Revista nº 20: Setembro - Dezembro de 2015
Setembro de 2015
Apresentação
É indiscutível que vivemos um período de intensas transformações políticas e sociais que exigem reflexões em vários níveis.
Data: 24/11/2020
Autores:

É indiscutível que vivemos um período de intensas transformações políticas e sociais que exigem reflexões em vários níveis.

Pensando na atualidade dessas e de outras questões, a presente edição apresenta uma entrevista com Paulo Sérgio Pinheiro, que fala sobre o cenário político atual no Brasil e os riscos de prováveis retrocessos de direitos conquistados ao longo desses anos pós ditadura civil militar. A presença ainda forte do racismo e do autoritarismo revela que ainda não superamos nossas mazelas culturais, ainda tão latentes em nossa história. "O racismo não se extinguiu no Brasil. E, na verdade, ainda que isso não seja colocado publicamente, quem irá preso caso a redução da maioridade penal passe serão os adolescentes não brancos, afrodescendentes, negros". Acrescentou que a onda conservadora não é um fenômeno apenas nacional, mas está presente em diversas partes do mundo, especialmente em países da Europa, que estão construindo muros com objetivo de conter a entrada de refugiados.

Nesta edição também apresentamos a entrevista com Danilo Cymrot, músico e autor de uma pesquisa sobre a criminalização do funk. Da criminalização dos MC’s, quando são enquadrados por tipos penais como o de apologia ao crime, à elaboração de legislações administrativas que proíbem os bailes funk, o entrevistado narra os processos criminalizadores do funk. Também descreve a variedade de gêneros de funks, do "Funk Consciente" ao "Funk Neurótico". "O funk vive fases bastante diferentes, dependendo do momento, inclusive, político em que vive a cidade".

Iniciamos a seção de artigos com o excelente texto de Rodrigo Codino, traduzido por Salo de Carvalho: Por uma outra criminologia do terceiro mundo: perspectivas da Criminologia Crítica no Sul. "O artigo refaz o percurso da criminologia crítica na América Latina, enfatizando a construção de um saber teórico autóctone direcionado à denúncia das violências estrutural e institucional. Na sequência, relaciona a criminologia crítica latino-americana com a criminologia africana, problematizando, a partir do relato da tensão entre direito europeu (colonizador) e direito comunitário, seus conceitos, objetos, métodos e, sobretudo, os desafios comuns para resistir às distintas formas de violência e de dominação."

Na sequência, Provando a tortura: reflexões a partir da análise de acórdãos dos Tribunais de Justiça brasileiros, de Mayara Gomes, Nathércia Cristina Manzano Magnani, Paula Ramos e Vivian Calderoni, reflete como os operadores do direito avaliam o valor da palavra da vítima e do acusado, as provas periciais e os obstáculos envolvidos na comprovação da tortura. Esta reflexão faz parte da pesquisa Julgando a tortura, disponível no site: http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Julgando%20a%20tortura.pdf.

Rafael Santos Soares, autor de Os crimes preterdolosos e a cooperação dolosamente distinta no Código Penal brasileiro, faz uma discussão sobre o conceito e a conformação histórica do instituto da cooperação dolosamente distinta a partir da disciplina legal do concurso de pessoas no Código Penal do Brasil, com destaque para a Reforma Penal de 1984, e salienta a importância de tal instituto para a concretização da responsabilidade penal subjetiva no ordenamento jurídico. Há, ainda, uma interessante análise crítica da jurisprudência no que diz respeito à aplicação da norma do art. 29, §2º do Código Penal aos partícipes de roubo que não desejaram e tampouco assumiram o risco de produzir a morte da vítima e, portanto, não devem responder por latrocínio.

Ainda na seção Artigos encontraremos  Os aspectos da extradição entre Brasil e Portugal sob a ótica da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de Saulo Ramos Furquim, que descreve as possibilidades de extradição entre Brasil e Portugal bem como as pertinentes restrições constitucionais.

Na seção Escolas Penais, apresentaremos os trabalhos de Thalita A. Sanção Tozi, com o texto A (re)interpretação do papel da progressão de regime de cumprimento de pena à luz do pensamento de Alessandro Baratta,  e de Julia Rosa Latuf, autora do artigo Garantismo e facções criminosas – Correlação da teoria garantista com o surgimento e a existência do Primeiro Comando da Capital. O primeiro artigo, de claro viés marxista, visto que inspirado na obra do criminólogo italiano Baratta, desconstrói o mito da ressocialização e analisa de forma crítica a jurisprudência relacionada à progressão de regime de estrangeiros, concluindo que “não há justificativas para a negação ao estrangeiro de seu direito de progressão de regime de cumprimento de pena. Além de afrontar a legislação nacional e internacional, não se vislumbra objetivo além de constranger esses seres humanos a sofrimento excessivo”.   O segundo artigo analisa como “a mitigação de direitos dos encarcerados por parte do Estado, mas também do Judiciário, dá ensejo (ou fomento) à necessidade de a comunidade carcerária se organizar em busca da efetivação de seus direitos essenciais”.

Na seção de Direitos Humanos, Era das Chacinas – breve discussão sobre a prática de chacinamento na era democrática, de Camila de Lima Vedovelho, descreve como a lógica desse tipo de execução atinge determinados sujeitos.  Na mesma seção, o artigo Substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes acima do sétimo mês ou em risco, em Habeas Corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, de Fernanda Peron Geraldini, analisa como o Tribunal de Justiça paulista tem aplicado o art. 138, IV, do CPP, que “permite às mulheres presas provisoriamente que cumpram essa custódia em casa após o sétimo mês ou em caso de risco”. Militarização policial e constitucionalidade: compatibilidade do modelo policial militar com um estado democrático de direito, de Gabriela Sutti Ferreira, encerra a seção Direitos Humanos. Neste artigo, a autora analisa brevemente a construção do espaço público brasileiro e faz uma reflexão “sobre sua implicação a formação normativa policial até 1988 e a compatibilidade desta com o modelo democrático de direito”.

Na seção Infância apresentamos os artigos A regra de tratamento de inocência antes do trânsito em julgado de sentença condenatória na seara da infância e juventude e a execução provisória da medida socioeducativa, de Giancarlo Silkunas Vay, e Remissão e prescrição: Um diálogo necessário entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a sistemática penal, de Bruno César da Silva e Baiara Volpato Prado. O primeiro traça “o estado da arte na Jurisprudência acerca da execução provisória das medidas socioeducativas no âmbito dos processos socioeducativos”, buscando “refutar os argumentos centrais para tal proceder, apontando sua incompatibilidade para com o sistema de garantias dos adolescentes, sobre quem recai a regra de tratamento de inocência até o advento de sentença condenatória transitada em julgado”. O segundo analisa “os institutos da remissão e da prescrição na sistemática do direito da criança e do adolescente e como se dá a aplicação de ambos em conjunto, em especial respondendo a questões práticas, como o marco inicial de contagem do lapso prescricional e o prazo em si nos casos das medidas aplicadas em sede de remissão, buscando solucionar a omissão legislativa com a realização de um diálogo com o sistema penal”.

Na sequência apresentamos o Parecer técnico ao PLS n.º 508/2013 e seu substitutivo, de Rogério Fernando Taffarello. Este Parecer trata do PLS que “tipifica como crime de vandalismo a promoção de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos”.

Na seção de Contos,  Gustavo Samuel apresenta O mensageiro de Deus. De acordo com o autor: “A ideia era de que o conto denunciasse como uma hipérbole a realidade, mas ao que parece, os absurdos têm se compatibilizado com o cotidiano brasileiro”. Um instigante e provocativo conto, que não está nada distante do real.

Por fim, apresentamos a seção de crônicas da antropóloga Debora Diniz (UnB e Anis), na Cadeia de Papel. “É no conjunto das meninas mais pobres e escuras, da periferia e com pouca escola que se conformam as meninas da cadeia de papel. (...) O gênero conforma o feminino a uma ordem patriarcal de poder; porém, é no cruzamento com outras formas de precarização da vida que surgem as meninas da cadeia de papel (Diniz, 2015b)”.

Boa leitura!

Coordenadores da gestão 2015/2016.

Entrevista
Maria Gorete Marques de Jesus entrevista Paulo Sérgio Pinheiro
Data: 24/11/2020
Autores:

1) Bom dia, Paulo Sérgio. Uma das propostas para a próxima edição da Revista Liberdades é trazer reflexões sobre o cenário político atual e o risco de prováveis retrocessos de direitos conquistados ao longo desses anos pós ditadura civil militar. Gostaríamos justamente de iniciar esta entrevista com esta questão: qual a sua avaliação sobre o cenário político brasileiro?

Resposta: Nos últimos 30 anos, basicamente, o cenário político me interessa em termos da sua ação nos direitos humanos. Se nós olharmos por essa perspectiva, é um momento muito regressivo. Mas para entender isso você tem de ter uma compreensão mais abrangente da situação política. A campanha política foi muito radicalizada; as campanhas ultrapassaram os limites do aceitável em termos de uma convivência política, não considerando o adversário como inimigo, mas os adversários se comportaram como inimigos. Depois houve uma vitória irrecusável. Evidente que as eleições consagraram a eleição da presidenta Dilma, mas como a diferença não foi enorme, as oposições começaram vários esforços para desqualificar a eleição, o que acho totalmente equivocado. As oposições tinham de concluir que perderam e esperar para se organizar para 2018.

2) Qual sua opinião sobre a configuração atual do Congresso Nacional?

Resposta: Esse Congresso Nacional, especialmente a Câmara dos Deputados, é a mais retrógrada desde a volta da democracia. Recuso-me a culpar a população, os eleitores. Na realidade, os eleitores foram conformados e influenciados por campanhas totalmente simplistas e assuntos de vários interesses específicos. Um diz mais respeito às políticas de direitos humanos, outros, não relacionados a direitos humanos, levam demandas que contrapõem direitos. Há bancadas que representam diversos interesses: a bancada da bala, financiada por empresas de armamentos; a bancada dos evangélicos, que apresenta uma agenda muito retrógrada em termos dos avanços que se fez na área de direitos humanos no Brasil; a bancada ruralista, ligada aos interesses agrários que, por exemplo, querem rever a definição de trabalho escravo. Os candidatos dessas bancadas tinham muitos recursos, e a campanha deles podia ser simplista, com pautas como a da redução da maioridade penal, porque nessas campanhas os candidatos querem só ser eleitos, não é o momento de diálogo com a população, de esclarecer, de tornar mais adequadas para os interesses da população as políticas públicas. Creio que a tarefa básica desse Congresso é desconstruir a constitucionalidade de 1988, porque a mobilização que houve para a Constituinte de 1988 foi extraordinária. Todos os setores da população passaram pelas consultas na Constituinte, que resultou em uma Constituição bastante progressista, afirmativa no que diz respeito aos direitos e garantias individuais. A melhor Constituição de toda a história brasileira, mesmo que as várias Constituições, até as autoritárias do século XX se referiram aos direitos humanos, nenhuma, evidentemente, foi capaz de inscrever os direitos humanos no horizonte da sua implementação. E mal ou bem, entre 1988 e o presente, houve um avanço enorme nos direitos, a pensar, por exemplo, nas políticas afirmativas que jamais o Brasil tinha lidado com essa questão; o próprio reconhecimento do racismo estrutural pelo governo Fernando Henrique, como, por exemplo, no primeiro censo federal de funcionários públicos por etnia ou raça; até a criação do grupo de repressão ao trabalho escravo. Nenhum governo, antes dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, deram ênfase a perseguir o trabalho escravo no Brasil no século XX. Isso foi possível após a Constituição de 1988. Depois, a Lei Maria da Penha, em termos da violência contra a mulher. E também o avanço das pautas ligadas aos direitos, por exemplo, orientação sexual que, apesar de que os homossexuais continuassem a ser assassinados em todo o Brasil, houve um progresso muito grande, também, na legislação. Sem falar em uma vertente importante dos direitos econômicos e sociais, que foram o Bolsa-Família e outros programas que tiraram milhões da pobreza. Então, a Câmara dos Deputados é uma Câmara regressista, porque o objetivo deles é, explicitamente, desmontar o que foi conseguido.

3) O que pode explicar esses retrocessos, especialmente com relação à redução da maioridade penal?       

Resposta: Creio que no fundo de tudo isso está o racismo brasileiro, ainda que o racismo tenha se tornado crime. O racismo não se extinguiu no Brasil. E, na verdade, ainda que isso não seja colocado publicamente, quem irá preso caso a redução da maioridade penal passe serão os adolescentes não brancos, afrodescendentes, negros. Isso é evidenciado no sistema carcerário. Segundo o Mapa do Encarceramento, lançado pela Secretaria Nacional da Juventude, a população prisional é composta em sua grande maioria por jovens, pobres, negros e semianalfabetos. Contudo, essa população é a que mais morre vítima de homicídios. Em 2012, 77% dos jovens mortos eram negros ou pardos. Ou seja, ou eles são presos, ou eles são mortos.

O outro problema diz respeito ao sistema de segurança pública. A segurança pública não foi tocada pela Constituição de 1988, até por uma conciliação entre a Constituinte e a legislação da ditadura. E esse tema não será tocado por esse Congresso, porque, na verdade, quando você tem o lobby de 300.000 policiais militares, contando com os votos de suas famílias, você tem um colégio muito importante para desagradar. E, o que é paradoxal é que, na medida em que não se constrói um novo sistema de segurança pública, a população, aderindo a essas medidas grosseiras de lidar com a questão do crime, vai se colocando em uma posição fragilizada, porque, na realidade, as vítimas do crime ou as vítimas por parte das polícias, principalmente a polícia militar, são, justamente, aquele contingente com menos recursos. Grosso modo, o aparelho de segurança pública do Estado funciona a serviço das classes dominantes. Então, há uma instrumentalização, há uma manipulação dos interesses das classes dominantes no que diz respeito ao funcionamento do aparelho de segurança.

4) Na sua opinião, o que é preciso fazer para mudar esse quadro? O que dá para fazer?

Resposta: Bom, não há nenhuma solução mágica. Creio que as mobilizações da sociedade civil sejam um ponto relevante. As mobilizações de maio/junho de 2013 foram importantes, mas parece que não tinham pauta muito definida. A percepção estava certa, em termos da identificação dos problemas, mas sem uma pauta política definida. As últimas manifestações são de desconforto, de desagrado, mas muito colocadas na vertente da posição partidária e até na extrema direita com milhares de pessoas defendendo a volta ao Regime Militar. É evidente que as mobilizações são essenciais. A sociedade civil apresenta uma diversidade de representações, com diversas posições políticas e ideológicas. Esses grupos de direita, as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, e as várias organizações ligadas às empresas de segurança, todas estão trabalhando dentro da sociedade civil pela desconstrução da constitucionalidade democrática de 1988. Então, a tarefa dos grupos da sociedade civil que defendem direitos humanos é muito mais difícil hoje do que o foi na transição democrática ou nas primeiras décadas ou na primeira década depois da Constituinte de 1988, que nós achávamos que tínhamos ganhado. Doce ilusão, não ganhamos.

Outra vertente importante é a mídia. Hoje alguns veículos de comunicação se colocam numa posição de desconstrução democrática, perdendo um pouco a oscilação que havia logo depois de 1988 de disputa pela consagração dos direitos. Hoje, canais de televisão aberta e os grandes jornais da mídia assumem causas retrógradas como, por exemplo, a redução da maioridade penal. Então essa é uma nova frente de enfrentamento que precisa ser levada em conta, mas a situação é enormemente mais difícil. Acredito que talvez os jovens e mais pessoas se informem através das redes sociais e outros canais da internet, mídias alternativas, enfim, essas são possibilidades de acesso a outras fontes de notícias, não apenas aquelas das grandes mídias. Essa é uma nova frente de enfrentamento que precisa ser levada em conta.

Este retrocesso não é algo que apenas nós estamos enfrentando, isso está acontecendo no mundo. Você tem a Europa construindo muros. Agora, a última novidade é que o Reino Unido pretende fazer um muro em Calais para os migrantes não passarem para o Reino Unido através do trem, uma coisa totalmente delirante. Temos o retrocesso da questão palestina, acirradas após a agressão a Gaza. Hoje o Estado de Israel tem o governo mais de extrema-direita que já houve. Então, o mundo também está complicado, não é só o Brasil. Ao mesmo tempo, no mundo, você também tem avanços. A vitória do casamento gay nos Estados Unidos recentemente, quer dizer, são contradições que estão presentes hoje no mundo e no Brasil. Então, para não convidar quem lê esta entrevista para a depressão profunda, nós temos que viver dentro desta contradição. Porque há um Congresso, há uma Câmara de Deputados regressista, não quer dizer que nós vamos cruzar os braços e esperar o seu Cunha acabar o mandato dele. Até porque, haverá substitutos para ele, é uma ilusão achar que é só ele que comanda o espetáculo. Então, é uma conjuntura muito difícil, mas com virtualidades que não existiam há 20 anos.

5) O que o senhor acha do ativismo judicial, que muitas vezes precisa agir para suprir os vazios deixados pelo Executivo e Legislativo?

Resposta: Se você olhar para outras democracias na América Latina e nos Estados Unidos, vai ver que alguns avanços, como esse do casamento gay nos Estados Unidos, só foi possível por causa da Suprema Corte. Alguns constitucionalistas como Joaquim Falcão e Oscar Vilhena mostram todo um elenco de decisões modernas progressistas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal. Os temas que o Supremo Tribunal Federal assume, tem enfrentado de uma maneira moderna as novas pautas. E também hoje há juízes que são aliados da sociedade civil e também a Procuradoria da República e as diversas procuradorias estaduais. É uma situação muito mais favorável do que no período da Ditadura, ou mesmo de antes da Ditadura. Não me sinto desconfortável com esse ativismo jurídico, o que não pode acontecer é que esse ativismo jurídico venha substituir a mobilização e a organização político-partidária. O ativismo jurídico não dá sozinho para compensar a desconstrução da constitucionalidade de 1988.

6) Na sua opinião, há legitimação de parte da sociedade civil em relação a posicionamentos conservadores dos parlamentares?

Resposta: A sociedade, a população em geral tende a ser conservadora, e o espantoso seria se não fosse assim depois de você ter séculos de escravidão e de discriminação de boa parte da população. O surpreendente seria achar que seria diferente. A democracia não tem esse efeito imediato. Nós temos um legado racista e discriminatório no Brasil, ele persiste na cultura política da população, ainda que seja difícil generalizar. Mas, evidentemente que você não vai definir a legislação de um Estado através das pesquisas de opinião, mesmo que 99% da população seja a favor da pena de morte. A democracia é importante, e muitas das legislações brasileiras são muito avançadas. Nós temos uma lei contra o castigo corporal que a maioria dos países do mundo não tem. Mesmo que 99% da população seja a favor de tortura, não quer dizer que o Estado brasileiro agora vá legalizar a tortura. Na mesma esteira, essa questão da redução da maioridade penal. Mas a população conservadora, em que o racismo está presente, ela é submetida a muitos riscos, como eu digo, o precário funcionamento do aparelho de Estado, ou da segurança pública, e o avanço da criminalidade.

Quer dizer, o Estado, apesar de alguns progressos, é incapaz de enfrentar a criminalidade organizada. É um pouco desconcertante dizer isso em um momento em que o Brasil, pela primeira vez na sua história, está enfrentando a elite que manteve o poder político desde o retorno da Ditadura, que são as empreiteiras, que continuaram a fazer seus esquemas sem nunca terem sido arranhadas. Hoje você tem empreiteiro na cadeia. Eu sou contra a cadeia, não tenho nenhum entusiasmo com a cadeia, mas a minha posição é isonômica. Se você quer o cumprimento estrito do Processo Penal que, a meu ver, não está sendo arranhado, porque tudo está sendo corroborado pelo Ministro Teori Zavascki, do STF, então tudo deve valer para os 600.000 presos. Quer dizer, se os empreiteiros da Lava Jato podem beber água Envian ou Perrier, eu não vejo por que os 600.000 presos brasileiros têm de beber uma água contaminada. E, enquanto a prisão existir, a execução da pena deve ser igual para todos (não há coisa mais estúpida do que prisão especial para universitários). A maioria desses 600.000 presos brasileiros envolvidos em crimes não violentos como furto ou consumo de droga são brincadeira de criança perto dos fundos que esses senhores, alegadamente, se apropriaram. E, no entanto, eles estão tendo um tratamento VIP, como eu gostaria que todos os presos tivessem. A prisão preventiva, eu gostaria que fosse igual para todos os presos em prisão preventiva no Brasil. Não é nada e ninguém se importa. Todo mundo se lixa. Não se pergunta a opinião de nenhum jurista sobre a defesa deles e de que maneira são tratados: não há nenhum artigo na imprensa escrita a respeito. Certamente, para falar bem do IBCCRIM, há entidades como este Instituto que, certamente, se preocupam com esse descompasso, mas a maioria da intelectualidade brasileira, quero dizer, os que pensam o mundo e o Brasil estão pouco se importando. Agora, é um ai Jesus, Deus nos acuda, por que o Marcelo Odebrecht tem que limpar a sua cela, isso é uma graça. A faxina das penitenciárias brasileiras, como você sabe, está nas costas dos presos. Então, essa indignação diária com o que acontece com os presos brancos faz parte dessa tolerância com as elites, mesmo pelas classes médias baixas. Essas classes na questão da diminuição da maioridade penal, não se dão conta de que os pilotos de prova dessa mudança vão ser boa parte daquelas classes mais exploradas que estão apoiando entusiasmadamente a diminuição da idade penal, quer dizer aquelas classes cujos membros hoje estão dentro dos presídios. Os adolescentes que vão ser jogados nas masmorras com 8 ou 10 anos de pena não serão, necessariamente, os meus filhos ou os filhos dos meus colegas ou dos meus amigos. Essa classe média alta, branca que, em geral, jamais vai ter problemas com a justiça, porque os filhos são educados; os escolarizados têm acesso preferencial ao mercado de trabalho, à universidade e não é o caso desses jovens entre 18 e 24 anos, que constituem a maioria dos presos.

Entrevista
Maíra Zapater entrevista Danilo Cymrot
Data: 24/11/2020
Autores:

P: Você é autor de um conhecido trabalho de pesquisa a respeito do que chamou de “criminalização do funk”. Como você vislumbrou essas conexões entre o funk e a criminologia?

R: Bom, eu sou músico. Isso acho que foi determinante na escolha do tema, porque eu sou uma pessoa que gosta muito de música. Toco, canto e acompanho. Gosto de funk, de ouvir, de dançar, mas a ideia surgiu, na verdade, quando eu estudei criminologia ainda na graduação e estudei, principalmente, a teoria [criminológica] da subcultura delinquente. Eu vi que havia toda uma corrente na criminologia, que, ainda na década de 1950, se ocupava em estudar as culturas juvenis; o impacto do cinema, dos meios de comunicação, enfim, na dinâmica criminal, e esse tipo de coisa me causou muito interesse. Depois, quando eu estudei [a teoria criminológica d]o Labeling Approach, também tive acesso à pesquisa do Howard Becker junto a músicos de jazz, eu vi que existia essa ponte entre música e criminologia e era justamente essa parte da criminologia que mais me interessava. Quando eu estava, enfim, pensando em um projeto de mestrado, no primeiro momento eu pensei até em ver algo que muita gente, inclusive, já pesquisou, que é esse tipo de articulação entre a criminologia e o samba. Mas depois eu pensei: bom, isso é uma coisa que já foi feita, assim, há tanto tempo e em vez de trabalhar com sambas das décadas de 1930 e 1940, por que eu não pego uma coisa que está acontecendo agora no momento, um tema do momento; até achei que teria uma função social, digamos assim, estudar algo que pudesse, inclusive, contribuir no sentido de fornecer argumentos em uma luta política mesmo, que acontece e tal. Não é à toa que já fui até apelidado de “intelectual orgânico”, não sei se de forma pejorativa ou não, mas eu sempre tomo como uma...

Pois é, e aí eu pensei, bom, por que o funk? Por que eu vi, bom, se já existia essa ligação entre o samba e a marginalidade, no funk isso era mais claro ainda. A primeira vez que eu ouvi proibidão, eu tinha quatorze, treze, quatorze anos.

P: O proibidão carioca?

R: O proibidão carioca. Aquilo não me chamou muita atenção [na época]. Ficou, assim, um pouco esquecido. Mas depois, quando eu estava pensando no tema eu me lembrei desse funks que são acusados de fazer apologia ao crime, às facções criminosas e tal, e comecei a ver que existia, de fato, uma associação muito grande entre o funk e a criminalidade, o tráfico, a violência. Em alguns episódios, isso ficava mais evidente ainda, como o próprio assassinato do Tim Lopes. Quando eu comecei a estudar, na verdade, e fiz o projeto, eu nem tinha conhecimento do funk de São Paulo. Na verdade, foi um pouco contemporâneo, porque eu comecei o meu mestrado em 2009 e o funk chega de São Paulo, vindo da Baixada Santista, e aporta na Cidade Tiradentes mais ou menos nessa época, um pouquinho antes. Mas o funk começa realmente a tomar a cidade de São Paulo, por Cidade Tiradentes, em 2009. Quer dizer, então não deu nem tempo... O fenômeno estava acontecendo no mesmo momento [da elaboração da dissertação de mestrado]... Eu só vim a descobrir o funk de São Paulo quando eu estava prestes a depositar já a dissertação.

Eu depositei [a dissertação] em 2011. E aí foi que eu comecei a descobrir a cena de São Paulo e o assassinato dos MC’s, como o Daleste. Os crimes, então, ocorreram depois, eu já tinha depositado [a dissertação]. Por isso, a desvantagem de escrever sobre o funk é essa. Não é um fenômeno que está acontecendo agora. Você tem que acompanhar sempre, né? Eu tenho sempre que atualizar. Agora, quer dizer, para se ter uma ideia, na minha pesquisa eu não abordo funk ostentação.

P: Que está super rolando agora, não é?

R : Não. O funk ostentação nem está rolando mais. Já é decadente agora. O MC Guimê, por exemplo, já está muito pop. O que faz sucesso agora é o funk ousadia. É uma vertente do funk putaria, mas esse tem outro nome, que é o funk cantado por esses MC’s adolescentes. Mas, enfim, a minha pesquisa, basicamente, foi centrada no funk do Rio de Janeiro da década de 1990. Eu não fiz pesquisa de campo no mestrado, até porque eu não teria condições de fazer. Demandava um preparo, um conhecimento. Entre fazer malfeito, ter essa pretensão, e não fazer, eu preferi recolher o depoimento de outros pesquisadores que fizeram essa incursão, inclusive etnográfica em bailes funk do Rio de Janeiro na década de 1990.

A primeira grande obra na referência bibliográfica e talvez a mais importante até hoje é o mestrado do Hermano Vianna, que estudou os bailes funk no Rio de Janeiro ainda na década de 1980.

P : Ainda da época do charme do funk?

R : Isso. Ainda antes da nacionalização do funk carioca, em 1987, se não me engano, 1987, 1988. Eu digo isso, porque em 1989 ocorre a nacionalização do funk, quando é gravado o primeiro LP de funk carioca com letras em português.

P : Até então o que chegava era o funk norte-americano, a chamada black music?

R : Isso. Era o funk norte-americano, que ou era instrumental ou era com letras em inglês que as pessoas acabavam, pela sonoridade, criando refrões em português, mas pela sonoridade. E o to o much virava tomate, esse tipo de coisa.

P : O que você pegou de legislação e jurisprudência, referente a que situações?

R : No caso do Rio de Janeiro, legislação estadual principalmente. Municipal também, mas principalmente estadual, porque o funk foi objeto de uma CPI estadual no Rio de Janeiro. De uma CPI municipal também. E no Rio de Janeiro houve uma série de leis que tentaram disciplinar o funk. A última delas é de 2009, de autoria do Marcelo Freixo e do Wagner Montes, que reconhecem o funk como manifestação cultural. Se bem que o que eu defendo é que essa lei, na prática, não é obedecida, não é seguida, é desrespeitada, porque existe uma instrução normativa da Secretaria de Segurança Pública que, na prática, inviabiliza, hoje, os bailes funk no Rio de Janeiro, porque faz uma coisa que uma lei anterior estadual já fazia: impõe uma série de requisitos burocráticos para que o baile possa ser realizado. Então você tem que ter autorização do batalhão de polícia militar da área, com tantos dias de antecedência... Quer dizer, você dá uma margem de arbitrariedade muito grande, inclusive, que enseja práticas de corrupção. Se você paga propina, libera; se você não paga, não libera. Você precisa ter câmera de vigilância, detector de metal, ambulância, isolamento acústico, quer dizer... É claro que o funk se profissionalizou, as equipes de som bastante estão consolidadas, mas muitos bailes são realizados de forma tremendamente precária.

P : E que faz um pouco parte da cultura do funk, eu acho. De fazer na rua, de fazer com o carro aberto, então, me corrija se a minha percepção do seu trabalho estiver equivocada, mas quando você fala de criminalização do funk, é uma criminalização às vezes por essa via, não criminalização propriamente dita de legislação, mas tem uma normativa administrativa que, na prática, impede que ele seja praticado.

R : Exatamente, até porque eu trabalho muito com o conceito de infrapenalidade de Foucault, quer dizer, é você criminalizar por meio do Direito Administrativo. Até porque quem mais se ocupa em regulamentar o funk é a Câmara Municipal e as Assembleias Legislativas no Rio e em São Paulo. E até por uma questão de competência constitucional, eles não podem legislar sobre Direito Penal, então se faz uso de tipos penais bastante abertos.

P : Como contravenção penal de perturbação da paz pública, essas coisas?

R : Isso. Exatamente! E do Direito Administrativo. Por que eu sustento que existe uma criminalização do funk? Bom, por um lado, existe uma criminalização no sentido estrito mesmo, porque, apesar de o funk não ser criminalizado, alguns MC’s acabam sendo enquadrados por tipos legais como de apologia ao crime, caso do Proibidão. Mas no caso dos bailes: na maioria das vezes é a legislação administrativa que acaba proibindo a sua realização e aí vem a força policial, muitas vezes de forma violenta ou fazendo uso de armamento não letal, bombas de gás lacrimogênio para proibir, fechar.

P : Eu acho que valeria a pena explicar, Danilo, que a gente está falando aqui bastante de Proibidão e talvez não necessariamente o leitor esteja totalmente familiarizado com o termo. O que é o “Funk Proibidão”?

R : Os produtores, os cantores de funk dizem que quem criou essa terminologia, mesmo, foi a imprensa.

P : Eles não se autoidentificam com o termo?

D: Hoje em dia sim, mas muitos não gostam. Eles preferem chamar de “Funk Neurótico” ou “Funk Consciente”. O problema é o seguinte: existe um limite tênue entre o Funk Proibidão e outros gêneros, como o próprio Funk Consciente, o que faz com que haja essa confusão. O Funk Consciente, digamos assim, é aquele funk que faz crítica social, que retrata a realidade, denuncia o racismo, a violência policial, e o funk apelidado de Funk Proibidão, o Funk Neurótico, é aquele funk de facção, acusado de fazer apologia ao crime, principalmente apologia às facções criminosas. Então é o funk em que o cantor canta que pertence a uma facção e, no funk, ele esculacha, digamos assim, os inimigos, sejam membros das facções rivais. Por exemplo: tem o funk do Comando Vermelho, que fala mal do Terceiro Comando e do Terceiro Comando Puro; expõe, na letra, o poderio bélico, e não só bélico, da facção. Quer dizer, enaltece, dizendo que eles têm armas e têm poder e que eles têm AK 47 [tipo de fuzil cujo porte a lei brasileira restringe às Forças Armadas]. A polícia também tem AK 47. Quer dizer, esses enaltecem. Tem uns funks proibidões que narram práticas criminosas mesmo, sequestro, roubo.

P : Em geral esses crimes narrados nas letras são relacionados ao patrimônio e tráfico de entorpecentes?

R : Exatamente. E até fiz um artigo em que eu brincava com isso, foi publicado em um livro organizado por Carlos Bruce Batista. No Rio de Janeiro, foi editado pelo Instituto Carioca de Criminologia. O artigo se chamava “Proibidão Classe A”, em que eu brincava justamente com isso. Eu escrevo músicas também, e escrevi o que seria o Proibidão, que, ao invés de falar sobre roubo, sequestro, fala sobre crime de colarinho branco. Mas “Proibidão” também é um guarda-chuva que engloba outros estilos. Existe um Proibidão que não fala sobre crime nem tráfico, mas fala sobre putaria, então tem palavrão e esse tipo de coisa. Geralmente esses funks têm duas versões: a versão proibida e a versão “família”, que é cantada nos grandes meios de comunicação.

Mas esse funk proibidão que eu analiso, principalmente, não é tanto esse. O que eu analiso e o que eu estudo é, principalmente, o funk que fala e faz apologia ao crime. E aí, o que os MC’s dizem? “Olha, veja, eu não estou fazendo apologia ao crime. Na verdade, existe guerra de facção na favela e eu estou, simplesmente, retratando essa realidade, então não é porque eu incorporo um eu-lírico traficante que eu sou um traficante ou que eu acho isso legal, que eu apoio”. É uma forma até de denúncia, por isso que muitos se recusam a usar a terminologia funk proibidão. Eles falam: “O que nós fazemos é funk consciente, então, quando a gente critica a polícia, a gente fala mal da polícia, a gente xinga a polícia, é porque a polícia exerce no imaginário social da favela aquilo que todos nós conhecemos”. Claro, há funks que falam abertamente em matar policial, mas outros, não, simplesmente criticam a polícia – e aí a polícia diz que eles estão incitando a desordem ao criticar a polícia.

