entende que a tutela jurídica da intimidade favorece o processo de denegação deste tipo de violência e apresenta uma reflexão sobre as medidas práticas que podem ser tomadas para enfrentar a violência contra a mulher no atual contexto de pandemia.

Palavras chave: Isolamento; violência doméstica, invisibilidade, medidas de proteção, Coronavírus

Abstract: The practice of self-isolation as a preventive and combat measure against the Covid-19 virus brought up the discussion about domestic violence practiced against women in Brazil. The author understands that the legal protection of intimacy favors the process of denial of this type of violence and presents a reflection on the practical measures that can be taken to face violence against women in the current pandemic context.

Keywords: Isolation; domestic violence, invisibility, protective measures, Coronavirus

Data: 30/04/2020
Autor: Ana Lucia Sabadell

Introdução

As feministas foram as primeiras, ainda nos anos de 1980, a indicar a relação entre privacidade e a problemática da violência de gênero praticada no âmbito das relações familiares.([1]) A violência doméstica, já naquela década, era compreendida como um correlato da construção histórico-social das relações desiguais entre os gêneros. Em nosso modelo social (patriarcal e, portanto, heterossexual), este tipo de violência se constituiu em um meio sistematicamente empregado para controlar as mulheres mediante a intimidação e o castigo, mesmo se, no senso comum, prevaleceu (e infelizmente, em certos ambientes ainda prevalece) a ideia de que a violência doméstica é um fenômeno de “desvio” e isolado, que pode ser atribuído a “patologias” do homem ou do casal.([2])

Entendo que a construção desigual entre os gêneros não afeta apenas as mulheres de orientação heterossexual. Na visão patriarcal de mundo também não há espaço para a diversidade sexual. Consequentemente, todos os “desvios” devem ser “castigados”, todos os “desvios” devem ser devidamente “neutralizados”. Por isso, também dedico aqui uma pequena reflexão acerca do sofrimento vivenciado pelas pessoas que  integram, no Brasil, a comunidade LGBTQI+ no momento em que a privacidade demonstra seu potencial efeito destruidor.

1.      Silêncio e mudança social. O Preço do confinamento.

No Brasil, foram necessários muitos anos para que as autoridades brasileiras reconhecessem a existência e a gravidade do problema da violência doméstica e sexual contra a mulher em sua relação com a tutela da privacidade e da intimidade. Obviamente, isso não significa desdenhar de tudo que o movimento feminista fez no país e na América Latina, especialmente a partir dos anos de 1980. Basta lembrar, por exemplo, que a primeira delegacia de defesa da mulher foi criada, em São Paulo, em 1985, por conta desta questão e da Constituição de 1988, que deu destaque ao problema da violência na família.([3]) De todas as formas, sempre foi muito difícil lutar contra a violência doméstica no nosso país, dada a força da inércia da cultura patriarcal.

Acredito que o silêncio se constitui como uma espécie de manto sagrado do machismo brasileiro; na verdade, o integra. O silêncio sempre foi cúmplice dos homens violentos que estupram, batem, humilham e, em muitos casos, matam suas mulheres e inclusive sua própria prole, independentemente de sua orientação sexual.  Porém, ocorreram mudanças nos últimos anos. E falar em mudança social é um tema muito delicado, porque não significa que não ocorram retrocessos e que os ditos “avanços” não sejam marcados por contradições. Não é fácil mudar padrões de comportamentos que estão muito arraigados em uma sociedade. Além das mulheres vítimas de violência doméstica, as pessoas cuja orientação sexual, identidade ou expressão de gênero diferem das normas tradicionais “heteropatriarcais” sofrem muita discriminação e rejeição, dentro e fora do lar, apesar dos avanços nas discussões sobre seus direitos nas últimas décadas.([4]) Retornando ao tema das mulheres: quando olho para os dados quantitativos sobre a violência contra a mulher brasileira, identifico essa dificuldade de mudança de mentalidade refletida em cifras, todavia, absurdas. Apenas lhes recordo que, em 2011, a taxa de assassinatos de mulheres no Brasil era de 3,9 para cem mil habitantes e estudos de 2019 apontaram que essa mesma taxa saltou para 4,7 por cem mil habitantes (com um incremento no nível de violência de 30,7%).([5])

E, neste momento em que se pensa na invisibilidade de um vírus que se une –e não só simbolicamente- à invisibilidade feminina em face da violência de gênero, cabe-nos uma séria reflexão. O que significa, em termos práticos, o confinamento em casa quando se convive com a violência de gênero no lar? Eu lhes digo, em primeiro lugar, aumento da subnotificação. E isso está acontecendo em todos os países que enfrentam a atual pandemia.([6]) A justiça carioca, por exemplo, já detectou um aumento de 50% no aumento do plantão judiciário,([7]) quer dizer, mais mulheres buscando o plantão. Porém, não podemos ainda dizer muito sobre aumento de casos de violência doméstica, porque os registros, infelizmente, virão a posteriori, quando for possível manejar dados estatísticos. Só essa informação inicial já pode lhes demonstrar um pouco da complexidade do momento que enfrentamos. Em todo caso, algumas instituições, como a Rede de Advogadas Feministas Coletes Rosas (Rio de Janeiro), disponibilizaram um guia de orientação para as mulheres vítimas de violência doméstica,([8]) como também ocorrem em outros estados.

2.      O despertar para o problema da violência doméstica no Brasil

 Considero que o caso Maria da Penha foi crucial para o que chamo de “despertar da sociedade brasileira” para a realidade da violência doméstica, dentre outros motivos, porque esta triste história guarda um importante aspecto simbólico, de forte conotação psicológica, dificilmente percebido pelos juristas por força da sua própria formação profissional e desconhecimento da matéria. Quem é Maria da Penha Maia Fernandes? Uma farmacêutica bioquímica, oriunda da classe média do Ceará e que conheceu seu ex-marido (economista) quando ambos cursavam o mestrado na USP. Tratam-se de pessoas esclarecidas, cultas, inseridas no que podemos chamar de “elite intelectual”. Ele, inclusive, obteve sucesso profissional por muitos anos, ministrava aulas em faculdades e assessorava várias empresas.  No entanto, o marido “se transformou” naquilo que todos sabemos e que corresponde ao “histórico” ciclo da violência doméstica: tornou-se um homem violento, que atentou duas vezes contra a vida de sua esposa e a deixou paraplégica. Ademais, ele obviamente contou, como todos sabemos, com a benevolência do sexista sistema de Justiça Criminal Brasileiro.

O que muitas pessoas começaram a perceber é que a violência de gênero atingia pessoas que, pensávamos, estavam protegidas pela tutela da intimidade familiar!  Lembrem que logo na introdução eu lhes disse que a violência doméstica foi, por muito tempo, percebida como uma espécie de desvio da normalidade?  

Pois bem, se uma mulher como Maria da Penha não estava em segurança, quem realmente está? Em minha opinião, as pessoas perceberam que se tratava de um casal “normal”, da classe média. Não era possível aplicar as típicas desculpas machistas: mas ela traía o marido, usava roupas desapropriadas para uma mãe de família, não cuidava da prole; ou ele era um vagabundo, um bêbado que vivia caindo na sarjeta.([9])

Maria da Penha significou a quebra do mito do comportamento agressivo “patológico”. E considero que isto, de certa forma, causou uma comoção social e uma certa tomada de consciência. Algo que na psicologia clínica se costuma designar com o termo “insight”. As feministas, por sua vez, souberam sabiamente explorar essa oportunidade para fortalecer a luta contra a violência com a qual a própria Maria da Penha se engajou. O país foi condenado na Corte interamericana de direitos humanos e o caso explodiu nas mídias.([10]) E então, iniciamos um processo de descoberta do que denomino de visibilidade da invisibilidade e começamos a ouvir, ainda que pouco, as vozes do silêncio. Todas somos ou podemos potencialmente ser “Maria da Penha”.

 Um processo de mudança social complexo, como é a tomada de consciência do público feminino em face da violência doméstica, dificilmente se deve a um único fator. As mulheres brasileiras se tornaram mais independentes, mas a cultura patriarcal pouco mudou. E, na minha opinião, isto gera, em uma perspectiva sociológica, muitas tensões sociais. Imaginem que em 1991 menos de 25% dos lares brasileiros eram chefiados por mulheres, mas um estudo do IBGE, em 2015, apontou que o percentual de mulheres chefes de família atingiu 40% e ,em 2018, já representávamos 45%!([11]) Então, o que ocorre? Eu, mulher, tenho agora leis e instituições as quais posso recorrer em caso de violência; tornei-me  independente e caminho com minhas próprias pernas, porque devo  me submeter a uma situação de opressão? Por qual motivo devo ficar casada com um homem a quem não amo mais e que me humilha? Não me sinto mais identificada com Amélia. Por outro lado, devemos também trabalhar com a hipótese de que o aumento de denúncias mantenha relação justamente com esse processo de tomada de consciência e com o maior interesse dos órgãos de pesquisa no estudo da matéria. Até algumas décadas, os institutos de pesquisa não se interessavam pela problemática da violência de gênero, não era um tema central na vida das pessoas.

E hoje chega o coronavírus e sua invisibilidade se torna o cumplice ideal do machismo brasileiro. Sabemos, por diversos estudos estatísticos realizados desde os anos de 1980 (vide nota 1), que o aumento de violência contra a mulher mantém uma correlação com a presença masculina no lar. Isto não é especulação, é dado científico. Por exemplo, nos finais de semana e em períodos festivos sempre há aumento de violência doméstica.

3.      Denegação, confinamento e intimidade familiar

E agora vem a pergunta: O que podemos fazer para evitar mais mortes de mulheres e mais violência de gênero em um momento de confinamento?

Em primeiro lugar, ENTENDER finalmente que o lugar mais perigoso para a tutela da integridade feminina é o lar. Sei que minha afirmação é assustadora e ao mesmo tempo desoladora. É tristíssimo dizê-lo. Porém, sem tomar consciência dessa situação, não poderemos enfrentar o problema. E justamente porque os efeitos dessa constatação são tão difíceis de serem “absorvidos” pela nossa organização social, que o mecanismo de denegação AINDA funciona com tanto sucesso em um país tão sexista como o nosso.

Há pouco mais de duas décadas venho escrevendo sobre as consequências perversas dessa denegação, que nem sequer nos permite “repensar” a família sobre outras bases!!! Imaginem que a final da década de 1990, na cidade de Heidelberg (Alemanha), foi feita uma pesquisa com mulheres, composta de uma pergunta muito simples: onde você considera que pode ser vítima de violência sexual? A maioria respondeu “no espaço público” (ponto de ônibus, estacionamentos subterrâneos etc.). Porém, essa resposta das mulheres alemãs andava na contramão das pesquisas realizadas pela própria polícia científica alemã, a qual apontava um resultado oposto. A realidade e o imaginário feminino não coadunavam! Em quase 90% dos casos, a violência sexual  ocorria entre quatro paredes, no âmbito familiar.([12]) Percebem a gravidade do problema?   

Se fomos criadas acreditando que a base da sociedade é a família, que em casa, com nossos entes queridos, é onde podemos nos sentir plenamente protegidas de um mundo hostil, competitivo e violento, o que resta quando descobrimos que isso não corresponde à realidade? É no lar que compartilhamos a nossa mais profunda intimidade e por isso eu lhes pergunto: como lidar com tamanha contradição?  Se refletirmos com seriedade sobre essa questão, podemos começar a entender a complexidade dos processos de denegação.([13]

A intimidade é um grave problema para as mulheres em sociedades machistas como a nossa. Em culturas machistas, o mais comum é que o homem hetero considere o espaço privado como um local de exercício de sua dominação. Homens podem brigar e até se matar nas ruas, mas com as mulheres, o que fazem é agredi-las no lar; na esfera privada. 

E o que vamos fazer? Ouvir a voz do presidente que praticamente diz que devemos deixar as mulheres morrerem de corona na rua para não morrerem em casa? Ou deixar os agressores em casa para que as mulheres sejam mortas?

E, de certa forma, isso também ocorre quando jovens, no despertar da sexualidade, se dão conta que não são heterossexuais. Se estes “saem do armário”, serão objeto de uma dupla discriminação: a familiar, expressa por seus entes mais queridos, e a que se exerce na esfera pública.

Por isso, não só as mulheres heterossexuais correm risco, mas toda a comunidade LGBTQI+, porque o confinamento se dá no espaço de exercício do poder patriarcal.

Retomando a referência à tomada de consciência das mulheres brasileiras em relação à violência doméstica, acho que estas se sentem hoje um pouco como aquele personagem (um menino) do conto de Hans Christian Andersen (A roupa do rei)([14]) quando este descobriu que o vaidoso Rei, que acreditava estar desfilando com uma belíssima roupa toda bordada com fios de ouro... na verdade... nunca esteve vestido; estava completamente nú!!!

E isto ocorre, hoje, com muitas pessoas que, inclusive, até inconscientemente começam a questionar a ideia de família e, obviamente, esta “tomada de consciência” também se reflete nessa nova onda feminista que tomou o país em menos de uma década. Consciência de quem sou e do que posso ser

A defesa da intimidade e da privacidade em uma sociedade liberal não pode ser considerada como uma desculpa para aceitarmos a violência praticada no lar. Temos um grave conflito de direitos fundamentais, onde evidentemente, se deve priorizar a vida.  E isto o jurista brasileiro, que é extremamente machista, sobretudo o penalista, não percebe. Vivemos em um mundo que ainda explora a imagem da mulher como submissa e que aceita os gays e Drags Queens como “enfeites de carnaval”. Nós mulheres somos usadas para vender cerveja, carros e alegrar, com nossos corpos, nos balés de domingo do programa do Faustão o imaginário masculino de dominação. Finalizo com uma frase de impacto jurídico. O que se luta é pelo reconhecimento das mulheres e de todas as pessoas da comunidade LGBTQI+ como “sujeito de direitos” e isso não coaduna com a cultura patriarcal.

Aponto agora algumas questões práticas, de aplicação imediata, em face do coronavírus e da violência contra a mulher:

1.      Priorizar a manutenção dos serviços especializados de atendimento. As Delegacias de defesa da mulher, os juizados especializados, a defensoria pública e os núcleos de atendimento PRECISAM funcionar. E mais: sugiro que se convoque também todos os órgãos da magistratura e do MP federal e estadual para ajudar nessa situação emergencial.

2.      Manter as casas de abrigo existentes e utilizar hotéis e outras instalações públicas disponíveis, para abrigar as vítimas, de forma a evitar a aglomeração e possível contágio com o vírus.

3.      Em situação de emergência, ligar para 190. O disque 180 pode ser contatado para registro de violência, para realizar denúncia, mas não garante atendimento imediato, como recordam as juristas da Rede de Advogadas Feministas Coletes Rosas.

3. Uso de aplicativos, como o botão do pânico. Porém, deve ser empregado, em minha opinião, um modelo similar ao que foi desenvolvido no estado do Piauí. Porque se trata de um mecanismo discreto, que em geral, não chama a atenção do agressor. E, no modelo empregado no Piauí, a mulher tem duas alternativas. Ela pode pedir socorro imediato, se perceber que a violência é eminente, ou pode pedir ajuda relatando a situação cotidiana de violência por ela vivenciada. Nos dois casos será atendida.  Hoje o celular é empregado pela maioria das pessoas.

4. Ronda Maria da Penha em todos os estados da federação e acompanhamento controlado dos casos de violência doméstica que já foram judicializados. Tanto a magistratura, com a defensoria pública, como o Ministério público possuem tais dados. O temor de muitas mulheres que trabalham com esse tipo de atendimento é que, piorando a crise do coronavírus, a polícia especializada seja redirecionada para atendimentos de outros tipos de praticas delitivas. Isso NÃO pode ocorrer. O sistema de justiça deve ATUAR com o mesmo esforço e empenho dos profissionais da saúde. Isto sim significa ROMPER com a denegação.