P : Aí depende de quem está narrando para que se possa identificar se aquilo é um retrato crítico da realidade, ou se a pessoa está, de fato, pregando, realmente, a morte de um policial. Quem tem o poder de deter a narrativa é que vai predominar.

R : Claro. E o que eles falam também é que, na verdade, o problema não é tanto a mensagem, o conteúdo das letras, mas a pessoa que canta. Se for um cantor de MPB que canta uma música com um eu-lírico traficante, claro, caso de um Chico Buarque ou de um Caetano Veloso criticando a polícia, eles não vão ser presos.

P : Se o Caetano e o Gil cantarem Haiti...

R : É, Haiti, inclusive tem um episódio interessante. Essa música foi citada quando, em 1993, eu vi um show no Anhangabaú dos Racionais [grupo paulistano de RAP] e de um outro grupo de rap. Eles foram presos depois do show, porque eles cantavam uma música chamada Homens da Lei, que criticava a polícia e a polícia, injustamente, levou os músicos para a delegacia sob o argumento de que estavam incitando a revolta do público contra a polícia, que estavam fazendo apologia ao crime. E a declaração do cantor foi justamente essa: “mas o Caetano e o Gil, eles podem cantar Haiti. Por que nós não podemos?”

Isso depende muito de quão institucionalizado o músico está no próprio cenário da música brasileira. Os Titãs, por exemplo, no final da década de 1980, cantaram [a música] Polícia. Hoje em dia eles podem cantar, estão superinstitucionalizados, são considerados, inclusive, já abraçados pela MPB. Não são considerados marginais, nada disso, já são senhores de meia-idade, mas a gente não pode esquecer que eles compuseram Polícia justamente porque dois dos integrantes, o Arnaldo Antunes e não sei se o Tony Bellotto, foram presos, assim como o próprio Gilberto Gil foi preso. Hoje em dia é difícil alguém imaginar isso acontecendo. E acontece. A Rita Lee foi detida e processada pela polícia, mas é uma coisa que causa escândalo, as pessoas saem em defesa da Rita Lee, ainda que um ou outro saia em defesa da polícia.

P : Tem um ponto ao qual eu vou querer voltar: você começou dizendo que tinha interesse de falar do samba do começo do século XX. Você vê uma relação paralela ao funk, nessa inter-relação de arte, representação de situações criminógenas e classe social? O samba tinha esse caráter meio transgressor, na minha leitura muito semelhante com o que o funk tem hoje. Isso foi apropriado por uma intelectualidade de classe média e foi alçado a um outro patamar e hoje me parece muito improvável pensar em um sambista falando de crime, ou pensar em samba como uma música periférica. Eu não tenho essa visão mais do samba como uma música das populações periféricas, e o funk, me parece, ocupa um pouco esse lugar agora. Você vê uma apropriação do funk por elites quando, às vezes, se vê bairros nobres de São Paulo abrigando cantores de funk? É possível identificar um processo semelhante ao que ocorreu com o samba?

R : Em termos. No caso do samba, é uma questão de identidade, institucionalização e mediação social. O que eu quero dizer com isso? Em 1890, quando foi promulgado o Código Criminal da República, a Capoeira foi criminalizada. Por quê? A escravatura havia sido abolida há dois anos e havia um medo muito grande – quem fala bastante desse medo da população negra na cidade do Rio de Janeiro é a Vera Malagutti Batista. E havia um medo de que os negros pudessem causar insurreições, cobrando reformas mais profundas, uma democratização real da sociedade. Isso vinha desde 1835, quando houve a Revolta dos Malês. O haitianismo também, sempre pairando como um fantasma aqui, uma ameaça para as elites brancas do Brasil. Fizeram com que qualquer ajuntamento de negros num espaço público fosse regulado e visto com desconfiança e, portanto, interditado. Os capoeiras eram vistos nessa lógica ameaçadora e, portanto, foram criminalizados. O samba também, no começo do século XX era identificado ainda com a população negra. Há várias piadas racistas sobre isso, por exemplo: “negro toca cavaquinho, porque é um samba que dá para tocar algemado”.

O que acontece, como você bem lembrou e o Hermano Vianna estudou na tese de doutorado dele [intitulada] “O Mistério do Samba”, é que, na década de 1930, há uma aproximação entre o sambista de morro e intelectuais, que estavam preocupados em pensar uma identidade nacional e isso, inclusive, foi incorporado visando um projeto político de integração nacional varguista, nacionalista, que adotou o samba. E poderia ter sido outro, poderia ter sido o baião, poderia ter sido a chula no Rio Grande do Sul. No entanto, adotaram o samba como símbolo nacional. E a partir desse momento que o samba é alçado, de marginal ele passa a ser motivo de identidade nacional, de orgulho nacional, símbolo de identidade nacional, enfim, ele é institucionalizado. É claro que sempre existiu, ainda, um quê de marginalidade aí. O próprio Bezerra da Silva compunha o “sambandido”. Ele fazia essa crônica da malandragem, da bandidagem, teve problema com a polícia também. Não é à toa ele ser tão idolatrado pela nova geração do rap. O Marcelo D2 gravou um CD só cantando Bezerra da Silva. Mas de uma forma geral, o samba, apesar de ainda estar muito identificado com a negritude, passou a ser abraçado como uma cultura brasileira, um patrimônio cultural nacional. E o funk, realmente, principalmente a partir da década de 1970, quando ele é confinado nos subúrbios e nas favelas do Rio de Janeiro, passa a ser associado com a população negra, pobre, suburbana e favelada do Rio de Janeiro. Não é à toa, também, que um dos grandes sucessos do funk, no comecinho dos anos 2000, fala exatamente que era “um som de preto e de favelado”. Havia sempre essa associação. Então, o problema – e é o que eu falo – não é com a batida em si. Se bem que há estudos em que falam que a batida ela pode acabar, digamos assim, incentivando comportamentos mais ou menos violentos. Os chamados bailes de corredor, em que as pessoas brigavam. Mas além do o Pancadão, tem o punk, não é? Que é uma batida violenta também. O que eu quero dizer é que dificilmente alguém vai brigar ao som de Beethoven, a não ser no [filme de Stanley Kubrick] “Laranja Mecânica” (risos). Mas, enfim, o que eu quero dizer é que o problema não é a música. Então se tiver uma festa que toque funk, em uma discoteca fechada, em um bairro nobre do Rio de Janeiro ou de São Paulo, frequentada por jovens de classe média alta, brancos, a polícia não vai entrar, não vai proibir. Não tem problema. O problema é com uma música que é associada à juventude negra e pobre e esse é o problema, então eu digo que o funk pode seguir o mesmo caminho do samba. Hoje em dia o que a gente vê é que o funk anda em uma corda bamba, porque, por um lado, ele foi incorporado pela indústria cultural, chegou na trilha sonora da novela, artistas de funk gravaram em grandes gravadoras multinacionais, estão nos programas de TV, enfim, mas ele preserva um quê de originalidade. Porque quando o funk atinge um público maior, ele também se modifica, ele fica mais pop, então, tem muita gente que não considera a Anita, por exemplo, funkeira. A Anita é vista como se fosse traidora do movimento, muito mais pop do que funkeira. Aí vem a Valesca [Popozuda, cantora de funk] e fala: “eu, sim, sou funkeira”. Ou melhor, a Tati Quebra-Barraco, falando: “não! Esse negócio de diva pop não é comigo, eu sou funkeira mesmo e tal”.

Às vezes, a gente vê um mesmo artista transitar por ambientes diferentes e, ao transitar por ambientes diferentes, ele assume uma postura outra, dependendo do lugar onde ele está. Vamos citar o exemplo do Mr. Catra: quando o Mr. Catra está na TV, ele canta um tipo de repertório, ele faz um tipo de declaração. Quando ele vai fazer um show na favela, ele canta outro tipo de repertório, ele faz outro tipo de declaração, até porque ele sabe que aquelas pessoas da favela têm um repertório simbólico, cultural compartilhado, que outras pessoas em uma festa universitária não têm. Então não adianta, se você começar a falar de gírias do crime em uma festa universitária aqui de São Paulo, é capaz de ninguém entender, porque os funkeiros, eles jogam muito com a ironia, com a ambiguidade, o discurso é bastante ambíguo, irônico. E mantém essa espécie de corda bamba: tem que se popularizar, mas sem perder as raízes.

P : O rap é um gênero musical mais a São Paulo do que ao Rio de Janeiro. E também costuma ser muito associado, mais do que a populações periféricas, à população carcerária. O funk também tem essa associação com a população carcerária? Há aproximações, distanciamentos, os dois estilos?

R : Sim. Durante muito tempo, o funk e o rap tiveram um conflito. Muitos falavam que o Rio de Janeiro era a terra do funk e São Paulo era a terra do rap, o que não é verdade, porque no Rio de Janeiro sempre teve rap e em São Paulo cada vez mais tem funk. A grande disputa era a seguinte: eu costumo dizer que muitas vezes se afirma uma identidade pela negação do outro, e quanto mais próximo você for do outro, maior é a necessidade de você demarcar as fronteiras. Mas, também, estão cada vez mais próximos, há misturas. O comprometimento é com a diversão e com o deboche. Essa é uma das coisas, inclusive, que fez com que o funk e o rap entrassem em conflito, porque o funk, no começo, ele surge muito influenciado pelo rap: no começo, os funks eram chamados de raps, como “O rap da felicidade”, “O rap do Salgueiro”. Compartilhavam, inclusive, a mesma terminologia, e os cantores de funk, chamados de MC’s, que nem os rappers. E principalmente os rappers, que tinham essa preocupação um pouco purista de marcar território, se incomodavam muito, porque eles diziam que não queriam ser confundidos com funkeiros, porque, enquanto o modelo ideal deles, purista, os rappers seriam pessoas comprometidas com a conscientização social, politizados; o funkeiro seria uma pessoa alienada, debochada, enfim.

Inclusive o rap sempre foi muito mais respeitado pela intelectualidade, pela MPB, como uma pessoa consciente que faz letras elaboradas, com rimas ricas, do que o funkeiro, que é um cara semianalfabeto que faz letras pobres, enfim, o que não é verdade, como o exemplo do funk consciente. Com a chegada do funk na periferia de São Paulo, o rap foi perdendo cada vez mais espaço, isso acabou causando um desconforto, também, muito grande. No primeiro momento, portanto, não só por questões identitárias, mas até por questões financeiras, de sobrevivência, os rappers se opunham ferozmente à entrada do funk aqui em São Paulo, porque eles estavam perdendo espaço, inclusive, trabalho. Mas, de uns tempos para cá, o que se tem visto é um diálogo cada vez maior entre o funk e o rap de São Paulo, porque eles compartilham o mesmo espaço social, que é a periferia de São Paulo. Muitas vezes, são amigos e sofrem dos mesmos problemas, as mesmas questões, mas o funk ainda não foi institucionalizado como o rap. Ele é ainda mais respeitado, visto como um gênero politizado consciente conseguiu, inclusive, criar pontes com a militância política e partidária. O PT e o PCdoB, mas principalmente o PT, sempre valorizam muito o rap como cultura popular – como se o funk não fosse – e criou pontes com os rappers a ponto de rappers fazerem campanha para o PT. Agora que o funk está começando a se organizar e se aproximar de partidos de esquerda, principalmente, então aqui em São Paulo, por exemplo, tem o vereador Reis, do PT, que é o maior defensor do funk na Câmara Municipal; na Assembleia Legislativa é a Leci Brandão. E é curioso porque a Leci Brandão é do samba, mas muito antenada com o pessoal do rap e do funk. É o que eu digo, é a identidade negra que acaba congregando esses três estilos, que convivem no mesmo espaço social, o samba, o rap e o funk.

P : Danilo, para a gente fechar, queria só uma reflexão sua sobre as realidades culturais de São Paulo e do Rio de Janeiro, como você vê isso?

R : Essa divisão eu não conto muito, porque geralmente essas divisões são simplificadoras. No caso do Rio de Janeiro, de fato, qual o cenário hoje em dia, não é? Diz o MC Leonardo, que é da APAFUNK, Associação dos Profissionais Amigos do Funk, que, na prática, o funk está proibido no Rio de Janeiro, que acabaram os bailes, eles foram fechados, muitos por causa das UPPs, da política de UPP: onde tem UPP não tem baile. Até se tentou fazer o baile pacificado, tem algumas experiências, uma ou outra, mas por causa dessa instrução normativa da Secretaria de Segurança Pública, na prática o funk do Rio de Janeiro está proibido. O funk do Rio de Janeiro já teve vários momentos: no começo da década de 1990, em que nas letras o tom hegemônico era da apologia à paz, porque, justamente, como o funkeiro foi muito associado à violência, à briga, ao quebra-quebra, arrastão, os funkeiros começaram a dar essa resposta.

P : Foi a época do refrão “eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente na favela onde eu nasci”?

R : Isso. Rocinha pede a paz. Se você for pegar 1994, 1995, praticamente só se vê esse tipo de funk, pedindo paz, paz nos bailes, contra a violência. Depois houve um momento em que os bailes ficaram muitos violentos: era a época dos bailes de corredor em que a tônica do funk no Rio de Janeiro era a briga. Essa época passou e foi substituída por uma nova fase, que é a do funk sensual, o funk putaria. Nesse momento surgem as MC’s mulheres. Elas ganham destaque nessa fase do funk, como a Tati Quebra-Barraco, a Deize Tigrona. E, por fim, também teve a fase do proibidão, que foi muito forte quando os bailes de clube, onde ocorriam essas brigas, foram proibidos. Os funks foram confinados mais uma vez nas favelas, na ilegalidade, na informalidade. Também coincidiu com uma época no Rio de Janeiro em que as disputas pelo tráfico entre as facções criminosas do Rio estavam bastante intensas e toda essa história foi narrada em funks proibidões. Tem um trabalho muito interessante do Thiago Vieira, do Rio de Janeiro, que ele fala justamente isso, como você consegue entender muito da história não oficial do Rio de Janeiro, que não está nos livros didáticos, mas se pode conhecer por meio das letras dos proibidões. O funk vive fases bastante diferentes, dependendo do momento, inclusive, político em que vive a cidade. No caso de São Paulo, de fato havia uma diferença muito grande com o Rio de Janeiro, porque a ostentação é um fenômeno típico de São Paulo.

Quando o funk surge em São Paulo, ele não era simplesmente uma imitação do Rio de Janeiro. Em um primeiro momento até era, mas ele ganha personalidade, ele ganha identidade própria, o funk paulista, com a ostentação. Isso também não é à toa, porque o que aconteceu no fim dos anos 2000? Uma época de euforia, de otimismo, euforia econômica, o fim do segundo Governo Lula. Muito se falou em ascensão da nova classe média, aumento do consumo, do crédito. Não que essas pessoas consumissem tudo aquilo que elas cantavam, elas não tinham todas carros importados, enfim, mas era uma realidade que não estava tão distante assim, você conseguia ver um outro carro luxuoso nas favelas.

O funk ostentação incomodava as pessoas. Não é à toa que os rolezinhos também foram criminalizados, não era tão reprimido e tão criminalizado quanto o proibidão, que em São Paulo fala sobre o PCC. Mas tinha um momento em que as pessoas não queriam, no momento de lazer delas, falar sobre PCC, sobre crime, sobre assuntos pesados; elas queriam celebrar a vida, alegria. Então elas preferiam falar sobre o consumo a falar sobre a realidade do cárcere. Respondendo, inclusive, a sua pergunta anterior, que eu tinha deixado escapar, o funk está nas prisões, fortíssimo. Existem concursos de funk lá, falando a realidade do cárcere, e eu não sei avaliar a correlação de forças, quem está mais forte, hoje, dentro da cadeia, se é o funk ou se é o rap. Mas se a correlação de forças na cadeia seguir a mesma lógica do que ocorre, hoje, na periferia – que é de onde vem a maioria dos presidiários, em geral pessoas negras, pobres, com baixa escolaridade, muitos vindos de bairros periféricos –, o funk estaria mais forte. É uma percepção, não posso afirmar com segurança. Mas o fato é que a ostentação ganha força em detrimento do funk proibidão, que fala sobre o PCC. Esses MC’s que foram assassinados na baixada santista, o próprio MC Daleste, eram, justamente, MC’s que surgiram cantando proibidão, falando de PCC, e depois mudaram para a ostentação. Mas eu também não gosto dessa divisão rígida de estilos, eu sempre digo que ostentação e proibidão se conversam, não são gêneros estanques. Eles jogam muito com ambiguidade, com a sugestão, em algum momento ele fala que ele é do crime, mas ele não deixa a par de onde vem o dinheiro que ele está ostentando.

Agora, o que acontece em São Paulo hoje é que o ostentação, que nunca foi muito forte no Rio de Janeiro, também perdeu força, também por razões... Existe um pesquisador chamado Renato Barreiros, que ele estuda bastante o funk de São Paulo, e na análise dele, com a qual concordo, ele diz: não só houve uma saturação, porque é natural, o gênero faz sucesso e daí todo mundo começa a copiar, todo mundo faz naquele estilo. Chega uma hora que satura. Não só houve uma saturação do gênero ostentação, mas a própria realidade econômica mudou de 2008 para cá. Não faz mais sentido ficar falando de gastos milionários com carros de luxo. E aí que, em São Paulo, ganha força essa nova vertente do funk, que é o funk ousadia.

É um funk que fala sobre putaria ou é um funk debochado. O foco sai e volta para a dança. A própria repressão fez com que alguns desses funkeiros abraçassem, voltassem os seus olhos para o pop, para outros estilos. Assim como no Rio, aqui em São Paulo a gente está vivendo uma situação parecida, que é a repressão dos bailes funk de rua, os chamados “fluxos”, justamente sob o argumento de que nesses espaços ocorre o consumo de drogas, inclusive por menores, não há isolamento acústico, o trânsito fica prejudicado, as pessoas não entram em suas casas, o som é alto. Tudo isso aconteceu no Rio de Janeiro. Existia uma política repressiva e o que eu estou estudando no momento é exatamente isso, como que chegou na Assembleia Legislativa, na Câmara Municipal, como que o Poder Público tem tentado compatibilizar o direito ao lazer e à cultura, por um lado, e o direito do sossego da vizinhança, esse tipo de coisa. No meu doutorado eu estudei os deputados policiais militares, que mais propõem projetos de repressão ao funk. Tem, por exemplo, um projeto do Conte Lopes no sentido de permitir a realização de bailes funk apenas no Anhembi. Mas isso depois de ele já ter feito um projeto junto com o coronel Camilo no sentido de proibir geral, a não ser que sejam espaços fechados, com isolamento acústico. Foi vetado pelo prefeito esse projeto, feito em parceria do Conte Lopes com o coronel Camilo no âmbito municipal. Depois o coronel Camilo se elegeu agora para a Assembleia Legislativa, e junto com o coronel Telhada propuseram agora um novo projeto, na Assembleia Legislativa, no sentido de restringir o máximo possível a realização dos bailes ou tentar regulamentar isso. É esse que está em trâmite agora [maio de 2015]. É um tema que eu tenho que estar o tempo todo de olho e a cada semana acontece... Em São Paulo, na cidade de São Paulo, pelo menos a gente tem uma prefeitura, uma secretaria municipal de cultura. Eu não sei agora com o Nabil Bonduki, mas com o Juca Ferreira havia um espaço de diálogo, eu sentia que havia boa vontade no sentido de reconhecer o funk como manifestação cultural, isso claramente. No âmbito estadual isso não está muito claro, mas isso, muito em virtude do próprio perfil do Juca Ferreira, que foi ministro e é um ministro, assim como o Gilberto Gil, que valoriza outras manifestações culturais, não apenas aquelas associadas à cultura erudita nem à cultura popular folclórica, mas à cultura de massa mesmo.

P : Alguma consideração final que você gostaria de fazer, algo a acrescentar, algo que você gostaria de ter falado e acabou não sendo contemplado nas questões?

R : Não. Acho que já deu para traçar um perfil.

Artigo
Por uma outra criminologia do terceiro mundo: perspectivas da Criminologia Crítica no Sul
For another third world criminology: perspectives from the South’s Critical Criminology
Data: 24/11/2020
Autores: Rodrigo Codino e Traduzido por Salo de Carvalho

Resumo: O artigo refaz o percurso da criminologia crítica na América Latina, enfatizando a construção de um saber teórico autóctone direcionado à denúncia das violências estrutural e institucional. Na sequência, relaciona a criminologia crítica latino-americana com a criminologia africana, problematizando, a partir do relato da tensão entre direito europeu (colonizador) e direito comunitário, seus conceitos, objetos, métodos e, sobretudo, os desafios comuns para resistir às distintas formas de violência e de dominação.

Palavras-chave: Criminologia crítica; criminologia africana; criminologia latino-americana.

Abstract: This article retraces the critical criminology route in Latin America, emphasizing the construction of an autochthonous theoretical knowledge directed to the complaint of structural and institutional violence. In addition, the paper relates the Latin American critical criminology with the African criminology, debating – from the report of the tension between European law (colonizer) and Community law – its concepts, objects, methods and, above all, common challenges to resist to different forms of violence and domination.

Keywords: Critical criminology; african criminology; latin american criminology.

Sumário: 1. A primeira criminologia autóctone em nosso continente. O marco teórico. O compromisso político – 2. Uma outra criminologia terceiro-mundista: aproximações. A etnocriminologia na África negra. As normas sociais tradicionais – 3. A lei penal do "outro" – 4. A criminologia terceiro-mundista em jardins arrasados.

1. A primeira criminologia autóctone em nosso continente

Há mais de 40 anos era realizado evento de enorme transcendência para a criminologia da América Latina. A reunião de criminólogos europeus e latino-americanos na Venezuela, nos anos 70, com o objetivo de analisar a violência, [2] marcou o início de uma nova etapa no desenvolvimento do pensamento criminológico regional. [3] As investigações que se desdobraram logo após este encontro e que se realizaram durante décadas delinearam uma criminologia local, ou seja, de corte latino-americano, distinta daquela formulada nos países centrais: uma criminologia do terceiro mundo ou terceiro-mundista.

Muito se discutiu sobre a possibilidade de realmente falar de uma criminologia própria ou apenas de uma proposta diferente na forma de fazer criminologia em nosso continente, notadamente depois do reinado do positivismo criminológico. Quem colocou em dúvida as características próprias deste movimento, entendeu-o como manifestação de uma atitude voluntarista, isto é, de uma proposição de como os autores gostariam que fosse a criminologia; [4] mas, em realidade, não teria sido nada além de uma transnacionalização do saber criminológico de acordo com os modelos impostos pelos centros de poder localizados nos países centrais. Tratava-se, portanto, para esta posição, de uma repetição exagerada do discurso criminológico europeu. [5] Outros sustentaram que nesta época a criminologia na América Latina estava estreitamente ligada à discussão sobre o compromisso político-intelectual (o "dever ser" do criminólogo crítico) e que isto havia obstruído a capacidade do "ser" da criminologia crítica. A criminologia crítica na América Latina aparecia como uma “grande narrativa” ou uma “importação cultural”, sem um desenvolvimento que permitisse considerá-la autônoma da europeia. Inclusive houve aqueles que a assinalaram como “teoricamente subdesenvolvida” ou de “escasso nível científico”. [6]

Esta primeira criminologia autóctone teve dois momentos: um teórico e outro sangrento.

O marco teórico. Nossos criminólogos se ocuparam dos elementos centrais da vida política latino-americana, que eram temas estranhos aos europeus. Entre eles, a ingerência do primeiro mundo nas guerras civis centro-americanas e a sua manipulação ideológica nos meios de comunicação, a doutrina de segurança nacional, a existência de modelos econômicos diversos no Primeiro e no Terceiro Mundos etc. [7] Além disso, realizaram investigações sobre a violência na América Latina, sobre a criminalidade de colarinho branco e sobre a corrupção administrativa, cujo conteúdo foi examinado em seminários em distintos países. [8]

Esta criminologia local levou em consideração tanto as peculiaridades étnicas, linguísticas e culturais dos países da região, como a injusta desigualdade no campo econômico. Para alcançar um enfoque mais adequado da realidade social latino-americana e os fins de controle social, afirmava-se que deveriam ser colocados em evidência a dominação sofrida pelo nosso continente e o poder despótico de grupos, famílias ou indivíduos que, em conivência com grupos de poder internacionais, haviam produzido totalitarismos homicidas [9] contra a vida de indígenas, campesinos e trabalhadores.

A criminologia não poderia seguir esquecendo que era um setor da política criminal geral e uma parte do conjunto concreto de cada povo com sua geografia e com sua história. [10]

Qualquer aproximação com uma criminologia na nossa margem deveria contar a nossa própria história. Na América Latina, referir-se ao Estado Providência ou benfeitor não fazia sentido, tal como na criminologia europeia ou americana, pois não se compartilhava esta forma de Estado. Nossa região estava ameaçada por outras ideologias estatais perigosas como a do capitalismo de Estado, a do Estado tecnocrático ou a do Estado de segurança nacional. [11]

O compromisso político. As páginas escritas pelos nossos criminólogos não passaram inadvertidas por alguns governos autoritários de ocasião.

Pertencer a um movimento de criminologia crítica foi perigoso na América Latina. [12] Vários membros deste movimento latino-americano caíram nas mãos dos regimes autoritários, alguns foram obrigados ao exílio [13] e outros tiveram menos sorte.

Vale lembrar os assassinatos – ainda impunes – de Jorge Palacios Mota e Guillermo Monzón Paz em 1981, na Guatemala, professores da Universidade de San Carlos (Guatemala), que professavam uma criminologia e um direito penal críticos. Monzón Paz havia apresentado um trabalho no congresso da Venezuela de 1974, cujo título era significativo e representava o pensamento crítico da época: “a imprensa dos países da América Latina nas mãos das oligarquias criollas [14] é uma forma de violência institucionalizada”.

É provável que não exista apenas um fator determinante para a queima do Palácio da Justiça na Colômbia em 1985, mas a morte de Alfonso Reyes Echandía e Emiro Sandoval Huertas, Presidente e Ministro da Suprema Corte deste país, ambos criminólogos críticos, deixa suspeitas sobre o incômodo que as suas ideias produziram no poder político da época. Estes autores haviam denunciado a formação de pessoal militar e policial nos Estados Unidos e no Panamá e a ingerência norte-americana em assuntos internos da Colômbia com a presença de tropas em território latino-americano; assinalavam que a Justiça Militar havia suplantado a Justiça ordinária ao assumir o poder de administrar a Justiça Penal, o que era inconstitucional; [15] indicavam que a criação da lei penal constituía um ato de violência estrutural interclassista interna, porque emanava de um consenso coercitivo manipulado por uma minoria econômico-política que detinha o poder e que violentava com frequência a majoritária classe dominada; [16] sustentavam que o delinquente era a pessoa que os autores da lei definiam como tal, mas que havia outros delinquentes que eram identificados pelos meios de comunicação de massa sem que se levasse em conta se eram realmente inocentes. [17]

O compromisso político dos nossos criminólogos não se limitou apenas ao “dever ser” da criminologia latino-americana, mas se constituiu como parte do seu “ser” que, de forma justa, foi definida como uma criminologia da libertação que se opôs a uma criminologia positivista que era claramente uma criminologia da opressão. [18] [19]

Na América Latina, a criminologia crítica adquiriu o sentido de um movimento de resistência, um movimento de transformação do controle penal que não perdeu de vista, em nenhum momento, sua conexão com a política como ferramenta de transformação social. [20]

Com razão foi dito que esta criminologia latino-americana representou uma experiência científica autônoma e uma séria produção teórica, porque permitiu que certos temas como violência e dominação permanecessem como o fio condutor da crítica. Contrário ao ceticismo europeu, a esperança imperante na América Latina refletia uma situação na qual aparecia com clareza a relação imediata entre a violência do sistema penal e a violência estrutural, uma situação na qual a fronteira da luta entre dominantes e dominados se fazia mais evidente. [21]

2. Uma outra criminologia terceiro-mundista: aproximações

A criminologia crítica terceiro-mundista, que surge nos anos 1970 e 1980, na América Latina, não destoa muito da criminologia africana da mesma época, pois tanto uma quanto a outra tiveram o mesmo fio condutor: a dominação e a violência.

Devemos admitir, porém, a escassa divulgação, entre nós, deste saber que não foi aquele proveniente dos países centrais. [22] No caso da África, esta dificuldade decorreu da propagação da ideia hegeliana, que sustentava que este continente não possuía história, motivo pelo qual era desnecessária qualquer referência. [23] Hegel dizia que a África propriamente dita permaneceu fechada a todas as relações com o resto do mundo; era uma terra de ouro e descansava sobre si mesma, a terra da infância, oculta na obscuridade da noite, longe do dia da história consciente de si mesma. [24]

Além disso, cremos que é conveniente revisar, ao menos na criminologia, a regra segundo a qual o pensamento do Ocidente – que podemos designar como saber do norte ou central – é a única e inesgotável fonte de conhecimento universal e o único local de onde emana um saber genuíno. Tudo o que não é Ocidente – p. ex., o mundo antigo, o Oriente, o mundo primitivo, o terceiro mundo, o mundo em via de desenvolvimento – tende-se a considerar como um lugar de sabedoria popular, de tradições antigas, de hábitos e de significações exóticas e, sobretudo, uma fonte de dados sem processamento. Estes outros mundos serviram e servem de base para os teóricos do norte iluminar com suas teorias e verdades transcendentes. Teorias e verdades pelas quais nos impõem seu saber, desconhecendo, contudo, por completo, o saber próprio ou autêntico que se desenvolve no sul. [25]

A etnocriminologia na África negra. Depois da Segunda Guerra Mundial e como consequência da política de descolonização, surgiu um renovado interesse pela África, notadamente em relação aos chamados “indígenas”. A partir deste momento, desde a antropologia, [26] iniciaram-se algumas investigações sobre as realidades sociais complexas e conflitivas desses povos, em especial sobre o fenômeno da colonização e da dependência. [27]

Para entender estas realidades complexas era necessário fazer uma análise histórica completa das sociedades primitivas e das mudanças sociais produzidas com a colonização. Em primeiro lugar, analisar as mudanças que ocorreram em decorrência do contato dos invasores brancos com os africanos, enfatizando a resistência dos últimos às leis impostas pelos colonizadores às comunidades independentes e o uso da força física utilizado para vencer esta resistência. Em segundo lugar, verificar o período em que parte da população africana, distante da sua sociedade tradicional, incorporou as técnicas e as formas sociais do grupo dominantes. Por último, compreender o período de resistência ao poder colonial e que resultou na libertação nacional dos países africanos. [28] Poderíamos agregar, também, a investigação sobre as ditaduras que açoitaram o continente logo após as independências [29] e, atualmente, sobre o colonialismo financeiro.

A colonização implementou na África negra sistemas jurídicos modernos que se superpuseram aos mecanismos tradicionais de regulação dos conflitos. A criminologia tradicional produziu a abstração deste dualismo, o que impediu descobrir os aspectos criminológicos próprios da sociedade africana. Para compreender este fenômeno, era necessário apelar para uma criminologia que levasse em conta a sobrevivência destes circuitos ancestrais e os que apareceram como formas distintas de controle social. Esta criminologia foi designada etnocriminologia, [30] ainda que devesse ser pensada, em um sentido mais amplo, como parte de uma sociologia do desenvolvimento ou de uma sociologia das mutações. [31]

A etnocriminologia permitia deixar de lado o etnocentrismo europeu, que tendia a demonstrar que o fenômeno criminal era sempre o resultado dos mesmos fatores. Para evitar esse reducionismo, porém, era necessário recorrer a quem estuda de perto as entidades étnicas e reconhece nestes grupos um direito à diferença.

O criminólogo tradicional não dispunha de ferramentas para analisar as condutas desviantes nem as condutas delitivas nos países africanos. Em primeiro lugar porque concentrava a sua atenção preferencialmente nas zonas urbanas, onde presumia que se encontravam as “verdadeiras condutas criminosas”, ou seja, as condutas que se assemelhavam às das nações industrializadas. Em segundo lugar porque a sua formação estava mais inclinada a adotar um discurso macrossociológico distinto daquele microssociológico próprio dos etnólogos, o que conduzia a generalizar as observações e a ocultar as características próprias dos grupos tribais. Por essas razões, os enfoques antropológico e criminológico deveriam ser complementares. [32]

A justiça comunitária pré-colonial se caracterizava por buscar em primeiro lugar a reparação do dano e a anulação do sentimento de ódio e vingança que o crime havia desencadeado entre as famílias afetadas. As partes buscavam uma solução, um compromisso equitativo e rápido, uma satisfação compensatória que assegurasse à vítima uma reparação. E esta reparação permitia reconciliar famílias antagônicas. A ideia de infligir um castigo sem levar em consideração a indenização da parte ofendida era completamente estranha ao direito comunitário. [33]

Pelo contrário, a justiça baseada no castigo de um sujeito culpado, importada pela colonização, não levava em consideração a vítima durante o processo. Este novo sistema jurídico, que terminava com a prisão do culpado de um delito, em vez de apaziguar o sentimento de vingança entre as famílias instigava-o, já que a família do culpado perdia um dos seus membros. Esta situação poderia converter a família do culpado em vítima e, ainda, resultar na reprovação da família daquele que demandava prisão por parte do grupo social que poderia ver nesta forma de justiça uma traição aos membros da comunidade. [34]

As normas sociais tradicionais. A dificuldade de conhecer as normas sociais tradicionais na África pré-colonial se deve ao seu caráter não escrito. Sem prejuízo desta tradição, os representantes das tribos ou grupos étnicos sempre foram os garantidores da sua transmissão e asseguraram sua interpretação autêntica. Dentro desta normativa, podemos distinguir as crenças populares e as normas de caráter fundamental.