5. Empatia. Colocar-se no lugar da pessoa que sofre. E aqui entra a comunidade. No tempo em que um vírus coloca em questão nossas opções de vida, o desdém com a natureza, a indiferença para com quem sofre (com exceção de alguns representantes do executivo nacional e de alguns empresários egoístas que só pensam em números), cabe-nos exercitar realmente a empatia, o afeto ao próximo. Todos sabemos quem é o vizinho que bate no filho que é gay, que bate na esposa, mesmo quando não se escutam gritos. Esta estampado no rosto, mesmo quando não há hematomas. Mas muitas e muitos se calam. PRECISAMOS mudar de comportamento e aprender realmente o significado do verbo amar. Em tais casos, é preferível DENUNCIAR, ligar para os telefones de emergência e pedir ajuda.

6. CONTAR IMEDIATAMENTE com o apoio das redes sociais e com o comprometimento de TODOS os meios de comunicação para divulgar que NÃO se tolera a violência contra a mulher.

Se as medidas de urgência não forem aplicadas, teremos que enfrentar, no final dessa longa quarentena, não só com as mortes causadas pelo coronavírus, mas com um aumento massivo de dados sobre a prática da violência contra a mulher, contra as crianças e contra as pessoas que apenas exercem seu direito fundamental à diversidade sexual.


Notas de rodapé

([1]) DOBASH, E.; DOBASH, R. Violence Against Wifes. A Case Against Patriarchy. New York: The Free Press, 1983.

([2]) Dentre outros estudos, Cf. EDWARDS, A. Male Violence in Feminist Theory. In: HANMER, Jalna; Maynard, Mary (Orgs.). Women, Violence and Social Control. Great Britain: Macmillan, 1994. pp. 13-29.; FINEMAN, Martha Albertson; MYKITIUK, Roxanne (Orgs.) The Public Nature of Private Violence. The Discovery of Domestic Abuse. New York: Routledge, 1994.

([3]) Para uma análise lúcida sobre o papel da mulher na Constituinte e seus limites em face do poder da cultura patriarcal, cf. a tese de doutorado de Adriana Vidal de Oliveira, defendida na PUC-Rio no ano de 2012 e publicada em 2015. VIDAL, Adriana de Oliveira.  Constituição e Direito das mulheres. Uma análise dos estereótipos de gênero na Assembleia Constituinte e suas consequências no texto constitucional. Juruá: Curitiba, 2015.

([4]) Em relação à comunidade LGBTQI+, vale a pena consultar os dados produzidos pela FGV DAPP. Cf SANCHES, Danielle; CONTARATO, Andressa; AZEVEDO, Ana Luísa. Dados públicos sobre violência homofóbica no Brasil: 29 anos de combate ao preconceito. 2018. Disponível em: http://dapp.fgv.br/dados-publicos-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-29-anos-de-combate-ao-preconceito/ Acesso: 07/04/2020.

([5]) Dados estatísticos podem ser consultados em: SABADELL, A. L. Manual de Sociologia Jurídica. Introdução a uma leitura externa do direito. 7. ed. São Paulo: Editora Thomsons & Reuters - Revista dos Tribunais, 2017, p.223-248. Apresento dados de 2019 na nova edição do referido Manual, com previsão de publicação para o mês de junho de 2020). Ver ainda: BIANCHINI, A. Lei Maria da Penha. Lei 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gêneroSão Paulo: Editora Saraiva, 2018.

([6]) Matérias são objeto da imprensa internacional (EUA, Inglaterra, Itália, Espanha e América Latina) e do movimento de mulheres. Cf. entre outros: https://www.nytimes.com/2020/04/06/world/coronavirus-domestic-violence.htmlhttps://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/coronavirus-quarantine-abuse-domestic-violencehttps://www.bbc.com/news/world-52063755https://www.ilcapoluogo.it/2020/03/31/coronavirus-e-violenze-domestiche-quando-la-casa-non-e-un-posto-sicuro/https://www.nuevatribuna.es/articulo/actualidad/coronavirus-confinamiento-violenciamachista-violenciagenero-victimas-pandemia/20200330100020172814.htmlhttps://www.dw.com/es/am%C3%A9rica-latina-lucha-contra-la-violencia-de-g%C3%A9nero-en-tiempos-del-coronavirus/a-52971832. Particularmente interessante é a nota emitida pelo CLADEM (comunicado núm.1- Covid-19), que pode ser consultado em: https://cladem.org/pronunciamientos/los-estados-y-las-deudas-pendientes-con-los-derechos-de-las-mujeres-en-el-marco-de-la-pandemia-covid-19/. Igualmente, o Guía para proteger los derechos de mujeres y niñas durante la pandemia de COVID-19, disponível em:  https://www.womenslinkworldwide.org/files/3112/guia-para-proteger-los-derechos-de-mujeres-y-ninas-durante-la-pandemia-de-covid-19.pdf?utm_source=guia pdf&utm_medium=mail&utm_campaign=outreach-guia-covid19&utm_content=spanish. Acesso: 16/04/2020. Ressaltamos que indicamos aqui as primeiras manifestações emitidas entre os meses de março e abril de 2020.

([7]) Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/violencia-domestica-cresce-50-no-rj-com-isolamento-contra-coronavirus/. Acesso: 08/04/2020

([8]) Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1h6TF7lV6ni6cw0BRlg94g8kw_BoTc0JFH9zAW9c9Uk/mobilebasic. Acesso: 08/04/2020.  Observo que a fala recente da Ministra Damares sobre aumento de 9% no volume de denúncias recebidas pelo telefone 180 em relação ao mesmo período do ano passado não pode ser usada ainda como dado estatístico que comprove a pratica da violência, sobretudo desacompanhada de outros dados, que repito, só surgiram a posteriori. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/celina/damares-diz-que-denuncias-de-violencia-contra-mulher-aumentaram-9-durante-pandemia-24347077. Acesso: 08/04/2020. Como cientista social, parece-me que o objetivo do presidente da República é acabar com o isolamento social, uma das poucas chances que temos de enfrentar essa pandemia no País.  Como apontarei no final dessa análise, o que precisa ser feito é reforçar os serviços de atendimento e não acabar com o isolamento.

([9]) Pouco a pouco, outras mulheres (de maior visibilidade social) começaram a denunciar seus algozes, como foi o caso da ex-modelo e empresária Luiza Brunet.

([10]) Há outros fatores que contribuíram para o inicio dessa ruptura do pacto do silêncio, como a massiva presença feminina na esfera pública. Estes são apresentados na bibliografia indicada na nota de rodapé 1.

([11])  IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento.  Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: rendimento de todas as fontes: 2018; Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101673. Acesso em 08/04/2020. Para uma análise mais detalhada de tais dados, remeto à nota de rodapé número 1

([12]) SABADELL, A. L.  O conceito ampliado da segurança pública e a segurança das mulheres no debate alemão. In: LEAL, César Barros; PIEDADE Jr. Heitor (Orgs.). A violência multifacetada. Estudos sobre a violência e a segurança pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. pp. 1-28.

([13]) Em relação aos argumentos sobre a denegação e a problemática da tutela da intimidade, ver: SABADELL, A. L. Perspectivas jussociológicas da violência doméstica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista dos Tribunais, v. 840, out. 2005, pp. 429-456.

([14]) Um rei muito vaidoso é vítima de dois oportunistas que dizem fazer uma roupa muito especial, que só pessoas honestas, boas, corretas, com muitas qualidades morais  são capazes de enxergar. Os assistentes do Rei, quando instados a falar sobre a roupa, com medo de serem considerados desonestos, diziam ao rei que era maravilhosa. Até que um dia o rei sai em desfile pelo reino e um menino grita: “O rei está nú!


Ana Lucia Sabadell

Professora Titular da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

anasabadell@yahoo.com

Orcid: 0000-0001-9370-1057

Autora convidada




Juiz das Garantias: A onda democrática em meio à maré do punitivismo rasteiro

Resumo: O artigo aborda a figura do Juiz das Garantias, inserido ao ordenamento brasileiro pela Lei Federal 13.964/19, discorrendo sobre os diversos aspectos atinentes ao tema, dentre os quais as especificidades e pertinência da figura introduzida. Assim, empreendeu-se uma leitura do instituto sob a ótica da teoria da dissonância cognitiva, argumento sensível à análise da imparcialidade subjetiva do magistrado.

Palavras-chave: Juiz das Garantias, Lei Federal 13.964/19, imparcialidade, teoria da dissonância cognitiva.

Abstract: The article approaches the figure of the Judge of Guarantees, inserted to the Brazilian legal order by the Federal Law 13.964 / 19, discussing about the several aspects related to the theme, among which, the specificities and pertinence of the introduced figure. Thus, the institute was valued from the perspective of the theory of cognitive dissonance, an argument sensitive to the analysis of the subjective impartiality of the judge.

Keywords: Judge of Guarantees, Federal Law 13.964/19, impartiality, theory of cognitive dissonance.

Data: 30/04/2020
Autor: Lívia Yuen Ngan Moscatelli e Raul Abramo Ariano

Inúmeras polêmicas tomaram conta do debate público após a introdução do “Juiz das Garantias”, figura que foi inserida ao ordenamento brasileiro pela Lei Federal 13.964/19, resultante do polêmico “Pacote Anticrime”, inicialmente apresentado pelo atual ministro da Justiça e Segurança Pública e largamente alterado no congresso nacional após críticas. Ainda que o pânico tenha se instaurado diante da temática, já sendo inclusive objeto das ADIs 6.298 e 6.300 e de nota de repúdio elaborada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB),([1]) não é de hoje que o assunto é discutido no Brasil.

O movimento se iniciou cerca de 10 (dez) anos atrás, com o Anteprojeto de Lei que visou à reforma do Código de Processo Penal e que abrangeu, dentre as suas disposições, a aplicação do Juízo das Garantias. Posteriormente, a proposta resultou no Projeto de Lei 156/2009 do Senado Federal, distribuído na Câmara dos Deputados sob o número 8.045/2010. Diante de uma opção legislativa, que priorizou análise dos Códigos de Processo Civil e Comercial, a temática constante no projeto de index processual penal permaneceu relegada ao esquecimento por considerável tempo.

Ainda que bem questionáveis as inovações trazidas pela Lei Federal 13.964/19, é certo que ela disciplinou os novos artigos 3-A a 3-F do Código de Processo Penal, os quais introduziram ao ordenamento brasileiro a figura do magistrado “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais”. E que muito embora a figura tenha ocasionado considerável estardalhaço midiático, ela não deveria gerar temores a ninguém, ao menos aqueles que se importam com algum espírito democrático.([2])

Em breves linhas gerais, a figura do Juiz das Garantias se entende pela designação de um magistrado dotado de competência para a atuação exclusiva em fase pré-processual, diverso do togado responsável pelo processo e o julgamento do feito. Caberá a esse juiz de fase embrionária decidir acerca da pertinência de medidas cautelares investigativas, como determinação de buscas e apreensões e interceptações telemáticas - a homologação ou não da prisão em flagrante delito, eventual conversão em prisão temporária ou preventiva, averiguação de excessos da autoridade policial, decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, entre outras funções estabelecidas pelo novo artigo 3-B do CPP. Cumpre observar que, diante de tal sistemática, as funções de investigação e controle continuam sendo exercidas, respectivamente, pela autoridade policial e pelo órgão ministerial, competindo ao juiz a atuação acerca do controle da legalidade dos atos investigatórios e aferição do respeito às garantias do investigado.

Objetiva-se, com isso, uma otimização jurisdicional das funções particulares dessa fase procedimental, bem como garantir o maior distanciamento subjetivo do juiz instrutor do contato com elementos materiais presentes em fase investigativa. Assim, na prática, a adoção da mencionada estratégia representa uma superação da regra de prevenção da competência, que é encampada atualmente pelo artigo 83 do CPP,([3]) por uma perspectiva sistemática mais adequada ao princípio máximo da imparcialidade do julgador, considerada como essencial à concepção de justiça, pressuposto basilar da atividade jurisdicional([4]) e imprescindível para a configuração de um estado democrático de direito. Isso tudo, ainda que a temática tenha constantemente se restringido apenas à discussão das hipóteses de suspeição e impedimento do magistrado (artigos 252 e 254 do CPP).([5])

Precisamente nesse ponto, muitas vezes por mero desconhecimento técnico, os veículos de informação têm tratado o juiz de instrução e de garantias como sinônimos,([6]) sendo que essas figuras não deveriam se confundir. O juiz de instrução, encontrado em sistemas jurídicos de países como Espanha e França, possui a precípua característica de concentrar as atividades investigativas nas mãos do togado, a quem compete a colheita dos elementos informativos, além da coordenação das atividades do Ministério Público e da Polícia, que são coadjuvantes e complementares à atuação do magistrado. O Juiz das Garantias, por sua vez, é figura que se aproxima mais do sistema italiano (giudice per le indagini preliminare – fase preliminar([7])), na qual o juiz não determina os rumos da investigação, mas atua quando instado, sendo responsável pela salvaguarda dos direitos do investigado e principalmente pela análise da legalidade dos atos incursionadores em esfera dos particulares. Neste mesmo contexto, as reformas processuais penais latino-americanas já ocorridas em países como Chile, Paraguai, Colômbia e Argentina tiveram papel determinante na estruturação de uma jurisdição criminal mais democrática, incluindo, dentre as modificações propostas a implantação do Juiz das Garantias, na tentativa de superar os problemas característicos do modelo de processo penal inquisitivo.([8])

Um julgador que acompanhou toda a investigação criminal, por sua vez, naturalmente tenderá a assumir um posicionamento mais orientado às teses acusatórias, sendo que tal explicação não está sequer adstrita ao plano racional do julgador. A psicologia pode explicar que uma primeira impressão negativa sobre determinada situação, como, por via exemplificativa, a conversão de uma prisão em flagrante em preventiva, pode vincular o comportamento do magistrado por prazo indeterminado. Ele subjetivamente tenderá a aderir à imagem de culpabilidade já construída e, possivelmente, buscará confirmá-la durante a audiência de instrução.([9])

Ao momento, impossível não mencionar o fenômeno que busca explicar padrões comportamentais humanos de nome Teoria da Dissonância Cognitiva, ou “incoerência cognitiva”, que foi concebida pelo psicólogo Leon Festinger em 1957. Dispõe a tese que a psique humana almeja convalidar decisões anteriormente tomadas, buscando com isso dotar de coerência os fatos pretéritos, existentes e os porvindouros. Ou seja, uma vez adotado determinado juízo, o ser humano tende a tomar as subsequentes decisões correlatas em forma harmônica à anterior ou, ainda, desprezar as informações que colidem ao entendimento posto. Via consequente, opções desarmônicas são geradoras de incômodo no indivíduo, que busca por reestabelecer a ordem abalada.

Um exemplo cotidiano e não relacionado ao direito é o caso do fumante habitual. Em geral, as pessoas tendem a almejar uma vida saudável. A partir do conhecimento que essa prática ocasiona malefícios irremediáveis à saúde, há um choque antagônico de crenças, criando-se uma necessidade involuntária e automática para reduzir-se essa pressão: O fumante poderá́ considerar que o comportamento vale a pena em um sistema de riscos e recompensas e minimizar as desvantagens pessoais, criando desculpas para continuar fumando, à exemplo de que “pouco cigarros por dia não fazem mal”, ou que “todos nós iremos morrer algum dia”. Isso reduziria a dissonância e justificaria a continuidade do seu comportamento, pois o hábito seria coerente com as suas ideias sobre o tabaco, ainda que tenha ciência dos malefícios à saúde (informação dissonante). Trata-se, dessa forma, da harmonização entre a cognição e a ação por meio da mudança desta última, resultando na eliminação do estado de dissonância anterior.([10])

Para o campo do processo penal, a aplicação da teoria da dissonância cognitiva tem seu direto reflexo nas questões que circundam a imparcialidade intelectiva. O magistrado, no momento da formação de sua decisão, precisará lidar com duas opiniões externas antagônicas - tese de acusação e a antítese da defesa -, além de ligar com suas preconcepções e impressões sobre o caso em questão.([11]) Como consequência da desarmonia criada e com o agravamento da tensão psíquica, criam-se dois efeitos distintos.

No primeiro, o chamado efeito inércia ou perseverança([12]) estudado por Bernd Schünemann, as informações que confirmam uma hipótese que fora considerada correta serão sistematicamente superestimadas, enquanto as contrarias poderão ser sistematicamente desvalorizadas. No segundo, opera-se o princípio da busca seletiva de informações, em que se procurará, predominantemente, informações que confirmem a primeira hipótese aceita, sejam elas informações dissonantes ou consoantes.([13]) Assim, por simplória redução, tem-se que ao se tomar determinada decisão, baseando-se em certos elementos, o julgador tenderá à (i) ignorar novos elementos que colidem com o entendimento anterior; (ii) buscar com distinta vontade elementos que convalidem a decisão anterior; ou, ainda, (iii) dar maior peso aqueles elementos já existentes no sentido do credo inicial.

Precisamente aqui a figura do Juiz das Garantias é relevante mecanismo de mitigar esse efeito de enviesamento inconsciente do julgador que atua em fase pré-processual. Diante de um novo magistrado, agora atuante apenas na fase judicial, existirá maior probabilidade de que alguns erros judiciais cometidos sejam reconhecidos, já que ele não estará vinculado a atos que praticou anteriormente e poderá, por exemplo, orientar a reavaliação de determinada medida cautelar decretada durante as investigações que estiver desprovida de fundamentação suficiente.  Além disso, ele terá mais chances de se dedicar exclusivamente à efetiva verificação da legalidade e da confirmação dos elementos probatórios constantes no processo. Com isso, almeja-se evitar uma mera condução de atos criados para corroborar a tese acusatória já pré-concebida. O magistrado será, em outras palavras, dotado de maior potencial de imparcialidade, visando garantir superior viabilidade do exercício de um efetivo direito à defesa nesta fase processual.

Some-se a isso que, de acordo com o novo texto da Lei, os elementos coletados durante a investigação criminal permanecerão apartados, acautelados com o Juiz das Garantias e com acesso às partes (artigo 3-B, § 3º do CPP), priorizando a prova produzida em contraditório judicial e evitando que o magistrado responsável pela condução da instrução tenha contato com a “primeira impressão” negativa do réu, resultado da investigação criminal documentada e produzida unilateralmente.([14])

Não se perca de vista, que a separação das figuras do julgador atuante em fases distintas está em plena conformidade com a atual tendência de um processo penal que bebe nas fontes da epistemologia, preocupada em trabalhar com a correspondência entre os elementos probatórios constantes no processo e o possível conceito de verdade, até mesmo por ser essa uma condição necessária para a justiça da decisão, ainda que não se trate do único fim que o processo persegue.([15]) Como bem preconizou Michele Taruffo e complementou Gustavo Badaró, para que uma decisão seja guiada pelo critério de justiça, ela deverá estar condicionada por um trinômio,([16]) que consiste em: (i) um correto juízo do fato, que tenha como finalidade uma acertada reconstrução dos fatos; (ii) a adequada interpretação das regras jurídicas, em especial quanto às atividades de hermenêutica e aplicação da lei penal; e por fim, (iii) o emprego de um procedimento válido, com o respeito às garantias, aos direitos e ao devido processo legal.

Todas essas condições decorrem de um mesmo denominador, o juiz da causa, que é investido pela coletividade com a função de dirimir controvérsias e decidir acusações criminais com base no direito. Como resultado, um magistrado com uma pré-disposição cognitiva – seja a favor ou contra o réu – tenderá a não realizar um correto juízo dos fatos, consequentemente deixando de aplicar o direito acertadamente, e, ainda, cerceará as garantias processuais aplicadas ao processo. De nada valeria o desenvolvimento do processo se o resultado do jogo já estiver definido. E, de fato, “A imparcialidade judicial é uma garantia tão essencial a função jurisdicional que condiciona a sua própria existência: Sem juiz imparcial, não há propriamente processo judicial”.([17])

Corriqueira crítica à implantação da figura do Juiz das Garantias([18]) é a suposta falta de estrutura e recursos financeiros do Estado, que podem inviabilizar a implementação de tal medida. Trata-se, inclusive, do mesmo tipo de argumentação comumente utilizada para justificar a superlotação dos presídios e até mesmo daqueles que se opuseram a efetivação do projeto das audiências de custódia. É fato que ampla gama de previsões legais muitas vezes não são efetivamente implementadas. Basta verificar que em diversas comarcas no Brasil, sequer há a presença da Defensoria Pública, legalmente garantida aos cidadãos (Lei Complementar 80/94).

Essas dificuldades, no entanto, não devem ditar o “dever ser” do planejamento de uma legislação mais aperfeiçoada, compatível com os princípios democráticos e alinhada ao sistema acusatório. Dito em outras palavras: política processual não se pode fazer “nivelando por baixo”.

Em tempos sombrios, em que o retrocesso prossegue, comemorar as pequenas vitórias pode ser considerado um “avanço democrático e civilizatório”.([19]) Não se perca de vista, no entanto, que o Juiz das Garantias, embora considerado um progresso significativo, não é a salvaguarda para todas as mazelas do processo penal. Enquanto a mentalidade punitivista rasteira permanecer na cultura dos aplicadores do direito, não haverá uma ruptura significativa com a tradição inquisitória.


Notas de rodapé

([1]) GIL, Renata. Nota Pública – Juiz de Garantias. AMB, Brasília, 27 dez. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2T1gQ4y>. Acesso em: 05 jan. 2020.

([2])  TAFARELLO, R. F. Juiz das garantias: um notável (e atrasado) avanço democrático para o Brasil. Estadão, São Paulo, Disponível em:  https://bit.ly/2ZQT2BS . Acesso em: 05 jan. 2020.

([3]) CPP: Art. 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3º, 71, 72, § 2º, e 78, II, c).

([4]) MONTERO AROCA, Juan. et al. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. 10. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001. p. 29.

([5]) POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A imparcialidade do juiz criminal enquanto ausência de causas de impedimento ou de suspeição. Revista Direito e Justiça, Porto Alegre, v. 39, n. 1, jan./jun. 2013.

([6]) PEREIRA, Merval. Juiz das garantias. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 2019. Disponível em: <https://glo.bo/2SVqo0Y>. Acesso em: 02 jan. 2020.

([7]) GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do processo penal: crises, misérias e novas metodologias investigatórias. Rio de janeiro: Lumes Juris, 2011. p. 68.

([8]) MAYA, André Machado. O Juizado de garantias como fatos determinante à estruturação democrática da jurisdição criminal: O Contributo das Reformas Processuais Penais Latino-Americanas à Reforma Processual Penal Brasileira. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 23, n. 1, p. 78, jan./abr. 2018.

([9]) SCHÜNERMANN, Bernd; GRECO, Luís. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 205-221.

([10]) RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal. Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. 2016. 197 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, Porto Alegre, 2016. p. 93.

([11]) LOPES JÚNIOR, Aury; RITTER, Ruiz. A imprescindibilidade do juiz das garantias para uma jurisdição penal imparcial: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 13, n. 73, p. 12-25., ago./set. 2016. p. 18.

([12]) SCHÜNEMANN, Bernd., op. cit., p. 208.

([13]) SCHÜNEMANN, Bernd., op. cit., p. 93.

([14]) RITTER, Ruiz., op. cit., p. 153.

([15]) TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo, Marcial Pons, 2012. p. 160.

([16]) TARUFFO, Michele. Idee per uma teoria dela decisione giusta. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, v. 51, n. 2, p. 315-328, 1997. apud BADARÓ, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019. p. 19.

([17]) CORDÓN MORENO, Faustino. Las garantias constitucionales del proceso penal. 2. ed. Navarra: Arazandi, SA, 2002. p. 109.

([18]) Vide, por exemplo, a ADI n. 6298, proposta pela AMB e Ajufe: “Haverá aumento de gastos com a solução final - criação de cargos - e aumento de gastos  desde logo, com descolamentos de juízes, sem que tivesse havido previsão orçamentária, e, portanto, com ofensa ao art. 169 da CF”.

([19]) MACEDO, Fausto. A desconstrução do pacote MoroEstadão, São Paulo, 7 dez. 2019. Disponível em:  <https://bit.ly/2SW1Bde>.  Acesso em: 05 jan. 2020.


Lívia Yuen Ngan Moscatelli

Mestranda em Processo Penal pela USP. Pós-graduada em Direito Penal pela Universidade de Coimbra. Bacharela em Direito pela USP. Advogada.

 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6163-841X

liviamoscatelli@gmail.com

Raul Abramo Ariano

Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela FGV. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Bacharel em Direito pela USP. Advogado.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7733-2869

raul.a.ariano@gmail.com

Recebido em: 06/01/2020

Aprovado em: 13/02/2020

Versão final: 31/03/2020





Versão final: 31.03.2020




 




Lei anticrime e reincidência: um flerte com o direito penal do autor

Resumo: o artigo discorre sobre o tratamento conferido pela recém-aprovada “Lei Anticrime” à reincidência, a partir da análise de três pontos: a inserção do parágrafo 2o ao artigo 310 do Código de Processo Penal; a modificação no artigo 112 da Lei 7.210/1984; e no artigo 20 da Lei 10.826/2003. Conclui-se que todos eles conferem papel de destaque à reincidência, aproximando o Direito Penal brasileiro do indesejável Direito Penal do Autor.

Palavras-chave: Lei Anticrime; reincidência; Direito Penal do Autor.

Abstract: this paperwork discourses about given by the just ratified “Anti-crime Statute Law” to recidivism, starting from three points: the insertion of the paragraph 2nd to the Article 310 of the Criminal Procedural Code; the modification to the Article 112 of the Statute Law 7.210/1984; and on the Article 20 of the Statute Law 10.826/2003. It concludes that the three points confer a highlighted role to recidivism, approaching the brazilian Criminal Law to the undesirable Criminal Law of the Agent.

Key-words: Anti-crime Statute Law; recidivism; Criminal Law of the Agent.

Data: 30/04/2020
Autor: Thiago Baldani Gomes De Filippo

Dentre a enxurrada de leis penais e processuais penais das últimas décadas, sem dúvida alguma, a Lei 13.964/2019 é das mais importantes, por promover modificações estruturais no Código Penal, no Código de Processo Penal e em diversas leis especiais importantíssimas, tais como a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) e a Lei de Organização Criminosa (Lei 12.850/2013), dentre outras. Apesar de ser conhecida como “Lei Anticrime”, paradoxalmente também introduziu importantes regras de garantias de direitos de supostos autores de infrações penais, com destaque à inauguração no ordenamento jurídico brasileiro da figura do “Juiz das Garantias”.([1])

Diante de tantas modificações relevantes, o presente trabalho discorrerá acerca do destaque conferido pela lei à figura da reincidência. Na verdade, esse realce ao passado criminoso do agente se insere em um contexto maior de cortejo com o Direito Penal do Autor, caracterizado por balizar a cominação de penas, pelo legislador, e sua fixação, pelo juiz, a partir da preponderância de condições pessoais do agente, e não de circunstâncias objetivas do fato. Em poucas palavras, possibilita-se a punição do agente por quem ele é, e não tanto pelo que ele fez.

Por essência, as regras de Direito Penal do Autor não se harmonizam ao modelo democrático constitucional de Estado e compõem medidas afetas ao discurso da segurança cidadã, que etiqueta determinados sujeitos como inimigos sociais, reputados por fontes de perigo ambulantes contra os supostos cidadãos de bem.([2]) Referida política criminal, devido ao seu escopo inocuizador de indivíduos socialmente indesejados, enaltece meras funções preventivas especiais negativas da pena e, reflexamente, implica afronta a modernas teorias de prevenção geral positiva da pena, como a elaborada por Winfried Hassemer, que limita a consecução das finalidades preventivas à verificação de reações proporcionais ao fato ilícito e à culpabilidade do autor.([3]) Com isso, as elementares objetivas, que conduzem à aferição da gravidade do fato, abandonam o seu desejável protagonismo na cominação e na fixação das sanções penais, que passam a ser estabelecidas a partir de reclames exclusivamente preventivos, quer seja pela punição de modos de vida, quer seja pelo incremento substancial da pena a partir de circunstâncias pessoais do sujeito, como a reincidência, os antecedentes, a personalidade do agente ou sua suposta habitualidade criminosa.

A punição de alguns modos ou estilos de vida é possibilitada pela existência de crimes de status, como a criminalização de todo viciado em drogas pelo art. 11.721 do Código de Saúde e Segurança da Califórnia,([4]) a punição da sodomia pelo art. 21.06(a)(b) do Código Penal texano,([5]) e as contravenções penais de vadiagem e mendicância, previstas pelos artigos 59 e 60 do Decreto-lei 3.688/1941, observando-se a revogação da segunda contravenção pela Lei 11.983/2009. Os próprios delitos de organização criminosa (art. 1o, § 1o, da Lei 12.850/2013), de associação criminosa (art. 288 do CP) e de constituição de milícia privada (art. 288-A do CP) apresentam o risco de ensejar a punição de pessoas por seu estilo de vida, porque nenhum desses tipos penais esmiúça as condutas típicas, deixando de aclarar modalidades de contribuições minimamente relevantes para a intervenção penal.

Por outro lado, no que tange ao incremento substancial da pena a partir de condições pessoais do agente, pode ser recordada a sintomática regra do three strikes you´re out do Direito Penal dos Estados Unidos, segundo a qual todo aquele que, ostentando duas condenações criminais, praticar a terceira infração, mesmo que esta não seja grave,([6]) deve receber penas muito prolongadas, ou mesmo a prisão perpétua.([7]) No Brasil, situação paralela é observada na condenação por tráfico de drogas de réus reincidentes ou portadores de maus antecedentes. Nesses casos, uma única condenação criminal anterior, qualquer que seja ela, possui o condão de elevar a pena em 3 anos e 4 meses, se considerada a diferença entre a menor pena possível para o caso de tráfico privilegiado, que exige a primariedade, nos termos do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, e a menor pena possível para a modalidade do caput do mesmo tipo penal. Esse acréscimo substancial causado por uma única anotação criminal é muito superior ao acréscimo de 1/6, parâmetro normalmente utilizado pela jurisprudência na primeira ou na segunda etapas da dosimetria penal, conforme se trate de mau antecedente ou reincidência.([8])

Simpática à utilização da reincidência como causa potencializadora de reproches penais, a Lei 13.964/2019 conferiu-lhe importância central em diversas oportunidades, com destaques para três pontos: a alteração do art. 310 do CPP, com a previsão de seu parágrafo 2º (“Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares”); a modificação do art. 112 da LEP para que a reincidência influencie na progressão de regimes de cumprimento de pena, o que se observa em seus incisos II, IV, VII e VIII (“II – 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça”; “IV – 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;” “VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado por reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado”; “VII – 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional”); e, por fim, a previsão inédita da reincidência como causa especial de aumento de pena, nos termos do art. 20, II, do Estatuto do Desarmamento (“Art. 20. Nos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a pena é aumentada da metade se: (...) II – o agente for reincidente específico em crimes dessa natureza”).

A primeira hipótese, contemplada pelo art. 310, § 2º, do CPP, sugere ser a reincidência óbice instransponível para a concessão de liberdade provisória, tratando-se de hipótese vinculada de conversão do flagrante em prisão preventiva.  Por isso, não há outro caminho que não se reconhecer a inconstitucionalidade desse dispositivo, à luz do princípio do ne bis in idem, verdadeiro direito fundamental individual implícito,([9]) a teor do art. 5º, § 2º, da Constituição. Vale dizer, o sujeito estará preso somente porque sofreu outra condenação definitiva com pena extinta há menos de 5 anos (art. 64, I, do CP) e não porque sua liberdade apresenta risco à ordem pública, à ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, pressupostos autorizadores das prisões preventivas, elencados no art. 312 do CPP. E, por fim, essa regra do art. 310, § 2º choca-se contra o disposto no art. 313, II, do mesmo código, que admite a possibilidade de decretação de prisão preventiva em se tratando de sujeito reincidente em crime doloso. Ora, como se admitir a reincidência em crime doloso como um dos pressupostos mínimos para a decretação da prisão preventiva, de um lado, e compreender que todos os flagrantes de presos reincidentes, sem distinguir a lei se a condenação anterior se refere a dolo ou culpa, devam ser necessariamente mantidos custodiados? Portanto, não se vê outro caminho que não se reconhecer a inconstitucionalidade dessa regra legal.