As crenças populares. Apesar de resultar impossível recriar as distintas concepções ou crenças religiosas presentes neste continente, parece ser comum em toda a África a noção de força vital, que não se limita aos seres vivos mas que se estende aos mortos e à natureza. [35] Esta força vital seria o sinônimo do ser, ou seja, o que teriam em comum entre si todos estes entes ou entidades. Este elemento aparece como o mais apreciado, o valor supremo. Neste contexto, os atos suscetíveis de favorecer a vida, conservá-la, protegê-la e, desse modo, aumentar o potencial vital da comunidade e dos seus integrantes seriam positivos. De maneira contrária, os atos que danificam a vida ou a propriedade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas ou qualquer outro que afete o indivíduo ou a coletividade seriam negativos.

As normas fundamentais. Nas sociedades tradicionais existem pessoas que estão investidas de um poder sobrenatural que lhes permite interagir com as forças naturais. Os anciãos do grupo social, os adivinhos e os bruxos, os gêmeos e os chefes políticos utilizam esta categoria e exercem um direito sobre os demais no seio da comunidade. No âmbito judicial, todas as instâncias são presididas por algum desses representantes e cumprem o papel de “juiz”, quando resolvem conflitos entre membros de um mesmo grupo social, ou o papel de “advogados”, quando resolvem litígios com membros de outros grupos. [36]

Dessa forma, nos diferentes níveis da vida comunitária, a manutenção da paz social sempre foi um objetivo de importância capital nas sociedades da África pré-colonial: a harmonia social implicava a sobrevivência do grupo. Por isso toda categorização que produzisse uma estigmatização rigorosa entre pessoas de um mesmo grupo social era considerada muito arriscada. Assim, uma diferença radical entre “normais” e “desviantes”, entre “bons” e “maus”, entre “vencedores” e “vencidos” podia ser uma fonte de rancores, de desejos de vingança ou de novos conflitos. [37]

Um dos corolários dessa concepção de vida foi a exigência imperativa da conciliação como modo de regular conflitos, a qual era facilitada pela reparação do dano causado à vítima. Todo conflito, qualquer que fosse a causa ou origem, possibilitava a conciliação para manter as relações pacíficas no seio da comunidade. Todo ato suscetível de reforçar a força vital era justo enquanto aquele que a debilitava ou a diminuía era considerado injusto. O mal sofrido por uma infração era sobretudo um atentado à força vital e a reparação tinha a função de restabelecê-la. [38]

O processo penal não consistia em determinar a regra abstrata aplicável a um conflito e em indicar um vencedor e um vencido. Pelo contrário, a concepção de justiça na África pré-colonial podia ser considerada como “horizontal”, pois era pronunciada pelos membros do grupo que utilizavam todos os meios para chegar a uma solução que reconciliasse as partes e, desse modo, preservasse a coesão da comunidade. [39]

 

3. A lei penal do “outro” [40]

Na África negra, a colonização representou um cataclisma cultural que destruiu as cosmogonias primitivas e rompeu os equilíbrios das sociedades tradicionais. A introdução de uma economia de tipo monetária, a implementação de indústrias e a importação de novas tecnologias que representavam a civilização ocidental produziram mudanças radicais nos distintos grupos étnicos.

O colonialismo produziu o contato entre sociedades capitalistas altamente industrializadas e com uma ideologia individualista com sociedades de tipo coletivista, exclusivamente agrícolas. Soma-se, ainda, como efeito, a concentração urbana em algumas cidades.

Os colonizadores, convencidos da superioridade da sua cultura e do aspecto civilizador da sua missão, utilizaram o direito como um instrumento de progresso que deveria servir para facilitar a união política e o desenvolvimento econômico nos países africanos. [41]

Com intuito de assegurar a “ordem colonial”, as regras jurídicas e os sistemas penais das metrópoles foram instaurados em princípio apenas em relação aos colonos, comerciantes, missionários e administradores. Houve, no começo, uma coexistência de dois tipos de direito segundo o princípio ratione personae, ou seja, uma jurisdição baseada na diferença de status: um direito para os africanos (direito comunitário); outro para os europeus e para os considerados “assimilados”. [42]

No entanto este dualismo não foi incondicional. Se os tribunais indígenas podiam aplicar o direito comunitário, este não poderia ser contrário à “justiça natural e a moral”. [43]

Dessa forma, os países africanos foram colocados em uma situação de dependência em relação às autoridades coloniais. Os direitos dos autóctones cessaram de ser direitos autóctones, isto é, criados unicamente por africanos e para africanos, que evoluía segundo suas necessidades. Na realidade, o poder de legiferar foi monopólio dos colonizadores.

Até 1940, na colônia belga, e até 1946, nas colônias francesas, os regimes penais apresentavam este dualismo jurídico, que distinguiu europeus ou negros assimilados dos indígenas. De fato, o direito penal africano foi pouco aplicado porque a maioria das administrações que julgava os povos autóctones ignorava o direito comunitário e aplicava as sanções de acordo com os Códigos europeus.

Desde a década de 1940, a aplicação dos Códigos Penais europeus foi generalizada aos habitantes das colônias africanas. Alguns dispositivos, em particular, estabeleceram a repressão à magia e ao charlatanismo, à compra e à venda de ossos humanos, ao canibalismo, às ordálias, à fraude ao regime de dotes etc. No entanto, essas ações legislativas unilaterais não tiveram nenhum consenso na população local, sobretudo porque as proibições ficaram dissociadas das práticas e das concepções das comunidades africanas.

Quando os países africanos conquistaram suas independências, os governos locais elaboraram Códigos Penais baseados na legislação colonial. Produziu-se, assim, a aceleração da política de implantação de uma justiça “moderna” com a construção de Tribunais e se multiplicou nas cidades a presença policial. Não obstante, o Código Penal na África estava longe de representar a expressão dos valores sociais estabelecidos e serviu, pelo contrário, como ferramenta de dominação. Este instrumento teve como objeto a transformação dos costumes e das tradições e foi o reflexo da vontade de uma elite para impor normas diferentes a uma minoria considerada como não evoluída socialmente. [44]

A história das ex-colônias europeias é conhecida: golpes de estado, guerras civis e leis de exceção.

 

4. A criminologia terceiro-mundista em jardins arrasados

Na atualidade, apresenta-se a distinção realizada nos anos 1970 e 1980 entre uma criminologia própria dos países centrais perante uma criminologia emergente dos países periféricos ou marginais, ainda que seja possível dizer que nos países do norte se segue formulando uma criminologia que analisa o poder punitivo em estados com jardins ordenados, enquanto a criminologia do sul reflete sobre o poder punitivo em jardins arrasados. [45]

Quarenta anos mais tarde, as criminologias terceiro-mundistas devem responder a outras preocupações, sempre inquietantes, não obstante, não deixam de ter um mesmo fio condutor: a violência e a dominação.

A violência em nossos continentes adquiriu diversas configurações ao longo dos últimos quarenta anos. Enquanto em muitos países africanos as guerras civis seguem produzindo mortes massivas, na América Latina a violência política parece ter diminuído com a consolidação dos processos democráticos. No entanto, a violência letal, fora de hipóteses bélicas, alcança números realmente preocupantes na América Latina, o que a coloca como o continente mais violento do mundo, inclusive superando o continente africano.

Na África, o fenômeno da bruxaria aparece ou reaparece com força neste início de século XXI. [46] A bruxaria é percebida como uma das principais causas do mal-estar individual e do infortúnio pessoal contra os quais convém proteger-se por todos os meios possíveis.

A originalidade que qualifica a violência da bruxaria em relação a outras formas de violência social reside no fato de que possui frequentemente, como ponto de partida, uma interpretação paranoica em um contexto de precariedade de recursos econômicos e de muita tensão. Esta ameaça, entretanto, não representa apenas um sentimento, é a arma favorita do abuso do poder no contexto de relações sociais desiguais. A ameaça serve a quem detém a autoridade para perpetuar a dominação e obter a submissão desejada. Em geral, as vítimas desta persecução são as categorias sociais mais vulneráveis: os pobres e os doentes, em síntese, aqueles que apresentam algum sinal de debilidade. [47]

Os bodes expiatórios do século XXI no sul têm suas particularidades, mas características comuns. Tanto no continente africano como na América Latina, as vítimas da violência resultam ser, em sua maioria, a população mais jovem e pobre.

Há alguns anos, em alguns países africanos, o abandono de jovens nas ruas, acusados de bruxaria, alcançou cifras exponenciais. Este fenômeno parece ter diminuído em alguns lugares, ainda que os mesmos jovens pobres sigam sendo o objeto da violência institucional, [48] sobretudo a realizada por meio de execuções sumárias. A resposta estatal incorpora a demanda incessante de maior segurança fomentada pelos meios de comunicação de massa. A violência policial no Congo não difere substancialmente daquela do Brasil. [49]

No contexto latino-americano são igualmente os jovens de bairros pobres apontados como ameaça, além de designados como os únicos responsáveis pela violência urbana, motivo pelo qual é necessário direcionar políticas de controle ou eliminação, isto é, prisão ou morte.

Fundamental advertir que esta situação não é casual, pois assistimos a outra forma de dominação nos países do sul.

A dominação midiática, que exercem os grupos concentradores do poder econômico com clara intenção política: reafirmar um modelo de sociedade na qual poucos sejam incluídos e o restante (excluído) seja controlado para que não os moleste. [50]

A criminologia do terceiro mundo deve enfrentar uma nova criminologia de tipo publicitário que procura, por intermédio das corporações financeiras midiáticas, promover novos estados policialescos e manter mediante repressão a população excluída do sistema: [51] os jovens pobres são a sua carne de cañón. [52]

A perversidade que atinge o jogo publicitário não se detém em assinalar um grupo social como bode expiatório para que intervenha o aparato repressivo, vai ainda mais longe e diz respeito às vítimas.

Os meios massivos de comunicação distinguem as vítimas conforme o seu pertencimento a determinado estrato social: existem vítimas de primeira e de segunda classe. [53] As imagens televisivas – o instrumento mais eficaz para esta tarefa – hierarquizam as vítimas dos fatos delitivos, algumas se mostram e outras se ocultam, algumas valem mais e outras valem menos. É frequente ver, portanto, em imagens, como vítimas apenas aquelas que possuem algum interesse comunicacional para indicar o bode expiatório pobre que é, em síntese, quem importa.

Em definitivo, estamos assistindo a uma espécie de fascismo societário, [54] em que há o incentivo para que grandes segmentos da população sejam rechaçados, excluídos ou eliminados.

O panorama desolador que apresentamos requer um esforço conjunto das criminologias do terceiro mundo. Para isso é necessário que os latino-americanos se unam aos colegas africanos em uma comunidade de problemas e experiências. [55] No sul, o desafio segue o mesmo de sempre: diminuir a violência e lutar contra a dominação.

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[1] Apresentação realizada no III Congresso Latino-americano de Direito Penal e Criminologia, ALPEC, 18-20 de novembro de 2014, Tegucigalpa, Honduras.

[2] Algumas comunicações da reunião no XIII Congresso Internacional de Criminologia foram recompiladas por Lola Anyiar de Castro e publicadas sob o título “Los rostros de la violencia”, Centro de Investigações Criminológicas, Maracaibo: Universidade de Zulia, 1974.

[3] Referimo-nos à rejeição sem precedentes e ao abandono do pensamento criminológico positivista que acompanharam, durante todo o século XX, a criminologia regional e a sua substituição pelo pensamento criminológico crítico.

[4] Del Olmo, Rosa. Criminología y derecho penal: aspectos gnoseológicos de una relación necesaria en la América Latina actual. Doctrina Penal, ano 10, n. 37, Buenos Aires, 1987, p. 36.

[5] Del Olmo, Rosa. Un reencuentro con América Latina y su Criminología. Segunda ruptura criminológica. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1990, p. 137.

[6] Ver Sozzo, Máximo. Traduttore traditore: traducción, importación cultural e historia del presente de la criminología en América Latina. Reconstruyendo las criminologías críticas. Buenos Aires: Ad Hoc, 2006, p. 404-406.

[7] Sobre o tema, Aniyar de Castro, Lola. Historia no contada de la Criminología Latinoamericana. Criminología de la Liberación, Maracaibo: Universidad de Zulia, 1976, p. 3-18; Anyiar de Castro, Lola. Codino, Rodrigo. Manual de criminología sociopolítica. Buenos Aires: Ediar, 2013.

[8] Sobre violência na América Latina: seminários de Quito (1976); Lima (1977) e Bogotá (1978); sobre a criminalidade de colarinho branco: seminários do Rio de Janeiro (1979); sobre corrupção administrativa: seminários do Panamá (1972) e Costa Rica (1983).

[9] Bergalli, Roberto. Hacia una criminología de la liberación en América Latina. Capítulo Criminológico, n. 9/10, Universidad de Zulia, Maracaibo, 1981/1982.

[10] Beristain Ipiña, António. La criminología comparada y su aportación a la política criminal: una reflexión tercermundista. Colóquio Internacional “A Comparação como Método Científico no Direito Penal e Criminologia”, Freiburg, 1978.

[11] Zaffaroni, E. Raúl. Criminología y derecho. Anuário da Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Rosário. Rosário: Universidad Católica Argentina, 1981, p. 532 e ss. Igualmente em Zaffaroni, E. Raúl. Política criminal latinoamericana. Buenos Aires: Hammurabi, 1982, p. 31 e ss.

[12] Nesse sentido, Szabo, Denis; Rico, José Maria. Criminología y represión en América Latina. Capítulo Criminológico, n. 8/10, Universidad de Zulia, Maracaibo, 1981/1982.

[13] Tiveram de deixar a Argentina, entre outros: Luis Marcó del Pont, Emilio García Mendez, Juan Pegoraro, Roberto Bergalli (que, além de tudo, foi preso e torturado). Em El Salvador, Atilo Ramírez Amaya.

[14] São designadas “oligarquías criollas” as elites econômicas latino-americanas, sobretudo aquelas cujo capital deriva diretamente da expropriação de terra dos povos autóctones e que deu origem aos grandes latifúndios rurais. (N.T.)

[15] Reyes Echandía, Alfonso. Criminología. Temis: Bogotá, 1991, p. 289-290.

[16] Sandoval Huertas, Emiro. La violencia de contenido criminológico. Tese de Mestrado apresentada na Universidade Externado da Colômbia, 1979, p. 13-16.

[17] Reyes Echandía, Alfonso. Criminología. Temis: Bogotá, 1991, p. 291.

[18] Baratta, Alessandro. Criminología crítica. Conferência de abertura ao Primeiro Seminário de Criminología Crítica. Universidade de Medellín, 1984.

[19] No Brasil, Juarez Cirino dos Santos designa esta criminologia oficialista de corte positivista, que legitimou o poder punitivo genocida dos regimes ditatoriais de Criminologia da Repressão (Santos, Juarez Cirino. Criminologia da repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1979). (N.T.)

[20] Andrade, Vera Regina Pereira. A criminologia crítica na América Latina e no Brasil: em busca da utopia adormecida. La Ley: Revista de Derecho Penal y Criminología, ano IV, n. 10, Buenos Aires, 2014, p. 58 e ss.

[21] Baratta, Alessandro. Discurso de condecoração. Primeiro Seminário de Criminología Crítica. Universidade de Medellín, 1984.

[22] Para fins ilustrativos, cremos que não é conveniente esquecer o pensamento de um dos fundadores da União Internacional de Direito Penal (atual AIDP) sobre o continente africano. O jurista belga Adolphe Prins entendia que a colônia do Rei Leopoldo, no Congo, podia servir como local para deportação de vagabundos – delinquentes em potencial – como uma espécie de controle social dos excluídos (nesse sentido, Prins, Adolphe. La defensa social y las transformaciones del derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2010).

[23] Na América Latina, no início do século XX, a questão era colocada desta forma: “o africano possui realmente uma capacidade de pensamento e de trabalho menor que a europeia? Isto é evidente; o negro não inventou o telégrafo nem o trem de ferro, não é artista ou criador, não é um empresário perseverante (...). E não necessita grande perspicácia para compreendê-lo desta forma, visto que, até hoje, sob nenhum clima ou governo, prestou à humanidade serviços de classe intelectual ou dirigente”. (Bunge, Carlos Octavio. Nuestra América (ensayo de psicología social).  Buenos Aires: Casa Vaccaro, 1918, p. 136).

[24] Sobre o tema, conferir Paulme, Denise. Las civilizaciones africanas. Buenos Aires: Eudeba, 1962.

[25] Nesse sentido, Comaroff, Jean; Comaroff, Jon. Teoría desde o Sul (o como los países centrales evolucionam hacia Africa). Buenos Aires: Siglo XX, 2013.

[26] Os estudos pioneiros foram os de Balandier, Georges. Sociologie des Brazzavilles Noires. Paris: A. Colin, 1955; e Balandier, Georges. Sociologie actuelle de l’Afrique Noire. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. Do mesmo autor, Balandier, Georges. Afrique ambigue. París: Plon, 1963 (em tradução ao castelhano Balandier, Georges. Africa Ambigua. buenos Aires: Editorial Sur, 1964).

Em português, especificamente sobre o tema, Balandier, Georges. Sociologia da África Negra: dinâmica das mudanças sociais na África Central. Lisboa: Edições Pedagogo, 2014. Demais publicações traduzidas do autor (listagem não exaustiva, meramente exemplificativa): Balandier, Georges. Antropologia política. São Paulo: EDUSP, 1969; Balandier, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1976; Balandier, Georges. As dinâmicas sociais: sentido e poder. São Paulo, Rio de Janeiro: Difusão Editorial, 1976; Balandier, Georges. O poder em cena. Brasília: EDUnB, 1982; Balandier, Georges. O contorno: poder e modernidade. São Paulo: Bertrand, 1997; Balandier, Georges.  O dédalo para finalizar o século XX. São Paulo: Bertrand, 1999 (N.T.)

[27] “A revolução, as desordens sociais e políticas, a guerra e o genocídio, despertaram a inquietude dos intelectuais humanistas preocupados em defender os direitos humanos, inclusive fora da Europa. Até os anos 70 – se dizia – os antropólogos deveriam ter uma maior influência sobre os quadros políticos futuros dos países subdesenvolvidos na medida em que poderiam contribuir para desmistificar a situação social do país e esclarecer sobre a dependência neo-colonial. Mas, para isso, a Antropologia devia operar uma revolução em três níveis: no objeto, no campo de estudo e na teoria. A Nova Antropologia não devia analisar as sociedades primitivas ou em vias de desaparecimento, mas as sociedades em plena mudança ou mutação; as investigações deviam ser coletivas, não individuais, e o compromisso político do investigador devia servir para a construção da teoria” (Copans, Jean. Critiques et politiques de l’anthropologie. Paris: Francois Maspero, 1974, p. 116-120).

[28] Magubane, Bernard. Un Regard Critique sur les Criteres Utilisés dans l’Estude des Changements Sociaux en Afrique Coloniale. In:Copans, Jean. Anthropologie et Impérialisme. Paris: Francois Maspero, 1975.

[29] A título de exemplo, citamos a ditadura de Mobutu, que se inicia com o assassinato de Lumumba, em 1960, na República Democrática do congo; o encarceramento de Mobibo Keita após o golpe de estado em 1968 e que origina a ditadura de Moussa Traoré na República de Mali.

[30] Seguimos, na íntegra, a obra fundamental da época: Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980. O texto foi o resultado do encontro entre criminólogos europeus e africanos que, sob o impulso do Centro Internacional de Criminologia Comparada da Universidade de Montreal – dirigida naquele momento por Denis Szabo – concluiu com um programa de cooperação e investigação com o Instituto de Criminologia de Abidjan, na Costa do Marfim. Este Instituto de Criminologia, único na África ocidental, organizou durante três anos (1972 a 1975), distintos colóquios com representantes do Senegal, Níger, Nigéria, Alta Volta (Burkina Faso), Camarões, Zaire (República Democrática do Congo), Gana, Togo, Mali e Dahomey (Benin).  Os temas abordados durante os encontros foram: (a) as necessidades e perspectivas de prevenção do crime e do tratamento do delinquente na África ocidental (1972); (b) a criminalidade real, aparente e legal na África ocidental (1973); (c) prevenção do crime e planificação (1974); e (d) justiça moderna e justiça tradicional na África ocidental (1975).

[31] Nos termos designados por Georges Balandier, conforme Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980.

[32] Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980, p. 20-21.

[33] Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980, p. 15.

[34] Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980, p. 15.

[35] Deschamps, Hubert.  Las religiones del Africa Negra. Buenos Aires: Eudeba, 1962, p. 11.

[36] Sobre o tema, referindo-se à República Democrática do Congo, Kienge-Kienge Intudi Raoul. Le Controle Policier de la Delinquance des Jeunes a Kinshasa. Bruxelas: Kazi, 2011, pp. 60 e seguintes.

[37] A expulsão de um indivíduo do seu grupo, como sanção da violação das normas fundamentais, era decidida apenas como última possibilidade e com a finalidade de preservar o grupo de todo o perigo, especialmente a desagregação social ou as catástrofes que expressavam a cólera dos ancestrais (Kienge-Kienge Intudi Raoul. Le Controle Policier de la Delinquance des Jeunes a Kinshasa. Bruxelas: Kazi, 2011, p. 62).

[38] Aderimos, sem reservas, à tese do professor argentino Alejandro Alagia, segundo a qual existiram, existem e existirão sociedades sem castigo. Nesse sentido, conferir Alagia, Alejandro. Hacer Sufrir. Buenos Aires: Ediar, 2013.

[39] Kienge-Kienge Intudi Raoul. Le Controle Policier de la Delinquance des Jeunes a Kinshasa. Bruxelas: Kazi, 2011, p. 68-70.

[40] Utilizamos a expressão do nosso colega Raoul Kienge-Kienge Intudi, professor de Criminologia da Universidade Nacional de Kinshasa, República Democrática do Congo.

[41] Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980, p. 58.

[42] A teoria da assimilação dos povos colonizados teve a sua origem no livro de referência sobre colonização francesa: Leroy-Beaulieu, Paul. De la Colonisation chez les Peuples Modernes. Paris: Guillaumin et C. Libraries, 1874.

[43] Sobre o tema, Braillon, Charlotte. Nouvelles Perspectives sur le Droit Judiciaire du Congo Belge et les Acteurs de la Justice Coloniale: la procédure d’annulation des jugements indigénes.  Droit et justice en Afrique Coloniale. Bruxelas: Université Saint Louis, 2013, p. 143-164.

[44] Brillon, Yves. Ethnocriminologie de l’Afrique Noire. Montreal: Universidade de Montreal, 1980, pp. 61-63.

[45] Zaffaroni, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 04.

[46] Fundamentalmente na República Centro-Africana, Gabão, República do Congo, Mali e República Democrática do Congo. Sobre o tema, conferir Rosny, Eric (dir.). Justice et Sorcellerie. Paris: Karthala, 2006.

[47] Martinello Bruno-Bouju, Jacky (dir.). La Violence de la Sorcellerie dans l’Afrique Contemporaine. Sorcellerie et Violence en Afrique. Paris: Karthala, 2012, p. 7-28.

[48] Sobre o tema, Kienge-Kienge Intudi Raoul. La Justice Pénale et la Gestión de la Violence Urbaine des Jeunes en Contexte de Porosité Frontaliere en Afrique Central (Republique Democratique du Congo, Republique d’Angola, Republique du Congo). Reveu Internationale de Criminologie et de Pólice Technique et Scientifique, Bruxelas, 2014. Na mesma linha, do mesmo autor, La Réforme du Systeme Pénitentiare Congolais dans un Context de Crise, artigo inédito.

[49] Malaguti Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. No mesmo sentido, Malaguti Batista, Vera (org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan, 2012; e Batista, Nilo. Ainda há tempo para salvar as Forças Armadas da cilada da militarização da segurança pública. In:Malaguti Batista, Vera (org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

[50] Sobre o tema, de forma bastante completa, Zaffaroni, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos. Buenos Aires: Ediar, 2011.

[51] Zaffaroni, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 5.

[52] Os números de mortos entre a população mais jovem são aterradores no Brasil, na Venezuela, no México, em Honduras, na Guatemala, em El Salvador, mas também na República Democrática do Congo, na República do Congo, na República Centro-Africana, alcançando cifras de dois dígitos ou quase três por cem mil habitantes (UNODC, Informe Global de Homicídios, 2013).

O termo “carne de cañón” não foi vertido para o português para manter a sua força e o seu significado originais. (N.T.)

[53] Sobre o tema, Zaffaroni, Eugenio Raúl. La palabra de los muertos. Buenos Aires: Ediar, 2011; Anyiar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual de criminología sociopolítica. Buenos Aires: Ediar, 2013.

[54] O autor distingue o fascismo político do fascismo societário: “diferentemente do fascismo político, o fascismo societário é plural, coexiste com facilidade com o Estado Democrático e seu tempo-espaço preferido; ao invés de ser nacional, é por sua vez ao mesmo tempo local e global” (Santos, Boaventura de Souza. Uma epistemologia do sul. Buenos Aires: Siglo XXI, 2009, p. 226).

[55] Nesse sentido, é muito importante conhecer os trabalhos sobre criminologia desenvolvidos atualmente na Escola de Criminologia de Lubumbashi (RDC), recentemente publicados: Digneffe Francoise-Lufunda, Kaumba (dir.). Criminologie et Droits Humains en République Democratique du Congo. Bruxelas: Larcier, 2008.

Rodrigo Codino

Professor e Coordenador do Programa de investigação em Criminologia da Universidade Nacional de San Martín, Buenos Aires, Argentina.

Traduzido por Salo de Carvalho

(Faculdade Nacional de Direito, UFRJ).

Artigo
Provando a tortura: reflexões a partir da análise de acórdãos dos Tribunais de Justiça brasileiros
Data: 24/11/2020
Autores: Mayara Gomes, Nathércia Cristina Manzano Magnani, Paula Ramos e Vivian Calderoni

Resumo:  O presente artigo tem como objetivo discutir a prova nos crimes de tortura, principalmente a partir de dados extraídos da pesquisa “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça brasileiros (2005-2010)”. Os principais debates contemplados foram: o valor da palavra da vítima e do acusado, as provas periciais e os obstáculos envolvidos na comprovação da tortura.

Palavras-chave: Tortura; prova; prova pericial; Judiciário; pesquisa empírica.

Abstract: The following paper has the goal to discuss the criminal evidence in torture crimes collected from the research “Judging Torture: Analysis of jurisprudence in Brazil’s State Courts of Appeals (2005-2010)”. The main discussions were: the value of victim and defendant testimonies, forensic proofs and the obstacles to demonstrate torture crimes.

Keywords: Torture; proof; forensic proof; Judiciary; empirical research.

Sumário: 1. A prova no processo penal: noções introdutórias – 2. Julgando a tortura – 3. Provando a tortura: 3.1 O tipo penal como norte para a produção de prova; 3.2 Os meios de prova da tortura: 3.2.1 O exame de corpo de delito nos crimes de tortura; 3.2.2 A palavra da vítima nos crimes de tortura; 3.2.3 A palavra do acusado nos crimes de tortura: 3.3 O lugar da tortura – 4. Considerações finais – Referências bibliográficas.

1. A prova no processo penal: noções introdutórias

No ordenamento jurídico brasileiro, pode-se dizer que o direito à prova é, antes de tudo, um desdobramento do direito de ação (art. 5.º, XXXV, da CF) e um elemento do direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5.º, LV, da CF), já que assegura a todos os acusados a possibilidade, efetiva, de influenciar o convencimento do julgador. O direito à prova é, assim, um direito fundamental, indisponível, irrenunciável e imprescritível – como todos os direitos fundamentais o são.

É por meio da atividade probatória que se pretende coletar elementos acerca da prática de determinada infração penal. Em um primeiro momento, tais elementos servirão ao titular da ação penal (Ministério Público ou ofendido), fornecendo-lhe subsídios para o oferecimento da inicial acusatória (denúncia ou queixa). Em um segundo momento, servirão ao acusado, que poderá rebater as acusações que lhe forem eventualmente imputadas e, assim, poderá se defender e produzir contraprovas, se considerar necessário. Por fim, servirão ao aplicador da lei, isto é, ao magistrado, que deverá fundamentar sua decisão – seja absolutória, seja condenatória – com base nas provas amealhadas ao longo da instrução penal. Pode-se concluir que a finalidade principal da prova é formar a convicção do julgador acerca do acontecimento (ou não) de uma infração penal. Vale destacar que no processo penal cabe à acusação provar que o crime tenha ocorrido e quem o cometeu. Tal certeza deve ser produzida por quem acusa, ou seja, o Ministério Público. Caso contrário, a dúvida já é suficiente para a absolvição do acusado. Esse é o princípio conhecido como in dubio pro reu.

As provas têm, portanto, um papel central no processo penal. Não se pode pensar em processo penal sem prova – seja como atividade probatória, como resultado ou como meio (Lima, 2011, p. 833-835).[1] Não obstante, no mais das vezes, produzir prova não é uma tarefa fácil, ponto em que parecem convergir as opiniões de diversos sujeitos do processo penal, tais como: investigadores, advogados, defensores públicos, promotores de justiça, etc. Esta dificuldade pode advir tanto de fatores estruturais da própria instituição encarregada de realizar a investigação (como falta de pessoal especializado, demora para realização de perícias, falta de estrutura,tc.),[2] como também de fatores intrínsecos à natureza do crime. Há crimes cujas provas são abundantes, flagrantes, saltam aos olhos, e há crimes cujas provas são escassas, tímidas, ficam às escondidas. A tortura se insere na segunda categoria.

A prática da tortura é percebida como um crime de oportunidade (Maia, 2006, p. 20), ou seja, ocorre em ambientes ou dinâmicas em que sua prática é favorecida pelo contexto, pelos agentes envolvidos e, especialmente, pela invisibilidade.

Nesse sentido, a recente pesquisa “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010)”, que mapeou a atuação do Judiciário em segunda instância, nos fornece como argumento ilustrativo que do total das decisões analisadas (455), apenas 10% se referiam à vitimização de pessoas, homens ou mulheres, privadas de liberdade[3] e 31% ocorreram em locais de contenção,[4] uito embora diversos relatórios[5] apontem que a tortura tem sido utilizada de forma sistematizada nesses espaços – exatamente porque existe uma invisibilidade sobre a condição das pessoas privadas de liberdade no Brasil, além do fato de que, historicamente, já é conhecido que a prática de tortura vitimiza suspeitos da prática de crimes e pessoas presas (Salla e Alvares, 2006; Cardia e Salla, 2014).

O presente artigo pretende problematizar a questão da prova nos casos de tortura e sua centralidade para os desfechos processuais, em especial nos Tribunais de Justiça dos estados brasileiros. Alguns acórdãos foram citados para ilustrar e exemplificar os achados da pesquisa.

2.Julgando a tortura

A pesquisa “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010)”[6] foi lançada em janeiro de 2015 e teve como objetivo conhecer mais sobre o funcionamento do sistema de justiça – em especial da segunda instância – no que se refere aos processos de crimes de tortura. A temática da tortura carece de dados e indicadores, apesar de ser uma prática muito recorrente. Essa foi uma das motivações para a realização do estudo, já que se entende que para a formulação de políticas públicas de prevenção e combate à tortura é necessário conhecer a realidade.[7]

Os pesquisadores acessaram os bancos de decisões dos Tribunais de Justiça, através dos sites dos próprios tribunais de todos os estados do país, em busca de acórdãos sobre crimes de tortura. Como resultado, se depararam com um total de 455 acórdãos que versavam sobre tortura em correspondência com a Lei. 9.455/1997 e cujas decisões foram proferidas entre os anos de 2005 e 2010. Tal montante chamou a atenção, justamente por parecer pequeno como resultado de uma pesquisa em âmbito nacional abrangendo um lapso temporal de seis anos. A partir desse fato, inúmeros questionamentos foram suscitados, com destaque para o seguinte: por que apenas poucos casos de tortura chegaram ao segundo grau da justiça brasileira?

A resposta para tal indagação perpassa por inúmeras possíveis razões, dentre as quais, a dificuldade das vítimas em acessar o sistema de justiça, a falta de investigação adequada aos casos envolvendo tortura, os “filtros” presentes em cada etapa do trâmite processual penal, a dificuldade para se provar o acontecimento da tortura, etc.