O segundo caso redunda na constatação de que a reincidência passou a ser fundamental para a aferição dos lapsos necessários à progressão de regime de pena. Anteriormente à Lei 13.964/2019, o art. 112 da LEP contentava-se com a verificação conjugada da transposição de 1/6 da pena no regime anterior e do mérito do sentenciado. A exceção ficava por conta do parágrafo 2o do art. 2o da Lei 8.072/90, também revogado pela nova lei, que impunha que a progressão de regime para crimes hediondos e assemelhados ocorresse apenas mediante o cumprimento de 2/5, se o apenado fosse primário, e de 3/5 se reincidente.

Agora, os períodos, acompanhados de atestado de “boa conduta carcerária”, são estabelecidos em porcentagens, e não mais frações e variarão de acordo com a reincidência do sujeito. O grande problema de pautar a progressão com base no histórico criminal do sujeito é a potencial lesão à individualização da pena, princípio veiculado pelo art. 5o, XLVI, da Constituição, porque, na fase da execução penal, o ideal ressocializador (finalidade preventiva especial positiva da pena) deve preponderar sobre a finalidade meramente retributiva, como, aliás, textualmente estabelece o art. 1o da LEP: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Nesse sentido, aliás, leciona Claus Roxin, ao tratar de sua teoria unificadora preventiva dialética, que, no momento da fixação concreta da pena, o juiz deve observar o limite da culpabilidade, mas a execução deve guiar-se, principalmente, por necessidades preventivo-especiais.([10]) Em outras palavras, se a fase de execução da pena deve objetivar a ressocialização do sentenciado, essa finalidade se esvazia se o legislador buscar elastecer o tempo de sua segregação a partir de fatos criminosos do passado, que muitas vezes sequer guardam relação direta com a conduta criminosa efetivamente praticada e razão pela qual se cumpre a pena.

Finalmente, a terceira questão sobre a reincidência refere-se à especial previsão do art. 20, II, do Estatuto do Desarmamento. O dispositivo estabelece o aumento da pena pela metade para os crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 14), disparo de arma de fogo (art. 15), posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16), comércio ilegal de arma de fogo (art. 17) e tráfico internacional de arma de fogo (art. 18) se o agente for “reincidente específico em crimes dessa natureza”. O dispositivo fere o princípio constitucional da isonomia, porque se trata de discriminação fortuita e injustificada.([11]) Com efeito, a reincidência é circunstância agravante genérica, prevista no art. 61, I, do CP, podendo ser considerada na segunda etapa da dosimetria penal, na fixação da pena provisória, nos termos do art. 68 do CP. Não há razão alguma para que o legislador desvirtue essa natureza para um feixe de crimes que resolve eleger, passando a categorizá-la como causa especial de aumento de pena pela metade, com um aparente resgate da diferença entre reincidência genérica e reincidência específica, que constava da redação original do Código Penal de 1940, com respostas mais drásticas para esta última modalidade, consistentes na necessidade de fixação da pena acima do termo médio e no dever de escolha sempre da sanção mais gravosa, em se tratando de cominação alternativa, como estabelecia o art. 46, § 2o, revogado pela Reforma de 1984. Entretanto, não há motivos para essa discriminação ad hoc do legislador, que atrita com o princípio da igualdade.

Em suma, são esses os três pontos da “Lei Anticrime” que conferem tratamento muito mais gravoso à reincidência do que a sistemática penal anterior, que lhe reservava um papel mais periférico na cominação, na fixação e na execução de sanções penais. As mudanças, como visto, evidenciam uma nefasta aproximação das normas penais e processuais penais com o Direito Penal do Autor, situação que não encontra arrimo na ordem constitucional brasileira, consoante a ideia de Estado Democrático de Direito, calcada no postulado da dignidade da pessoa humana.


Bibliografia

BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

CASTIÑEIRA, Maria Teresa; RAGUÉS, Ramón. Three strikes: el principio de proporcionalidad en la jurisprudencia del Tribunal Supremo de los Estados Unidos. Revista de Derecho Penal y Criminologia, Madrid, n. 14, pp. 58-85, 2004.

EL HIRECHE, Gamil Föppel e FIGUEIREDO, Rudá Santos. Crítica às tipificações relativas ao tratamento do “crime organizado” no projeto de código penal e na lei 12.850/2003. In: BADARÓ, Gustavo Henrique. Doutrinas essenciais: direito penal e processo penal. Vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. pp. 427-474.

HASSEMER, Winfried. ¿Por qué castigar? Razones por las que merece la pena la pena. Trad. Manuel Cancio Meliá e Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo blanch, 2016

ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 2, pp. 77-92, 2008.

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.

SABOYA, Keity. Ne bis in idem: história, teoria e perspectiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.


Notas de rodapé

([1]) Os preceitos relativos ao “Juiz das Garantias” (arts. 3o-A, 3o-B, 3o-C, 3o-D e 3o-F, do CPP) e outras regras processuais referentes à necessidade de alteração do juiz sentenciante, que conheceu de prova declarada inadmissível (art. 157, § 5o, do CPP), da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (art. 28, caput, do CPP) e da liberação da prisão pela não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas (art. 310, § 4o, do CPP) tiveram sua eficácia suspensa sine die, por meio de concessão de liminar pelo Min. Luiz Fux, no bojo da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299-DF, em 22.01.2020.

([2]) No mesmo sentido, EL HIRECHE, Gamil Föppel e FIGUEIREDO, Rudá Santos. Crítica às tipificações relativas ao tratamento do “crime organizado” no projeto de código penal e na lei 12.850/2003In: BADARÓ, Gustavo Henrique. Doutrinas essenciais: direito penal e processo penal. Vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 427-474, 2015. p. 439.

([3]) HASSEMER, Winfried. ¿Por qué castigar? Razones por las que merece la pena la pena. Trad. Manuel Cancio Meliá e Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo blanch, 2016. p. 97.

([4]) Declarado inconstitucional pela Suprema Corte dos EUA, em Robinson vs. California, 370 U.S. 660, 1992.

[5] Declarado inconstitucional pela Suprema Corte dos EUA, em Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558, 2003.

([6]) Dentre diversos casos emblemáticos, podem ser lembradas as condenações do Judiciário californiano de Gary Ewing e Leandro Andrade que, por conta de seus históricos criminais, foram impostas a eles penas de prisão perpétua, com cumprimento obrigatório mínimo de 25 anos de prisão, por terem furtado, respectivamente, tacos de beisebol e fitas de videocassete. Ambas as condenações foram mantidas em julgamento conjunto pela Suprema Corte no ano de 2003 (Ewing vs. California, 538 U.S. 11, 2003 e Lockyer vs. Andrade, 538 U.S. 63, 2003).

([7]) CASTIÑEIRA, Maria Teresa; RAGUÉS, Ramón. Three strikes: el principio de proporcionalidad en la jurisprudencia del Tribunal Supremo de los Estados Unidos. Revista de Derecho Penal y Criminologia, Madrid, n. 14, pp. 58-85, 2004. p. 61.

([8]) BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, pp. 182-190.

([9]) SABOYA, Keity. Ne bis in idem: história, teoria e perspectiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 153.

([10]) ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 104.

([11]) O princípio da isonomia é fundamental a qualquer sistema de justiça, evitando-se quaisquer discriminações injustificadas. Nesse sentido: ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 2, pp. 77-92, 2008. p. 87.


Thiago Baldani Gomes De Filippo

Doutorando em Direito Penal pela USP e mestre em Direito Comparado pela Samford University (EUA) e em Ciências Criminais pela UENP. Professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Anhembi Morumbi Juiz de Direito do TJ-SP.

tfilippo@tjsp.jus.br

http://lattes.cnpq.br/2591167984942175

ORCID 0000-0001-8793-4735.

Recebido em: 08/02/2020

Aprovado em: 09/04/2020

Versão final: 17/04/2020

Reflexões sobre os malefícios do isolamento do preso imposto pelo novo RDD

Resumo: A política criminal brasileira pós-1988 tem se destacado pela adoção de medidas punitivistas, que representam o recrudescimento da legislação penal do país. A Lei 13.964/2019, conhecida como Lei Anticrime, é mais um exemplo desse fenômeno. Dentre todas as alterações trazidas pela referida legislação, o presente trabalho objetiva, utilizando-se de revisão bibliográfica, discutir as realizadas na sanção disciplinar do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), com ênfase à ampliação do isolamento do preso, que fere os limites constitucionalmente impostos à pena, desconsidera o ser humano como ser social e impede a reinserção do apenado. 

Palavras-chave: Lei Anticrime. Regime Disciplinar Diferenciado. Isolamento do preso.

Abstract: Post-1988 brazilian criminal politics has excelled by the adoption of punitivist measures, which represent the recrudescence of the country's criminal legislation. The 13.964/2019 Law, also known as Anticrime Law is another example of this phenomenon. Among all of the changes introduced by such legislation, the current work aims to, through the employment of bibliographic revision, discuss the ones carried out in the disciplinary sanction of the Differentiated Disciplinary Regime ( DDR), with an emphasis on the enlargement of the prisoner's isolation, which hurts the constitutionally imposed sentence's limits, disconsidering the human being as a social being and preventing the convict's social reinsertion.

Keywords: Anticrime Law. Differentiated Disciplinary Regime. Prisoner's Isolation.

Data: 30/04/2020
Autores: Fernanda Carolina de Araujo Ifanger, Eduardo Rezende Zucato Filho e João Paulo Gomes Massaro

Introdução

Alguns importantes trabalhos desenvolvidos nos últimos anos, se prestaram a analisar a legislação penal aprovada no Brasil e a política penal adotada pelo Estado brasileiro pós-1988. E, ainda que com recortes temporais distintos e levantamentos de dados diferentes, tais pesquisas assinalaram conclusões convergentes, que sustentam o fato de haver, nas últimas décadas, uma tendência ao endurecimento penal no país.

Nesse sentido, Mendonça (2006) identificou, à luz de um estudo acerca das leis penais emblemáticas aprovadas entre 1984 e 2004, uma tendência de recrudescimento penal, por meio de um direito penal de emergência, que teve como resultado a promulgação de uma série de leis mais punitivas.

Teixeira (2006, p.89) detectou um perfil de punição e urgência nas leis aprovadas durante a década de 1990, ao passo que destinou, inclusive, um capítulo de sua dissertação de mestrado para apontar “O declínio do ideal ressocializador e política criminal de exceção a partir dos anos 90”.

Na mesma linha, Frade (2007) analisando o entendimento do Congresso Nacional acerca da criminalidade, mapeou que das 646 propostas de alterações dos dispositivos penais apresentadas entre 2003 e 2007 no Congresso Nacional, apenas 20 tinham por objetivo relaxar algum tipo penal.

Em seu estudo Campos (2010) concluiu que uma das características da política criminal adotada entre os anos de 1989 e 2006 é a de ser prioritariamente voltada à criminalização ou ao agravamento das penas.

Esta contextualização introdutória reputa-se necessária evidenciar que o viés punitivista, a política penal de emergência e o movimento de utilização simbólica do direito penal são aspectos que definem a agenda de política criminal em curso desde a redemocratização do Brasil.

É preciso, nesse contexto, enfatizar que a Lei 13.964 de 2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime” surge como o mais recente instrumento tendente a revelar e intensificar referida política.

O presente artigo, então, busca evidenciar este perfil da Lei Anticrime, sob o recorte de análise das mudanças trazidas pela Lei 13.964 de 2019 em sede de execução penal, mais especificamente, com relação ao tratamento atribuído à população carcerária submetida ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e problematizar o isolamento proporcionado ao preso que a ela se submete.

1. O Regime Disciplinar Diferenciado nas leis 10.792/03 e 13.964/19

O Regime Disciplinar Diferenciado encontra previsão no art. 52 da Lei de Execuções Penais (LEP), introduzido na legislação pátria por meio da Lei 10.792/03 e modificado pela Lei 13.964/19, a Lei Anticrime.

O RDD é aplicado em situações nas quais, dentro do contexto carcerário, o preso provisório ou definitivamente condenado, nacional ou estrangeiro, praticar fato considerado como crime doloso que ocasione a subversão da ordem ou disciplina internas; apresentar alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento prisional ou da sociedade; ou quando recair sobre o preso fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta grave.

No que se refere às hipóteses de transferência para o RDD, em comparação com a legislação anterior, duas alterações importantes podem ser verificadas. Em primeiro lugar, de acordo com a redação de 2003, somente se autorizava a transferência de presos estrangeiros na hipótese de apresentarem alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento prisional ou da sociedade. Hoje, contudo, as três situações mencionadas permitem a colocação do preso estrangeiro no RDD.

Em segundo lugar, na redação original autorizava-se a transferência do preso ao RDD caso houvesse fundadas suspeitas de seu envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha ou bando. Na redação atual, foi substituída a expressão quadrilha ou bando, em atendimento à mudança na própria legislação acerca da terminologia adotada para o crime em tela no ano de 2012, e acrescentou-se o envolvimento ou participação em milícia privada como requisito para a tomada da medida.  

Não houve nenhuma alteração em relação ao uso das expressões crime doloso que provoca a “subversão da ordem e disciplina internas”, “alto risco”, “fundadas suspeitas”, que desde a redação original de 2003 já preocupava  em razão da clara ofensa aos princípios da legalidade e da presunção de inocência, fundamentos do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito.

Na redação anterior do art. 52 da LEP, disciplinava-se que o RDD tinha duração máxima de 360 dias, sendo possível a renovação do prazo por cometimento de nova falta grave de mesma espécie, até o limite de 1/6 da pena aplicada; que o preso se recolheria em cela individual; poderia receber visitas semanais, por 2 horas, sem contar com as crianças; e que era autorizada a saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

Após as alterações introduzidas pela Lei 13.964/19, entretanto, foi possível verificar que estas características ganharam contornos mais rigorosos, tendo sido mantida somente a previsão de recolhimento do preso em cela individual. Quanto às principais alterações, o prazo de duração da sanção passou a ser de, no máximo, 2 anos, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie e podendo ainda ser prorrogado sucessivamente, por períodos de 1 ano, existindo indícios de que o preso continua apresentando alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal  ou da sociedade e/ou mantém os vínculos com organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, considerado também o perfil criminal e a função desempenhada por ele no grupo criminoso, a operação duradoura do grupo, a superveniência de novos processos criminais e os resultados do tratamento penitenciário; as visitas passaram a ser quinzenais, de 2 pessoas por vez, por até 2 horas, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, a qual será gravada em sistema de áudio ou de áudio e vídeo e, havendo autorização judicial, fiscalizada por agente penitenciário, sendo facultado ao preso que não receber visitas nos primeiros 6 meses de RDD ter contato telefônico, que será gravado, com uma pessoa da família, 2 (duas) vezes por mês e por 10 (dez) minutos; a participação em audiências judiciais se dará, preferencialmente, por videoconferência, com a garantia da presença defensor no mesmo ambiente do preso; e a existência de indícios de que o preso exerça liderança em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, ou que tenha atuação criminosa em dois ou mais Estados da Federação, implicará em sua transferência para estabelecimento prisional federal.

Dentre todas as mudanças, a única que pode ser vista como positiva se refere à possibilidade de o banho de sol ser realizado em grupos de até quatro pessoas, não mais individualmente, com a ressalva na lei de que nenhum deles pertença a um mesmo grupo criminoso.

Uma análise do contexto político que embasou as alterações sugere uma preocupação forte do legislador em evitar o crescimento do crime organizado nas penitenciárias.

É neste cenário, portanto, que é possível identificar a concentração das ideias propostas pelo Pacote Anticrime, isto é, como uma combinação entre a tentativa de repressão do crime organizado e de um discurso de ódio, que se volta a lógicas populistas penais, sempre com o fito de inibição da atividade criminosa, mas sem considerações sobre a própria natureza essencial das penas: a reinserção social do criminoso.

Vale destacar, ainda, que esta concepção associada ao combate ao crime organizado data da própria criação do RDD, acontecida por meio da conversão do Projeto de Lei 5.073/01 na Lei 10.792/03.