Na citada pesquisa, diversos foram os acórdãos selecionados que culminaram na desclassificação da conduta – ou até mesmo na absolvição do agente – em razão da insuficiência da prova da tortura, como se exemplifica com os seguintes trechos:

"Se no tocante aos recorrentes a acusação está escorada em provas não conclusivas, cuja vagueza e imprecisão impedem a emissão de um juízo de valor seguro sobre a autoria delitiva, isso autoriza o julgador, diante da dúvida invencível existente sobre tal aspecto, a aplicar o princípio do in dubio pro reo”.[8]

"Assim, o que se pode concluir sem sombras de dúvidas é que no dia 05 de janeiro de 2000 os recorrentes efetuaram abordagem em quatro adolescentes. Porém, quanto as lesões terem ocorrido durante esta abordagem, a prova produzida não é suficiente para embasar um decreto condenatório. Ausente prova produzida em juízo dando a certeza para a condenação, a absolvição é medida que se impõe."[9]

Dessa forma, principalmente inspirando-se nos dados gerados pela referida pesquisa, este artigo destina-se a problematizar a produção de provas nos processos de crimes de tortura.

3. Provando a tortura

3.1 O tipo penal como norte para a produção de prova

Explica Goulart que: "Na demonstração da tortura, o tipo penal deve servir para direcionar a investigação e a produção de provas. Os órgãos encarregados da persecução penal, ao se aterem aos elementos do modelo legal, velando por demonstrar cada um deles, garantirão a adequada repressão ao crime de tortura, apartando-o de infrações semelhantes como o constrangimento ilegal, lesão corporal dolosa, abuso de autoridade e homicídio qualificado pelo emprego de tortura. Somente uma investigação séria, e principalmente direcionada, permitirá a produção de um conjunto probatório íntegro e uniforme". (Goulart, 2001, p. 62).

A Lei 9.455/1997 (ou Lei de Tortura) define, logo em seu art. 1.º, quatro elementos que devem estar presentes para que uma conduta seja enquadrada como crime de tortura: (i) constrangimento ou submissão de uma ou mais pessoas; (ii) uso de violência ou grave ameaça; (iii) sofrimento físico ou mental; e, finalmente, (iv) alguma finalidade especial de agir (que pode ser obter confissão, castigar, intimidar ou outros).

Uma crítica que deve ser feita, nesse ponto, é a discussão sobre o grau de sofrimento necessário para caracterizar a intensidade prevista no tipo penal. Apesar de bastante “aberto” e, assim, passível de uma miríade de distintas interpretações, entende-se que os tipos penais descritos na legislação pátria, bem como na legislação internacional sobre a matéria, são os primeiros passos para balizar se houve crime de tortura ou não em determinado caso (Goulart, 2001, p. 62-83).

Nesse sentido, por exemplo, dizem os seguintes acórdãos:

"No caso em apreço [acusação de tortura realizada por um PM sobre um adolescente] não se pode qualificar a conduta violenta, mas instantânea, dos acusados, como um método contínuo de submissão de uma pessoa a sofrimento atroz. Há uma evidente desproporção entre o episódio efetivamente ocorrido e essa grave capitulação. O que houve foi um inequívoco atentado à incolumidade física da vítima, a caracterizar o crime de abuso de autoridade. É inegável que os atos das autoridades policiais ou de seus agentes podem ser, por vezes, violentos, dependendo das circunstâncias, não havendo que se falar em ilegalidade quando se revelem necessários para o controle da ordem e da segurança públicas".[10]

"Não é toda agressão que configura delito de tortura, mas somente aquela de caráter bárbaro, martirizante, reveladora de extrema crueldade e capaz de causar à vítima atroz sofrimento, verdadeiro suplício, tanto que o tipo legal prevê intenso sofrimento físico e mental. Faltam maiores elementos para se averiguar se o sofrimento causado à vítima foi realmente intenso, razão pela, por força do princípio do in dubio pro reu, impõe-se a solução mais benéfica."[11]

Ora, a interpretação sobre o quantum de dor é necessário infligir para que a conduta seja considerada tortura acaba, muitas vezes, por recair em uma banalização da violência. Ou ainda, a percepção dos julgadores e atores jurídicos depende de quais são os sujeitos envolvidos na violência? Nesse sentido, dependendo de quem são as vítimas e agressores, algumas práticas violentas tendem a ser relativizadas pela qualidade do sujeito que a sofreu?

Dessa maneira, a tortura para ser provada, processada e julgada, necessita de elementos que se prestem a afirmar ou negar a sua existência, mas, também, que os atores jurídicos compreendam o que é tortura.

Outro trecho interessante, no mesmo viés acima, é o presente em um acórdão goiano, em que ocorreu a desclassificação do delito de tortura para maus tratos já que se entendeu que na seara da tortura se cuida de: "(...) situações extremas, de sorte que o móvel propulsor desse delito consiste na vontade de fazer a vítima sofrer por ódio, por sadismo, como, por exemplo, queimá-la aos poucos, utilizando-se de ferro em brasa, dar-lhe choques elétricos, submetê-la a breves afogamentos, colocá-la no pau-de-arara, extrair os seus dentes e outras formas cruéis de violência".[12]

Será que são, de fato, apenas esses os métodos de tortura? Apesar de haver algumas táticas mais recorrentemente ouvidas pelos militantes e pessoas que trabalham no combate à tortura (espancamento, empalação, queimaduras, choque elétrico, “pau-de-arara” e afogamento, por exemplo) as técnicas para fazer torturar são as mais diversas. Forçar suspeitos a ficarem em cima de um formigueiro,[13] forçar as vítimas a manterem relações sexuais entre si,[14] coagir o mergulho em um rio poluído,[15] apertar com alicate o nariz e os mamilos de um suspeito e introduzir um cabo de vassoura em seu ânus,[16] mandar alvejar a casa da vítima para torturá-la psicologicamente,[17] forçar a prática de sexo oral no torturador[18] ou a comer terra,[19] são exemplos de quão criativos podem ser os agentes ativos da tortura – esses exemplos apareceram nos acórdãos analisados na pesquisa “Julgando a Tortura”. Sobre isso, aliás, os Tratados Internacionais sobre o tema[20] e também a Lei 9.455/1997 enunciam que as práticas de tortura não são esgotadas nessas legislações, devendo o julgador, ao apreciar os casos concretos, aferir que a violência praticada, seja ela qual for, se enquadra, ou não, no tipo penal da tortura.

3.2 Os meios de prova da tortura

O Código de Processo Penalenca, de forma exemplificativa, em seus artigos 155 e seguintes (“Título VII – Da Prova”), os meios de prova admitidos no processo penal (provas nominadas) – perícia, confissão, acareação, testemunha, etc. Vige, portanto, em regra, o princípio da liberdade probatória, sendo expressamente vedadas apenas as provas ilícitas (art. 5.º, LVI, da CF), ou seja, aquelas produzidas em desrespeito às leis penais e processuais penais.

Vale lembrar que a produção de provas é incumbência do órgão acusatório, que deve, por intermédio dos meios admitidos em direito, formar sua convicção baseado e lastreado em apontamentos probatórios que indiquem a autoria, bem como a materialidade do delito.

Assim é que a produção de provas para apuração do crime da tortura pode ter a forma de um relatório médico, uma avaliação psicológica, declaração da vítima, declarações de testemunhas, gravações, outros tipos de prova de terceiros (como o testemunho de um médico ou de outro especialista), ou uma prova objetiva de incidentes generalizados de tortura nas circunstâncias referidas. Em resumo, pode ser qualquer material que possa ajudar a corroborar e demonstrar uma denúncia (Giffard, 2001, p. 59). O importante é que em algum momento a tortura possa ser provada, já que o “que não está nos autos, não está no mundo” (Maia, 2006, p. 229).

Tal como nos demais delitos, as provas confirmadoras da tortura devem conter o máximo de precisão, objetividade e consistência possível. Para isso, o maior número de informações e detalhes devem ser apurados: quem é a vítima, quem é o perpetrador, como a vítima caiu nas mãos do perpetrador, quando, porque, onde e como a tortura foi praticada, quais instrumentos foram utilizados para a tortura, qual foi o propósito da prisão e do interrogatório da vítima, quantos e quais golpes ou instrumentos foram utilizados durante a sessão, etc. Quanto mais numerosas e mais minuciosas forem as informações presentes nas provas produzidas, mais fácil ficará para que se comprove materialmente que o caso se identifica com o delito de tortura (Giffard, 2001, p. 65).

Nesse ponto é necessário suscitar uma reflexão crítica: diversos estudos, dentre eles o “Prisão provisória e a lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo” (Jesus, 2001, p. 122-123), já constataram que, para a condenação por tráfico de drogas de um suspeito, a palavra dos policiais que realizaram o flagrante assume um peso extremamente grande, bastando, em muitos casos, para a condenação. Logo, nesses casos, o conjunto probatório exigido para a condenação é mínimo. Enquanto isso, para os casos de tortura, muitas vezes não ocorre condenação nas oportunidades em que o acusado é agente público se não existir um conjunto probatório variado e consistente, ao passo que nas situações em que o acusado é um particular o grau de exigência é outro.

Nos acórdãos analisados na supracitada pesquisa, por exemplo, em 26% dos casos o argumento dos desembargadores em suas decisões de 2.ª instância foi de que as provas contidas nos autos e os relatos da vítima não comprovaram a tortura. Esse percentual se agiganta quando o uso do mesmo argumento é separado para justificar a absolvição dos réus agentes privados (absolvidos em 11% dos casos) vs. dos réus agentes públicos (absolvidos em 35% dos casos): na hipótese dos agentes do Estado, com maior frequência lançou-se mão da falta de robustez de provas para não condenar por tortura (47% dos casos) do que na hipótese de particulares (apenas 28% dos casos).[21]

ntende-se que o adequado em um Estado Democrático de Direito é amealhar provas sólidas que embasem a condenação, contudo, o que se nota é que essa rigidez é exigida em alguns casos e em outros não. A hipótese que surge aqui é de que tal exigência rígida esteja vinculada ao perfil do acusado e da vítima, já que a pesquisa mostrou diferenciação na forma como o sistema de justiça opera e interpreta a produção de provas em função de o réu ser um agente público ou particular e de a vítima ser uma pessoa acusada pela prática de outro crime ou não.

 3.2.1 O exame de corpo de delito nos crimes de tortura

A perícia é a modalidade de prova que se destina a atestar os vestígios físicos deixados pelo delito, ou, em outras palavras, provar sua materialidade. Havendo vestígios da violência, o próprio Código de Processo Penal obriga a realização do exame de corpo de delito (art. 158).

Muitas vezes os ferimentos e lesões desaparecem até a data da realização da perícia e ensejam a realização de exame indireto de corpo de delito. Outras tantas, atos violentos, apesar de caracterizarem tortura, são desferidos, propositadamente, de maneira a não deixarem vestígios ou apenas leves escoriações na pele da vítima. Assim sendo, é de vital importância que os médicos legistas descrevam o mais detalhadamente possível todos os ferimentos, internos e externos existentes, bem como relacionem as lesões e sintomas com o histórico relatado pela vítima, criando laço de causalidade entre o fato e as consequências físicas deixadas por ele (Goulart, 2001, p. 99 e 101).

Da leitura dos 455 acórdãos colhidos na pesquisa “Julgando a tortura”, percebeu-se que a existência de laudo pericial constatando a ocorrência de lesões graves foi considerada elemento indispensável por muitos julgadores para a prolação de sentença condenatória, de modo que a ausência de exame pericial ou a existência de laudo constatando a ocorrência de lesões leves justificou a absolvição de muitos agentes e também a desclassificação de 10% das condutas para, por exemplo, o crime de lesão corporal ou maus tratos.

Vê-se que a prova da gravidade da lesão está associada com a interpretação dada pelo julgador ao “intenso” sofrimento. Uma lesão grave demonstra que o sofrimento foi grande. Já uma lesão leve pode representar que o sofrimento não tenha sido grave. Contudo, o resultado da lesão é um dado relevante, mas não único para atestar a quantidade de sofrimento sentido pela vítima, uma vez que há técnicas de tortura desenvolvidas justamente para deixar poucos vestígios ao mesmo tempo em que produzem intenso sofrimento.

A pesquisa se deparou com casos que fugiam a regra, como o em que um desembargador afirmou que “o fato de não ter o ofendido apresentado lesões graves não descaracteriza o crime. Houve lesões corporais e morais. O ofendido foi humilhado e espezinhado. Pisaram em seu corpo. Obrigaram-no a comer terra. Vilipendiaram sua dignidade”.[22]

Em outros casos, no entanto, o exame pericial foi considerado condição sine qua non para a comprovação do crime: “O exame pericial é prova fundamental para a condenação do crime de tortura e as provas testemunhais não têm o condão de substituí-lo”.[23]

Há, ainda, os casos em que mesmo com a prova pericial a tortura não é punida. Vejamos:

"Embora os adolescentes tenham realmente sofrido lesões, como se constata das fotografias e laudo pericial de exame de corpo de delito acostados aos autos, sendo também harmônicas suas versões face ao conteúdo fático da denúncia (...) e também em relação à informação prestada pela própria vítima do roubo, onde admitiu a ocorrência das agressões perpetradas pelos policiais, contrastando às negativas veementes dos réus, acertou a r. sentença ao desclassificar, em emendatio libelli, o delito para a figura penal do abuso de autoridade".[24]

 A problemática que decorre diretamente da valorização dos exames periciais é a vinculação dos Institutos Médicos Legais à Secretaria de Segurança Pública, o que faz com que os condutores e, mais grave ainda, os responsáveis pela realização da perícia, pertençam à mesma instituição que os agentes públicos acusados de tortura. Como garantir a idoneidade do laudo nesse caso? Como ter certeza de que o corporativismo não influenciou o resultado do laudo? Como deixar a vítima à vontade, expondo-a exatamente aos seus algozes? Nas palavras de França, a desvinculação é necessária:

"(...) pela incidência quase generalizada da violência e do arbítrio dos órgãos de repressão, (...) pela possibilidade de se estabelecer pressões, (...) pela oportunidade de se levantar dúvidas na credibilidade do ato pericial. A polícia que prende, espanca e mata é a mesma que conduz o processo". (França, s.d.).

Sobre o investimento em investigação por parte dos Estados e a necessária autonomia dos órgãos periciais já se posicionaram a ONU, no Protocolo de Istambul (arts. 3.º e 78), e também o CNJ, na Resolução 49, de 1.º de abril de 2014.

Também nesse sentido as recomendações feitas ao final da pesquisa “Julgando a tortura” endereçadas ao CNJ e ao CNMP que apregoam que se deve (p. 64-67):

"Assegurar que o condutor das vítimas de tortura para o local da realização de provas periciais não seja membro da mesma carreira do acusado.

Assegurar a existência de ambientes seguros, que garantam total segurança às vítimas, tanto para denunciar atos de tortura quanto para produzir provas no decorrer do processo judicial;

Incitar a realização de perícias psicológicas para avaliar possíveis torturas que não tenham deixado 'marcas' físicas, mas, mesmo assim, tenham causado resultados nocivos às vítimas".

Há, ainda, recomendação para o Executivo Estadual nos seguintes termos (p. 70): "Assegurar a independência do órgão pericial criminal, deslocando-o da Secretaria de Segurança Pública e alocando-o em órgão que lhe confira autonomia com relação às forças de segurança".

Continuando a linha de raciocínio, nos casos de prova pericial França descreve que os requisitos mínimos a serem cumpridos para averiguar a tortura são: “1) valorizar o exame esquelético-tegumentar; 2) descrever detalhadamente a sede e as características dos ferimentos; 3) registrar em esquemas corporais todas as lesões encontradas; 4as lesões e alterações existentes nos exames interno e externo; 5) detalhar em todas as lesões, independente do seu vulto, a forma, idade, dimensões, localização e particularidades; 6) radiografar, quando possível, todos os argumentos e regiões agredidos ou suspeitos de violência; 7) examinar a vítima de tortura sem a presença dos agentes de poder; 8) trabalhar sempre em equipe; 9) examinar à luz do dia; 10) usar os meios subsidiários disponíveis”. (França, s.d.).

Algumas modalidades de tortura, contudo, não deixam marcas, vestígios ou sequer agridem o corpo humano em sua esfera física, mas, sim, em sua esfera psíquica – como é o caso da tortura psicológica. Explica Vanessa Goulart que “os sintomas psicológicos da tortura mais comuns são a ansiedade, depressão, irritabilidade, paranoia, sentimento de culpa, desconfiança, disfunção sexual, perda de concentração, confusão, insônia, pesadelos, desilusão, debilidade e perda da memória”.  (Goulart, 2001, p. 105).

Ainda, importante dizer que na leitura dos acórdãos dos Tribunais de Justiça brasileiros que ensejaram a realização da pesquisa, apareceram diversos casos de tortura psicológica, como o caso em que adolescentes infratores foram forçados a tomar banho e ficar a noite inteira molhados,[25] rçadas a comer fezes e aplicar acetona em suas genitálias[26] e o em que os estudantes foram obrigados por policiais a praticar sexo anal e oral e a urinar um em cima do outro.[27] Não se pode admitir que tais crimes sejam menos graves do que aqueles que deixam marcas físicas e visíveis nos corpos, posto que, à sua maneira, também deixam marcas e cicatrizes nas vítimas.

3.2.2 A palavra da vítima nos crimes de tortura

Quanto aos sistemas de avaliação da prova, o ordenamento jurídico brasileiro adotou, como regra, o sistema do livre convencimento motivado, segundo o qual o magistrado tem ampla liberdade para valorar as provas dos autos (que legal e abstratamente têm todas o mesmo valor), mas, por outro lado, tem o dever de fundamentar sua decisão – com base nas provas coligidas aos autos (art. 93, IX, da CF). Não coube ao legislador conferir valor prévio aos meios de provas (sistema da prova tarifada) – como no passado se observava com relação à confissão, então intitulada a “rainha das provas”. Tampouco pode o magistrado decidir sem fundamentar (sistema da íntima convicção), prática adotada excepcionalmente para o procedimento do Tribunal do Júri, no qual os membros do Conselho de Sentença, formado por cidadãos, limitam-se a responder “sim” ou “não” aos quesitos formulados, sem exigir-lhes que apresentem justificativas.

Assim é que o depoimento do ofendido, um dos meios de prova previstos pelo CPP (art. 201), também deverá ser livremente valorado pelo magistrado, quando da prolação da sentença.

Contudo, no que tange ao delito de tortura, a prática forense tem conferido valor inferior à palavra da vítima em relação às demais provas, seja em razão do envolvimento direto da vítima com os fatos (o que lhe desperta sentimentos e interesses), seja em razão de não prestar compromisso de dizer a verdade (o que lhe permite mentir sobre os fatos, sem que recaia sobre ela qualquer punição) (Lopes Jr., 2014, p. 668).

Na maioria das vezes, a tortura, por ocorrer em locais ocultos, é cometida sem a presença de outros observadores ou testemunhas do ato. Assim, normalmente, a única pessoa apta a descrever os tormentos e sofrimentos é a própria vítima – já que o perpetrador dificilmente se disporá a fazê-lo (Goulart, 2001, p. 115). Nesse sentido, cita-se como exemplo, o acórdão que desacredita que a tortura tenha sido praticada por um PM contra um homem suspeito do cometimento de outro crime, justamente pela ausência de outras testemunhas a corroborarem a versão da vítima: “Os elementos probatórios evidenciam-se confusos e contraditórios. As testemunhas ouvidas não presenciaram o suposto espancamento.”[28]

Mas quem é a vítima de tortura? Giffard explica que qualquer pessoa pode ser vítima de tortura, independentemente de gênero, idade, crença religiosa, grau de intelectualidade ou outras características. Ainda, desmistifica a ideia de que somente a tortura dos presos políticos deve ser denunciada:

Os criminosos comuns, principalmente os acusados de crimes graves, tipicamente são vítimas de tortura, talvez com o objetivo de se obter informação ou uma confissão ou, simplesmente, para fins de extorsão ou intimidação. Quando o objetivo é espalhar o terror entre uma população, todos correm perigo. É muito importante não dar a impressão de que só os 'presos políticos' estão em situação de risco, centrando-se a atenção neles e excluindo-se as outras vítimas que também podem estar muito expostas ao risco" (Giffard, 2001, p. 29).

Na mesma esteira, Maria Gorete Marques de Jesus expõe que: "A nossa cultura jurídica atribui especial valor ao depoimento da vítima quando se trata de pessoas consideradas 'idôneas' ou com considerável condição social. Neste último caso, normalmente as vítimas são crianças e adolescentes. O depoimento de ambas é de grande valor para a responsabilização do acusado. Nos casos em que a vítima é um suspeito criminoso, preso ou adolescente em conflito com a lei, cujos acusados são agentes do Estado, seu depoimento é posto sob dúvidas e questionamentos, quase sem credibilidade, mesmo com depoimento rico em detalhes e provas das torturas. O referido questionamento é frequente e nos faz pensar que nesses casos não se julga o fato criminoso, mas a própria vítima". (Jesus, 2009, p. 15).

Na pesquisa “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010)”, como já anteriormente mencionado, 31% dos casos de tortura ocorreram em local de contenção ou privação de liberdade, o que denota o fato de que, muitas vezes, a única prova existente sobre a tortura poderá ser a própria palavra da vítima.

Goulart e Marques advertem para a indevida falta de valor e peso que assume essa palavra – a primeira alertando para o fato de que muitas vezes as vítimasa tortura são pessoas extremamente simples, desconhecedoras de seus direitos, com marcas de vulnerabilidade social, presas ou portadoras de maus antecedentes, o que lhes confere, inadvertidamente, falta de credibilidade (Goulart, 2001, p. 116-117), e o segundo alertando para a prevalência da confissão no processo penal como prova mestra (Marques, 2014, p. 119). Dos casos analisados na pesquisa “Julgando a tortura”, 51% do total de vítimas eram homens, sendo 21% deles homens considerados suspeitos da prática de algum tipo de crime e 9% deles pessoas presas.

O excerto extraído de um acórdão analisado, e transcrito a seguir, traz justamente essa ideia de subestimação da palavra da vítima: "Reconheço e sei que não podemos compactuar com a violência policial, mas também não se pode condenar policiais somente com a palavra da vítima, sobretudo, em se tratando de um detento e nós sabemos pela experiência, pelo menos eu tenho essa experiência, fui promotor, fui membro do conselho penitenciário e sei que na penitenciária só tem anjo. Quando se chama para ouvir, ninguém cometeu nada, todo mundo é vítima. Na pior das hipóteses é vítima da sociedade".[29]

Muitas vezes, mesmo quando se reconhece o valor da palavra da vítima como prova, esta é colocada em segundo plano relativamente às demais. Vejamos como narra o desembargador no caso concreto: "Nos delitos de natureza clandestina, a palavra da vítima tem especial relevância, porque praticados às ocultas, mas a sua aceitação, como prova bastante, não deve estabelecer choque com as demais produzidas, principalmente com relação a pontos determinantes, pelo confronto com documentos juntados aos autos, revelando conflito entre os elementos de convicção amealhados, ao que não se torna prestante ao desate condenatório da ação penal".[30]

Ainda, existem as situações em que apesar de haver outras provas que comprovem a materialidade, a palavra da vítima tem tão pouco valor na prova de autoria que o caso acaba não esclarecido. Foi assim decidido:

Concentro-me, para julgar o presente recurso, no exame da prova. Não tenho nenhuma dúvida acerca da ocorrência das lesões. Essas restam efetivamente demonstradas no exame pericial competente. O mesmo eu não posso dizer quanto à autoria. Em relação a esta, instala-se no meu espírito uma dúvida irremissível. Ocorreram as lesões leves descritas na denúncia. Porém, como ocorreram tais lesões? Quem as causou? Esta é a dúvida insolúvel que a instrução do processo não logrou dissipar. Na realidade o que nós temos neste processo, em termos de autoria, é: de um lado a afirmação das vítimas (réus em tantos outros processos), de que os policiais que os prenderam teriam causado as lesões sobreditas. De outra parte, a palavra desses mesmos policiais no sentido de que não praticaram essa violência. Isso me faz lembrar JEAN-PAUL SARTRE, na sua obra intitulada Sequestrados de Altona, quando ele dizia o seguinte: 'todas as vidas se equivalem, mas no confronto entre a sua vida e a minha vida, a minha vale mais para mim e a sua vale mais para você'. E aí Vossas Excelências devem estar pensando: mas aqui não se trata de nenhum problema de confronto de vida. Não estou confrontando vidas, mas onfrontando palavras.[31]

Por fim, interessante refletir que muitas vezes é justamente para obter uma confiss[32] e determinado delito que a vítima é torturada, de forma que sua palavra apresenta pesos distintos para o sistema acusatório brasileiro: é altamente valorada quando esboça uma confissão, mesmo que inverídica e obtida sob tortura, e é pouco levada em conta no momento de provar essa tortura.

3.2.3 A palavra do acusado nos crimes de tortura

Por outro lado, como recebem os juízes e os outros operadores do Direito a palavra dos policiais militares, policiais civis, agentes carcerários ou delegados de polícia? Não obstante os frequentes relatos de abusos cometidos pela instituição e até mesmo pela recomendação da Organização das Nações Unidas para que a polícia do Brasil reveja sua postura de atuação e/ou seja extinta,[33] parece ainda haver, dentro do processo penal, uma presunção de boa-fé das palavras dos policiais e de outros membros da polícia administrativa ou judiciária.

Por exemplo, disse um desembargador que: “Também sou contra a tortura, como todos nós somos, mas também não podemos aceitar qualquer ato de um policial como sendo tortura”.[34]

Em Minas Gerais, posicionamento parecidoque trata de policiais militares vs. adolescentes infratores: “É inegável que os atos das autoridades policiais ou de seus agentes podem ser, por vezes, violentos, dependendo das circunstâncias, não havendo que se falar em ilegalidade quando se revelem necessários para o controle da ordem e da segurança públicas”.[35] Na sequência de sua fala, o desembargador condena a violência excessiva e o abuso de autoridade, mas é fato que entende que alguma dose de violência pode ser empregada pelos agentes públicos.

No mesmo Tribunal de Justiça mineiro, outro é o exemplo, há posicionamento sobre o respeito de que gozam os policiais civis: "Não descreio que uma boa ação policial pode exterminar a violência que campeia em todos os locais e sobretudo nos grandes centros, onde os marginais se armam com armas mais poderosas e eficientes que as da polícia. Por isso, a atuação para impedir a disseminação do crime não é exclusividade do policial violento, porque este depõe contra a classe, mas sobretudo do policial ciente de seu dever de promover um trabalho para alcançar a paz e o bem estar da comunidade. Afirmar-se que o policial, visto como bom pela comunidade, é violento e torturador representa imputação grave que só pode ser crida se amparada em prova clara, até mesmo em respeito à autoridade de que se acha investido".[36]

Para se defenderem das acusações de tortura existem declarações recorrentes e comuns por parte dos policiais, os quais normalmente tentam imputar possíveis marcas físicas deixadas nas vítimas à sua própria autolesão ou à falta de boa sorte que tiveram ao se machucar de outra maneira. Assim explica Maria Gorete Marques de Jesus, para quem “as justificativas mais comuns apresentadas pelos acusados são de que a vítima escorregou, envolveu-se em briga com outras pessoas ou presos, sofreu acidente, caiu porque estava bêbado, ou que a vítima apresenta certa contrariedade com relação ao acusado tão somente para incriminá-lo ou responsabilizá-lo utilizando-se de auto-agressões”. (Jesus, 2009, p. 150).

3.3 O lugar da tortura

Uma peculiaridade que envolve o crime de tortura é o seu local de cometimento, já que, “normalmente, a sessão de suplícios é feita em locais fechados” (Goulart, 2001, p. 4), o que dificulta sua publicidade e, consequentemente, posterior comprovação.

Sendo assim, apesar de a tortura ocorrer em qualquer lugar, alguns lugares são considerados de alto risco, quais sejam, aqueles mais ocultos e, assim, mais aptos para possibilitar detenções ou interrogatórios (Giffard, 2000, p. 29-30). Confirma essa informação a seguinte frase prolatada por um desembargador paulista: "Evidente que o crime de tortura quase sempre ocorre às ocultas (...)”.[37] Na mesma linha, enuncia outro acórdão, ao dizer que: "Evidentemente, pela natureza do delito, dificilmente o réu o praticaria na presença de qualquer pessoa (...)".[38]

Na pesquisa “Julgando a Tortura”, as residências (33%) e os locais de detenção como prisões, delegacias, unidades de internação, etc. (31%), foram os lugares onde mais ocorreu tortura, seguidos das vias públicas (16%).[39] Tais dados apresentam relação direta com os perpetradores da tortura, tendo sido possível relacionar um maior número de casos em que a prática de tortura em residências teve como autores pessoas que se encaixavam na categoria “agentes privados”, e a prática de tortura em locais de detenção e nas vias públicas teve mais frequentemente como autores pessoas que se encaixavam na categoria “agentes públicos”.

O fato de na maioria das vezes a tortura ocorrer em locais escondidos influi na escassez de provas testemunhais que normalmente se têm nos processos envolvendo esse delito. Frequentemente ausentes, mas quando existentes, outros possíveis observadores muitas vezes não relatam a tortura, especialmente quando ela é cometida por agentes públicos, já que as potenciais testemunhas são colegas de trabalho do agressor ou outras pessoas sob sua custódia, o que o coloca em risco de sofrer represálias. Desse modo, a prova testemunhal – como já argumentado supra – é extremamente rara em casos ocorridos em locais de privação de liberdade.

4. Considerações finais

No processo penal, o ônus da prova cabe inteiramente ao órgão acusatório, por força do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5.º, LVII, da CF). Até que se prove o contrário, somos todos inocentes. Frise-se: não cabe ao acusado provar que é inocente, mas sim à acusação provar que é culpado. A prolação de uma sentença condenatória está, portanto, diretamente relacionada à capacidade de os órgãos competentes coletarem elementos contundentes acerca da prática do crime. Assim é que a ausência ou insuficiência de provas sempre deve redundar na absolvição do réu (princípio do in dubio pro reo, contido no art. 386 do CPP).

No crime de tortura, percebe-se que, em muitos casos, o ônus de provar acaba recaindo sobre a vítima, cuja palavra, apesar de muitas vezes acompanhada de riqueza de detalhes, não é considerada suficiente pelo Judiciário.

Tem sido praxe apontar que é necessário diminuir o abismo existente entre o que asseguram a Constituição Federal, a legislação pátria e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos sobre tortura e a realidade existente nas cadeias, presídios, residências e vias públicas brasileiras. O caminho para tanto não é simples nem se resolverá com atitudes simplistas. Trata-se, pois, de um problema complexo, sistêmico e estrutural do Estado brasileiro.

A produção de provas, dentre outras atitudes, é essencial para que os casos de tortura possam ganhar visibilidade e serem processados pelo sistema penal pátrio. Produzir prova, afinal, não é apenas narrar os fatos acontecidos, mas fazer com que as autoridades competentes acreditem em sua veracidade (Maia, 2006, p. 236).

Referências bibliográficas

França, Genival Veloso de. A perícia em casos de tortura. Seminário Nacional Sobre a eficácia da lei da tortura [s.n.t]. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2015.

Giffard, Camile. Manual de denúncia da tortura: como documentar e apresentar denúncias de tortura no âmbito do sistema internacional para a proteção dos direitos humanos. Reino Unido: Universidade de Essex, 2000.

Goulart, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no processo penal. Dissertação de Mestrado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001.

Jesus, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado em Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009.

_______ (coord.). Prisão provisória e a lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2011.

Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, vol. I.

Lopes Jr., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

Maia, Luciano Mariz. Do controle judicial da tortura institucional no Brasil hoje. Tese de Doutorado em Direito. Pernambuco: Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

Marques, Carlos Henrique Alvarenga Urquisa. Tortura: de método a crime. Dissertação de Mestrado em Direito. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2014.

Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Diagnóstico da perícia criminal no Brasil. Brasília, 2012.

Salla, Fernando; Alvarez, Marcos César. Apontamentos para uma história das práticas de tortura no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 63, p. 277, nov. 2006.

Salla, Fernando; Cardia, Nancy. Um panorama da tortura no Brasil. In: Cardia, Nancy; Astolfi, Roberta (Orgs.). Tortura na era dos direitos humanos. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2014.

[1] Exatamente, diz o autor que: “No processo penal, há três acepções da palavra prova: 1) prova como atividade probatória – consiste no conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para o julgamento. (...) 2) prova como resultado – caracteriza-se pela formação da convicção do órgão julgador no curso do processo quanto à existência (ou não) de determinada situação fática. (...) 3) prova como meio – são os instrumentos idôneos à formação da convicção do órgão julgador acerca da existência (ou não) de determinada situação fática”.

[2] Ver Diagnóstico da Perícia Criminal no Brasil (SENASP, 2012).

[3] No total da pesquisa, foram encontradas 800 vítimas de crimes de tortura, sendo: 21% homens, 21% homens suspeitos da prática de algum crime, 20% crianças, 13% adolescentes, 9% homens presos (conforme citado no corpo do texto), 8% mulheres, 1% mulheres presas e 7% outros ou sem identificação possível. Para saber mais, consultar as páginas 27-31.

[4] Para saber mais, consultar páginas 35-38 do relatório.

[5] Relatório sobre tortura: Uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para a prevenção da tortura. Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/10/Relatorio_tortura_revisado1.pdf.

ONU, Subcomitê de prevenção da tortura e outros tratamentos cruéis e ou penas cruéis e desumanos, ou degradantes. Disponível em: http://www.onu.org.br/img/2012/07/relatorio_SPT_2012.pdf.

[6] Inteiro teor disponível em http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Julgando%20a%20tortura.pdf. Último acesso em 05 de março de 2015.

[7] ACAT – Brasil, Conectas Direitos Humanos, IBCCrim, Núcleo de Estudos de Violência-NEV-USP e Pastoral Carcerária Nacional, , , foram as organizações envolvidas na realização dessa investigação.

[8] Acórdão n.1 do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, em que um policial militar foi absolvido da imputação de tortura contra um homem preso.

[9] Acórdão 540658-8 do Tribunal de Justiça do Paraná, em que policiais militares foram absolvidos da imputação de tortura, com o emprego de queimaduras, contra um adolescente.

[10] Acórdão 1.0470.03.013646-4/001(1) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

[11] Acórdão 0172773-9 do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

[12] Acórdão 4038644320098090000200904038640 do Tribunal de Justiça de Goiás.

[13] Acórdão 5.050 do Tribunal de Justiça do Acre.

[14] Acórdão 0184972-3, do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

[15] Acórdão 0200505-4 do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

[16] Acórdão 01456/06 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

[17] Acórdão 333270213200801561226 do Tribunal de Justiça de Goiás.

[18] Acórdão 20098048 do Tribunal de Justiça de Sergipe.

[19] Acórdão 200805002350 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

[20] Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, 1984 (art. 1.º). Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, 1985 (art. 2.º). Dentre outros documentos internacionais.

[21] Para mais detalhamento, consultar as páginas 57-59 do relatório completo disponível em . Último acesso em: 27 mar. 2015.

[22] Acórdão 200805002350 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

[23] Acórdão 20087503 do Tribunal de Justiça de Sergipe.

[24] Acórdão 1293848 do Tribunal de Justiça de São Paulo.

[25] Acórdão 10384 do Tribunal de Justiça do Amapá.

[26] Acórdão 200705006714 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

[27] Acórdão 200.2003.029526-1/001 do Tribunal de Justiça da Paraíba.

[28] Acórdão 42710456 do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

[29] Acórdão 15112 do Tribunal de Justiça do Amapá.

[30] Acórdão 364408213200902362261 do Tribunal de Justiça de Goiás. Obviamente existem alguns posicionamentos ocasionais em contrário, a exemplo do presente no acórdão 20062540 do estado de Sergipe: "(...) todos os cidadãos, incluindo os de alta periculosidade, estão protegidos pelos princípios traçados na Carta Magna, sendo mandamento de uma das cláusulas da Norma o princípio de ninguém será submetido a tortura, sendo assegurado a todos, sem qualquer distinção, tratamento do Estado com dignidade e em consonância com a Lei”. No mesmo estado, mas no acórdão 20089014 também há decisão interessante dizendo que: "Outrossim, não se pode olvidar que a tortura é crime que se pratica dentro de unidade prisional, contando com a presença apenas dos próprios agentes policiais, autores da prática delitiva, da vítima e, às vezes, de outros presos. É prática que se faz às escondidas, sendo necessário aplicar nestes casos a mesma linha de raciocínio aplicada nos crimes sexuais, nos quais geralmente há apenas a palavra da vítima."

[31] Acórdão 20107074 do Tribunal de Justiça de Sergipe.

[32] A pesquisa “Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010)” constatou que quando a tortura é utilizada como meio de obtenção de confissão ou informação, aparecem como autores, na maioria dos casos, os agentes públicos (65,6% dos casos). Já quando a tortura é utilizada como forma de castigo, apareceram como autores dessa violência, primordialmente, os agentes privados (61% dos casos) (p. 37-39).

[33] Essa foi uma das 170 recomendações que os membros do Conselho de Direitos Humanos aprovaram em maio de 2012 como parte do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil.

[34] Acórdão 14629 do Tribunal de Justiça do Amapá.

[35] Acórdão já anteriormente citado: 1.0470.03.013646-4/001 (1) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

[36] Acórdão 1.0267.04.910501-3/001 (1) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

[37] Acórdão 2443203 do Tribunal de Justiça de São Paulo.

[38] Acórdão 001.2005.021336-0/002 do Tribunal de Justiça da Paraíba.

[39] Para mais detalhamento, conferir páginas 35-37.

Mayara Gomes

Mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC.

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Advogada.

Nathércia Cristina Manzano Magnani

Mestre em Direito pela PUC-SP.

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Advogada do Núcleo de Prática Jurídica (setor de Projetos Sociais) da PUC-SP.

Paula Ramos

Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Bacharel em Direito pela PUC-SP.

Advogada.

Vivian Calderoni

Mestre em Criminologia e Direito Penal pela USP.

Bacharel em Direito pela USP.

Advogada do programa de justiça da ONG Conectas Direitos Humanos.

Artigo
Os crimes preterdolosos e a cooperação dolosamente distinta no Código Penal brasileiro
Data: 24/11/2020
Autores: Rafael Santos Soares

Resumo:  Este trabalho foi desenvolvido a partir dos estudos para a elaboração da monografia de conclusão do curso de graduação do autor, sob orientação da Prof. Dra. Daniela de Freitas Marques, apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, tendo sido avaliada com nota máxima por todos os membros da Banca Examinadora. Ao longo deste artigo, serão estudados o conceito e a conformação histórica do instituto da cooperação dolosamente distinta a partir da disciplina legal do concurso de pessoas no Código Penal do Brasil. Essas reflexões contribuirão para solucionar algumas controvérsias existentes na aplicação da cooperação dolosamente distinta aos crimes preterdolosos.

Palavras-chave: Código Penal brasileiro; concurso de pessoas; elementos; cooperação dolosamente distinta; crimes preterdolosos.

Abstract: This work was developed from the studies that the author did for his undergraduate course’s monograph, under the guidance of Dr. Daniela de Freitas Marques, presented at the “Universidade Federal de Minas Gerais”, having received maximum grade of all the members of the Examining Board. Throughout this article, it will be studied the concept and the historical conformation of the institute of “different perpetrators’ intents” by the legal discipline of the criminal conspiracy in Brazilian Penal Code. These reflections will help to solve some controversies in the implementation of the institute in the crimes “of deliberate action with negligent results”.

Keywords: Brazilian Penal Code; conspiracy; requirements; “different perpetrators’ intents”; “crimes of deliberate actions with negligent result”.

Sumário: 1. Introdução – 2. Requisitos do concurso de pessoas na teoria unitária – 3. A cooperação dolosamente distinta: 3.1 Conceito; 3.2 As críticas doutrinárias à solução que a regra da cooperação dolosamente distinta oferece aos crimes preterdolosos. 3.3 Cooperação dolosamente distinta no crime de latrocínio: o critério da especialidade da norma como forma de solução de uma antinomia aparente – 4. Conclusões – 5. Referências bibliográficas.

1. Introdução

É indiscutível que a reforma legislativa promovida em 1984, na parte geral do Código Penal, contribuiu para a mitigação da responsabilização penal objetiva que, até então, se verificava no tratamento da cooperação dolosamente distinta no Brasil.

O antigo parágrafo único do art. 48 do Código Penal de 1940, disciplinava a punição daquele que “quis praticar crime menos grave” impingindo-lhe a sanção do delito de maior gravidade, contudo, atenuada em razão do elemento subjetivo do agente.

Dentre os que elogiaram as alterações na lei está René Ariel Dotti, um dos membros da comissão elaboradora do anteprojeto, para quem a “necessidade em se ajustar a pena à medida da culpa foi, inegavelmente, o ponto de arranque para a proscrição dos vestígios da responsabilidade objetiva em matéria de concurso de pessoas”.[1]

Entretanto, a nova regulamentação do instituto da cooperação dolosamente distinta, introduzida pela Lei 7.209/1984, também recebeu severos questionamentos de parcela da doutrina.

O renomado Damásio Evangelista de Jesus, resignado por acreditar que o art. 29, § 2.º, segunda parte, acabou por beneficiar, injustificadamente, o concorrente que desejou cometer crime de menor gravidade, nos crimes cujo resultado mais grave advém da culpa de seu executor (preterdolosos), chegou a afirmar que: “creio que esse § 2.º foi feito às pressas e vai causar problemas terríveis de interpretação”.[2]

E essa previsão de Damásio, feita em 1985, se consuma até os dias atuais, sendo comprovada a partir de uma simples consulta aleatória ao repertório doutrinário e jurisprudencial nacional. Neles se encontram discursos e acórdãos que parecem confundir conceitos basilares, resultando em uma hermenêutica errônea acerca da aplicabilidade do aludido dispositivo legal aos crimes puníveis a título de preterdolo, como por exemplo, a lesão corporal seguida de morte e o latrocínio.

Neste trabalho serão elencadas algumas dessas controvérsias que os operadores do direito enfrentam ao tratarem da cooperação dolosamente distinta, quando confrontada com um delito preterintencional.

A partir da delimitação do conceito do instituto, demonstrar-se-ão que algumas das críticas são, data venia, infundadas.

Ademais, esta pesquisa também possui o objetivo de contribuir para o esclarecimento dos equívocos de interpretação nos quais incorrem alguns magistrados ao se depararem com essas questões, porquanto podem resultar em majoração indevida da pena do agente, sobretudo quando se opta por aplicar a regra geral do art. 19 do CP em detrimento da norma especial contida na parte final do § 2.º do art. 29 do CP.

A conclusão daí extraída aplicar-se-á a qualquer crime preterdoloso, não se restringindo aos exemplos colhidos a título de ilustração.

A metodologia empregada no estudo é predominantemente hermenêutica, lançando-se mão dos critérios de interpretação de normas jurídicas (gramatical e sistemático) e de solução de antinomias aparentes (especialidade), formulados para o Direito, além da pesquisa teórica.

Delimitado o tema e expostas, sucintamente, as questões que se pretende abordar no presente estudo, bem como as conclusões a que se chega com a pesquisa, passa-se à imediata verificação dos requisitos do concurso de agentes (segundo a teoria unitária), com a consequente extração do conceito de cooperação dolosamente distinta, esclarecimentos fundamentais para o juízo que se pretende com o estudo.

2. Requisitos do concurso de pessoas na teoria monista

A mais relevante modificação no tema da codelinquência, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro em 1940, e mantida na reforma da parte geral de 1984, refere-se à adoção da teoria unitária – ou monista – do injusto, que tem suas raízes no Código Penal norueguês de 1902.

Foi a primeira vez na história do Brasil que se aboliu o critério de distinção entre autoria e cumplicidade, extirpando-se a teoria dualista consagrada nos Códigos Criminais do Império (1830) e no Código Penal de 1890.

Na Exposição de Motivos do Código Penal de 1940 justificou-se a opção pelo monismo fundamentando-o em uma concepção causal de autoria. Na época, o Ministro da Justiça Francisco Campos enunciou a novidade da teoria unitária ressaltando que:

“Quem emprega qualquer atividade para a realização do evento criminoso é considerado responsável pela totalidade dele, no pressuposto de que também as outras forças concorrentes entraram no âmbito da sua consciência e vontade. Não há nesse critério de decisão do projeto senão um corolário da teoria da equivalência das causas, adotada no art. 11.”[3]

Passou a vigorar, portanto, desde o Decreto-lei 2.848/1940, uma disciplina legal do concurso de agentes que equipara, em princípio, todos os concorrentes da infração penal, sejam eles autores ou partícipes. Dessa forma, o conceito extensivo de autor do então art. 25 nada mais era que um corolário da teoria da equivalência dos antecedentes causais, expressa na regra do art. 11 do CP de 1940, segundo a qual as diversas intervenções na cadeia causal, dirigidas ao mesmo fim, tipificam um só delito. Assim, inexiste distinção, a priori, entre autores e partícipes.

Narra o eminente Nelson Hungria que esse modelo escandinavo de regulação da codelinquência acabou se tornando tendência no Direito Penal moderno e inspirando os Códigos italiano e dinamarquês, ambos de 1930. Tal fato reforça as declarações que sugerem que o Código Penal de 1940 tenha se espelhado no Codice Rocco, elaborado na época de ascensão do fascismo na Itália.[4]

Em 1984, como visto, foi sancionada a Lei 7.209, que instituiu a reforma na parte geral do Código Penal, alterando alguns dispositivos, dentre eles, o que regulamentava a cooperação dolosamente distinta. Contudo, a teoria monista permaneceu íntegra, já que a norma do art. 25 do Código Penal de 1940 foi repetida em sua literalidade no art. 29 da atual legislação.

Da teoria unitária, em vigor atualmente, é possível deduzir os requisitos para o concurso de pessoas. De um modo geral, a doutrina aponta que eles consistem em quatro pressupostos fáticos:

a) Pluralidade de agentes e de condutas: para ocorrência do fenômeno do concurso de pessoas é imprescindível haver pluralidade de agentes e de condutas. A ação de cada consorte poderá ser comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa (para os que admitem a coautoria em crime culposo). Tratando-se de conduta omissiva faz-se indispensável que o agente tenha o dever jurídico de impedir o resultado. Caso contrário, estará desvinculado da coautoria ou participação na infração penal. A sua conivência, ainda que evidenciada, não se pune.[5] Entretanto, não é qualquer comportamento humano que ensejará o aperfeiçoamento do concurso de pessoas. Entra em cena, então, o segundo requisito.

b) Relevância causal da conduta na produção do resultado delituoso: a conduta dos indivíduos deverá contribuir de alguma forma para a produção do fato típico. Deve haver, assim, nexo causal entre a ação de cada concorrente e o resultado delituoso por eles provocado. Com isso não se quer dizer que todos devam praticar atos executórios. Há nexo causal na conduta do partícipe que empresta a arma para outrem efetuar disparos letais provocando homicídio. A ação de cada interveniente poderá, inclusive, ser, por si só, atípica. É o caso de alguém que estimula outrem a delinquir. Não há tipo penal que incrimine a conduta de aconselhar outro indivíduo a cometer um crime. Isso só se torna um ilícito em razão da norma de extensão do concurso. Se o crime chegou a ser tentado, indubitável que o instigador prestou sua contribuição para a infração e por ela deverá ser responsabilizado em concurso com o autor, a não ser que se prove que o instigado já estava determinado a delinquir. Nesse caso, vale ressaltar as lições de Hungria:

“É bem de ver, outrossim, que a determinação, a instigação ou o auxílio devem ser causalmente eficazes. Se o indivíduo a quem é dirigida a determinação ou a instigação já está firmemente decidido à prática do crime (omnimodo facturus), não há participação, pois, em tal caso, aquelas não são mais que a “abertura de uma porta aberta.”[6]

Não é suficiente, porém, a mera contribuição objetiva para o resultado para que se dê o concurso de pessoas. Não se pode olvidar a situação daquele que coopera no crime de outrem sem saber que isso está acontecendo. É a chamada autoria colateral. Seria ela uma modalidade de concurso de agentes? E a própria cooperação dolosamente distinta? Para responder essas indagações, impõe-se a análise do terceiro e quarto requisitos.

c) Vínculo subjetivo entre os participantes: os agentes do crime devem estar ligados subjetivamente, isto é, devem ter conhecimento de atuar para um fim comum. Nos crimes dolosos a vontade comum refere-se ao próprio injusto. Nos delitos culposos, a consumação do resultado pela coatuação livre e consciente, violando-se um dever objetivo de cuidado, mesmo que voltada a uma finalidade lícita, qualifica, para alguns, o concurso de agentes.[7] Com estas considerações é possível afirmar que a autoria colateral não é espécie de concurso de pessoas. Nesta modalidade de autoria, dois ou mais agentes, conquanto munidos do ânimo de atingir a mesma finalidade, não apresentam a necessária vinculação psicológica, e acabam concorrendo objetivamente, mas sem saber que o fazem em conjunto, para o crime. Para que haja concurso, pelo menos um dos indivíduos deve saber que coopera para prática da mesma infração penal à qual concorre o outro, mesmo que este não saiba que está sendo ajudado. No exemplo de Damásio:

“A, sabendo que B vai matar C e desejando a morte deste, furta-lhe o revólver com o qual poderia se defender. A é partícipe do homicídio. Não obstante B desconhecesse a sua cooperação.”[8]

Portanto, no exemplo supra A atua em concurso, mas não B. Em hipóteses semelhantes, não seria lícito imputar agravante, majorante de pena ou mesmo qualificar crime de concurso necessário se o segundo não tinha conhecimento de que estava sendo auxiliado. Isso quer dizer que, em um caso como o de roubo majorado pelo concurso de pessoas, B responderia por roubo simples, cabendo aumento de pena somente para A, sob pena de responsabilizar-se B objetivamente, já que não possuía consciência do concurso.

Da mesma forma, na cooperação dolosamente distinta, se alguém deseja participar de crime menos grave, não há liame subjetivo que una os concorrentes. Um deseja cometer infração diversa da que pratica outro. Na divergência do elemento subjetivo, também inexiste concurso de agentes. Convém destacar, ainda, que não se exige pactum sceleris ou prévio ajuste para que se identifique o concurso, bastando o conhecimento de integrar a empreitada delitiva comum ou, no mínimo, de saber agir conjuntamente concausando o fato punível.

d) Unidade de infração(ões) ou de finalidade: a doutrina costuma relegar este último requisito sustentando que ele constitui, na verdade, uma consequência do reconhecimento do concurso de pessoas. Não obstante, deve-se dar outra interpretação para exigência de identidade de infração. É ela fundamental para qualificar o concurso de agentes, pois, ocorrendo diversidade, cada qual irá responder por um delito. Portanto, quando se diz que deve haver vinculação psicológica entre os participantes, não é para produção de qualquer resultado, mas sim para a prática do mesmo resultado, da mesma infração penal quando se trata de crime doloso, ou da mesma finalidade, para os que admitem coautoria culposa. Nesse sentido Roberto Lyra afirmava que: “o princípio geral, em matéria de concurso de agentes, é de que a atividade física e moral dos partícipes deve convergir para a produção do mesmo evento”.[9]

Essa consideração, entretanto, é antecipada por quase todos os manuais quando se trata do requisito subjetivo do concurso de pessoas, o que causa um esvaziamento do seu conteúdo e torna irrelevante a discussão acerca deste quarto elemento, imprescindível ao concursus delinquentium. Melhor seria, então, denominar o terceiro requisito de “identidade de vínculo subjetivo” ou “convergência de elemento subjetivo”, o que afastaria o problema.

Caso contrário, poderá até existir alguma ligação subjetiva entre os concorrentes, manifestada na decisão conjunta de optar pelo cometimento de um fato punível, na escolha dos meios e do local da infração, etc. Contudo, se esse vínculo não for idêntico, finalisticamente voltado para a prática da mesma infração penal, não existirá concurso. Daí a importância desse quarto elemento. Na clássica obra de Manzini, a lição sobre o art. 110 do Código Penal italiano de 1930 defendia expressamente o requisito de identidade do delito para o concurso de pessoas:

“O art. 110 exige, para a noção de co-participação delituosa, que várias pessoas concorram no mesmo delito. Requisito essencial do concurso de várias pessoas é, portanto, que a vontade e a atividade desses concorrentes tenha por objeto um delito idêntico”.[10]

Assim, na cooperação dolosamente diversa, a partir do momento em que um dos participantes decide cometer crime mais grave, pode-se dizer que não mais estão presentes os requisitos necessários para qualificar um concurso de agentes em matéria criminal: não há vinculação subjetiva para cometimento da mesma infração, sem o que não pode haver concurso.

A importância das colocações acima se justifica exatamente pela necessidade de se identificar quais seriam os elementos ausentes quando se fala de cooperação dolosamente distinta, imprescindível, também, para a correta delimitação de seu conceito, o que se fará a seguir.

3. A cooperação dolosamente distinta

Pressuposto, pois, para a existência da cooperação dolosamente distinta, é o desvio doloso no momento da realização da conduta proibida, gerando punição diferenciada para o partícipe “dissidente” ou, valendo-se da terminologia empregada por Hungria,[11] dissensiente.

Inexistindo a quebra da identidade do elemento volitivo-psicológico (dolo) e da unidade de infração penal, subsistirá o concurso de agentes.

Destaca-se que a teoria unitária admite essas exceções. Luiz Flávio Gomes as chama de “exceções pluralísticas à teoria monista”[12] e Fernando Galvão assevera a quebra da regra da unidade delitiva pelo legislador, quando regulamentou a cooperação dolosamente distinta.[13]

De fato, impossível reconhecer a existência de concurso de pessoas e, por consequência, aplicar a teoria monista, se na conduta dos concorrentes inexiste convergência de vontades voltadas para uma idêntica finalidade, o cometimento da mesma infração penal, ausentes, pois, o terceiro e o quarto requisitos mencionados.

Assim, o fundamento para a teoria da cooperação dolosamente distinta é a divergência de vontades, manifestada pelo desvio doloso na realização do injusto. Não há identidade de infração: um quer cometer um crime e seu concorrente outro, ensejando a aplicação da norma contida no art. 29, § 2.º, do Código Penal brasileiro, in verbis:

"Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

(...)

§ 2.º Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste".

Em matéria de técnica de redação legislativa, esta é exatamente a função de um parágrafo: excepcionar a regra contida no caput do dispositivo, conforme impõe o art. 11, III, c, da Lei Complementar 95/1998, in verbis:

"Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

(...)

III – para a obtenção de ordem lógica:

(...)

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida."

Demonstrados os pressupostos para a existência da cooperação dolosamente distinta, cumpre delimitar seu conceito.

3.1 O conceito

A associação de pessoas no cometimento do fato punível pode se dar dos mais variados modos: na elaboração do plano criminoso, na prática de atos executórios, na indução, estímulo ou prestação de auxílio a outrem. Enfim, os exemplos são inúmeros.

Múltiplas também são, pois, as formas de cooperação dolosamente distinta, sendo equivocada a denominação utilizada por alguns autores quando se referem a ela restringindo-a aos casos de “mandato criminoso”.[14] Porém, não é somente na nomenclatura que reside o problema: ao tratar do tema, parte dos manuais brasileiros traz, exclusivamente, exemplos que envolvem esse desajuste de vontade expressada na ordem para cometimento de um crime e sua execução (mandato).

Talvez isso se deva a uma questão didática, ou porque a hipótese mais comum de ocorrência do desvio subjetivo de conduta esteja no excesso de mandato, mas o certo é que não se pode balizar a discussão a esta única hipótese, sobretudo quando a própria lei não fez essa restrição.

Para delimitação do aspecto de abrangência da cooperação dolosamente distinta é necessário registrar que a norma contida no art. 29, § 2.º, do CP vai muito além do mandato criminoso.

Por outro lado, também pecam pela simplicidade aqueles que definem a cooperação dolosamente distinta como sendo toda e qualquer situação em que há cooperação objetiva sem convergência de vontades. Este conceito não a distingue da autoria colateral, caso em que podem haver condutas voltadas para uma mesma finalidade sem, contudo, apresentarem motivação que interligue seus autores. Como ensina Rogério Greco: “fala-se em autoria colateral quando dois agentes, embora convergindo as suas condutas para a prática de determinado fato criminoso, não atuam unidos pelo liame subjetivo”.[15]

Por fim, cumpre destacar a acertada opinião de Fernando Galvão, segundo o qual na cooperação dolosamente distinta rompe-se o concurso de agentes, caso em que a causa de aumento pode ser aplicada não somente àquele que inicialmente era partícipe, mas também ao que era, de início, autor.[16]

Enunciados os pressupostos de sua existência e feitas estas considerações, podemos definir a cooperação dolosamente distinta, também chamada pela doutrina de cooperação dolosamente diversa, desvio subjetivo de conduta ou desvio doloso, como sendo: uma situação de exceção à regra monista do concurso de pessoas, pela qual um ou mais agentes, desviando-se dolosamente e passando a atuar sem vinculação psicológica com os outros concorrentes, consuma(m) infração mais grave do que a desejada pelos demais.

Nesse conceito estão contempladas todas as observações que até agora se fez: (1) trata-se de uma exceção à regra do monismo no concurso de pessoas; (2) na cooperação dolosamente distinta há um desvio do elemento subjetivo (dolo) que resulta na diversidade de infração idealizada pelos concorrentes, fossem eles mandantes ou executores, partícipes ou autores; (3) o instituto não se resume às hipóteses de mandato criminoso; (4) o resultado causado é mais grave que o desejado pelos demais.

Feitas essas considerações pode-se avançar no estudo, demonstrando que vários problemas apontados pela doutrina no enfrentamento do instituto nos crimes preterdolosos podem ser resolvidos com base nessa conceituação.

3.2 As críticas doutrinárias à solução que a regra da cooperação dolosamente distinta oferece aos crimes preterdolosos

A doutrina brasileira insurgiu-se, de um modo geral, contra a solução jurídica que a regra contida no § 2.º do art. 29 do CP proporciona ao partícipe dos crimes preterdolosos.

Inconformados com as consequências que a aplicação do referido dispositivo traz, Damásio Evangelista de Jesus, Beatriz Vargas Ramos e Cezar Roberto Bitencourt, entre outros inúmeros autores notórios, apontam que, nos crimes preterdolosos como a lesão corporal seguida de morte, o participante que desejou crime menos grave receberá a pena deste (isto é, lesão corporal leve – art. 129, caput) e, se previsível a morte, esta pena (a da lesão leve) é aumentada até a metade, totalizando, no máximo, quatro meses e quinze dias de detenção, nos termos do § 2.º do art. 29 do CP. Haveria, pois, manifesta desproporcionalidade com a pena do executor (art. 129, § 3.º, pena de quatro a doze anos). Segundo eles, justo seria se fosse o partícipe incurso na mesma infração penal do executor, em concurso de pessoas, caso lhe fosse previsível o evento mais grave. Vejamos os esclarecimentos do Prof. Damásio:

“E o exemplo que se apresenta é o do sujeito que determina a outrem uma agressão física. Está agindo com dolo de dano do crime de lesão corporal. O autor, agredindo a vítima, vem a matá-la. O executor vai responder conforme o seu elemento subjetivo, por lesão corporal seguida de morte ou por homicídio. Nos termos do Código Penal vigente (sic) o mandante responde também por lesão corporal seguida de morte ou homicídio, embora com pena diminuída. E o legislador de 1984 diz que o mandante sofrerá a pena do delito de menor gravidade, embora acrescida”.[17]

Por acreditarem que tal norma beneficia injustificadamente o agente que deseja participar de delito de menor gravidade nos crimes cujo resultado mais gravoso também deriva de sua culpa, os célebres doutrinadores tecem severas críticas aos efeitos da incidência da regra da cooperação dolosamente distinta nos crimes preterdolosos.

Nas palavras de Cezar Bitencourt, chancelando a opinião exposta anteriormente:

“A intenção da reforma é elogiável, mas apresenta alguns inconvenientes que foram inteligentemente apontados por Damásio de Jesus. Os chamados crimes preterdolosos (...) como é o caso da lesão corporal seguida de morte, apresentam uma verdadeira vexata quaestio. Pela disposição da Parte Especial, o autor que, querendo produzir lesões corporais, acaba causando a morte, mesmo não a desejando, responde pelo delito de lesões corporais seguidas de morte. O partícipe, nas mesmas circunstâncias, segundo a norma em exame, responderá pelo delito de lesões corporais. Se o crime mais grave for previsível, sua pena será aumentada até a metade. Um verdadeiro contra-senso (...)”.[18]

Dissertando sobre a responsabilização penal objetiva do Código anterior e fazendo um comparativo com as modificações na legislação de 1984, a Prof. Beatriz Vargas Ramos corrobora as lições anteriores:

“Ora, o fato de estar o resultado na linha de previsão possível do instigador, não pode fundamentar, por si só, uma punição a título de dolo, pelo delito mais grave ocorrido. Se o agente previa, mas não desejava o resultado, estamos diante da culpa strictu sensu. Não se justifica a punição com a pena mínima do crime doloso mais grave ocorrido, nem tampouco, a punição com a pena do delito menos grave aumentada até metade. As penas impostas de acordo com essas regras seriam sempre, para 'mais' (parágrafo único, art. 48, CP de 40), ou para 'menos' (parágrafo primeiro, art. 29, Parte Geral de 84), que a justa medida da culpabilidade”.[19]

Conforme se verifica, acreditam que a reforma de 1984 acabou criando uma iniquidade: o executor do delito responderá, caso venha a cometer crime preterdoloso, pelo resultado agravador; enquanto isso, o mandante (ou partícipe) receberia, em virtude da previsão contida no art. 29, § 2.º, segunda parte, pena de lesão corporal leve aumentada até metade.

A opinião dos insignes autores, data venia, é sem acerto.

No tópico anterior (3.1) quando se definiu o conceito de cooperação dolosamente distinta afirmou-se que: trata-se de uma situação de exceção à regra monista do concurso de pessoas, pela qual um ou mais agentes, desviando-se dolosamente e passando a atuar sem vinculação psicológica com os demais concorrentes (até então partícipes ou autores, mandantes ou executores), consuma(m) infração mais grave do que a desejada pelos outros.

A partir dessa definição, para que possa se falar em cooperação dolosamente distinta, deve haver, por óbvio, um desajuste no dolo dos concorrentes, um desvio doloso na conduta daquele que executa o resultado mais grave.

E essa interpretação não se funda apenas na nomenclatura que o instituto recebeu pela doutrina ou no conceito aqui edificado.

O próprio verbo utilizado na redação da norma do art. 29, § 2.º, do CP (“quis participar de crime menos grave”), refere-se expressamente ao elemento volitivo, à intenção do partícipe quanto ao resultado delituoso. Sua vontade seria, portanto, de cometer crime menos grave daquele que foi desejado pelo outro concorrente.

Ora, nos crimes preterdolosos a intenção do executor também não é de causar o resultado de maior gravidade. Este advém de sua culpa, excedendo sua vontade inicial. Ao tratar dessa espécie de delito, o eminente Francisco de Assis Toledo afirmava que:

“É assim que se define o crime em exame, do qual constitui exemplo a lesão corporal seguida de morte (CP – art. 129, § 3.º), como sendo uma figura híbrida de dolo e culpa: dolo no antecedente e culpa no consequente.”[20]

No mesmo sentido, o célebre Nelson Hungria ensinava que “o agente quer determinado resultado, mas, por culpa, dá causa a outro mais grave”.[21]

Se o resultado que agrava a pena decorre de uma conduta culposa, não pode haver dolo distinto, desvio doloso ou tampouco cooperação dolosamente diversa entre os concorrentes nos delitos preterdolosos.

De fato, não há diferença no elemento subjetivo do mandante. Seu dolo é idêntico ao do mandatário: dolo de provocar lesões corporais, no exemplo citado. O executor, assim como o mandante, também quis (a expressão que a lei utiliza) participar do crime menos grave (lesões corporais). Entretanto, o primeiro, por negligência, imperícia ou imprudência, acaba provocando a morte do ofendido.

Nos crimes preterintencionais cujo resultado deriva de culpa do executor, portanto, não se aplica a regra do art. 29, § 2.º ao partícipe do crime menos grave, simplesmente porque são situações incompatíveis. Logo, os exemplos mencionados pelos doutrinadores acima não se enquadram entre as hipóteses de cooperação dolosamente distinta. O dolo do mandante é simétrico ao do executor: de causar lesões corporais no ofendido.

Então, como ficaria a reprovação do partícipe nesses casos?

A questão pela qual o mandante ou partícipe deva ou não responder pela morte, assim como responde o executor, é problema que deve ser resolvido à luz do art. 19 e não com a regra do § 2.º do art. 29. Este sim, só se aplica quando verificada a substituição do dolo de quem concorreu para a prática da infração penal. Ao discorrer sobre a cooperação dolosamente distinta, o Prof. Luiz Flávio Gomes ensina que:

“Cabe notar que o excesso do executor que atua distintamente revela o que se chama de substituição do dolo. Inicialmente o dolo está dirigido a um resultado. O executor excessivo substitui o dolo (por conta própria) e o orienta para outro resultado, mais grave”.[22]

Por consequência, conclui-se que o enquadramento jurídico para essas hipóteses de crimes preterdolosos é o que foi proposto pelo ilustre Mirabete. Contudo, sua tese apenas será válida se, e somente se, além da culpa do executor também for constatada a culpa do mandante pelo resultado mais grave:

“Em caso de mandato para um delito de lesão corporal que vem a causar a morte da vítima, havendo previsibilidade do resultado mais grave, responderão mandante e executor pelo crime de homicídio preterdoloso e não pela simples lesão corporal com pena agravada”.[23]

Por esse extenso juízo aqui declinado, a solução jurídica que nos parece mais acertada é a seguinte: tratando-se de crimes preterdolosos em relação à ação do executor, deve-se aferir se o partícipe dissidente atua com culpa pelo resultado mais grave causado pelo executor. Se a resposta for positiva, ambos responderam pelo resultado agravador em concurso de pessoas, nos termos do art. 29 do CP. Em caso negativo, somente ao executor é imputada a pena agravada, sob pena de a responsabilização do partícipe infringir o art. 19 do CP e o princípio da culpabilidade.

Em suma, a cooperação dolosamente distinta é incompatível com a espécie dos crimes preterdolosos para o executor, já que nesses não há substituição do dolo, desvio doloso ou, cooperação dolosamente diversa entre os consortes (o dolo de ambos é de cometer o delito menos grave).