A criação desta medida se deu como reflexo de rebeliões ocorridas em diversas penitenciárias de São Paulo e do Rio de Janeiro entre os anos de 2001 e 2002, as quais contaram com fortes participações de organizações criminosas e que geraram cenários de descontrole generalizado responsáveis por evidenciar a falibilidade do aparato estatal no que tange às políticas penitenciárias até então vigentes.

Como resposta, a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro instituiu o Regime Disciplinar Especial, com o propósito de isolar os líderes das facções criminosas e desarticular os movimentos então iniciados. Desta forma, com o fito de atribuir universalidade a este sistema, o então presidente Fernando Henrique Cardoso deu início ao Projeto de Lei 5.073/01, que originou o atual Regime Disciplinar Diferenciado (COSATE, 2007, p. 207-208).

Em breve digressão, importa destacar, entretanto, que o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (2003), já em 2003, afirmou que as rebeliões e quadrilhas não nascem por falta de disciplina nas unidades prisionais, mas sim do vazio de um Estado de Direito.

Nessa linha, Haber (2007, p. 149) suscita que, enquanto o Estado não enfrentar os conflitos sociais de forma democrática e interdisciplinar, envolvendo os diversos atores sociais no processo de tomada de decisões, a legislação penal e o ordenamento jurídico como um todo, seguirá sendo utilizado com fins políticos de manutenção do status quo, sem que os problemas sejam efetivamente solucionados.     

Entre todos os problemas identificados nos novos regramentos acerca do RDD, salta aos olhos o aprofundamento do isolamento que a aplicação dessa sanção penal produz.

Diante disso, cabe questionar até que ponto o isolamento do preso, ainda mais sob a funcionalidade dos ditames mais rigorosos recentemente introduzidos na Lei de Execuções Penais, obedecem à ordem constitucional e, acima de tudo, à dignidade da pessoa humana.

2. O isolamento do preso e seus malefícios        

Desde o seu surgimento, o reforço ao isolamento do preso, que além de estar afastado da comunidade em razão da privação da sua liberdade, restava afastado também de qualquer possibilidade de convívio com os demais reclusos, é marca característica do RDD.

Não obstante,  analisando-se as mudanças introduzidas pela Lei Anticrime, percebe-se que este contexto isolacionista foi ampliado, uma vez que as visitas foram temporalmente espaçadas, passando a ser quinzenais e não mais semanais; determinou-se o afastamento físico dos presos com relação a seus visitantes e familiares pelo uso de barreiras impeditivas do contato, o que inexistia na redação original; isso sem falar na possibilidade de manutenção deste sistema pelo interregno de 2 anos ininterruptos, não mais 360 dias, que poderá, conforme mencionado no excerto anterior, ser prorrogado sucessivamente, por períodos de 1 ano, não havendo limitação para tais sobrestamentos de prazo.  Sob a égide da Constituição Federal de 1988, observa-se que esta veda, em seu art. 5º, III, a aplicação de tortura e/ou tratamentos desumanos/degradantes aos detentos. Não obstante, as alterações promovidas ao RDD agravam violações à ordem constitucional que já se manifestavam desde a sua instituição.

Carvalho e Wunderlich (2004) apontavam, no momento da criação do RDD, que políticas de isolamento de pessoas constituem penas cruéis, que, embora vedadas pela Constituição Federal, sofriam, à época, o risco de tornarem-se banais diante da inebriação dos membros do Judiciário, com discursos populistas associados à situação emergencial que ensejou a criação deste instituto.

Muito longe de aproximar a execução penal do objetivo cristalizado da reinserção social, o RDD utiliza processos de individualizar e marcar os excluídos não para normalizá-los ou corrigi-los, mas, simplesmente, para segregá-los e incapacitá-los (DIAS, 2009, p. 130).

Ao analisar os regimes duros de encarceramento consolidados nas últimas décadas, Bauman (1999) destaca que, hoje, a questão da reabilitação se destaca pela sua irrelevância, uma vez que esforços para levar o interno de volta ao trabalho só fazem sentido se há trabalho a fazer, condição inexistente atualmente.

E, sob essa perspectiva, a implementação dos RDD’s é uma das expressões mais visíveis dessa orientação puramente punitivista e demasiadamente despreocupada com a reinserção social do condenado. Isso porque se trata de um instrumento de execução, que tem por objetivo essencial tornar inativo, neutralizar, incapacitar o condenado enquanto um ser social.

Uma proposta que sequer admite o contato físico do preso com eventual visita e que proporciona um rígido isolamento pessoal por 2 anos, prioriza alguma tentativa de inserir o condenado em um ambiente de trabalho ou de aproximá-lo da sociedade para a qual ele um dia voltará?

Será que manter um ser humano solitariamente em uma cela durante 360 ou 720 dias se coaduna com os dispositivos constitucionais que regem a execução penal brasileira? Ou mais simples ainda, há uma produção de resultados positivos com tamanho isolamento?

Freud (2013) enaltece o indivíduo como um ser indissociável do social, tendo alertado, já no início do século passado, as máculas da intensa solidão e do prolongado isolamento do homem.

Nessa linha, Cacioppo & Cacioppo (2014, p. 65) asseveram que os humanos são organismos fundamentalmente sociais. Quando um indivíduo se sente socialmente isolado, existe uma tendência de o cérebro entrar no modo de autopreservação, com consequências biológicas, cognitivas, comportamentais e sociais. Esses efeitos podem ter utilidade de sobrevivência a curto prazo no tempo evolutivo, mas contribuem para a morbidade e mortalidade na sociedade contemporânea em que a expectativa de vida normal se estende até a oitava década de vida.

E acrescentam que, a ênfase à autopreservação que se processa na mente humana, em um estado de intenso isolamento, pode ser amplamente inconsciente. No entanto, ela aumenta a probabilidade de que uma pessoa que se sente sozinha aja de maneira mais defensiva e autoprotetora, sobretudo quando posta novamente em comunidade. Isso, por sua vez, pode minar a consecução do objetivo de formar melhores conexões com os outros.

A recente pandemia do coronavírus, que obrigou as pessoas a se isolarem em suas casas com seus familiares para sua proteção, mostrou que o isolamento pode implicar em um grande sofrimento, mesmo quando realizado em condições altamente favoráveis. O que dizer, então, de um isolamento forçado, prolongado, incapaz de cumprir qualquer objetivo positivo, em um lugar inospitaleiro como o cárcere?

Baratta (1999) destaca que não se pode negar que a pena, sobretudo a privativa de liberdade. Uma vez estabelecida, ela deve ser cumprida em um estabelecimento que respeite todas as garantias fundamentais do autor do crime e que lhe forneça condições de refletir sobre seu ato; que não o afaste da comunidade externa aos muros das penitenciárias, introduzindo-o definitivamente em uma verdadeira carreira delitiva.

A criminologia crítica problematiza a reação social ao delito, especialmente à pena, por entender que ela “é a reprodução da violência e a reprodução da freguesia das cadeias. A gaiola é feita para reproduzir a própria freguesia e a reproduz com perfeição. É o processo de condicionamento para o homem voltar” (Zaffaroni, 1989, p. 171). O que dizer, então, de uma pena que além de ser arbitrária e guiada por critérios desiguais de seletividade, desconsidera até a compreensão do homem como um ser social que necessita do outro para existir?

O RDD, reconheça-se, em nada se coaduna com qualquer ideal social que se possa atribuir ao cumprimento da pena privativa de liberdade. Pelo contrário, trata-se de um instrumento de isolamento, que se coaduna somente com os novos padrões de controle do crime que emergiram, sobretudo, a partir do final dos anos 1970, os quais, como explica Garland (2008) caracterizam-se pela mudança do pensamento criminológico, que oscila entre uma interpretação do crime a partir da sua banalização e uma interpretação pela qual o criminoso é o “outro” completamente distinto de nós.

3. Considerações finais

A política criminal pós-1988 tem se caracterizado pela aprovação de legislações cada vez mais punitivistas e a Lei Anticrime é mais um produto dessa lógica perversa.

O RDD, que, desde seu surgimento no ano de 2003, era alvo de críticas por sobrepor o direito à segurança da população a todos os demais direitos do preso, com sua nova redação, demonstrou que os limites da punição em um Estado Democrático de Direito não parecem existir.

As regras de isolamento, que, desde o texto original, pareciam absolutamente exageradas por permitir que o preso ficasse 360 dias apartado do contato diário com outras pessoas, são redimensionadas com a aprovação da Lei Anticrime, que prorroga esse prazo para 2 anos, além de tornar as visitas dos familiares quinzenais e impedir qualquer forma de contato físico entre o recluso e seus parentes.

Trata-se de uma pena cruel, que desconsidera todas as necessidades do ser humano enquanto um ser social, em evidente desrespeito ao texto constitucional e aos direitos humanos.

Medidas como o RDD, se enquadram justamente na estratégia da segregação punitiva contemporânea, que, segundo Garland (2008, p. 314), representa uma nova forma de negação e de atuação simbólica a ser exercida pelos atores políticos envolvidos, como também evidencia um ideal quase que insaciável de “lei e ordem”.

Desta forma, afastando quaisquer pretensões positivas e por se configurar em uma violência contra o preso, o RDD favorece a formação de um indivíduo antissocial, na medida em que dificulta a conexão de quem se submete a esse regime com a comunidade e os outros indivíduos em geral, minando, por completo, todas as suas possibilidades de reinserção social.

4.      Referências

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Notas de rodapé

Fernanda Carolina de Araujo Ifanger

Doutora e mestre pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da USP. Graduada em Direito pela PUC-Campinas. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Campinas.

E-mail: fe_carolina@uol.com.br

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5457771059463212.

ORCID: 0000-0002-1072-5545.

Eduardo Rezende Zucato Filho

Mestrando em Direito PUC-Campinas, bolsista pelo Fundo de Apoio à Iniciação Científica - FAPIC/Reitoria da PUC-Campinas. Integrante da linha de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas e do grupo de pesquisa Direito e Realidade Social. Graduado em Direito na PUC-Campinas. Advogado.

E-mail: e.zucato@hotmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/8363373604446232.

ORCID: 0000-0003-3828-7628.

João Paulo Gomes Massaro

Mestrando no programa de Pós-Graduação da PUC-Campinas. Graduado em Direito pela PUC-Campinas.

E-mail: joao_massaro@hotmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7196214309954536.

ORCID: 0000-0002-8438-7905

Recebido em: 15/03/2020

Aprovado em: 04/04/2020

Versão final: 17/04/2020              

Os impactos do pacote anticrime no Banco Nacional de Perfis Genéticos

Resumo: Criado pela Lei 12.654/2012, o Banco Nacional de Perfis Genéticos vem ganhando maior atenção e investimento por parte do governo brasileiro no último ano.  O presente artigo apontará possíveis impactos que decorrerão das modificações introduzidas pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), partindo, para tanto, de análise quantitativa e qualitativa dos dados divulgados pela Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos e análise bibliográfica. Por fim, pretende-se expor os riscos que decorrem da crença coletiva na infalibilidade da prova pericial genética.

Palavras chave: Banco Nacional de Perfis Genéticos; perícia genética; análise de DNA.

Abstract: Created by Law 12.654/2012, the Brazilian National Genetic Profile Database has been receiving increasing attention and funding from the Brazilian government over the last year. This paper will dwell on the changes that may occur as a result of the legislative alteration brought on by Law 13.964/2019 (Anticrime Bill), applying quantitative and qualitative data analyses as well as bibliographical research in order to achieve set purpose. Lastly, the risks that arise from the social belief in forensic genetics infallibility will be exposed.

Key words: Brazilian National Genetic Profile Database; forensic genetics; DNA analysis.

Data: 30/04/2020
Autor: Natália Lucero Frias Tavares e Antonio Eduardo Ramires Santoro

Introdução

Em 1953, Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins descobriram a estrutura tridimensional (dupla hélice) da molécula de ácido desoxirribonucleuico quando trabalhavam em Cambridge, no Reino Unido. Tal descoberta não apenas lhes conferiu o prêmio Nobel de 1962, mas também inaugurou uma nova era na ciência de modo geral.

Durante as últimas décadas, cientistas de todo o mundo vêm se empenhando na luta por conhecer cada vez mais o funcionamento da codificação genética e, por conseguinte, da própria natureza humana. Os avanços tecnológicos permitem que, hoje, o mundo conheça cada vez mais sobre a formação do próprio ser humano e da sociedade, quebre barreiras geográficas e de comunicação, ao mesmo tempo que cria novas dúvidas, questões e incertezas.

Considerando o contexto de globalização e aproveitamento de recursos, a utilização destas inovações pelos diversos ramos do direito surge como um desdobramento lógico e inevitável, mas, que, ainda assim, não pode ser tomado como imparcial ou incontestável (SANTOS, 2003, p. 30-48).

O presente trabalho versará sobre a temática da análise de DNA para fins criminais no Brasil. Com base na análise quantitativa e qualitativa dos dados referentes ao crescimento e utilização do BNPG, pretende-se demonstrar a maneira como o banco genético pátrio vem sendo estruturado.

Em um segundo momento, serão apontadas as modificações efetivamente introduzidas no ordenamento pátrio por força da aprovação do Pacote Anticrime (Lei 13964/2019), que alterou tanto a LEP quanto a Lei de Identificação Criminal.

Por fim, pretende-se tratar do mito da infalibilidade da prova pericial, buscando não apenas listar possíveis riscos de obtenção de resultados inconclusivos ou errôneos, mas também visando propor alternativas práticas que possam minorá-los.

1. O BNPG

A despeito da análise de material genético não configurar novidade no cotidiano brasileiro, foi apenas com o advento da Lei 12.654/12, que o Brasil passou a contar com um banco cadastral nacional criado especificamente para inserção do perfil genético de determinados indivíduos.

O BNPG é formado por um conjunto de laboratórios mantidos pelo Distrito Federal, Estados e Polícia Federal. Com o propósito de permitir um intercâmbio direto de informações entre os laboratórios integrantes da rede e a efetiva criação de um cadastro genético nacional, o Decreto 7.950/12 criou a Rede Integrada de Banco de Perfis Genéticos (RIBPG).

A Rede conta com um Comitê Gestor, que fica responsável pela elaboração de relatórios que contabilizam a evolução do número de cadastros de DNA, pela obtenção de coincidências entre perfis e pelos custos do processo de implementação do Banco.

O Banco possui duas finalidades declaradas: (i) permitir a identificação de pessoas desaparecidas; e (ii) contribuir para a elucidação de crimes. Importa destacar que há uma separação entre os materiais genéticos em listas cadastrais distintas a depender da finalidade a que se destina, não se admitido que o material genético coletado para fins de identificação de pessoas desaparecidas seja empregado para fins criminais.         

Com base nos dados divulgados pela RIBPG em seus relatórios semestrais, evidencia-se que o propósito principal do Banco reside na utilização do cadastramento genético para fins criminais. Tal conclusão fundamenta-se tanto no significativo incremento do número de registros de materiais coletados de apenados, indivíduos identificados criminalmente ou vestígios de cenas de crime quanto nas justificativas apresentadas pelo Comitê em favor da expansão do Banco e a própria métrica de "sucesso" empregada.

Duas são as circunstâncias em que se admite a coleta, análise e cadastramento de material genético de um indivíduo no nosso direito: para fins de identificação criminal e para cadastramento de pessoas condenadas pela prática de crimes hediondos ou de natureza grave contra pessoa. A identificação criminal já faz parte do cenário jurídico brasileiro há décadas. Contudo, foi a Lei 12.654/12 que inaugurou a possibilidade de realização da mesma via DNA.

A popularização do tema referente ao BNPG ocorreu em tempo recente. A temática foi trazida à baila no contexto das eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro, ainda em campanha, manifestou seu desejo de investir maciçamente no cadastramento genético para expansão do Banco e aumento de condenações.

Durante sua gestão, Bolsonaro tem mantido a promessa de campanha no que concerne ao incremento na alocação de verbas destinadas à segurança pública. A dimensão dos investimentos dirigidos à coleta de material genético para fins criminais pode ser constatada a partir da análise do crescimento do BNPG.

Crescimento do número de perfis

Fonte: XI Relatório da RIBPG, (nov/2019).

No período de um ano, o número de amostras inseridas no Banco pulou de 18.080 para 70.280, o que representa um crescimento cadastral de 288,7%. Do total de 70.280 perfis genéticos cadastrados no BNPG, 55.727 (equivalente a aproximadamente 79,3%) se destinam a fins criminais.

Em fevereiro de 2019, o ministro Sérgio Moro apresentou um projeto de lei de sua própria autoria, que pretende modificar 14 leis. Após aprovação, o referido projeto se tornou a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e trouxe modificações para o cadastramento e funcionamento do BNPG.

Ao introduzir o §3º no art. 9ºA da LEP, o Pacote Anticrime transformou a negativa do apenado em fornecer material genético em falta grave. Ao determinar a aplicação de sanção administrativa, que gera efeitos graves na execução de pena (interrupção da contagem de prazo para progressão de regime, negativação da classificação da pessoa presa e impossibilidade de concessão de direitos prisionais durante o período de um ano), a Lei 13.964/2019 desvelou por completo o caráter coercitivo da coleta de DNA.

A possibilidade de conferência de material genético para fins criminais provoca diversos questionamentos, destacando-se aqui a discussão referente à compatibilidade com o direito à não autoincriminação. O aparente conflito entre o nemo tenetur e a extração de material genético para fins criminais faz-se ainda mais evidente nos casos em que o indivíduo que deve ter seu material coletado não consente com a extração, uma vez que a coleta de amostra requer realização de intervenção corporal (QUEIJO, 2013).

Partindo destas premissas, conclui-se que a maneira como se estruturou a coleta de material genético na execução penal atenta contra a Constituição Federal de 1988 ao violar o direito à privacidade, forçar a produção de provas contra si próprio e afastar a presunção de inocência, assemelhando-se a uma espécie de pena privativa de direitos de caráter perpétuo, que não respeita o princípio da individualização da pena.

2. Riscos da crença na infalibilidade e imparcialidade da genética

A despeito da inexistência de uma hierarquia estabelecida entre os diferentes meios de prova admitidos pelo ordenamento brasileiro, a prova pericial, por demandar conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, recebe um tratamento diferenciado por parte de grande parcela da sociedade – e mesmo dos operadores do direito.

Sobre prova pericial, já em 1978, Hélio Tornaghi defendia que ela deveria ser analisada pelo jurista não como prova, mas sim como uma lente ou filtro de análise de modo a viabilizar a compreensão dos fatos analisados na seara processual.

Em decorrência da possibilidade de verificação empírica de seus resultados, as ciências exatas são tidas como infalíveis. Neste sentido, alguns questionamentos devem ser suscitados:

1)       Não é possível a ocorrência de falha humana que invalide o resultado obtido pela perícia?

2)       Um mesmo resultado não pode ser produzido por diferentes circunstâncias/causas?

3)       Considerando que nem todos os componentes e particularidades são avaliados para fins de perícia, é possível que os parâmetros de análise adotados gerem falsos resultados positivos?

4)       É viável a realização de exame contendo amostras com pequenas quantidades de células e/ou mistura de material genético de diferentes indivíduos?

Este rol exemplificativo de questionamentos não é capaz de evidenciar de maneira satisfatória as inúmeras possibilidades de ocorrência de falhas de procedimento ou conclusão, uma vez que muitas são as possibilidades de erro, contaminação e incorreta interpretação mesmo da análise genética, como aponta Murphy (2015).

Nicolitt e Werhs (2015, p.73) se debruçaram sobre o tema da análise de DNA e afirmaram que as conclusões constantes dos laudos de análise são insuficientes para fins de esgotamento da interpretação dos fatos por parte do julgador, fazendo-se indispensável uma análise contextualizada.

Diferentemente do reconhecimento pessoal, conferência datiloscópica e afins, a prova pericial genética, de fato, oferece uma margem muito reduzida de erro. Contudo, o baixo índice de falibilidade só se mantém em patamares reduzidos quando a realização da conferência de material genético se dá pela via de identificação pessoal com coleta direta (ou seja, quando o perito colhe diretamente o material genético - coleta de mucosa oral, coleta de sangue por punção venosa ou transcutânea - e realiza o exame para conferência logo em seguida, de modo a não existirem chances de troca de frascos, desnaturação ou mistura).

Um percentual significativo das análises genéticas para fins criminais envolve o exame se material coletado da cena de um crime ou corpo da vítima (vestígios). Assim, as chances de contaminação ou deterioração da amostra elevam-se exponencialmente (MURPHY, 2015). Sobre os riscos de falha que podem se operar nesse tipo de análise, dispõe o texto do Procedimento Operacional Padrão (POP) divulgado pela Secretária de Segurança Pública (2013, p. 63):

5.Pontos Críticos:

As metodologias utilizadas nos exames genéticos são muito sensíveis, de modo que contaminações mínimas podem prejudicar os exames. Deste modo, o perito oficial deve tomar todo o cuidado para evitar a deposição acidental do seu próprio material biológica sobre o vestígio, não devendo, portanto, manipular ou encostar no mesmo sem luva, nem falar, espirrar ou tossir sobre ou próximo do mesmo sem máscara.

O mesmo princípio deve ser observado na embalagem e no envio do material ao laboratório, pois um vestígio pode contaminar o outro.

Por outro lado, os vestígios biológicos são perecíveis, principalmente quando úmidos e/ou expostos ao calor excessivo. Assim, sempre que possível, os vestígios úmidos devem ser secos à temperatura ambiente, protegidos da luz solar e encaminhados à unidade de custódia ou de exames. Quando não for possível a sua secagem, devem ser encaminhados em um prazo inferior a 48h ou congelados antes do envio. Maiores detalhes estão disponíveis no POP sobre Preservação e Envio de Vestígios Biológicos.

Deverá ser observada a necessidade de identificação de possíveis contribuidores eventuais, tais como as de policiais que tiveram acesso ao local do crime ou de quaisquer outras pessoas sabidamente não relacionadas ao delito mas que possam ter eventualmente deixado material biológico no local do crime.

Ressalta-se a importância de uma identificação única e inequívoca de cada vestígio nas respectivas embalagens e nos formulários de coleta que os acompanham.

Devem ser observadas recomendações de preservação e envio adequadas para cada tipo de vestígio, conforme POP sobre Preservação e Envio de Vestígios Biológicos.

A partir da leitura do POP de coleta de vestígios biológicos de cena de crime para fins de exame de genética forense, é possível constatar que o material genético, por ser matéria biológica, possui uma série de fragilidades que acabam por aumentar as dificuldades de conferência e análise.

Sendo certo que a coleta dificilmente se operará tão logo tenha ocorrido o crime e que não necessariamente o espaço se manterá preservado, a existência de chances de contaminação ou deterioração da amostra são fatos incontestáveis.

Em relação à discricionariedade que marca a atuação do perito, aponta-se a fragilidade da orientação constante do quarto item listado como ponto crítico: a necessidade de identificação de pessoas cujo material genético pode aparecer na cena do crime para fins de exclusão. Neste ponto, parece procedimentalmente razoável - apesar de passível de falhas - a exclusão automática da possibilidade de imputação de autoria do fato delitivo aos polícias e peritos que transitaram pela cena do crime.

Contudo, no momento em que o POP que deverão ser identificadas também as "outras pessoas sabidamente não relacionadas ao delito mas que possam ter eventualmente deixado material biológico no local do crime”, acaba por criar margem para uma tomada de decisão por parte do perito de maneira completamente autônoma e sem critérios objetivos para justificação.

Considerando que a própria tecnicidade que envolve a elaboração da prova pericial acaba por auferir um maior poder de convencimento do julgador, faz-se necessário buscar alternativas que não apenas apontem possíveis falhas ocorridas ao longo da análise, mas que também confiram à pessoa investigada ou acusada da prática de determinado ilícito a efetiva possibilidade de questionar os resultados obtidos.

Sendo certo que grande parte das pessoas hoje mapeadas geneticamente no país é hipossuficiente e, portanto, não poderia custear a realização de perícias adicionais ou contratar peritos particulares no intuito de questionar ou desconstituir o laudo pericial produzido, o que se propõe por esta ocasião é a adoção de medidas simples e não onerosas, que viabilizem a conferência da validade dos resultados obtidos a partir da análise e que configura não apenas uma garantia para a proteção dos direitos do investigado/acusado, mas também do próprio interesse do Estado em não condenar pessoas inocentes.

Nesse sentido, uma alternativa prática, que conferiria maior clareza e possibilidade de verificação da procedência das conclusões aduzidas pelo perito genético seria a simples reestruturação dos laudos periciais genéticos.

Como sugestão para facilitar tanto o conhecimento do procedimento adotado para fins de realização da perícia quanto para viabilizar o efetivo exercício do contraditório, propõe-se que, além da inserção dos itens acima listados, alguns quesitos obrigatórios sejam acrescidos ao laudo pericial genético, como:

1)       Quantidade de células coletadas;

2)       Apontar se amostra contém mistura de materiais genéticos de diferentes indivíduos;

3)       Descrição das condições (temperatura, umidade e claridade) do local em que se operou a coleta;

4)       Descrição do modo como a amostra foi conservada durante o transporte entre local da coleta e da análise;

5)       Descrição dos critérios utilizados para excluir do rol de possíveis autores do delito pessoas cujo material genético foi encontrado na cena; e

6)       Apontar o número de marcadores usados para obtenção do match genético.

Uma falha que costumeiramente se associa à papiloscopia forense e também pode atingir a perícia genética concerne à adoção de parâmetros insuficientes ou inadequados de análise pericial. Quanto menor o número de marcadores utilizados para conferência de compatibilidade entre amostras, maiores as chances de obtenção de falsos resultados positivos. Por isso, propõe-se uma alternativa adicional para fins de redução das possibilidades de obtenção de resultados incorretos e evitação do atingimento de direitos de terceiros: aumentar o número de marcadores utilizados para conferência.

Conclusão

A análise e comparação de perfis genéticos se apresenta como uma inovação popularmente aceita e desejada pela sociedade moderna. Aliando cientificismo, tecnologia e a crença majoritária na fiabilidade das provas periciais, parece cada vez mais difícil, quiçá impossível, impedir ou reduzir o emprego desta nova ferramenta nas searas investigativa e judicial.

Graças à Lei 13.964, a negativa de realização de cadastramento por parte de apenado passou a produzir efeitos negativos em relação à execução da pena, configurando efetiva demonstração do caráter coercitivo da coleta. Desta feita, resta evidenciada a violação ao direito de não se autoincriminar.

Retomando a análise dos impactos da prova pericial, diante da constatação da prevalente crença que a sociedade e o próprio Poder Judiciário lhes atribuem, na tentativa de impedir que as decisões judiciais sejam tomadas de sequestro pelo lauda pericial elaborado, faz-se necessário buscar recursos, que permitam verificar (I) se a análise técnica efetivamente se operou dentro dos padrões corretos para obtenção dos resultados e, principalmente, (II) se as conclusões proferidas pelo perito trazem maior ou menor carga de subjetividade e parcialidade.

A alteração da formulação dos laudos periciais apresenta-se como uma alternativa viável na esteira da redução de danos, uma vez que não demanda qualquer tipo de contratação adicional de serviços de perícia particular ou reexame, ao mesmo tempo em que confere àqueles responsáveis pelo exercício da defesa a possibilidade de conhecer não apenas o trajeto adotado pelo perito para realização da análise, mas também os possíveis equívocos ou saltos argumentativos que se apresentam no laudo.

A única inovação positiva introduzida pelo Pacote Anticrime no que tange o BNPG diz respeito à imposição de prazo para remoção dos dados inseridos no cadastro. Contudo, a imposição de realização de requerimento específico, a ser realizado após o longo prazo de 20 anos, acaba por esvaziar a suposta proteção do direito à privacidade do egresso mesmo décadas após o término de pena.

Referências

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NICOLITT, André Luiz; WEHRS, Carlos Ribeiro. Intervenções corporais no processo penal e a nova identificação criminal: Lei 12.654/12. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

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TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Konfino, 1978.


Notas de rodapé

Natália Lucero Frias Tavares

Doutoranda em Direito pela UFRJ. Mestra pela UCP (2018).

natalialuceroadv@gmail.com

(21)999837095

lattes.cnpq.br/0410822851348833

orcid.org/0000-0002-0153-1298

Antonio Eduardo Ramires Santoro

Doutor pela UFRJ

Professor da UFRJ, do IBMEC/RJ e da UCP – Rio de Janeiro/RJ

antoniosantoro@antoniosantoro.com.br

lattes.cnpq.br/9190879263950156

orcid.org/0000-0003-4485-844X

Recebido em: 15/03/2020

Aprovado em: 03/04/2020

Versão final: 16/04/2020

Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva...

Resumo: O trabalho analisa a figura do juiz das garantias implementada pela Lei 13.964/2019. Pretende demonstrar, a partir de estudos da psicologia social - teoria da dissonância cognitiva e efeito primazia -, a inevitabilidade da contaminação psíquica do juiz decorrente da sua participação na investigação preliminar, evidenciando a necessidade de juízes diferentes para as fase pré-processual e processual, em prol da imparcialidade da jurisdição penal.

Palavras-chave: Juiz das garantias. Teoria da dissonância cognitiva. Lei 13.964/2019.

Abstract: The paper analyzes the role of the judge of guarantees implemented by Law 13.964/2019. It intends to demonstrate, from studies of social psychology - theory of cognitive dissonance and primacy effect - the inevitability of the judge’s psychic contamination arrising from their participation in the preliminary investigation, evidencing the need for different judges for the pre-procedural and procedural phases, in favor of the impartiality of criminal jurisdiction.

Keywords: Judge of Guarantees. Theory of cognitive dissonance. Law 13.964/2019.

Data: 30/04/2020
Autor: Aury Lopes Jr. e Ruiz Ritter

Que blindagem psíquica possuem os juízes brasileiros que os diferenciam dos demais? E não só os diferencia dos demais juízes, senão dos demais seres humanos? Nenhuma. A premissa é: o juiz, enquanto ser-no-mundo, também constrói imagens mentais a priori (no sentido kantiano adaptado, ou seja, antes da 'experiência completa'), também decide primeiro para depois buscar os argumentos que justificam a decisão já tomada (parafraseando a clássica passagem de Franco Cordero), e também padece com a dissonância cognitiva e o efeito primazia. São diversos os estudos e pesquisas de campo demonstrando o imenso prejuízo cognitivo que decorre dos pré-juízos (ferindo de morte, ainda, a imparcialidade).([1])

Por outro lado, quantos estudos comprovam a fantástica 'blindagem' psíquica dos juízes brasileiros? Como justificar que uma mesma pessoa possa atuar na investigação preliminar, proferindo diversas decisões complexas e invasivas, para depois entrar no processo com 'abertura cognitiva' suficiente para dar ensejo a um contraditório real e efetivo? Podemos prescindir do modelo de 'doble juez', ou da prevenção como causa de exclusão da competência (no sentido de que não pode ser o mesmo juiz da fase pré-processual aquele que ao final irá instruir e julgar)? Não existe nenhuma teoria de base e pesquisa para justificar esse argumento.

A realidade do processo penal - e que não se quer desvelar - é: a defesa sempre entra correndo atrás de um imenso 'prejuízo cognitivo'. Ela sempre chega na fase processual em desvantagem e não raras vezes, já perdendo por um placar cognitivo negativo (no sentido de imagem mental e convencimento do juiz) considerável, quando não irreversível. O processo não é mais que um faz de conta de igualdade de oportunidades e tratamento. O juiz já está - na imensa maioria dos casos - psiquicamente capturado([2]) pela tese acusatória, até então tomada como verdadeira e geradora de graves consequências decisórias.

Enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz - o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos e pré-conceitos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial -, o processo penal brasileiro não passará de um jogo de cartas marcadas e de um faz de conta que existe contraditório. O próprio conceito de contraditório precisa ser reconfigurado para exigir também a igualdade de tratamento e oportunidades na dimensão cognitiva.

É preciso que se entenda isso de uma vez por todas, porque a oportunidade que se tem em mãos com o juiz das garantias – suspensa atualmente pela famigerada liminar-Fux - pode não aparecer de novo, mantendo o Brasil como exemplo de modelo (neo)inquisitório do século XXI.