3.3 Cooperação dolosamente distinta no crime de latrocínio: o critério da especialidade da norma como forma de solução de uma antinomia aparente

Enunciada a regra geral que nos parece a mais adequada para os crimes preterdolosos, resta, por fim, demonstrar como um singelo equívoco no tratamento do tema é capaz de causar condenações injustas. Algumas decisões judiciais têm pecado pelas situações aberrantes que criam.

Suponha-se o seguinte exemplo a título ilustrativo: A e B combinam de praticar um roubo à mão armada contra C. A fica encarregado de subtrair os pertences da vítima e intimidá-la com a arma municiada, enquanto B incumbe-se da tarefa de dirigir a motocicleta utilizada para fuga. Durante a execução do crime, C demonstra reação e A dispara contra o peito da vítima causando-lhe sua morte.

Antes de tudo, é preciso relembrar que o crime de latrocínio, tipificado no art. 157, § 3.º, in fine admite, por sua natureza, o preterdolo, segundo leciona a imensa maioria da doutrina. Assim sendo é uma espécie de crime qualificado pelo resultado que, portanto, também se perfaz quando há dolo no resultado. No exemplo narrado, a morte do ofendido se deu por conduta dolosa de A, que disparou deliberadamente contra região letal do corpo de C. Sem dúvidas, houve dolo de A tanto na subtração quanto no homicídio que, no mesmo contexto fático, subsumem-se ao tipo do roubo seguido de morte, o latrocínio.

A pergunta que se coloca é, então, se B deve ou não responder pelo latrocínio em concurso de pessoas com A. Conquanto a jurisprudência tenha se inclinado com frequência para a adoção da tese do dolo eventual do partícipe e criado inconstitucional presunção de culpa nesses casos, abstraindo-se desse entendimento, a resposta à essa questão dependerá dos elementos da previsibilidade e aceitação do risco de produzir o resultado para B.

Se B pudesse prever o resultado e aceitou o risco de sua produção, agiu, indubitavelmente, com dolo eventual, devendo responder pelo latrocínio em concurso com A. Por outro lado, suponhamos a hipótese possível de que B supôs, levianamente, que o evento mais grave não fosse acontecer (ainda que soubesse que A estava armado), já que a escolha do instrumento para o crime, por si só, não define a finalidade do agente. Esta é manifestada, principalmente, no uso dos meios, isto é, na forma de utilização dos instrumentos selecionados.[24]

Assim, pode ser que B tenha concordado em participar de roubo à mão armada porque, em uma perseguição por exemplo, A poderia disparar para o alto, ou contra a viatura policial, com fins intimidatórios, ou mesmo poderia acertar a vítima ou os militares para causar-lhes lesões, sem, contudo, querer provocar-lhes a morte.

Essa é a hipótese que nos interessa: abstração do dolo eventual e suposição da culpa consciente de B em razão da previsibilidade do evento mais grave.

Assim sendo, dever-se-á enquadrá-lo como coautor de roubo seguido de morte (latrocínio), como manda o art. 19 do CP, já que tal crime admite o preterdolo, isto é, conduta dolosa causadora do delito antecedente (roubo) e a culpa no resultado consequente (morte)? Ou, por outro lado, deve-se reconhecer a existência de cooperação dolosamente distinta e, por consequência, aplicar-lhe a pena do roubo aumentado até metade como prescreve o art. 29, § 2.º, segunda parte, além somar-lhe das causas de aumento dos incs. I e II do § 2.º do art. 157 do Código Penal?

Nesse caso, embora a natureza do crime admita o preterdolo, as circunstâncias do caso revelam que houve substituição do dolo por parte de A, sendo o resultado mais grave, a morte do ofendido, produto de sua intenção e vontade. Sendo assim, perfeitamente possível a aplicação da regra da cooperação dolosamente distinta.

Aceitando essa tese, entretanto, cria-se um conflito aparente de normas jurídicas, isto é, existem dois artigos, em tese, aplicáveis ao mesmo caso, porque possuem o mesmo âmbito de validade, conduzindo a duas soluções possíveis: uma mais prejudicial (a primeira) e outra que trará maior benefício ao acusado (a segunda).

Se optarmos pela aplicação do art. 19 do CP, a reprovação dos consortes será idêntica: A e B sujeitar-se-ão à pena de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos de reclusão como prevê o art. 157, § 3.º, in fine, do CP.

Se, por outro lado, aplicar-se a norma do art. 29, § 2.º, do mesmo Código Penal, ainda que o resultado mais grave ocorra (morte de C), em virtude de culpa de B, sua punição ficaria, na pior das hipóteses, da seguinte forma: partir-se-ia da pena do crime de roubo (4 a 10 anos) aumentando-a até metade pelo uso de arma de fogo e concurso de pessoas (6 a 15 anos). Em seguida, faz-se incidir a causa de aumento de metade da pena do crime que desejou praticar (roubo majorado), em homenagem a regra do art. 29, § 2.º, segunda parte, pela previsibilidade do resultado mais grave. Ao final, B poderia receber uma reprimenda que poderia variar entre 9 (nove) a 22 (vinte e dois) anos e 6 (seis) meses de reclusão.

Perceba como a pena máxima desse segundo raciocínio (22 anos e 6 meses) é quase equivalente à pena mínima do primeiro raciocínio (20 anos), o que evidencia inequivocamente a maior benesse contida nesse último juízo.

Esse, aliás, é o raciocínio que deve ser utilizado e o mais correto, não somente porque consiste no mais favorável ao acusado, mas também porque encerra a utilização do critério da especialidade da norma, como forma de resolução da aparente antinomia.

Apenas para esclarecer: uma coisa é o crime ter sido praticado preterintencionalmente, isto é, o executor causou um resultado mais grave por sua culpa. Aqui não cabe falar em cooperação dolosamente distinta, conforme abordado no tópico anterior. Outra situação é a que ora se discute, consistente no fato de o resultado mais grave ter sido, efetivamente, provocado pelo dolo do executor, restando ao partícipe, caso lhe fosse previsível esse resultado, o crime preterdoloso, contudo, afastado em razão da cooperação dolosamente distinta.

O que não é válido, em hipótese alguma, é reconhecer a existência de cooperação dolosamente distinta entre os agentes e, ao mesmo tempo, punir o partícipe dissidente pelo crime mais grave, sob o fundamento de que a infração é preterdolosa. Enfim, se o resultado mais grave foi causado por conduta dolosa de outrem, não é lícito comunicá-lo a título de culpa à quem desejou participar de infração menos grave, com base no argumento de que esta espécie de crime admite punição por culpa pelo resultado mais grave. Para exemplificar o equívoco que muitas vezes é cometido, basta citar o seguinte trecho de um voto extraído de um acórdão proferido no Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

"Com efeito, embora admitindo como verdadeira a versão apresentada pelo apelante em seu interrogatório, de que apenas conduziu a vítima até o local combinado com o co-réu, direcionando sua ação à lesão patrimonial, tão somente, nesta satisfazendo o conteúdo do injusto subjetivo de sua conduta, o certo é que o delito de latrocínio admite a causação do resultado-morte a título de preterdolo (...)".[25]

Citamos ainda outra decisão do Egrégio TJMG, que consagra o idêntico posicionamento:

"Ementa: Apelação criminal – Latrocínio – Concurso de pessoas – Cooperação dolosamente distinta – Participação de menor importância – Aplicação da atenuante da menoridade. Admitindo o delito de latrocínio a modalidade preterdolosa, é norma especial que prevalece sobre a norma prevista no § 2.º do art. 29 do Codex, também de caráter preterdoloso, desde que se possa reconhecer a previsibilidade do evento mais grave, ou seja, que a morte da vítima esteja na linha do desdobramento natural da ação criminosa inicial. No concurso de pessoas durante o roubo em que resulta morte da vítima, respondem por latrocínio todos os concorrentes, excetuando-se aqueles em cuja conduta não se possa vislumbrar a previsibilidade do evento mais grave. É autor ou co-autor aquele que, apesar de não realizar integralmente a conduta típica, tem contribuição relevante para a ocorrência do crime, nos moldes da denominada teoria do domínio funcional do fato, sendo incabível o reconhecimento da participação de menor importância" (TJMG, 1.0702.05.241465-4/001(1), rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, publ. 19.05.2007).[26]

Não é verdade que o art. 19 do CP seja norma especial em relação à norma do art. 29, § 2.º, do Codex, como sustentam os ilustres magistrados nas decisões expostas. A regra geral é a da agravação pelo resultado causado culposamente pelo agente (art. 19) e não a que determina o aumento de pena quando o resultado é previsível ao partícipe dissidente. Basta analisar o potencial de regulação de comportamentos (grau de generalidade e abstração) de cada uma dessas normas: a primeira abrangerá, indubitavelmente, uma extensa gama de situações concretas, enquanto a segunda, por sua natureza, aplica-se somente a casos muito específicos de desvios dolosos. Na essência, o próprio art. 29, § 2.º já representa uma exceção à regra geral do concurso de pessoas, como demonstrado anteriormente.

Pelo princípio segundo o qual “lex specialis derogat generali”, a antinomia que se procura solucionar é do tipo total-parcial. Norberto Bobbio foi um dos ícones que defendeu a utilização desse critério como forma de obtenção da coerência do ordenamento jurídico:

“Isso significa que quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial. Por efeito da lei especial, a lei geral cai parcialmente”.[27]

Assim, a norma contida no art. 19 do CP aplica-se a todos os casos não regidos pela regra do art. 29, §  2.º, segunda parte, do CP brasileiro, por ser esta lei especial em face da primeira.

Conforme visto no capítulo antecedente, pelo resultado mais grave causado culposamente pelo executor, somente responderá o mandante se este foi produto também de sua culpa, nos termos do art. 19 do CP. Não há incompatibilidade na solução proposta para os crimes preterdolosos (inaplicabilidade da regra da cooperação dolosamente distinta) e na crítica que ora se faz aos julgados, porque nestes o resultado mais grave é doloso. Se este é doloso, é possível haver cooperação dolosamente distinta, aplicando-se normalmente a regra do art. 29, § 2.º, para os que assim a reconheçam no caso concreto, muito embora o crime possa ter sido preterdoloso para o partícipe dissidente. Os notáveis Damásio, Beatriz e Bitencourt reconhecem a especialidade da norma do art. 29, § 2.º, do CP em face da regra do art. 19, além de afirmarem sua menor prejudicialidade ao acusado, embora não concordem com sua incidência (ressaltado no tópico anterior).

4. Conclusões

A tarefa de finalizar um trabalho dogmático como este é de relevância capital, porque sintetiza os argumentos e raciocínios jurídicos complexos suscitados ao longo do texto, extraindo dele as conclusões à que se chegou com a pesquisa.

No primeiro tópico demonstrou-se que o Direito brasileiro adotou a teoria unitária para regulação do fenômeno do concurso de pessoas. Isso implica a consagração de determinados requisitos para a configuração do concursus delinquentium, que foram expostos no capítulo seguinte.

Posteriormente, explicitou-se, no terceiro tópico, que a cooperação dolosamente distinta constitui uma exceção à teoria monista, justamente porque sua existência pressupõe a divergência do elemento subjetivo dolo entre os concorrentes da infração penal e, ademais, em razão da desigualdade das infrações que se pretende praticar (inexiste também, pois, unidade de infração). Na cooperação dolosamente distinta, a intenção, a finalidade de um dos agentes é diferente dos demais participantes do delito: um deseja (quer, na expressão da lei), cometer crime de menor gravidade do que vem a ser efetivamente consumado.

Assim, se deve haver desvio doloso ou substituição do dolo para que se possa falar em cooperação dolosamente distinta, não se pode compatibilizá-la com os crimes preterdolosos. Isso se deve ao fato de que, nessa espécie de delito, o resultado não advém do dolo de quem o causou, mas sim de sua culpa. Se o executor age com culpa no resultado agravador, não se pode dizer que seu dolo é diferente do consorte: sua vontade é a mesma do partícipe, isto é, de realizar um fato típico de menor gravidade, descabendo falar em cooperação dolosamente diversa. Dessa forma são solucionadas muitas das falsas injustiças e dos problemas apontados pela doutrina nacional no tratamento da questão (foram expostas as opiniões de Damásio, Bitencourt e Beatriz Vargas). Em um delito de lesão corporal seguida de morte, por exemplo, que possui natureza preterdolosa (utilizado como exemplo por esses três célebres doutrinadores), tanto executor quanto mandante responderão pelo resultado que agrava especialmente a pena, se este for previsível a ambos, não sendo caso de incidência da cooperação dolosamente distinta. Entre eles inexiste divergência no elemento volitivo, o conteúdo teleológico da ação de ambos é idêntico. Acontece que o primeiro, sem desejar, acaba causando morte do ofendido, o que não é suficiente para beneficiar o partícipe a ponto de não ser penalizado pelo crime se pudesse prever o resultado.

Concluiu-se com este raciocínio que a regra do art. 29, § 2.º, do CP, é inaplicável aos crimes preterdolosos em que o resultado mais grave é causado culposamente pelo executor do delito.

Por fim, ainda no terceiro capítulo, trabalhou-se com algumas decisões judiciais para apontar os equívocos de interpretação de alguns magistrados ao enfrentarem o tema da cooperação dolosamente distinta no delito de latrocínio.

Exemplificou-se que em certos crimes que admitem o preterdolo, mas cujo resultado mais grave foi produto do dolo de um dos concorrentes (como dito, o exemplo do latrocínio), poderíamos estar diante de uma situação de cooperação dolosamente distinta. Não há incoerência com a conclusão anterior. Naquela, o evento mais grave deriva de culpa do executor e o crime é, ontologicamente, preterdoloso (exemplificou-se com o delito de lesão corporal seguida de morte). No segundo, o resultado mais grave (a morte, no exemplo mencionado do latrocínio) é fruto da intenção deliberada de um dos agentes, enquanto o outro apenas desejava praticar roubo. Nessa última hipótese, o fato de o delito ter sido praticado por obra do dolo do executor não retira a possibilidade de se falar em cooperação dolosamente distinta. Entretanto, aqui estar-se-ia diante de uma aparente antinomia: aplicar-se-ia a regra do art. 29, § 2.º, segunda parte (imputando-lhe pena de roubo majorado), ou a regra do art. 19 do CP, impingindo-lhe a sanção do latrocínio (art. 157, 3.º, in fine)? Viu-se a relevância dessa discussão a partir das consequências absolutamente diversas que se geram para o partícipe dissidente.

Entendeu-se que, por um critério de especialidade e do maior favorecimento ao acusado, a regra do art. 29, § 2.º, segunda parte prevalece sobre o art. 19 do CP. Portanto, é a norma jurídica que deve ser aplicada nessas situações. Concluiu-se, pois, que o art. 19 subsiste em todos os casos não regulados pelo art. 29, § 2.º, do CP. Nesses casos, quando a cooperação dolosamente distinta estiver presente, aumenta-se a pena pelo resultado mais grave previsível até metade, sendo impossível qualificar-se delito preterdoloso a conduta do partícipe.

Com isso, chega-se ao desfecho do longo raciocínio desenvolvido neste texto, na esperança de que esta pesquisa possa colaborar com o esclarecimento e a discussão do assunto, tão pouco analisado nos dias atuais.

A regra da cooperação dolosamente distinta contém um mandado de elevado potencial de justiça, ao determinar que cada agente responda criminalmente na medida de sua culpabilidade, razão pela qual seu estudo aprofundado e os cuidados na sua aplicação jamais podem ser negligenciados.

5. Referências bibliográficas

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[1] Dotti, René Ariel. Reforma penal brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 94

[2] Jesus, Damásio Evangelista de (Coord.). Curso sobre a reforma penal. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 93.

[3] Campos, Francisco. Exposição de Motivos do Código Penal, 1940.

[4] Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1949. vol. I, t. I, p. 551.

[5] “O mero conhecimento de que alguém está prestes a cometer um crime, ou a não-denúncia, às autoridades, de um delito que vai ser praticado, não configura co-participação, salvo se tinha o dever jurídico de impedir o crime” (STF, RT 603/447).

[6] Hungria, Nelson. Op. cit., p. 332.

[7] Entre os que admitem o concurso de pessoas na modalidade culposa, Beatriz Vargas, Fernando Galvão, Rogério Greco, Esther Figueiredo, Cezar Bitencourt, Francisco de Assis Toledo. Contrários a este entendimento: Juarez Tavares, José Cerezo Mir e Luiz Flávio Gomes.

[8] Jesus, Damásio Evangelista de. Da co-delinquência em face do novo código penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 51.

[9] Lyra, Roberto. Comentários ao Código Penal. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955. vol. II, p. 388.

[10] Manzini, Vicenzo. Tratado de derecho penal. Traduzido por Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Ediar Soc. Anón. Editores, 1949. t. III, vol. III, p. 289.

[11] Hungria, Nelson. Op. cit.

[12] Gomes, Luiz Flávio (coord); García-Pablos de Molina, Antônio. Direito penal: Parte geral. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. vol. 2, p. 510.

[13] Rocha, Fernando A. N. Galvão da. Direito penal. Curso completo. Parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 412.

[14] Na obra de Basileu Garcia, Instituições de direito penal,7. ed., v. I, t. I, a cooperação dolosamente diversa é chamada de “falta de coincidência entre mandato e execução”.

[15] Greco, Rogério. Código Penal comentado. Niterói, RJ: Impetus, 2008. p. 130.

[16] Galvão, Fernando. Direito penal: Parte geral. Curso completo. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 415.

[17] Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit., p. 92.

[18] Bitencourt. Cezar Roberto. Tratado de direito penal – Parte geral. 14. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. v. I, p. 466.

[19] Ramos, Beatriz Vargas. Do concurso de pessoas. Belo Horizonte: UFMG, 1993. p. 149. Dissertação.

[20] Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 308.

[21] Hungria, Nelson. Op. cit., v. 1, t. 2, p. 136.

[22] Gomes, Luiz Flávio; Molina, Antonio García-Pablos de. Coord. Luiz Flávio Gomes. Op. cit., p. 511.

[23] Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 1989. v. I, p. 237.

[24] A respeito desse assunto ver Welzel, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. Trad. Luiz Regis Prado. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 33-34; e Guaragni, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pré-finalista. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 150.

[25] TJMG – Apelação Criminal 1.0480.04.064220-3/001. "Ementa: Penal – Crime contra o patrimônio – Latrocínio – Desclassificação – Roubo majorado pelo concurso de pessoas – Participação em crime menos grave – Reconhecimento – Necessidade – Nova dosimetria da reprimenda. Para configuração do delito de latrocínio, faz-se necessária a conjugação do animus necandi com o animus furandi. No caso de concurso de pessoas, imprescindível também um desdobramento psicológico da conduta de um agente na do outro, de forma que o domínio do fato pertença aos vários intervenientes. Ausentes esses elementos, bem como a previsibilidade do resultado morte, não há que se falar em latrocínio, avaliando-se qual a conduta que o agente efetivamente acreditava participar. V.v Des. rel. Hélcio Valentim: Penal – Latrocínio – Cooperação dolosamente distinta – Inocorrência – Execução da vítima pelo co-autor – Irrelevância – Resultado morte que se atribui a título de preterdolo – Previsibilidade do resultado mais gravoso em assalto praticado por pessoa violenta, contra idoso e em local ermo – Recurso improvido" DJE 11.08.2006.

[26] No mesmo sentido STF: 2.ª T., 1988, RT 633/380. TJRS (Ap 70004706230, rel. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiakm 08.11.2002) apud Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 291-292.

[27] Bobbio, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. trad. Maria Celes C. J. Santos. Brasília: UnB, 1999. p. 96-97.

Rafael Santos Soares

Mestre em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Artigo
Os aspectos da extradição entre Brasil e Portugal sob a ótica da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
Data: 24/11/2020
Autores: Saulo Ramos Furquim

Resumo: Com um fundamento estrito à cooperação internacional em matéria penal, a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é direcionada ao dever de entrega recíproca de pessoas reclamadas, havidas em seu território. O presente artigo denota as novas possibilidades de extradição entre Brasil e Portugal, dispondo mudanças significativas quanto à inadmissibilidade e a recusa facultativa de extradição com a entrada em vigor em ambos os países daConvenção, inclusive tratando sobre conflitos concorrentes no que diz respeito ao Mandado de Detenção Europeu.

Palavras-chave: Extradição; nacionais; brasileiros; portugueses; possibilidades; recusa; inadmissibilidade.

Abstract: With a strong sense for international cooperation in criminal matters, the Extradition Convention between Member States of the Community of Portuguese Language Countries has the duty to reciprocally transfer people that have been claimed and found in its territory. This paper shows the new possibilities of extradition between Brazil and Portugal, which offers significant changes regarding the inadmissibility and voluntary refusal of extradition and which will be entering into force in both countries of the Convention. The concurrent conflicts regarding the European arrest warrant are also addressed.

Key words: Extradition, national, Brazilian, Portuguese, possibility, refusal, inadmissibility

Sumário: 1. Notas introdutórias – 2. Tratados firmados entre Brasil e Portugal que dizem respeito à extradição – 3. Regras da extradição conforme a convenção de extradição entre comunidade de países de língua portuguesa – 4. Possibilidade da extradição de nacionais portugueses e brasileiros e possibilidade de extradição em casos de prisão perpétua. – 5. Conflitos de pedidos concorrentes no âmbito da CPLP e no âmbito do Mandado de Detenção Europeu – 6. Pedido de Mandado de Detenção Europeu no caso de um brasileiro beneficiário do Estatuto de Igualdade previsto pelo tratado da amizade de 2000 – 7. Conclusão – 8. Referências bibliográficas – 9. Referências legislativas.

1. Notas introdutórias

O presente trabalho tem como intuito o estudo da Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, sendo que tal forma de cooperação internacional em matéria penal foi firmada pela Convenção entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), “assinada na Cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005, sendo os seguintes Estados Contratantes: República de Angola, República Federativa do Brasil, República de Cabo Verde, República da Guiné-Bissau, República de Moçambique, República Portuguesa, República Democrática de São Tomé e Príncipe e República Democrática do Timor Leste”[1] .

Contudo, no presente estudo será analisada a Extradição entre o Estado português e o Estado brasileiro, buscando pormenorizar as normas constitucionais e as normas ordinárias no que dizem respeito à Extradição dos cidadãos desses países. Serão, também, analisado os problemas que dizem respeito à extradição de nacionais entre esses os dois países e a possibilidade da extradição por crime culminado com pena de prisão perpétua.

Para tanto, investigar-se-á se a presente Convenção e as normas constitucionais desses dois Estados permitem estas possibilidades de extradição. Para além, serão tratados os aspectos que dizem respeito aos conflitos de pedidos concorrentes no âmbito da CPLP e no âmbito do Mandado de Detenção Europeu, o pedido de Mandado de Detenção Europeu, no caso de um brasileiro beneficiário do Estatuto de Igualdade previsto pelo Tratado da Amizade de 2000.

2. Tratados firmados entre Brasil e Portugal que dizem respeito à extradição

Nos dias atuais, em face do estreitamento dos laços nas relações internacionais entre países, com o atual processo de globalização, facilitando uma maior mobilidade das pessoas entre os vários países, o instituto da extradição ganhou destaque, de modo que a formalização do pedido de extradição, na maioria dos casos, é feita por meio de Tratados de Cooperação entre os Estados. Tratados nos quais as partes pactuantes estabelecem acordos para extraditarem pessoas em condições equivalentes, conhecidos como acordos de reciprocidade, de modo a facilitar a tramitação do procedimento e evitar a impunidade de criminosos, tornando-se, assim, um dever jurídico para as partes.[2]

Assim, “os Estados Membros da comunidade de países de língua portuguesa tendo em conta as profundas afinidades entre os seus povos; com a finalidade na luta contra a criminalidade no âmbito internacional convencidos da necessidade de simplificar e agilizar; reconhecendo a importância da extradição no domínio desta cooperação; com propósito de combater de forma eficaz a criminalidade”[3] firmam a Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

A presente convenção foi firmada em 23 de novembro de 2005 na cidade da Praia, Cabo Verde, paralelamente a convenção de extradição em estudo foi firmada na mesma data pelos mesmos Estados Membros a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, também de 23 de Novembro de 2005. Em Portugal, a convenção de extradição foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República 49/2008; ratificada pelo Decreto do Presidente da República 67/2008, sendo publicada no Diário da República I, n. 178, de 15.09.2008, entrando em vigor em 1 de Março de 2010.[4] No Brasil, a Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 45, de 30 de março de 2009, sendo promulgado pelo Decreto presidencial 7.935, de 19 de fevereiro de 2013, considerando que o Acordo entrou em vigor para a República Federativa do Brasil no plano jurídico externo em 1 de junho de 2009.[5]

Pela presente Convenção, os Estados pactuantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, as pessoas que se encontrem nos seus respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.[6]

Diante desse pacto contratante, os Estados Membros da comunidade de países de língua portuguesa uniformizaram os acordos que dizem respeito à extradição e à cooperação internacional em matéria penal. Dessa forma, os acordos bilaterais entre os Estados Membros anteriores à Convenção de Extradição conforme os termos do n. 1 do art. 25.º foram substituídos pela referida. A Convenção substitui, no que diz respeito aos Estados aos quais se aplicam as disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre dois Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição.[7]

Contudo, as convenções internacionais tanto em Portugal como no Brasil após a sua ratificação e promulgação não vigoram no ordenamento jurídico interno desses países com um valor jamais inferior à lei ordinária de direito interno, conforme o disposto do art. 8.º, n. 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, “por o art. 8.º não estabelecer um regime de hierarquia ou eficácia entre as normas de direito externo e as de direito interno, ou seja, há prevalência do direito supranacional sobre o direito interno, sempre tais que normas ocupam uma posição idêntica à da lei ordinária interna, bastando que não tenham valor inferior à da lei interna para que, em princípio, possam derrogar a lei interna anterior que as contrarie”.[8]

Nesse mesmo sentido, preleciona a doutrina brasileira, “em que pese a essas diretrizes, é certo que o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, há muito tempo entende que os tratados internacionais comuns, no que concerne a hierarquia das fontes, guardam estrita relação de paridade normativa com leis ordinárias no nosso sistema jurídico”.[9] Para tanto, significa que o regime definido nos termos da extradição na Convenção da CPLP, apresenta-se como um feixe de normas especiais revogatórias da lei geral anterior, ou seja, a Lei portuguesa 144/99 de 31 de agosto,[10] e a Lei brasileira 6.815/1980 de 19 de agosto, no que tange aos meios de cooperação judiciária internacional em matéria penal, que neste caso trata da extradição.

Diante dessas assertivas, podemos afirmar que o regime definido na referida Convenção de Extradição revogou a regulamentação fixada nas supracitadas Leis – Lei 144/99 e a Lei 6.815 –, no que diz respeito à cooperação judiciária entre os seguintes Estados Membros. Nesse sentido o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, na sua jurisprudência, entendeu que a referida Convenção de Extradição da CPLP substituiu parte da Lei 144/99 de que trata de cooperação judiciária internacional em matéria penal, especificamente sobre a extradição entre Portugal, Brasil e demais Estados contratantes, “passando assim a vigorar a referida Convenção como instrumento jurídico a ditar as regras gerais acerca da extradição de pessoas dos Estados Membros da comunidade de países de língua portuguesa”.[11]

Porém, antes da entrada em vigor da referida Convenção, vigorava o antigo Tratado de Extradição entre os governos da República Federativa do Brasil e da República Portuguesa, que foi assinado em Brasília em 7 de maio de 1991. O mencionado Tratado previa uma causa expressa de inadmissibilidade de extradição que não aparece como causa expressa na Convenção de Extradição da CPLP, a qual trata da extradição de nacionais da Parte requerida. Para tanto, a extradição de nacionais era expressamente inadmissível, conforme vigorava o disposto do artigo III, n. 1.[12]

Pelo antigo Tratado de 1991, era vedada a possibilidade de extradição de nacionais da parte requerida. Ocorre que a Convenção de Extradição da CPLP não trata da extradição de nacionais do Estado requerido como causas de inadmissibilidade, mas sim como causas de recusas facultativas.[13] Ademais, os estudos também previam como hipótese inadmissível de extradição os casos de infrações puníveis com pena de morte ou prisão perpétua, conforme artigo III, n. 1, alínea f, deste antigo Tratado.[14] De tal sorte que a Convenção de 2005 ainda trata as causas de infração punível com pena de morte como causas inadmissíveis de extradição.

Entretanto, os casos de extradição por fato punível com pena de prisão perpétua passaram a ser causas de recusa facultativa de extradição, conforme dicção do art. 4.º, alínea b, da Convenção de 2005.[15] A Convenção não exclui a hipótese de recusa facultativa de extradição em caso de cidadãos nacionais dos Estados requeridos – art. 4.º, alínea a[16] , e também nos casos de extradição com pena punível com caráter perpétuo.

Derradeiramente, não olvidamos trazer a baila os seguintes questionamentos acerca da Convenção de extradição entre os países aqui separados para o estudo – Brasil e Portugal. A primeira indagação a ser posta seria no que tange à extradição de um nacional brasileiro para Portugal e vice-versa. Uma segunda particularidade se encontra na dúvida se esses dois Estados podem extraditar por fatos puníveis com pena de prisão perpétua no âmbito da CPLP.

Tendo em vista os estritos laços culturais e históricos que aproximam Brasil e Portugal há vários séculos, os presentes Estados firmaram o Tratado que estabelece no âmbito internacional a reciprocidade de tratamento entre seus cidadãos. Em data de 22 de abril de 2000, na cidade de Porto Seguro/BA, na comemoração aos 500 anos do descobrimento do Brasil, ambos os países pactuaram o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta,[17] revogando a antiga Convenção da Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses, que fora assinado em 07 de Setembro de 1971. Contudo, o presente Tratado de 2000 tem a finalidade de fortalecer a reciprocidade entre os nacionais de ambos Estados.

Entretanto, a Convenção de Igualdade entre Brasil e Portugal de 1971, anterior ao Tratado da amizade, dispunha da aquisição de igualdade de direitos e tratamento, sendo que os cidadãos brasileiros e portugueses teriam quase todos os mesmos direitos equiparados a um cidadão do outro Estado, criando-se, assim, o princípio do quase nacional, “hipótese prevista no art. 12, § 1.º, pela qual não perdem a nacionalidade portuguesa, possuindo todos os direitos atribuídos ao brasileiro naturalizado, desde que haja reciprocidade em favor dos brasileiros”.[18] Inclusive, os direitos políticos estão previstos como direitos a serem gozados pelos cidadãos que requeiram a aquisição à igualdade de direitos previstos nesse tratado.

Ademais, a concretização do Tratado da Amizade vem no sentido de estreitar a igualdade entre portugueses e brasileiros, reafirmando a cooperação entre os Estados. Assim, os portugueses no Brasil e os brasileiros em Portugal, beneficiários do estatuto de igualdade, gozarão dos mesmos direitos e estarão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais desses Estados.[19]

Contudo, deve ser entendido que esta igualdade dos direitos não é tácita, ela deve ser requerida, conforme já citado. O estatuto de igualdade só é atribuído mediante decisão do Ministério da Administração Interna. Entretanto, para o requerimento da igualdade de direitos, o requerente deve ser civilmente capaz e residir no país em que será requerida a igualdade de direitos, conforme disposto do art. 15 do Tratado.[20] Todavia, “o regime de igualdade entre brasileiros e portugueses não se constitui de pleno direito e não é estendido a todos, pois poucos possuem a informação de que é necessário requerimento para usufruir dos benefícios que o regime fornece”,[21] dessa mesma forma, concluindo que o regime de igualdade entre brasileiros e portugueses não é de pleno gozo a todos os nacionais desses países, o Supremo Tribunal Federal brasileiro na sua jurisprudência versa, “o português no Brasil e o brasileiro em Portugal não gozam automaticamente da igualdade de direitos e deveres prevista na Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses (Decreto 70.391/1972), conforme dispõe o art. 5.º da Convenção, cabe à pessoa natural interessada requerer tal benefício junto à autoridade competente”.[22]

Entretanto, pelo art. 18 do Tratado de Amizade de 2000 entende-se que os nacionais brasileiros e portugueses somente poderão ser extraditados para os referidos Estados se o nacional for requerido pelo Estado de sua nacionalidade.[23] Dessa forma, não será possível o Estado brasileiro conceder extradição para nacional português para outro país ou vice-versa, salvo se o nacional requerido não for portador do regime de igualdade de direitos, “pelo que à partida tal categoria de estrangeiros poderia beneficiar do direito que os nacionais têm a não serem extraditados, salvo nos casos excepcionais previstos desde a revisão constitucional de 1997. No âmbito da categoria de estrangeiros nacionais de Estados de língua oficial portuguesa, apenas aos nacionais do Brasil e com fundamento em Convenção internacional bilateral pode ser reconhecido um estatuto de igualdade, incluindo de igualdade de gozo de direitos políticos”.[24]

Todavia, o art. 18 desse Tratado da Amizade prevê que os brasileiros e portugueses beneficiários do estatuto de igualdade não estão sujeitos à extradição, salvo se requerida pelo Estado da nacionalidade. Porém, o Tribunal Constitucional de Portugal dispõe que “ao abrigo deste Tratado um cidadão brasileiro beneficiário do estatuto de igualdade, com reserva do disposto no Tratado de extradição entre os países da CPLP, não pode ser extraditado para país terceiro que não seja um país membro da CPLP”.[25]

Corroborando com este entendimento do Tribunal Constitucional,[26] fica claro um conflito de normas, haja vista o art. 25 da Convenção de Extradição da CPLP prevê a substituição no que concerne aos Estados, às disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais entre os Estados Contratantes que regulem a matéria de extradição.[27] Nesta mesma sustentação, pode-se dizer que a Convenção de 2005 derrogou o art. 18 do Tratado da Amizade de 2000, no que diz respeito à possibilidade de extradição de beneficiário do Estatuto da Igualdade para um Estado da CPLP, observando o conflito entre um tratado e uma convenção; levando-se em consideração que ambos estão no mesmo nível hierárquico, adota-se a regra da lei posterior derrogar a anterior,[28] uma vez que esses tratados não versam sobre normas internacionais de Direitos Humanos, podendo aqui haver a derrogação de normas condizentes com a extradição por convenções posteriores.

3. Regras da extradição conforme a Convenção de Extradição entre a Comunidade de Países de Língua Portuguesa

Conforme o presente acordo firmado na cidade de Praia, Cabo Verde, os países da CPLP firmam entre si a obrigação de extraditar, reciprocamente, de acordo com as regras e as condições estabelecidas na referida Convenção com o propósito de melhorar a cooperação internacional entre si. Nesse contexto, os fatos determinantes para extradição foram elencados como crime, em consonância com as leis da parte requerente e da parte requerida, independentemente da denominação dada aos crimes nos respectivos Estados. Por derradeiro,  os crimes deveriam ser puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano.[29] A Convenção está de acordo com a redação do art. 31.º, n. 2, da Lei portuguesa 144/99 e o art.77, inciso IV, da Lei brasileira 6.815/1980, as quais igualmente dispõem da duração máxima não inferior a um ano, de acordo ao princípio da relevância.

Ficou estipulado na Convenção no art. 2.º, n. 2, a exigência de pena mínima para cumprimento de pena privativa de liberdade, a fim da concretização da extradição. Concluiu-se que a parte da pena por cumprir não será inferior a seis meses. Nesta parte, a Convenção trouxe alteração ao Tratado de 1991 sobre a extradição entre Brasil e Portugal, que na sua dicção anterior afirmava: “Quando a extradição for pedida para cumprimento de uma pena privativa da liberdade, só será concedida se a duração da pena ainda por cumprir for superior a nove meses”.[30] Diferindo aqui, também, da lei portuguesa, prevendo que a parte da pena a cumprir não pode ser inferior a quatro meses.[31]

No que diz respeito ao concurso de crimes praticados pelo reclamado, verifica-se que a necessidade da extradição requerida por um Estado se dará se as exigências deste art. 2.º forem condizentes em um dos crimes cometidospelo extraditado, vistas se esses requisitos forem respeitados em um ou em alguns crimes, a extradição pode ser concedida, inclusive com respeito aos crimes que não tiveram as exigências atendidas, sem se esquecer do princípio da dupla incriminação para cada um dos crimes.

Contudo, a Convenção aduz regras negativas para a extradição, ao afirmar causas inadmissíveis para a extradição entre os Estados Membros, vedando expressamente a extradição pelos seguintes crimes: (i) o crime punível com pena de morte; (ii) crimes que a penas resultem em lesão irreversível da integridade física; (iii) crimes militares, que não tenham conexão com crimes comuns.[32] Há também a previsão de inadmissibilidade para crimes que o Estado requerido considere ser político ou com ele conexo. Porém, a mera alegação de um fim ou motivo político não implica que o delito deva ser necessariamente como tal.

Destarte, o n. 2 do art. 3.º trata das hipóteses mencionadas – crimes que não são de natureza política ou com ele conexo –, sendo eles: (i) os crimes contra a vida de titulares de órgãos da soberania ou de pessoas a quem for devida especial proteção do direito internacional; (ii) crimes de pirataria marítima ou aérea; (iii) genocídio e crimes contra a humanidade; (iv) crimes que exclua natureza de infração política por convenções; (v) crimes referidos na Convenção contra tortura e demais tratamentos cruéis.[33]

Não será admissível a extradição quando se tratar de pessoa reclamada que tiver sido julgada, indultada, anistiada ou perdoada no Estado requerido com respeito aos fatos do pedido de extradição. Outrossim, consigna-se as hipóteses de inadmissibilidade da extradição, sendo elas: quando a pessoa reclamada tiver sido condenada ou deva ser julgada na parte requerente por um tribunal de exceção ou quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido.[34]

Um dos pontos interessantes na Convenção de extradição da CPLP foi a dicção do art. 4.º ao tratar da recusa facultativa de extradição entre os Estados Membros. A hipótese de inadmissibilidade de extradição de nacionais prevista no antigo Tratado elencava que não teria lugar a extradição no caso da pessoa reclamada ser nacional do Estado requerido. Com a nova redação, tornou-se uma causa de recusa facultativa pela parte requerida. A Convenção dispõe que poderá ser recusada a extradição se a pessoa reclamada for nacional do Estado requerido, para tanto deverá ser observada a legislação constitucional do presente país, se ela permite a possibilidade de admitir a extradição de seu nacional, como veremos a seguir nas hipóteses das legislações brasileira e portuguesa.

Ademais, além da cláusula facultativa de recusa de extradição quanto aos nacionais, a Convenção aduz novas hipóteses de recusa facultativa quanto ao pedido de extradição ser punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida.[35] Nesse caso, a Convenção cita a possibilidade de recusa facultativa à extradição para casos de prisão perpétua ou duração indefinida, conforme dispõe art. 4.º, alínea a, da referida Convenção. Já o Tratado de 1991 citava essas hipóteses como causa de inadmissibilidade de extradição. Diferentemente é o entendimento da Convenção de extradição da CPLP, a qual dispõe pela inadmissibilidade das penas ser entendida nas causas que resultem em lesão irreversível da integridade física, de acordo com o art. 3.º, n. 1.

Neste ponto cabe frisar o tratamento da Convenção quanto ao pedido de extradição punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida como causa de recusa facultativa do Estado pelo segundo motivo: A República da Guiné-Bissau é o único Estado da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que na sua Constituição, mais precisamente no seu art. 36.º, n. 2, admite a possibilidade de prisão perpétua em seu território para os crimes que a Lei penal deste país define.[36]

Também foram atribuídas como causas de recusa facultativa de extradição a hipótese de a pessoa reclamada ser julgada no Estado requerente pelos mesmos fatos que fundamentam o pedido de extradição, ou seja, há um dever de escolha do Estado requerido: se ele coopera com o outro Estado, extraditando o reclamado ou o próprio Estado requerido continua com a persecução criminal iniciada em seu território.

O Estado requerido terá a hipótese de recusa da extradição se a pessoa requerida não puder ser objeto de procedimento criminal em razão da idade. Neste ponto vigora uma espécie de cláusula humanitária na recusa da extradição, no mesmo sentindo que dispõe o n. 2 do art. 18 da Lei portuguesa 144/99.

Por fim, há também a hipótese de a pessoa reclamada ter sido condenada à revelia pela infração fundamentada no pedido de extradição. Neste caso, há exceção se as leis do Estado requerente garantirem a possibilidade de defesa ou assegurar uma garantia da mesma espécie.[37]

4. Da possibilidade da extradição de nacionais portugueses e brasileiros, e a possibilidade de extradição em casos de prisão perpétua

Como vimos anteriormente, a Convenção de Extradição da CPLP abre a possibilidade de extradição dos nacionais do Estado requerido, dispondo apenas a recusa facultativa do Estado requerido quanto a esta hipótese, conforme o disposto do art. 4.º, alínea a. Entretanto, veremos aqui o que a legislação brasileira diz a respeito da existência ou não dessa possibilidade de extradição de seus nacionais.

Na legislação brasileira, a regra é orientada pelo Princípio da Não Extradição de Nacionais, conforme o art. 5.º, inciso LI, da Constituição Federal brasileira que dispõe: "Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.[38] Para tanto, a legislação brasileira prevê a hipótese de extradição, nos casos de brasileiros naturalizados. Sobre essa possibilidade, o próprio art. 5.º, inciso LI, da Constituição Federal brasileira, possibilita a extradição para os naturalizados por crime cometido anteriormente à naturalização e para estes naturalizados que tenham praticado o crime de tráfico drogas.

Todavia, devemos entender por brasileiros natos: (i) aqueles nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; (ii) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; (iii) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.[39]

Consequentemente, entendem-se como brasileiros naturalizados aqueles que: (i) na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; (ii) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.[40]

Nesse mesmo sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal preleciona que “o brasileiro nato, quaisquer que sejam as circunstâncias e a natureza do delito, não pode ser extraditado, pelo Brasil, a pedido de Governo estrangeiro, pois a Constituição, em cláusula que não comporta exceção, impede, em caráter absoluto, a efetivação da entrega extradicional daquele que é titular, seja pelo critério do jus soli, seja pelo critério do jus sanguinis, de nacionalidade brasileira primária ou originária. Esse privilégio constitucional, que beneficia, sem exceção, o brasileiro nato (CF, art. 5.º, LI), não se descaracteriza pelo fato de o Estado estrangeiro, por lei própria, haver-lhe reconhecido a condição de titular de nacionalidade originária pertinente a esse mesmo Estado (CF, art. 12, § 4.º, II, a) ”.[41]

A extradição do nacional brasileiro, somente é possível ao adquirente da nacionalidade brasileira por meio da naturalização. Todavia, é de suma importância determinar o momento em que o sujeito adquiriu a nacionalidade brasileira, tal como definir a natureza do crime praticado por este indivíduo. Deve-se analisar também, se esta naturalização foi procedida antes ao pedido de extradição pelo qual o sujeito é requerido, a extradição somente será procedente se for considerado crime de tráfico internacional de drogas. Contudo, se a imputação ao sujeito requerido se tratar de crime comum, a extradição somente será procedida se a naturalização for posterior à data do crime imputado, conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal brasileiro.[42]

Diante dessas considerações, conclui-se que a legislação brasileira não abre a hipótese de extradição de seus nacionais (os ditos brasileiros natos). Destarte, o Estado brasileiro em regra sempre recusará com base na sua Constituição a possibilidade de extradição de seus nacionais, cuja Convenção de extradição da CPLP cita como uma recusa facultativa dos Estados Membros.

No tocante à extradição de nacionais portugueses, a Constituição da República Portuguesa tem sua posição diferente, conforme o art. 33.º, n. 3. “A extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo”.[43]

A extradição de nacionais portugueses só poderá ser permitida se houver reciprocidade, estabelecida em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada. E, ainda, deve haver garantias de um processo justo e equitativo, conforme dispõe a Constituição da República Portuguesa. Ademais para Bucho, Perreira, Azevedo e Serrano: “A exigência de uma reciprocidade estabelecida em convenção internacional teve em vista, manifestamente, os compromissos internacionais de Portugal, assumido por via do art. 5.º do Acordo de Adesão de Portugal à Convenção de Aplicação de Schengen, declaração relativa à extradição de nacionais feita por Portugal nos atos de aprovação e ratificação da Convenção de Extradição de Dublin”.[44] Por meios de Tratados e Convenções Internacionais, a Constituição Portuguesa abre a possibilidade de extradição de seus nacionais observando os pressupostos da reciprocidade que devem estar estabelecidos em Convenção, observando, também, a exigência de um processo justo e equitativo.

Diante desta possibilidade de extradição de seus nacionais, Portugal mostra, em seu ordenamento jurídico, um regime mais flexível do que o Brasil, quando se refere à Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal, uma vez que o Estado português aderiu as Convenções Europeias que regem a criação de um Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça em âmbito europeu, tratando de um “regime relacionado com a cooperação no quadro da União Europeia, que sacrifica anterior direito dos nacionais em homenagem aos imperativos daquela cooperação no combate a formas sofisticadas de criminalidade internacional, impõe-se, em qualquer caso, uma interpretação restritiva desta norma”.[45]

Tampouco, não será admitida a extradição nem a entrega de nacionais portugueses e de estrangeiros nos casos, de motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física.

Diante dessas assertivas, a extradição de portugueses e a de estrangeiros obedece aos limites previstos, com relevo para: (i) a proibição da extradição por motivos políticos; (ii) para a exclusão da extradição por crimes a que corresponda pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física; (iii) para a prevenção de extradição por crimes a que corresponda pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida. Outrossim, quanto a estas normas se impõe interpretação restritiva, com base na jurisprudência constitucional.

De tal sorte, a extradição de nacional português só poderá se concretizar se houver condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional. No plano do direito internacional, a extradição dispõe de uma base jurídica ampla, que lhe é conferida por tratados bilaterais e convenções de âmbito multilateral. No âmbito multilateral, avulta para Portugal, a Convenção Europeia de Extradição de 1957 e os seus dois Protocolos Adicionais, de 1975 e de 1978; a Convenção Relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, de 10 de Março de 1995; e a Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia.[46] Como é o caso da Lei 65/2003 de 23 de Agosto que aprova o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu (em cumprimento da Decisão Quadro n.: 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho).

Acerca da questão, reciprocidade de tratamento na extradição de nacionais, os ilustres doutrinadores Canotilho e Vital Moreira diante do tema prelecionam: “a reciprocidade implica que a extradição de cidadãos nacionais do território português tenha sido expressamente pactuada em tratados, convenções ou acordos que Portugal faça parte, a exigência de crimes (cf. Lei 144/99, art. 32.º) ”.[47] Diante destes fundamentos, o Estado português, com base na reciprocidade firmadas em Convenções e na cooperação internacional em matéria penal, pode extraditar seus nacionais devendo seguir os limites legais do art. 33.º da Constituição Portuguesa. Entendimento este embasado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, que em um dos seus julgados afirma “a possibilidade de extradição de seus nacionais, por meio da cooperação internacional em matéria penal”.[48]

Em face das legislações supraexpostas, conclui-se que o Estado português versa sobre a possibilidade de extradição de seus nacionais. Todavia, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenções e tratados, somente nos casos de terrorismo e criminalidade internacional. Entretanto, não existem Tratados de reciprocidade para a extradição de nacionais entre Brasil e Portugal.

Ademais, no Estado brasileiro vigora o princípio da não extradição de seus nacionais (brasileiros natos). Derradeiramente, a Constituição da República Portuguesa recusará a extradição de um nacional português para o Brasil, arguindo o art. 4.º, alínea a, da Convenção de Extradição da CPLP, com fundamento constitucional no art. 33, n. 3, da Constituição da República Portuguesa.

No ordenamento jurídico brasileiro, o art. 5.º, inciso XLVII, alínea b, da Constituição Federal brasileira, veda as sanções penais de caráter perpétuo. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Extradição 855, veio a alterar o seu entendimento em matéria de extradição no que concerne à exigência de comutação da pena de prisão perpétua para seu deferimento, impondo o limite de nossa legislação penal à pena a qual o extraditando foi condenado no exterior.[49]

A partir desse pedido de extradição, que tratava do caso envolvendo um dos sequestradores do publicitário Washington Olivetto, o Supremo Tribunal Federal passou a possibilitar a entrega da pessoa reclamada a países que imponham prisão perpétua, desde que o Estado requerente dê garantias necessárias de que a pena limitar-se-á a 30 anos de prisão, o quantum máximo de cumprimento de pena permitido no Brasil.[50]

No âmbito da Convenção de extradição em estudo, o Brasil se posiciona na possibilidade de extradição a um pedido que resulte em pena de prisão perpétua (a República da Guiné-Bissau, Estado membro da CPLP, prevê a hipótese de penas de prisão perpétua no seu ordenamento jurídico). Desde que o Estado requerente dê garantias de que a pena de prisão perpétua será limitada a até 30 anos de prisão. Dessa forma, em tese, o Estado brasileiro não invocaria as causas de recusas facultativas de extradição do art. 4.º, alínea b, da referida Convenção.

Já no Estado português, a regra da possibilidade da extradição por crimes que corresponda, segundo o Estado requisitante, medida de segurança ou pena de caráter perpétuo, é regida pelo art. 33, n. 4, da Constituição da República Portuguesa, este diploma legal dispõe sobre a possibilidade de extradição de penas com caráter perpétuo, somente se o Estado requisitante for parte de convenção internacional, a que Portugal esteja vinculado, e ainda, ofereça garantias de que tal pena ou medida não será aplicada ou executada. Segundo a própria Constituição da República Portuguesa “só será admitida a extradição nos casos de prisão perpétua a crimes que corresponda, segundo o Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada”.[51]

Por derradeiro, o doutrinador Pedro Caeiro entende “que a proibição de extradição por crime a que correspondesse prisão perpétua se alcançava por aplicação analógica do art. 33.º, n. 3, da CRP: se a proibição de extradição por crime a que correspondesse pena de morte tinha o seu fundamento na preservação da ordem pública internacional do Estado português, ela devia aplicar-se analogicamente. E aí incluem-se, a prisão perpétua, as penas cruéis e desumanas e as penas corporais”.[52]

Todavia, no ordenamento jurídico português, as causas de extradição por crimes puníveis com pena de prisão perpétua podem existir. Ou seja, nos casos que Convenção Europeia de Extradição permitir. Ademais, Portugal está obrigado a conceder a extradição por crimes a que corresponda pena de prisão perpétua, desde que o Estado requerente assegure promover garantias de que tal medida perpétua não será aplicada. Consequentemente, podemos notar que há regimes distintos para a extradição para os Estados de Schengen e outras medidas para os Estados fora de Schengen.[53] Nesse sentido, a extradição quanto às penas de caráter perpétuo será objeto de recusa de extradição pelo Estado português na referida Convenção.

5. Conflitos de pedidos concorrentes no âmbito da CPLP e no âmbito do Mandado de Detenção Europeu

No âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal, pode haver uma situação conflitante de pedidos de extradição de mais de um Estado membro da CPLP. O art. 17.º da Convenção prevê a decisão sobre o pedido a que deva ser dada preferência, haja vista quando os pedidos se tratarem do mesmo crime, serão decididos pela seguinte ordem: (i) ao Estado cujo crime foi praticado em seu território; (ii) ao Estado cujo reclamado tenha residência habitual; (iii) e não havendo nenhum destas hipóteses, dará preferência ao Estado que primeiro apresentou o pedido.[54]

Quando se tratar de pedidos de crimes distintos: (i) será dada preferência ao Estado requerente que apresentou o pedido sobre o crime mais grave. Entretanto, caso houver aqui igualdade de gravidade nos crimes; (ii) dar-se-á preferência ao Estado que primeiro apresentou o pedido.[55] Todavia, estas causas somente serão aplicadas no âmbito de conflito de pedidos entre os Estados membros da CPLP.

Também pode haver, maisprecisamente no âmbito jurídico português, um conflito entre um pedido de extradição de um Estado membro da CPLP, conflitante com um pedido de Mandado de Detenção Europeu, que tem por objeto a mesma pessoa reclamada. Nesse caso, haveria a impossibilidade da aplicação da resolução de conflitos com base na Convenção em estudo, uma vez que, esta não prevê a resolução de conflitos de pedidos de extradição em casos de países terceiros. Contudo, o art. 23.º, n. 3, da Lei 65/2003 de Portugal, que versa sobre o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, dispõe sobre a hipótese de conflito entre um Mandado de Detenção Europeu e um pedido de extradição apresentado por um país terceiro. Pela dicção deste art. 23.º, a decisão a qual pedido deverá ser procedido leva-se em conta as circunstâncias da gravidade da infração, o lugar da prática da infração e a data dos pedidos.[56]

Apesar da disposição deste artigo 23 da Lei 65/2003, entendo que para a satisfação deste conflito de pedidos no caso do Estado requerido ser Portugal, deve ser aplicada a Lei 144/99, mais precisamente seu art. 37.º e números seguintes, uma vez que a referida lei rege as formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal na falta ou insuficiência de convenções, tratados ou acordos internacionais. Tal consideração está embasada no disposto do art. 3.º, n. 1, da presente Lei.[57]

De tal sorte, os pedidos concorrentes entre um pedido formulado por um Estado Membro da CPLP e um Mandado de Detenção Europeu devem ser decididos com base nas regras do art. 37.º da Lei 144/99, os casos de pedidos referentes aos mesmos fatos dando a preferência ao Estado onde foi praticada a infração, ou, tratando-se de fatos diferentes, deve ser levada em conta a gravidade da infração, segundo a lei portuguesa, a data do pedido, a nacionalidade ou a residência do extraditando.[58]

6. Pedido de Mandado de Detenção Europeu no caso de um brasileiro beneficiário do Estatuto de Igualdade previsto pelo Tratado da Amizade de 2000

Conforme fora sustentando anteriormente, o art. 18 do Tratado de Amizade de 2000, que institui o regime do Estatuto de Igualdade entre brasileiros e portugueses, dispõe que os nacionais brasileiros e portugueses somente poderão ser extraditados para os referidos Estados se o nacional for requerido pelo Estado de sua nacionalidade.[59] Por derradeiro, não será possível o Estado português conceder extradição para nacional brasileiro para outro país ou vice-versa, salvo se o nacional requerido não for portador do regime de igualdade de direitos. Entretanto, surge a indagação de como se deveria proceder na existência de um pedido de Mandado de Detenção Europeu, no caso de um brasileiro beneficiário deste Estatuto de Igualdade.

Primeiramente, cabe dizer que no ordenamento jurídico português é admissível a extradição de cidadãos portugueses do território nacional, hipótese prevista pelo art. 33.º da CRP e pelo art. 32.º da Lei 144/99. Todavia, devem ser observadas as garantias e como condição “a extradição só terá lugar para procedimento se o Estado requerente der a garantia da devolução da pessoa extraditada a Portugal, para cumprimento da pena ou medida que lhe venha a ser aplicada, após revisão e confirmação nos termos do direito português, salvo se essa pessoa se opuser à devolução por declaração expressa”.[60]

Esse entendimento tem como fundamento o princípio da reserva de soberania, prevista na alínea g do n. 1 do art. 12.º da Lei 65/2003. Concede ao Estado da execução a hipótese de recusa à execução de extradição, no caso de mandado para cumprimento de uma pena, desde que o extraditado em questão seja seu nacional. Contudo, este Estado deve se comprometer a executar a pena. A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão.[61]

Dessas premissas, pode-se entender que o cidadão brasileiro beneficiário do Estatuto de Igualdade de Direitos previsto pelo Tratado da Amizade de 2000, gozará dos mesmos direitos que correspondem às garantias e condições de extradição de nacional português, ou seja, no presente caso, o cidadão brasileiro pode ser objeto de entrega de um Mandado de Detenção Europeu. Porém, assim como o nacional português, sua entrega deve ser condicionada à devolução do requerido a Portugal, com o intuito de cumprimento da pena ou medida que lhe venha a ser aplicada. Este entendimento tem embasamento no art. 18 do Tratado da Amizade de 2000 e na alínea g do n. 1 do art. 12.º da Lei 65/2003.

7. Conclusão

Com um fundamento estrito à cooperação internacional em matéria penal, a Convenção de extradição entre a Comunidade de Países de Língua Portuguesa é direcionada ao dever de entrega recíproca de pessoas reclamadas havidas em seu território. O presente artigo denotou as novas possibilidades de extradição entre Brasil e Portugal, dispondo mudanças significativas quanto à inadmissibilidade e à recusa facultativa de extradição.

Ficou demonstrada a evolução dos Tratados de cooperação internacional, no tocante à extradição entre Brasil e Portugal. O Tratado de extradição anterior dispunha pela inadmissibilidade expressa de extradição de seus nacionais. Entretanto, a referida Convenção assegurou o dever de extradição entre todos os países da comunidade de língua portuguesa, e, ainda, abriu a possibilidade de extradição de nacionais.

Todavia, vimos que a possibilidade de extradição de nacionais no âmbito da referida Convenção não é cabível pelas Constituições do Brasil e de Portugal, uma vez que, as legislações portuguesa e brasileira não criam reciprocidade, por meio da existência de um Tratado ou Convenção que possibilite a extradição de nacionais entre estes Estados. A extradição de nacionais neste caso concreto não seria admissível, mesmo diante da Convenção de extradição da CPLP que abre a possibilidade da extradição de nacionais.

Portanto, na presente exposição, procurou-se desenvolver o estudo no sentido de oferecer substrato suficiente ao entendimento do que consiste a Convenção de Extradição entre a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, dando enfâse às legislações constitucionais de Portugal e do Brasil e, nesse diapasão, trazer as principais características e os procedimentos mais relevantes acerca da extradição entre estes dois países.

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XIV Conferência Trilateral dos Tribunais Constitucionais de Espanha, Itália e Portugal, Extradição e mandado de detenção europeu enquanto formas de cooperação internacional em matéria penal e fiscalização da constitucionalidade, Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal elaborado pela Juíza Conselheira Maria José  Rangel de Mesquita e Cristina Sousa Machado assessora do Gabinete dos Juízes,  Lisboa, novembro de 2012.

Site do Gabinete de Documentação e Direito Comparado, .

Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. Processo: 94/11.3YRCBR.A.S1.Disponível em .

Supremo Tribunal Federal brasileiro: HC 83.113-QO, Rel. Min. Celso de Mello,  julgamento em 26.06.2003, Plenário, DJ de 29.08.2003.

Supremo Tribunal Federal brasileiro. Tribunal Pleno. Ext. 855. Rel. Min. Celso de Mello.  Brasília, 26 ago. 2004. DJ de 1.º.07.2005.

[1] Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa, Diário da República, 1.ª série – N. 178 – 15 de Setembro de 2008.

[2] Jacó, Gilcelle Benício. A extradição de portugueses frente ao tratado de cooperação, amizade e consulta entre Brasil e Portugal. Disponível em: . Acesso em 01.03.2013.

[3] Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa, Preâmbulo.

[4] Site do Gabinete de Documentação e Direito Comparado. Disponível em: . Acesso em 1. mar. 2013.

[5] Decreto presidencial n. 7.935, de 19 de fevereiro de 2013. Disponível em: . Acesso em 1.º mar. 2013.

[6] Convenção de Extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa, art. 1.º.

[7] Convenção de Extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa, n. 1 do art. 25.º.

[8] Canotilho, Gomes; Moreira, Vital. Constituição anotada. Coimbra: Almedina, ed. 93, p. 86, citados Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, Processo: 94/11.3YRCBR.A.S1. disponível em: . Acesso em: 1.º mar. 2013.

[9] Gomes, Luiz Flávio. Tratados internacionais: valor legal, supralegal, constitucional e supraconstitucional. Revista de Direito, v. XII, n. 15, p. 10, 2009.

[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, Processo: 94/11.3YRCBR.A.S1. op. cit.

[11] Idem, ibidem. “I – Os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – entre os quais se contavam Portugal e o Brasil – subscreveram, em 23.11.2005, uma Convenção sobre Extradição, a qual foi aprovada entre nós pela Resolução da AR n. 49/2008, de 18-07, in DR I-Série n. 178, de 15-09-2008, tendo entrado em vigor em 01.03.2010. III – Após a sua aprovação e publicação oficial as normas insertas nas convenções internacionais vigoram na ordem jurídica interna, com um valor nunca inferior à lei ordinária interna – cf. art. 8.º, ns. 1 e 2, da CRP. IV – Significa isto que o regime definido na referida Convenção de Extradição revogou a regulamentação fixada na Lei 144/99, de 31.08, no que diz respeito à cooperação judiciária entre os Estados contratantes. V – A extradição, segundo a mencionada Convenção, pode ser precedida do pedido de detenção provisória, dirigido à Interpol, identificando se é para fins de procedimento criminal ou cumprimento de pena, com descrição do tempo da prática dos factos, a data, o local, a identificação da pessoa e o propósito de se proceder à extradição – cf. art. 21.º, ns. 1, 2 e 3”.

[12] “Artigo III – Inadmissibilidade de Extradição, 1. Não terá lugar a extradição nos seguintes casos:

a) ser a pessoa reclamada nacional da Parte requerida”.

[13] “Art. 4.º Recusa facultativa de extradição, A extradição poderá ser recusada se:

a) A pessoa reclamada for nacional do Estado requerido”.

[14] “Artigo III – Inadmissibilidade de Extradição, 1. Não terá lugar a extradição nos seguintes casos:

(...) f) ser a infração punível com pena de morte ou prisão perpétua.”

[15] “Art. 4.º Recusa facultativa de extradição, A extradição poderá ser recusada se:

(...) b) O crime que deu lugar ao pedido de extradição for punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida.”

[16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, Processo: 94/11.3YRCBR.A.S1            

[17] Tratado de amizade, cooperação e consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa. Disponível em: <http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/5B9F2CE5-F6C5-499A-BEC0-456C73EE67C9/571/Ressol_l_83_2000acordobrasil.pdf>. Acesso em: 1.º mar. 2013.

[18] Frazão, Ana Carolina. Uma breve análise sobre o direito à nacionalidade. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2005.

[19] Tratado de amizade, cooperação e consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, art. 12. "Os portugueses no Brasil e os brasileiros em Portugal, beneficiários do estatuto de igualdade, gozarão dos mesmos direitos e estarão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais desses Estados, nos termos e condições dos artigos seguintes".

[20] Tratado de amizade, cooperação e consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, art. 15.º. "O estatuto de igualdade será atribuído mediante decisão do Ministério da Justiça, no Brasil, e do Ministério da Administração Interna, em Portugal, aos brasileiros e portugueses que o requeiram desde que civilmente capazes e com residência habitual no país em que ele é requerido".

[21] Jacó, Gilcelle Benício. A extradição de portugueses frente ao tratado de cooperação, amizade e consulta entre Brasil e Portugal, p. 9. Disponível em: . Acesso em: 3 mar. 2013.

[22] "Extradição. Prisão preventiva. Excesso de prazo. Pedido formalizado. extraditando casado com brasileira. Súmula 421 do STF. Decreto 70.391/72. Ausência de comprovação da condição de beneficiário da igualdade de direitos e deveres. Prescrição: presunção de sua inocorrência. Entendimento do STF. I – Formalizado o pedido de extradição, fica prejudicada a argüição de excesso de prazo da prisão preventiva. Precedentes do STF. II – Casamento do extraditando com brasileira. Fato irrelevante. Verbete 421 da Súmula do STF. III – O português no Brasil e o brasileiro em Portugal não gozam automaticamente da igualdade de direitos e deveres prevista na Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses (Decreto 70.391/72). Conforme dispõe o art. 5.º da Convenção, cabe à pessoa natural interessada requerer tal benefício junto à autoridade competente. Incumbe a defesa demonstrar que o extraditando goza do benefício estatutário para eventual aplicação de seu art. 9.º. Demonstração que não ocorreu. IV – Quanto ao tema da prescrição, o STF tem jurisprudência a dizer – à vista da insuficiência do acervo documental produzido – da presunção de sua inocorrência. Extradição deferida" STF. Tribunal Pleno. Ext 674/FR – França. Rel. Min. Francisco Rezek. J. 12.12.1996).

[23] Tratado de amizade, cooperação e consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, art. 18: "Os brasileiros e portugueses beneficiários do estatuto de igualdade ficam submetidos à lei penal do Estado de residência nas mesmas condições em que os respectivos nacionais e não estão sujeitos à extradição, salvo se requerida pelo Governo do Estado da nacionalidade".

[24] XIV Conferência Trilateral dos Tribunais Constitucionais de Espanha, Itália e Portugal Extradição e mandado de detenção europeu enquanto formas de cooperação internacional em matéria penal e fiscalização da constitucionalidade Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal elaborado pela Juíza Conselheira Maria José Rangel de Mesquita e Cristina Sousa Machado assessora do Gabinete dos Juízes, p. 8, Lisboa, nov. 2012.

[25] XIV Conferência Trilateral dos Tribunais Constitucionais de Espanha, Itália e Portugal Extradição e mandado de detenção europeu enquanto formas de cooperação internacional em matéria penal e fiscalização da constitucionalidade Relatório do Tribunal Constitucional de Portugal elaborado pela Juíza Conselheira Maria José Rangel de Mesquita e Cristina Sousa Machado assessora do Gabinete dos Juízes, p. 9 Lisboa, nov. 2012.

[26] Idem, ibidem. Na Comunidade dos Países de Língua portuguesa (CPLP), são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros com excepção de uma reserva absoluta de direitos em favor dos nacionais – pelo que à partida tal categoria de estrangeiros poderia beneficiar do direito que os nacionais têm a não serem extraditados, salvo nos casos excepcionais previstos desde a revisão constitucional de 1997. No âmbito da categoria de estrangeiros nacionais de Estados de língua oficial portuguesa, apenas aos nacionais do Brasil e com fundamento em Convenção internacional bilateral pode ser reconhecido um estatuto de igualdade, incluindo de igualdade de gozo de direitos políticos, pelo que o direito à não extradição em geral (e, em especial, às garantias específicas em matéria de extradição quando ela seja admissível em relação aos cidadãos nacionais) poderá ser reconhecido apenas aos nacionais do Brasil. O Tratado de Porto de Seguro de 2000 prevê expressamente, tal como a lei interna que o regulamenta, que os portugueses e brasileiros beneficiários do estatuto de igualdade não estão sujeitos à extradição, salvo se requerida pelo Estado da nacionalidade, pelo que ao abrigo deste Tratado um cidadão brasileiro beneficiário do estatuto de igualdade, com reserva do disposto no Tratado de extradição entre os países da CPLP, não pode ser extraditado para país terceiro que não seja um país membro da CPLP. E a Convenção de Extradição entre os Estados membros da CPLP consagra, entre os Estados partes, à semelhança da Constituição portuguesa, a proibição, em absoluto, de extradição, entre outros casos, quando se trate de crime punível com pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física.