Qual é a dificuldade, afinal, de se compreender que todos os seres humanos – juízes, inclusive! - possuem uma tendência de equilíbrio cognitivo (leia-se coerência entre crenças, opiniões, ações, etc. – cognições), cujo rompimento, por insuportável, se busca sempre evitar, ou, não sendo possível, restaurar, por meio de processos cognitivo-comportamentais involuntários([3]) - como desde a década de 50 revela a teoria da dissonância cognitiva([4]) -, sendo inconcebível que alguém que criou uma imagem mental unilateral sobre um fato receba uma versão oposta acerca do mesmo fato sem desacreditá-la diante do mal estar psíquico que inexoravelmente representa?

Ou, então, que uma vez fixada uma primeira impressão sobre alguém, serão mais facilmente aceitáveis informações que a corroborem do que outras que a contrariem,  como também já comprovou a psicologia social pelo denominado “efeito primazia”, revelando que as informações posteriores a respeito de alguém são, em geral, consideradas no contexto da informação inicial recebida,([5]) a qual exerce um direcionamento não apenas das demais cognições a respeito da respectiva pessoa, como também do comportamento em relação a ela, fundamento do jargão popular de que ‘a primeira impressão é a que fica’?([6])

Porque se não há dificuldade, como é que se pode duvidar da inevitável contaminação do juiz pela investigação preliminar na estrutura processual penal atual, considerando que os elementos investigativos constantes no inquérito (entre outros sistemas de investigação), unilaterais por natureza, são as primeiras informações/impressões disponíveis ao juiz a respeito do fato, as quais exercerão forte influência sobre as informações posteriores recebidas no processo, no sentido de adequação a essa primeira imagem mental, para evitar dissonância cognitiva e seus efeitos perniciosos correlatos?

Mais: como é que se pode esperar que um juiz, depois de decretar uma série de medidas restritivas de direitos fundamentais com base nesse mesmo arcabouço informativo parcial buscas e apreensões, interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal e até prisões cautelares -, reforçando cada vez mais a conformação da sua cognição num único sentido, substancialmente prejudicial ao investigado, receba a versão dos fatos apresentada pela defesa na futura fase processual com a mesma tranquilidade e igualdade cognitiva que receberá a versão da acusação?

Simplesmente não há como concordar com todas essas problematizações ao mesmo tempo. Ou se adere ao argumento inicial - fundamentado teórica e empiricamente - ou se adere a uma negação genérica e irracional, sem fundamento algum.

E nem precisariam ter sido testadas tais hipóteses teóricas na própria dinâmica de um processo penal concreto para se concluir que o juiz condena mais frequentemente quando conhece a investigação preliminar do que quando a desconhece, sendo apresentado aos fatos somente na fase processual (originalidade cognitiva). Mas foram,([7]) havendo, inclusive, subsídio empírico específico atualmente para se comprovar que, sem juiz das garantias, o juiz não passa de um terceiro manipulado no processo penal.([8])

Aliás, tal pesquisa evidencia também outro ponto fundamental à criação do juiz das garantias: a imprescindibilidade da exclusão física([9]) (ou não inclusão) dos autos do inquérito, exceto provas de natureza cautelar, antecipadas e irrepetíveis,([10]) sob pena de se esvaziar complemente a eficácia da proposta, na medida em que o contato direto do juiz da fase processual com tais elementos investigativos unilaterais impede, por tudo que aqui se viu, a preservação da sua necessária originalidade cognitiva para instruir e julgar o caso.  Se realmente queremos um processo penal sério e com qualidade epistêmica da prova e cognitiva por parte do juiz, não apenas é preciso separar os juízes, senão que precisamos efetivamente separar o 'material produzido em cada fase'.

Em suma, ou se permanece na fantasia infantil de que a jurisdição criminal brasileira é exercida por seres dotados de superpoderes - imunes a fenômenos naturais à condição humana - ou se admite a falibilidade das decisões e julgamentos humanos, sempre influenciados por pré-julgamentos e pré-conceitos; reconhecendo-se, com Carnelutti, que “A justiça humana não pode ser mais do que uma justiça parcial; (...) tudo que se pode fazer é tentar diminuir essa parcialidade”.([11])

O juiz das garantias é mera expressão dessa segunda perspectiva, figura judiciária imprescindível para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva vigente no processo penal brasileiro.


Notas de rodapé

([1]) A imparcialidade da jurisdição é o 'Princípio Supremo do Processo'. Vide: LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2020. p. 254 e ss.

([2]) LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2020. p. 385 e ss.

([3]) Remetendo o leitor que se interessar nas respostas que o sistema psíquico humano oferece para o enfrentamento do molesto rompimento de seu equilíbrio, reflexo da experimentação de dissonância cognitiva, para: RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 99-141.

([4]) FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Tradução Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1975. p. 11-12.

([5]) GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia social. Tradução José Luiz Meurer. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois, 1983. p. 93.

([6]) FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia Social. 3. ed. Tradução Àlvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. p. 40.

([7]) Ver em: SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In: SCHÜNEMANN, Bernd; GRECO, Luís (coord.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 205-221.

([8]) Nas palavras do próprio pesquisador, à guisa de conclusão da pesquisa realizada: “O processamento de informações pelo juiz é em sua totalidade distorcido em favor da imagem do fato que consta dos autos da investigação e da avalição realizada pelo ministério público, de modo que o juiz tem mais dificuldade em perceber e armazenar resultados probatórios dissonantes do que consonantes, e as faculdades de formulação de perguntas que lhe assistem são usadas não no sentido de uma melhora no processamento de informações, e sim de uma autoconfirmação das hipóteses iniciais.” SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In: SCHÜNEMANN, Bernd; GRECO, Luís (coord.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 221.

([9]) Para melhor compreensão acerca do sistema de exclusão física dos autos e aprofundamento, recomendamos: LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. “Investigação Preliminar no Processo Penal”. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.

([10]) Nos termos da acertada previsão do novo artigo 3º-C, parágrafo terceiro, do CPP.

([11]) CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2008. p. 39.


Aury Lopes Jr.

Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Advogado criminalista.

https://orcid.org/0000-0002-7489-3353

http://lattes.cnpq.br/4629371641091359

aurylopes@terra.com.br

Ruiz Ritter

Doutorando, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado criminalista.

https://orcid.org/0000-0002-3533-0101

http://lattes.cnpq.br/0594538019851381

ruiz@ritterlinhares.com.br

Recebido em: 06/03/2020

Aprovado em: 06/04/2020

Versão final: 15/04/2020

Prisão provisória: recentes reformas e próximos passos à luz do sistema interamericano de direitos humanos

Resumo: Apesar da obrigação internacional e do entendimento do STF de que o uso da prisão provisória deve ser excepcional, aproximadamente um terço da população prisional brasileira não foi condenada em primeira instância. Em face de tal dissonância entre o plano normativo e a realidade do país, parte da comunidade jurídica periodicamente se mobiliza por reformas objetivando reduzir o uso de prisão preventiva. Dentre tais reformas, a introdução da audiência de custódia em 2015 – impulsionada pela sua previsão em tratados internacionais de direitos humanos – e do juiz de garantias no fim de 2019 – atualmente suspensa por decisão do STF – destacam-se pela sua natureza estrutural, o que as torna menos suscetíveis de relativização por vias interpretativas. Este artigo analisa o potencial e as limitações de tais reformas, e das demais mudanças pertinentes da Lei 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”), para racionalizar o uso de medidas cautelares. Após constatar que uma abordagem holística é necessária para se atingir tal objetivo, este artigo propõe reformas adicionais, que alinhem o aparato normativo e a cultura jurídica dos operadores do direito aos parâmetros do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (“SIDH”), incluindo o investimento em medidas cautelares alternativas à prisão e a introdução da avaliação atuarial de riscos processuais no Brasil.

Palavras-chave: Prisão Provisória, Sistema Interamericano de Direitos Humanos, Reforma Legal

Abstract: Despite the international obligation and the Brazilian Supreme Court (“STF”)’s position that pretrial detention must be used exceptionally, approximately a third of Brazil’s prison population has not been convicted in first instance. In view of this dissonance between the normative order and the country’s reality, part of the legal community periodically mobilizes for reforms aimed at reducing the use of pretrial detention. Among these reforms, the introduction of bail hearings in 2015 – fostered by its provision in international human rights treaties – and of a “judge of the investigation” (juiz de garantias) – currently suspended by the STF – stand out due to their structural nature, which makes them less susceptible of attenuation through interpretative channels. This article analyzes the potential and limitations of those reforms, as well as of the other relevant changes brought by Law 13,964/2019 (the “Counter-crime Package”), in rationalizing the use of precautionary measures. After finding that an holistic approach is required to achieve such goal, this article proposes additional reforms capable of aligning the normative order and the legal culture of judicial actors with the standards of the Inter-American Human Rights System (“IAHRS”), including the investment in precautionary measures alternative to prison and the introduction of actuarial pretrial risk assessment in Brazil.

Key words: Pretrial Detention, Inter-American Human Rights System, Legal Reform

Data: 30/04/2020
Autor: Thiago Nascimento dos Reis

Alinhado à tendência nas Américas, o Brasil ostenta altas taxas de prisão provisória. Os dados nacionais mais recentes, de junho de 2019, indicam que em torno de um terço (34,35%) da população prisional do país, 263.404 pessoas, está presa apesar de não ter sido condenada.([1]) Como tal proporção não inclui réus condenados por sentença não transitada em julgado, que também são presos provisórios, a real taxa brasileira de prisão provisória é ainda maior. Tais números explicam-se por razões de natureza tanto normativa como cultural, a exemplo, respectivamente, da ausência de uma duração legal máxima à prisão preventiva e da visão de que a prisão provisória pode ser imposta como antecipação de pena, ambas rejeitadas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos (“SIDH”), ao qual o Brasil está vinculado.

Em contraste à alta incidência de encarceramento cautelar, o ordenamento jurídico requer que juízes decretem a prisão provisória de maneira excepcional, e diversos são os motivos que justificam tal excepcionalidade.([2]) Em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência, em sua dimensão cautelar, impede que indivíduos sejam punidos antes de uma condenação em um processo resguardado pelo devido processo legal.([3]) Essa aversão à punição de pessoas presumidas inocentes, aliada ao risco de que a prisão provisória, como medida gravíssima, converta-se em punição antecipada justifica a sua limitação a casos excepcionais. Em segundo lugar, literatura empírica crescente tem revelado os efeitos negativos da prisão provisória no resultado de processos e na vida futura dos presos.([4]) Especificamente, pesquisas revelam que réus presos têm maiores chances de serem condenados e de receberem sentenças mais altas devido, entre outros fatores, à maior dificuldade de preparação da defesa enquanto preso e à tendência dos atores judicias de os verem como mais culpáveis ou perigosos por terem respondido ao processo presos. No que se refere à sua vida futura, réus sujeitos à prisão provisória têm sua renda mais afetada e são mais propensos a serem presos novamente do que réus que aguardam seus processos em liberdade provisória. Por fim, a ausência de finalidade punitiva da prisão provisória deveria restringir o seu uso aos casos em que medidas cautelares alternativas são incapazes de reduzir satisfatoriamente os riscos cautelares oferecidos pelos suspeitos.

Diante da dissonância entre o parâmetro legal de excepcionalidade e a alta taxa de prisão provisória, parte da comunidade jurídica busca soluções para reduzir e racionalizar a administração da prisão preventiva – medida cautelar responsável pela vasta maioria dos casos de prisão provisória. Parte das soluções propostas procuram conformar regras específicas da prisão preventiva à jurisprudência do SIDH, a exemplo da proposta de reformar o Código de Processo Penal (“CPP”) para prever uma duração máxima a essa medida e sua revisão periódica. Em um nível estrutural, contudo, o SIDH – e o Direito Internacional dos Direitos Humanos (“DIDH”) em geral – tende a não oferecer suporte a propostas de reformas amplas por não expressar preferência por uma tradição ou outra de processo penal.([5]) Uma exceção marcante de obrigação processual penal estrutural imposta pelo SIDH capaz de reduzir prisão preventiva é a audiência de custódia, fundamentada no direito de toda pessoa presa de ser levada à presença de um juiz imediatamente após a prisão (artigo 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“CADH”)). Além disso, alguns parâmetros desenvolvidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (“CtIDH”) para interpretação do direito a um juiz imparcial (artigo 8.1 da CADH) podem fornecer base à defesa da reforma do CPP para prever o juiz de garantias.

As seções seguintes analisam a introdução das audiências de custódia no país e o atual debate acerca dos juízes de garantias, juntamente com as demais mudanças relevantes introduzidas pela Lei 13.964/2019, bem como abordam reformas adicionais necessárias para reduzir e racionalizar a administração da prisão preventiva no Brasil.  Essa análise é feita principalmente com base nos casos contenciosos da CtIDH (e.g., Jenkins vs. Argentina e Norín Catriman et al. vs. Chile) e nos relatórios da CIDH (Informe sobre el Uso de la Prisión Preventiva en las Américas e Medidas para Reduzir a Prisão Preventiva), que compilam a jurisprudência interamericana e oferecem parâmetros e boas práticas para os Estados desenvolverem novas estratégias.

Audiência de Custódia

Em meio à crescente preocupação com a natureza disseminada de abusos relacionados à prisão preventiva e violência policial, o Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) começou a assinar acordos com tribunais estaduais e federais, em fevereiro de 2015, para implementar progressivamente a análise judicial presencial dentro de 24 horas de prisões por meio de audiências de custódia.([6]) Expressamente conformando o Brasil às suas obrigações sob a CADH e sob o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (“PIDCP”), a reforma almejava (i) aprimorar a avaliação da legalidade de prisões e da necessidade de medidas cautelares, (ii) facilitar a identificação e investigação de alegações de violência policial e (iii) assegurar uma análise judicial sem demora de todas as prisões. Apesar da resistência de alguns setores, em parte pelo fato de a introdução das audiências de custódia ter se dado por iniciativa do Judiciário e sem um reforma legislativa, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) ratificou as audiências com base na constatação de que já integravam o sistema jurídico brasileiro devido à sua previsão na CADH e no PIDCP.([7])

Hoje, mais de cinco anos depois do início da sua introdução, não há dúvidas que as audiências de custódia sejam parte do cotidiano processual penal do país: mais de 700 mil audiências foram realizadas desde 2015,([8]) o instituto encontra-se consolidado nas 27 unidades federativas e a Lei 13.964/2019 as incorporou ao CPP. As audiências de custódia têm o potencial de abreviar prisões desnecessárias por melhorarem a avaliação das condições pessoais dos suspeitos, permitir-lhes que ofereçam sua versão dos fatos diretamente ao juiz e garantir-lhes uma defesa prévia obrigatória. Nesse sentido, as audiências podem ter contribuído para a queda na proporção de presos provisórios no Brasil de aproximadamente 40%, em 2014, para 34% em 2019,([9]) porém a confirmação de tal efeito aparente das audiências ainda necessita corroboração por meio de um estudo empírico rigoroso.([10])

Não obstante, desafios permanecem no que tange à universalização e eficácia das audiências de custódia. A universalização enfrenta, como principais obstáculos, a interiorização – já que desde o início da reforma houve uma concentração de recursos e esforços nas capitais – e o uso de videoconferência – que levanta sérias preocupações em face do requisito da CADH de que a audiência seja presencial. De maneira mais aguda, a eficácia das audiências depende de uma melhora: (a) na qualidade da informação sobre o suposto crime e vida pregressa do suspeito disponibilizada aos atores judiciais; (b) na estrutura judiciária, para que sejam assegurados os direitos à consulta livre e privada com o defensor, à interpretação e à dignidade no que se refere ao tratamento dispensado aos suspeitos (artigos 8.2, caput, 8.2(a) e 8.2(d) da CADH); e (c) na postura dos atores judiciais em relação ao questionamento e à valoração das respostas dos suspeitos em argumentos orais e decisões.([11])

Por fim, para se evitar que os avanços das audiências na proteção da liberdade pessoal sejam afetados pelo seu potencial risco de comprometer a imparcialidade do juiz do processo, é necessário que as respostas dadas pelo suspeito durante a audiência de custódia – momento em que a denúncia não foi nem oferecida – não possam ser usadas como elemento probatório, bem como que o juiz do processo não seja o mesmo juiz da audiência de custódia. Relacionada à essa preocupação com a imparcialidade judicial, discute-se atualmente no país a implementação do juiz de garantias.

Juiz de Garantias

Como parte das reformas da presidência bolsonarista, a Lei 13.964/2019 (conhecido como “Pacote Anticrime”) entrou em vigor em 23 de janeiro deste ano, contendo um misto de medidas garantistas e restritivas de direitos. No campo da prisão provisória, além de algumas reformas específicas, positivas e negativas, analisadas na seção seguinte, há argumentos plausíveis, que justificam a hipótese de que a reforma estrutural de inclusão do juiz de garantias no processo penal – atualmente suspensa por decisão do STF([12]) – pode gerar um efeito positivo na administração de medidas cautelares.

Essa reforma, que encontra algum apoio em parâmetros interpretativos desenvolvidos pela CtIDH,([13]) separa as funções judiciais pré-processuais e processuais entre o “juiz das garantias” e o “juiz da instrução e julgamento”, ficando o primeiro encarregado do controle da legalidade da investigação criminal. O principal objetivo dessa nova estrutura, conforme os pareceres legislativos ao projeto de lei, é garantir a imparcialidade do juiz do processo, o qual não mais abordaria o mérito do caso influenciado pelas informações recebidas e decisões tomadas na etapa pré-processual.

Uma dimensão menos analisada dessa reforma são os seus efeitos pré-julgamento. Especificamente em relação à condição cautelar (liberdade ou prisão) dos suspeitos, a criação do juiz de garantias tem o potencial de reduzir prisões pois: (i) o reforço à desvinculação da decisão cautelar pré-processual do mérito pode desincentivar o uso da prisão preventiva para fins punitivos, já que o juiz de garantias não julgará os suspeitos; e (ii) a adição de outro juiz na tomada de decisão sobre a condição cautelar do suspeito, somada ao fato de que juízes tendem a ser deferentes a decisões de outros juízes, pode levar à manutenção, pelo juiz do processo, de eventual liberdade provisória concedida pelo juiz de garantias. Tais razões reforçam a importância da implementação do juiz de garantias. Por outro lado, a hipótese de que tal reforma reduziria abusos relacionados à prisão preventiva requer confirmação empírica e a existência do juiz de garantias na justiça estadual da cidade de São Paulo há décadas – refutando o argumento de impossibilidade administrativa – revela que tal reforma não necessariamente eliminaria exageros em decisões sobre cautelares.

Reformas Adicionais

Embora a audiência de custódia, o juiz de garantias e algumas das mudanças pontuais da Lei 13.964/2019 sejam aptos a combater abusos na imposição de medidas cautelares, tais instrumentos são insuficientes para tornar a prisão provisória excepcional no Brasil. Analisam-se a seguir possíveis reformas adicionais capazes de aproximar a realidade do país da excepcionalidade na custódia cautelar.

Do ponto de vista normativo, o SIDH autoriza que Estados decretem a prisão provisória apenas para conter riscos de natureza processual oferecidos pelo suspeito, i.e., risco de obstrução processual e risco de fuga (ver o recente caso Jenkins vs. Argentina),([14]) previstos em relação à prisão preventiva no artigo 312 do CPP, respectivamente, nos fundamentos de “conveniência da instrução criminal” e “garantia da aplicação da lei penal”. Assim, o SIDH desautoriza a prisão provisória para conter os riscos de cometimento de crimes e de percepção pública de impunidade – ambos de natureza eminentemente não-processual. Em violação a tal entendimento, prisões preventivas com objetivos não-processuais são decretadas no Brasil para a “garantia da ordem pública” e, em menor medida, a “da ordem econômica”. A Lei 13.964/2019 avançou ao requerer “indício suficiente (...) de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” e a “existência concreta de fatos novos ou contemporâneos”, que justifiquem a prisão preventiva e ao vetá-la “com a finalidade de antecipação (...) de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento da denúncia. O próximo passo deve ser a revogação do fundamento de “ordem pública”, já que a sua manutenção permite — com um exercício de retórica para evitar a incidência das novas regras — a continuação de práticas abusivas tal como prisões preventivas devido ao risco de reiteração criminosa. Além disso, e conforme já decidido pelo SIDH,([15]) vedações em abstrato à liberdade provisória de categorias de suspeitos são não-convencionais. Portanto, é necessária também a revogação do artigo 310 § 2° do CPP (prisão preventiva obrigatória ao reincidente, integrante de organização criminosa armada ou milícia, ou portador de arma de fogo de uso restrito) e do artigo 44, caput, da Lei 11.343/2006 (prisão preventiva obrigatória ao acusado de tráfico de drogas e condutas afins), neste caso para reforçar a jurisprudência do STF com status de repercussão geral de inconstitucionalidade,([16]) que muitos operadores do direito insistem em ignorar. Finalmente, é de ordem que o CPP preveja uma duração máxima à prisão preventiva e a sua revisão periódica obrigatória à luz do paradigma de que quanto maior o tempo de prisão mais fortes devem ser os indícios justificadores da sua manutenção.([17])

Conquanto essenciais, reformas dogmáticas, como as propostas no parágrafo anterior, têm a eficácia condicionada à qualidade da sua implementação, a qual, por sua vez, depende do aporte de recursos materiais e humanos e da cultura jurídica dos operadores do direito. Uma área prioritária para a destinação de recursos financeiros deve ser a operacionalização de medidas cautelares alternativas. Isso porque a sua indisponibilidade (e.g., monitoramento eletrônico) ou ineficácia (e.g., recolhimento domiciliar noturno) limita a discussão sobre medida cautelares a uma escolha dicotômica – prisão preventiva ou liberdade provisória com medidas de baixíssima supervisão ou dissuasão –, o que facilita o uso da prisão preventiva em casos em que medidas menos restritivas, e até mesmo menos custosas, seriam suficientes caso estivessem disponíveis.([18]) Esse investimento em cautelares alternativas deve, todavia, focar-se em combater excessos na imposição de prisão preventiva e não em restringir os direitos de pessoas que responderiam ao processo em regime cautelar mais brando na ausência de tal investimento. No que tange à cultura jurídica, é imprescindível que os operadores do direito (1) incorporem em suas práticas a jurisprudência das cortes superiores e do SIDH acerca dos limites à prisão preventiva, (2) abstenham-se de recorrer a estereótipos de pessoas perigosas e de tratar suspeitos de maneira incompatível com sua condição de presumidos inocentes e (3) sejam críticos a elementos indiciários sem corroboração de fontes não policiais ou obtidos em potencial violação ao direito à privacidade e à vedação à autoincriminação.

Finalmente, valendo-se dos avanços estatísticos e tecnológicos e da experiência norte-americana,([19]) a introdução no Brasil de um mecanismo de avaliação atuarial de riscos processuais (“AARP”) poderia aprimorar o processo decisório sobre medidas cautelares. Essa técnica atribui aos suspeitos uma probabilidade de violação da liberdade provisória com base em determinados elementos do caso, tendo em vista a observação do comportamento de outros suspeitos no passado. O termo atuarial diferencia tal técnica das avaliações clínicas de risco, que se baseiam na experiência e instinto dos operadores do direito. O potencial da AARP de reduzir prisões preventivas decorre da sua maior capacidade preditiva, que permitiria aos juízes concederem liberdade provisória a mais suspeitos sem aumentarem a quantidade de violações da liberdade provisória.([20]) Os benefícios adicionais da AARP são a sua habilidade de neutralizar disparidades decisórias entre os juízes e de ampliar a transparência no processo decisório. A despeito do seu apelo futurístico, a adoção da AARP, em si, não garante a redução do uso de prisão preventiva e apresenta seus próprios riscos. Como uma ferramenta estatística, a efetividade da AARP está vinculada ao propósito para o qual é aplicada, à qualidade dos dados disponíveis e ao modo como é utilizada.([21]) Nas mãos certas, contudo, a AARP poderia ser um instrumento poderoso capaz de impactar positivamente a administração de medidas cautelares no Brasil.([22])

Considerações Finais

As altas taxas de prisão provisória no Brasil e a inevitável tensão dessa medida cautelar com a presunção de inocência estimulam uma constante reflexão sobre estratégias que sejam capazes de coibir abusos no encarceramento cautelar. Medidas estruturais, como a audiência de custódia e o juiz de garantias, têm o potencial de contribuir para o combate de tais abusos por serem menos suscetíveis à relativização ou rechaço por vias interpretativas em relação a mudanças estritamente normativas. Não são, contudo, uma panaceia, já que sua eficácia é fortemente condicionada a mudanças paralelas na cultura jurídica dos seus participantes e aos recursos destinados ao seu funcionamento. Nesse sentido, espera-se que este artigo tenha contribuído para a construção de uma abordagem holística de enfrentamento dos desafios da prisão provisória, por meio da análise de recentes reformas e possíveis próximos passos.


Notas de rodapé

([1]) BRASIL. Ministério da Justiça, Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, Painel Interativo junho/2019, p. 12. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([2]) OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Herrera Espinoza y otros vs. Ecuador, n. 316, 01 set. 2016, parágrafos 146 e 148. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_316_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([3]) OEA. Comissão Interamericana de Diretios Humanos, Informe sobre el Uso de la Prisión Preventiva en las Américas, 2013. Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([4]) DITELLA, Rafael; SCHARGRODSKY Ernesto. Criminal Recidivism after Prison and Electronic Monitoring. Jounal of Political Economy, 2013; DOBBIE, Will; GOLDIN, Jacob; YANG, Crystal S Yang, Crystal S. The Effects of Pre-Trial Detention on Conviction, Future Crime, and Employment: Evidence from Randomly Assigned Judges. American Economic Reviews, 2018; LESLIE, Emily; POPE, Nolan G.. The Unintended Impact of Pretrial Detention on Case Outcomes: Evidence from NYC Arraignments. Journal of Law and Economics, 2017; HEATON, Paul; MAYON, Sandra; STEVENSON, Megan. The Downstream Consequences of Misdemeanor Pretrial Detention. Stanford Law Review, 2017; TITAEV, Kirill D. Pretrial detention in Russian criminal courts: a statistical analysis. International Journal of Comparative and Applied Criminal Justice, 2017; e WERMINK, Hilde et al. The Influence of Detailed Offender Characteristics on Consecutive Criminal Processing Decisions in the Netherlands, Crime & Delinquency, 2017.

([5]) OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Fermín Ramírez vs. Guatemala, n. 126, 20 jun. 2005, parágrafo 66. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_126_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. Nesses casos, cabe aos Estados estruturarem o processo penal conforme desejado domesticamente, nos limites das garantias da CADH.

([6]) Ver a linha do tempo do “Projeto Audiências de Custódia” em <https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/audiencia-de-custodia/sobre/>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([7]) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240/DF- Distrito Federal. Relator Ministro Luiz Fux, Pesquisa de Jurisprudência, 20 ago. 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([8]) TOFFOLI, José Antônio Dias. Cinco anos de audiência de custódia: mitos e verdades, Consultor Jurídico, 24 fev. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-fev-24/dias-toffoli-cinco-anos-audiencia-custodia-mitos-verdades >. Acesso em: 08 abr. 2020.

([9]) Ver nota 1.

([10]) Parte da tese de doutorado do autor do presente artigo objetiva mensurar por meio de regressões múltiplas o efeito que a introdução das audiências de custódia teve na proporção de decisões de prisão preventiva.

([11]) NASCIMENTO DOS REIS, Thiago. Presos no Palco: Avanços e Desafios das Audiências de Custódia Recém-Implementadas na Justiça Estadual da Cidade de São Paulo, 2017. 128 p. Dissertação (mestrado), Escola de Direitos da Universidade de Stanford, Stanford, 2017. Versão publicada disponível em: <https://law.stanford.edu/wp-content/uploads/2017/09/Thiago-Nascimento-dos-Reis-Presos-no-Palco-Tese-SPILS.pdf >. Acesso em: 08 abr. 2020.

([12]) BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305/DF – Distrito Federal. Relator Ministro Luiz Fux, Pesquisa de Jurisprudência, 22 jan. 2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([13]) Ver os parâmetros gerais sobre imparcialidade judicial em OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Rosadio Villavivencio vs. Perú, n. 388, 14 out. 2019, parágrafo 186. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_388_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. Note, porém, que, quando confrontada com a alegação de que a rejeição de um pedido de recusa de um desembargador, por ter participado na instrução do processo, violaria o direito a um recurso judicial (artigo 25.1 da CADH), a CtIDH não deu indicações de que tal acúmulo de funções potencialmente violaria o artigo 8.1 da CADH. Caso Romero Feris vs. Argentina, n. 391, 15 out. 2019, parágrafos 170-175. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_391_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. A pesquisa para este artigo não encontrou uma decisão da CtIDH em que a ausência do juiz de garantias foi considerada uma violação do direito a um juiz imparcial. Apenas casos de justiça militar, em que foi decidido que a concentração das atividades de investigação e julgamento nas forças armadas comprometeu a imparcialidade dos juízes militares. E.g.Caso Castillo Petruzzi y otros vs. Perú, n. 52, 30 maio 1999, parágrafo 130. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_52_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([14]) OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Jenkins vs. Argentina, n. 397, 26 nov. 2019, parágrafo 76. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_397_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([15]) OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Pollo Rivera y otros vs. Perú, n. 319, 21 out. 2016, parágrafo 125. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_319_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020; OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso López Álvarez vs. Honduras, n. 141, 01 fev. 2006, parágrafo 81. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_141_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020; OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Acosta Calderón vs. Ecuador, n. 129, 24 de jun. 2005, parágrafo 135. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_129_esp1.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([16]) BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Plenário Virtual no Recurso Extraordinário 1.038.925. Relator Ministro Gilmar Mendes, Pesquisa de Jurisprudência, 18 de ago. 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([17]) OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Norín Catrimán y otros vs. Chile, n. 279, 29 maio 2014, parágrafo 311(c). Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_279_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([18]) OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Medidas para Reduzir a Prisão Preventiva, 2017, p. 84. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/PrisaoPreventiva.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.

([19]) Para um panorama do uso de tal instrumento nos Estados Unidos, ver STEVENSON, Megan. Assessing Risk Assessment in Action, Minnesota Law Review, 2018.

([20]) VILJOEN, Jodi L. et al. Impact of Risk Assessment Instruments on Rates of Pretrial Detention, Postconviction Placements, and Release: A Systematic Review and Meta-Analysis. Law & Human Behavior, 2019. O trabalho consiste na realizado de uma meta-análise de estudos e conclui que a probabilidade dos suspeitos de serem mantidos em prisão provisória caiu pela metade quando a avaliação atuarial de riscos processuais foi utilizada.

([21]) Por exemplo, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Bureau of Justice Assistance, Mamalian, Cynthia A. State of the Science of Pretrial Risk Assessment, 2011 (observando que 48% dos programas de AARP não haviam validados os seus instrumentos nas jurisdições em que eram utilizados); e TONRY, Michael. Legal and Ethical Issues in the Prediction of Recidivism, Federal Sentencing Review, 2014 (notando que a inclusão de fatores aparentemente neutros como a idade do suspeito na primeira prisão e o total de prisões poderia introduzir disparidades raciais nos algoritmos).

([22]) A CIDH reconheceu a importância da iniciativa do estado norte-americana do Alaska de elaborar “uma metodologia padronizada de avaliação de riscos.” OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Medidas para Reduzir a Prisão Preventiva, 2017, parágrafo 54. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/PrisaoPreventiva.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. Esse reconhecimento é um suporte à introdução da AAPR, pois esta última se trata da maneira mais sofisticada de realizar tal metodologia padronizada para avaliação de riscos.


Thiago Nascimento dos Reis

Doutorando (JSD) na Escola de Direito da Universidade de Stanford, CA, EUA. Mestre em Direito (JSM) pela mesma instituição (2016). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP (2014).

tnreis@stanford.edu

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3533947878898633

ORCID: 0000-0001-9705-0773

Autor convidado

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