[27] Cf. art. 25.º da Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[28] Os tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro: análise das relações entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno Estatal, Carina de Oliveira Soares, disponível em: , acesso em: 3 mar. 2013.

[29] Cf. art. 2.º da Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[30"> Tratado de extradição entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo da República Portuguesa, art. 2.º, n. 2.

[31] Cf. art. 31, n. 4, da Lei 144/99 de Portugal.

[32] Cf. art. 3.º, da Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[33] Cf. art. 3.º, n. 2, da Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[34] Cf. art. 3.º da Convenção de extradição entre os Estados Membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[35] Cf art. 4.º alínea b, da Convenção de extradição entre os Estados membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[36] Constituição da República da Guiné-Bissau,art. 36.º, n. 2 – Haverá pena de prisão perpétua para os crimes a definir por lei.

[37] Cf art. 4.º da Convenção de extradição entre os Estados membros da comunidade dos países de língua portuguesa.

[38] Constituição Federal do Brasil, art. 5.º, inciso LI. Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.

[39] Constituição Federal do Brasil, art. 12.º, inciso I e suas respectivas alíneas. “I – natos:

a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;

b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;

c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira”.

[40] Constituição Federal do Brasil, art. 12.º, inciso II e suas respectivas alíneas. "II – naturalizados:

a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;

b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira

[41"> O brasileiro nato, quaisquer que sejam as circunstâncias e a natureza do delito, não pode ser extraditado, pelo Brasil, a pedido de Governo estrangeiro, pois a CR, em cláusula que não comporta exceção, impede, em caráter absoluto, a efetivação da entrega extradicional daquele que é titular, seja pelo critério do jus soli, seja pelo critério do jus sanguinis, de nacionalidade brasileira primária ou originária. Esse privilégio constitucional, que beneficia, sem exceção, o brasileiro nato (CF, art. 5.º, LI), não se descaracteriza pelo fato de o Estado estrangeiro, por lei própria, haver-lhe reconhecido a condição de titular de nacionalidade originária pertinente a esse mesmo Estado (CF, art. 12, § 4.º, II, a). Se a extradição não puder ser concedida, por inadmissível, em face de a pessoa reclamada ostentar a condição de brasileira nata, legitimar-se-á a possibilidade de o Estado brasileiro, mediante aplicação extraterritorial de sua própria lei penal (CP, art. 7.º, II, b, e respectivo § 2.º) – e considerando, ainda, o que dispõe o Tratado de Extradição Brasil/Portugal (Art. IV) –, fazer instaurar, perante órgão judiciário nacional competente (CPP, art. 88), a concernente persecutio criminis, em ordem a impedir, por razões de caráter ético-jurídico, que práticas delituosas, supostamente cometidas, no exterior, por brasileiros (natos ou naturalizados), fiquem impunes". (HC 83.113-QO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26.6.2003, Plenário, DJ 29.08.2003.). Disponível em: . Acesso em: 10.03.2013.

[42] "Ademais, se esta naturalização foi procedida antes ao pedido de extradição pelo qual é sujeito requerido, a extradição somente será procedente se for considerado crime de tráfico internacional de drogas. Porém, se a imputação ao sujeito requerido se tratar de crime comum, a extradição somente será procedida se a naturalização foi posterior a data do crime imputado, conforme decidido pelo acórdão do STF" (HC 83.113-QO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26.06.2003, Plenário, DJ 29.08.2003). Disponível em: . Acesso em: 10.03.2013.

[43] Constituição da República Portuguesa, art. 33.º, n. 3.

3. A extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo.

[44">Bucho, José Manuel da Cruz; Pereira, Luís Silva; Azevedo, Maria da Graça Vicente; Serrano, Mario Mendes. Cooperação internacional penal. Centro de Estudos Judiciários, 2000. v. I, p 54.

[45">Souza, Marcelo Rebelo de; Alexandrino, José de Melo. Constituição da República Portuguesa: comentada: introdução teórica e histórica, anotações, doutrina e jurisprudência, Lei do Tribunal Constitucional. Lisboa: Ed. Lex, 2000. p. 123.

[46] Parecer da Procuradoria Geral da República, relator Alberto Augusto Oliveira, 22.05.2000, disponível em: . Acesso em: 07.03.2013.

[47] Canotilho, José Joaquim Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa – Anotada. v. I, p. 532.

[48] Data do Acórdão:18.04.2012 Votação: unanimidade Meio Processual: Extradição/M.D.E. Decisão: Provido em parte. Área Temática: Cooperação internacional em matéria penal – Mandado de Detenção Europeu. "Sumário: Como a pessoa procurada tem cidadania portuguesa, a entrega fica sujeita à prestação pelas Autoridades Judiciárias do Reino Unido da garantia consignada no art. 13.º, al. c), da Lei 65/2003, de 23-08, isto é, de que o ora recorrente, após ser ouvido ou julgado, será devolvido a Portugal, para aqui cumprir a pena em que, eventualmente, venha a ser condenado naquele Estado. A Exma. Procuradora-Geral Distrital Adjunta no Tribunal da Relação de Lisboa promoveu em 30 de Agosto de 2011, ao abrigo do disposto do art. 16.º, n. 1, da Lei 65/03, de 23 de Agosto, a execução do mandado de detenção europeu emitido em 19 de Julho de 2011 pelas Autoridades Judiciárias do Reino Unido – no concreto caso, o District Judge John Zani, do City of Westminster Magistrates' Court, London – com vista à detenção e entrega do cidadão nacional, AA, nascido em 26 de Setembro de 1981, residente que foi em Inglaterra, com última residência conhecida em Portugal, na V… F… das M…, n. x, S… G…, Funchal, e actualmente na Rua M… dos H…, n. xx, S… M… M…, Funchal, Madeira, para procedimento criminal, por alegada prática de quatro infracções criminais, a saber (neste particular, há que necessariamente ter em conta algumas manifestas deficiências de tradução, como no caso da referência a 'rixa, e a 'liberdade condicional') Decisão: devendo proceder-se à entrega do mesmo cidadão, após prestação de garantia, nos exactos termos e condicionalismos descritos na decisão recorrida".

[49] Paula, Luiz Augusto Módolo. Extradição e comutação da pena de prisão perpétua, a mudança na posição do Supremo Tribunal Federal. Disponível em:. Acesso em: 10 mar. 2013.

[50] "Extradição e prisão perpétua: necessidade de prévia comutação, em pena temporária (máximo de 30 anos), da pena de prisão perpétua – Revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em obediência à declaração constitucional de direitos (CF, art. 5.º, XLVII, b). – A extradição somente será deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5.º, XLVII, b, da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva.(...)" (STF. Tribunal Pleno. Ext. 855. Rel. Min. Celso de Mello. Brasília, 26.08.2004.

[51] Constituição da República Portuguesa, art. 33.º, n. 4.

4. Não é admitida a extradição por motivos políticos, nem por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física.

[52] Proibições constitucionais de extraditar em função da pena aplicável (O Estatuto Constitucional das proibições de extraditar fundadas na natureza da pena correspondente ao crime segundo o direito do Estado requerente, antes e depois da lei Constitucional 1/97), Pedro Caeiro, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, a Inclusão do Outro, p. 166.

[53] Extradição – Pena de morte e de prisão perpétua, Fernando João Ferreira Ramos, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, a Inclusão do Outro, p. 115.

[54] Art. 17, n. 2, da referida Convenção. "2.Quando os pedidos se referirem a um mesmo crime, o Estado requerido deverá dar preferência pela seguinte ordem:

a) ao Estado em cujo território tenha sido cometido o crime;

b) ao Estado em cujo território tenha residência habitual a pessoa reclamada; e

c) ao Estado que primeiro apresentou o pedido".

[55] Art. 17, n. 3, da referida Convenção. "Quando os pedidos se referirem a crimes distintos, o Estado requerido dará preferência ao Estado requerente que seja competente relativamente ao crime mais grave. Havendo igual gravidade, dar-se-á preferência ao Estado que primeiro tenha apresentado o pedido".

[56] Lei 65/2003, art. 23.º, ns. 1 e 3.

[57] Art. 3.º: "Prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais. 1 – As formas de cooperação a que se refere o art. 1.º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma".

[58] Art. 37.º, n. 1, da Lei 144/99. "Pedidos de extradição concorrentes

1 – No caso de diversos pedidos de extradição da mesma pessoa, a decisão sobre o pedido a que deva ser dada preferência tem em conta:

a) Se os pedidos respeitarem aos mesmos factos, o local onde a infracção se consumou ou onde foi praticado o facto principal;

b) Se os pedidos respeitarem a factos diferentes, a gravidade da infracção, segundo a lei portuguesa, a data do pedido, a nacionalidade ou residência do extraditando, bem como outras circunstâncias concretas, designadamente a existência de um tratado ou a possibilidade de reextradição entre os Estados requerentes.

2 – O disposto no número anterior entende-se sem prejuízo da prevalência da jurisdição internacional nos casos a que se reporta o n. 2 do art. 1.º.

3 – O disposto nos números anteriores é aplicável, com as devidas adaptações, para efeitos de manutenção da detenção antecipada".

[59] Art. 18.º: "Os portugueses e brasileiros beneficiários do estatuto de igualdade ficam submetidos à lei penal do Estado de residência nas mesmas condições em que os respectivos nacionais e não estão sujeitos à extradição, salvo se requerida pelo Governo do Estado da nacionalidade".

[60] Graça, António Pires Henriques da. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu. Disponível em: . Acesso em: 12 mar.2013. p. 26.

[61] Idem, ibidem, p. 27.

Saulo Ramos Furquim

Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

Especialista em Ciências Criminais.

Advogado.

Escolas Penais
A (re)interpretação do papel da progressão de regime de cumprimento de pena à luz do pensamento de Alessandro Baratta
Data: 24/11/2020
Autores: Thalita A. Sanção Tozi

“(...) a função que a prisão sempre teve e continua tendo: a de depósito de indivíduos isolados do resto da sociedade, neutralizados em sua capacidade de ‘causar mal’ a ela”. [1]

Resumo: O presente trabalho tem a finalidade de interpretar a atual situação de dificuldade de acessar a progressão de regime de cumprimento de pena dos estrangeiros em privação de liberdade no Brasil, à luz dos pensamentos de Alessandro Baratta. Para isso, serão analisados os argumentos de uma decisão judicial denegatória de progressão de regime de executado estrangeiro associando à desconstrução da função ressocializadora da pena. Além de se visitar aspectos das obras do autor, este estudo possibilita vislumbrar a atualidade de seus postulados, e a necessidade de se avançar no pensar do Direito Penal. 

Palavras-chave: Estrangeiro – Progressão de Regime – Ressocilização – Criminologia Crítica – Alessandro Baratta.

Abstract: This paper aims to interpret the current situation of difficulty in accessing the progression of penalty compliance regime of foreigners in prison settings in Brazil, in the light of the thoughts of Alessandro Baratta. For this, the arguments of a court decision that denied sentenced foreigners the progression-run regime will be analyzed tying associating them with the deconstruction of a resocializing function of the sentence. In addition to  exploring aspects of the author's works, this study makes it possible to glimpse the relevance of their principles, and the need for the advancement of Criminal Law thinking.

Keywords: Foreign - System of Progression - Resocilization - Critical Criminology - Alessandro Baratta.

Sumário: Introdução – 1. Contextualização da obra de Alessandro Baratta – 2. Desconstruindo a ressocialização – 3. A ressocialização na Legislação Penal – 4. A ressocialização na decisão jurisprudencial: réu estrangeiro: 4.1 O estrangeiro em território nacional; 4.2 A Expulsão do condenado estrangeiro; 4.3 A (re)interpretação do papel dos benefícios na execução penal de réu estrangeiro, à luz dos conceitos de Alessandro Baratta – Conclusões – Anexo: Algumas decisões judiciais. Referências bibliográficas.

Introdução

Nascido em Roma, Alessandro Baratta (1993-2002) dedicou-se por muitos anos ao estudo da filosofia do direito e da sociologia jurídica. Em meados dos anos 1970, afastou-se da teoria clássica dessa temática, passando a se debruçar no estudo do marxismo e da criminologia crítica. O autor é considerado um grande expoente do pensamento crítico do direito penal e da criminologia, e grande desconstrutor da função ressocializadora da pena de prisão.

À luz de suas ponderações sobre a função da pena, trazida em sua principal obra: Criminologia crítica e crítica do direito penal, este trabalho busca refletir sobre a função da pena privativa de liberdade e (re)interpretar a estrutura e o papel da progressão de regime de cumprimento de pena na execução penal, em especial para o caso de preso estrangeiro em território nacional, com decreto de expulsão.

1. Contextualização da obra de Alessandro Baratta

Ao contextualizar a discussão sobre a ressocialização como função penal, Baratta faz uma análise da sistemática das sociedades modernas capitalistas. Segundo o autor, essas sociedades estariam estruturadas em dois extremos: de um lado, uma classe rica dominante, detentora dos meios de produção; de outro, uma massa populacional excluída, cuja mão de obra é explorada. Ou seja, a classe dominante, composta pelas parcelas mais ricas e influentes da sociedade, detentoras dos espaços de poder e decisão, e compartilhadoras de valores morais, ideais, a fim de proteger seus interesses, promoveria a exclusão da população desinteressante.

A exclusão estaria diretamente ligada à desigualdade. Desigualdade esta revelada na distribuição de bens e recursos materiais, de acesso ao conhecimento, compondo um cenário social estratificado e com a visível marginalização de uma massa em situação econômica desvantajosa, distanciada dos padrões de consumo impostos pela classe dominante. Dentro da lógica de produção capitalista, como o valor essencial seria consumir e gerar capital, essa massa estaria em constante discriminação.

As engrenagens partes da grande máquina estatal que trabalhariam na exclusão social a serviço da parcela dominante, apontadas pelo autor, seriam o sistema educacional das escolas e o sistema penal, culminando na exclusão física desses indivíduos por meio do cárcere. O processo de criminalização estamparia o conflito entre os detentores e os submetidos ao poder.

No que tange ao sistema penal, a sua operação estaria imbuída da parcialidade na promoção dos interesses da classe dominante, visto ser ela a ocupar os cargos estratégicos nessa situação. Em um primeiro momento, chamado de criminalização primária, a construção dos tipos penais selecionaria determinados bens a serem protegidos, assim como os valora, por meio do montante de pena estabelecido. Nesse aspecto, é possível identificar, por exemplo, o bem patrimonial superprotegido e com penas altíssimas – interesse de proteção daqueles possuidores de bens.

Em um segundo momento, conhecido por criminalização secundária, a aplicação da legislação se daria de formas distintas em função do sujeito réu do processo-crime, a depender da identificação [2] do aplicador da norma com a apresentação física e social réu.

Esse contexto refere-se à “seletividade do sistema penal”. Dessa forma, o direito penal é corresponsável na produção e reprodução das relações desiguais, contribuindo para a manutenção da escala vertical social.

“Pesquisa empírica tem ilustrado as diferentes atitudes avaliativas e emotivas dos juízes diante de pessoas pertencentes a diferentes classes sociais. (...) Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência de parte dos juízes de esperar comportamento em conformidade com a lei de indivíduos pertencentes às classes média e alta e comportamento bastante contrário de indivíduos pertencentes às classes mais baixas”. [3]

Destarte, a função da pena privativa de liberdade, segundo o autor, é neutralizar, excluir, depositar indivíduos não interessantes à manutenção do sistema econômico social, isolando-os da sociedade. O sistema penal acentua o abismo social existente entre as classes da sociedade capitalista, atuando como uma ferramenta para a manutenção do status quo social estrutural.

“(...) O cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência social etc.”. [4]

2. Desconstruindo a ressocialização

É possível estabelecer certa herança advinda do positivismo criminal quando se pensa na ressocialização do delinquente, no que tange à maneira de enxergar o sujeito autor do delito. O homem criminoso é julgado um ser inferior, anormal, diferenciado daqueles não infratores da norma penal. Estabelece-se relação hierárquica, baseada na necessidade de intervir para ensinar ao delinquente os valores e a moral dominante na sociedade, a fim de evitar sua reincidência. Sua “socialização” é considerada inapropriada ou inexistente. Percebe-se uma postura passiva por parte do encarcerado e ativa por parte da instituição, restando ao sujeito encarcerado o papel de objeto de intervenção durante a execução penal.

Essencialmente, a ressocialização liga-se a preceitos correcionalistas, sendo a punição uma ferramenta pedagógica para que os criminosos compreendam e internalizem os valores dos cidadãos de bem, [5] simbolizados por meio dos tipos penais vigentes naquele contexto social. Trata-se de objetivos funcionais de adaptação àquela sociedade. Dentre as ferramentas possíveis para atingir essa meta, há a escola, o trabalho e intervenções médicas e psíquicas.

“A ressocialização implica um processo de ‘aprendizagem’ e de ‘interiorização’ de valores que se percebem e aceitam como tais por parte da sociedade e do indivíduo. Tem, pois, um fundamento moral e valorativo (axiológico), além de um mecanismo particular de aprendizagem e asseguramento (pedagógico)”. [6]

Baratta desconstrói dois dos instrumentos principais do ideário ressocializador: o trabalho e o estudo. Ao se debruçar sobre a questão do trabalho e seu engajamento atrás das grades, o autor retoma a matriz histórica da transição do sistema de produção artesanal para a lógica industrial, ligando-a diretamente ao cárcere e ao ideal do trabalho na execução penal. O sistema industrial trouxe a necessidade de fazer a “massa indisciplinada de camponeses” detentores de seus meios de produção adaptar-se à disciplina das fábricas modernas. Logo, a disciplina e o trabalho tornaram-se a base da prisão. [7] Para além dessa contextualização, o autor tece críticas ao ambiente carcerário e à maneira que o trabalho e o estudo são postos.

A educação capaz de ressocializar o ser humano deveria ser pautada em modelos que estimulassem a sua individualidade, o respeito aos outros e o autorrespeito, para promover a liberdade e a espontaneidade. No entanto, o universo prisional é repressivo e nivelador, baseado na disciplina e na violência, em que os presos são submetidos a um regime de privações totais. As condições do cárcere aliadas a esses instrumentos disponíveis estariam longe de auferir tal escopo. [8]

A ressocialização não passaria de um ideal não alcançado e não alcançável. Diante dessa desconstrução, o autor compartilha sua concepção de função da pena privativa de liberdade, refletindo sobre a relação existente entre a sociedade e o cárcere:

“Antes de tudo, esta relação é uma relação entre quem exclui (sociedade) e quem é excluído (preso). Toda a técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode ao mesmo tempo, excluir e incluir”. [9]

Inserido nesse ambiente desumano e excluído da sociedade, o indivíduo não seria reeducado, mas estaria rendido ao processo de “desculturação”. Nesse processo, o encarcerado se desadapta da vida em liberdade, distanciando-se do senso de vivência em grupo e de possuir vontade própria, restando com a ausência de sociedade em si mesmo.

Distanciado da noção do senso de sociedade, o preso seria “prisionizado”, isto é, suportaria o processo assimilador de modelos disciplinares de comportamentos, além dos valores e dos modelos de comportamento da “subcultura carcerária” – passa a compreender o que é ser um bom preso. Seriam esses os processos [10] educativos disponíveis na prisão.

Os encarcerados apreendem e pacificam a sua situação de desigualdade e o seu papel de submissão, de excluído, que deve preencher mesmo ao sair do cárcere. A mensagem passada é a de respeitar as leis daquela sociedade, ainda que não concorde, ainda que não se sinta pertencente a ela. Desta feita, o autor repensa a educação e a reinserção social, pois “a verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, (...): antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão”. [11]

A concepção da ressocialização como função da pena mostrou-se uma falácia aos olhos do autor. A pena privativa de liberdade não faz mais do que retribuir o mal causado, de maneira cruel – considerando as condições desumanas dos cárceres. A (re)integração do indivíduo em situação de privação à liberdade na sociedade deve ser realizado apesar do cárcere, e não por meio dele, pois a prisão não é meio que auxilie na persecução deste objetivo, mas um grande obstáculo.

“Por isso, a função do cárcere na produção de indivíduos desiguais é, hoje, não menos importante. Atualmente o cárcere produz, recrutando-o principalmente das zonas mais depauperadas da sociedade, um setor de marginalizados sociais particularmente qualificados para a intervenção estigmatizante do sistema punitivo do Estado e para a realização daqueles processos que, ao nível da interação social e da opinião pública, são ativados pela pena, e contribuem para realizar o seu efeito marginalizador e atomizante”. [12]

3. A ressocialização na legislação penal

As teorias de determinação da finalidade da pena privativa de liberdade são presentes desde que existe o cárcere. Diversas teorias foram elencadas, sendo que a perspectiva que prepondera atualmente é a chamada finalística. Nessa teoria, reflete-se a retribuição do mal cometido à sociedade, dentro de parâmetros de “proporcionalidade” ao ato cometido. Conjugada à retribuição, haveria aspectos de prevenção geral, a fim de inibir a sociedade a infringir a lei – haja vista a pena imposta; e de prevenção especial, buscando inibir o próprio autor do delito a reincidir. Nesse campo de inibição do autor está a ressocialização.

O Código Penal de 1940 estabelece algumas metas ressocializadoras para que o condenado venha a cumprir de forma progressiva a sua pena de prisão, no caso de se adaptar e cumpri-las. No mesmo sentido, observa-se na exposição de motivos da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984):

“Sem questionar profundamente a grande temática das finalidades da pena, curva-se o Projeto, na esteira das concepções menos sujeitas à polêmica doutrinária, ao princípio de que as penas e medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade”. [13]

Já no art. 1.º da Lei de Execução Penal, tem-se: “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. [14] Percebe-se como uma das orientações estruturantes da execução penal a busca pela ressocialização do apenado. Nessa conjuntura, inserem-se os ditos “benefícios da execução penal”.

Dentro do recorte temático dos “benefícios” da execução penal, a análise recairá sobre a progressão de regime para cumprimento de execução de pena. O conceito por trás desse instituto seria a readaptação do condenado à sociedade progressivamente, a fim de alcançar sua ressocialização completa. Dessa forma, aufere-se a possibilidade da passagem de um regime mais severo para um regime mais brando (fechado, semiaberto e aberto), por meio da análise de critério objetivo (tempo de cumprimento da pena) e subjetivo (mérito).

O critério subjetivo aduz perceber a adaptação progressiva do apenado ao regime disciplinar carcerário, pois este seria indício de ressocialização parcial. Esse critério é constatado, a depender do requerimento do juiz de execução criminal, por meio de atestado de boa conduta carcerária, indícios de participação [15] de estudo e trabalho, não cometimento de faltas disciplinares, exames técnicos etc.

4. A ressocialização na decisão jurisprudencial: réu estrangeiro

Respaldando a legislação na atuação prática dos aplicadores do direito, optou-se por analisar uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo referente à execução penal de um réu estrangeiro cumprindo pena em território nacional.

O Acórdão [16] 2013.0000127497 da 3.ª Câmara Criminal contou com a participação dos Des. Ruy Alberto Leme Cavalheiro, Amado de Faria e Toloza Neto (relator). Trata-se de Agravo de Execução Penal 0020039-67.2013.8.26.0000, em que o Ministério Público é o agravante, em face de I.M.G., estrangeiro.

Diante da decisão de primeira instância autorizadora da progressão ao regime semiaberto, o parquet recorreu ao Tribunal de Justiça. Por votação unânime, os desembargadores cassaram a primeira decisão, revogando a concessão do benefício ao réu.

“O recurso merece provimento. Embora esteja preenchido o requisito objetivo, em razão do cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena imposta ao agravado, pela prática de crime de tráfico de entorpecentes e ter apresentado atestado de bom comportamento carcerário, não faz jus à progressão de regime prisional por ter sido decretada sua expulsão do país, conforme Portaria Ministerial 421, de 07.03.2012. A progressão do regime prisional, do fechado pra o semiaberto visa a reconduzir o reeducando ao convívio social, com o exercício de atividade laborativa externa, com o recolhimento ao estabelecimento prisional fora dos horários de trabalho. Por outro lado, a expulsão consiste na retirada compulsória do estrangeiro do território nacional. Depreende-se, portanto, tratarem-se de institutos incompatíveis. O decreto de expulsão obviamente impede o objetivo da ressocialização da progressão prisional. (...) Desta forma, dou provimento ao agravo em execução interposto, cassando a decisão de primeiro grau, determinando que o agravado I.M.G. retorne ao regime fechado, para o cumprimento do restante da pena que lhe foi imposta. (...) Deram provimento ao agravo em execução interposto, cassando a decisão de primeiro grau, determinando que o agravado I.M.G. retorne ao regime fechado, para o cumprimento do restante da pena que lhe foi imposta. V.u.”.

O desembargador relator enfatizou como impeditivo para a progressão do regime de cumprimento de pena o fato de o réu ser estrangeiro e ter sua expulsão decretada. [17] Claramente estabeleceu uma relação entre a progressão do regime fechado para o regime semiaberto como etapa do progresso ressocializador do indivíduo. Por conseguinte, haveria incoerência entre o esforço de inserção social e a expulsão do indivíduo – “o decreto de expulsão obviamente impede o objetivo da ressocialização da progressão prisional”.

Para adentrar na reflexão da ressocialização nessa decisão, preliminarmente é necessário esclarecer dois elementos: a posição do estrangeiro no regramento nacional e o significado do decreto de expulsão.

4.1 O estrangeiro em território nacional

Em linhas gerais, os direitos humanos determinam ser o homem detentor de direitos que devem ser resguardados independentemente do território em que ele se encontre. Dentre esses direitos, a igualdade de tratamento dos indivíduos é considerada princípio fundamental.

Partindo-se da legislação interna, a Constituição Federal de 1988 abrange como objetivo da nossa República Democrática de Direito a promoção do bem de todos, [18] incluindo nesse termo os estrangeiros. Especificamente na Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal o princípio da isonomia [19] aparece basilarmente na construção do raciocínio da sistemática da execução penal e da aplicação da legislação.

No que tange à proteção internacional, dispensando a análise da evolução histórica do direito internacional dos diretos humanos, busca-se destacar, ainda que brevemente, alguns tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Frisa-se que tais tratados, de acordo com o art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal, possuem força legal em território nacional:

– Dec. 65.810/1969: a “Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial”, além de reafirmar os direitos pertencentes a todos os seres humanos e encorajar sua observância e defesa sem quaisquer discriminações, ainda estabelece um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer outro órgão que administre a justiça (art. V, a);

– Dec. 592/1992: o “Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos” pontua a existência de uma família humana detentora de direitos iguais e inalienáveis, reafirmando a igualdade das pessoas perante os tribunais e cortes de justiça (art. 14, § 1.º). Além disso, indica como objetivo do regime penitenciário a reforma e a reabilitação normal dos prisioneiros (art. 10.º, § 3.º), e que toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, pelo menos, à garantia de ser informada, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada (art. 14, § 3.º, a);

– Dec. 678/1992: a “Convenção Americana sobre Direitos Humanos” (Pacto San José da Costa Rica) determina a existência de direitos consequentes dos atributos de pessoa humana, justificando sua proteção internacional. Em seu art. 5.º, § 3.º, apresenta como finalidade da pena a readaptação do condenado, sendo assegurado o tratamento isonômico da proteção legal (art. 24).

Em face do sucinto apanhado legislativo, verifica-se não haver fundamentos que autorizem o tratamento diferenciado para o estrangeiro. Na seara penal, em razão da agressividade da pena privativa de liberdade para os direitos individuais, a cautela de observação do tratamento igualitário deve ser ainda maior, tendo em vista a gravidade dos prejuízos aos indivíduos. O instituto administrativo da expulsão não é suficiente para modificar essa conjuntura. Assim, a fundamentação da execução penal do estrangeiro deve acompanhar a do preso nacional.

4.2 A expulsão do condenado estrangeiro

A “expulsão” [20] é um procedimento administrativo que ocorre automaticamente quando o estrangeiro pratica algum delito em território nacional, ou conduta considerada incompatível com os interesses nacionais. Esse processo visa à retirada compulsória e definitiva do estrangeiro do Brasil, impedindo o seu retorno – salvo com a revogação da portaria que lhe determinou o decreto de expulsão.

Cabe à Polícia Federal, ao Ministério Público ou ao magistrado informar ao Ministério da Justiça sobre a ocorrência de prisão ou sentença para se iniciar a autuação de processo administrativo para fins de expulsão. O Ministério da Justiça é o responsável principal por esse procedimento, pois cabe a ele a verificação de sua devida instrução, bem como a análise de mérito – que significa a verificação do respaldo legal da expulsão com a constatação da ausência das causas excludentes de expulsabilidade. [21] Por fim, a determinação da expulsão é realizada por meio de portaria – por delegação de competência do Presidente da República.

Apesar de a condenação penal ser elemento fundamentador do início do procedimento de expulsão, ele tramita no âmbito administrativo, independente do âmbito penal. Evidência disso é a autonomia dos momentos temporais do cumprimento da pena e da efetivação do decreto de expulsão. Devido a questões burocráticas e a restrições orçamentárias, é imprevisível o momento de efetivar a expulsão do estrangeiro. Desse modo, após o cumprimento da pena, pode ocorrer o intervalo de meses ou mesmo de anos para sua saída do Brasil.

Em suma, esse procedimento administrativo não é capaz de atentar contra a malha de proteções do direito e execução penal. Apesar de ser um procedimento específico ao estrangeiro, não há previsão expressa que autorize exercer influência na maneira de ter sua pena executada.

4.3 A (re)interpretação do papel dos benefícios na execução penal de réu estrangeiro, à luz dos conceitos de Alessandro Baratta

Demonstrou-se não haver previsão legal para o tratamento diferenciado entre o nacional e o estrangeiro. A contextualização das diretrizes legais expostas e dos princípios constitucionais na organização da execução penal exterioriza a preocupação com a igualdade de tratamento dos indivíduos, principalmente na manutenção dos direitos dos apenados. Além disso, esclareceu-se que a expulsão do estrangeiro condenado penalmente é um procedimento administrativo que não prevê intervenção no domínio da execução penal.

Retomando a decisão proferida pelo desembargador relator no Acórdão nº 2013.0000127497, percebe-se que a base do seu entendimento de “incoerência” entre a progressão do regime de cumprimento de pena e a expulsão do estrangeiro está na interpretação do papel da progressão na sistemática da execução penal. Ou seja, a progressão de regime é considerada uma etapa de aprendizagem de ressocialização gradativa, considerada como finalidade da pena privativa de liberdade. No caso do estrangeiro com decreto de expulsão do país, não caberia ao Estado brasileiro reinseri-lo nessa sociedade.

À luz dos ensinamentos de Baratta, esses argumentos não perduram. A premissa da ressocialização do indivíduo como finalidade da pena é considerada uma falácia, impossibilitando a construção do raciocínio exposto.

“O ponto de vista de como encaro o problema da ressocialização, no contexto da criminologia crítica, é aquele que constata – de forma realista – o fato de que a prisão não pode produzir resultados úteis para a ressocialização do sentenciado e que, ao contrário, impõe condições negativas a esse objetivo. (...)”. [22]

O autor considera não haver funções positivas da existência do cárcere, por isso aponta a necessidade de ações a fim de atenuar as consequências nefastas dessa instituição. [23] Busca tornar a prisão menos prisão. Seguindo essa linha de raciocínio, propõe-se a (re)interpretação do papel da progressão de regime de cumprimento de pena.

A progressão de regime de cumprimento de pena denotaria a redução “da taxa de cárcere” imposta ao indivíduo. Deixando de ser encarada como uma etapa pedagógica, a progressão seria vista como medida paliativa diante da instituição perversa do cárcere. Sua finalidade está em si mesma: progredir do regime mais gravoso. Consequentemente, não há justificativa para distinguir sua aplicação entre os réus nacionais e estrangeiros, pois independe a que sociedade eles retornarão, a ressocialização não ocorrerá com nenhum deles.

Conclusões

Baratta iniciou seus estudos acerca da crítica ao sistema penal capitalista, ao abolicionismo penal e à reintegração social em 1970, e escreveu a sua principal obra, Criminologia crítica e critica del diritto penale, em 1982, que posteriormente foi traduzida para o português por Juarez Cirino dos Santos. O intuito deste trabalho foi promover o diálogo entre as considerações contidas nessa obra e o papel da progressão de regime de cumprimento de pena na execução penal. A escolha dessa ponte reflete a ânsia de conectar os debates que ocorrem no plano do dever ser com a realidade.

Os ambientes prisionais atentam contra direitos individuais para além da liberdade. A situação degradante [24] pela escassez material, psicológica e social já demonstra um afrontamento aos direitos humanos. [25] Todavia, o caso de alguns condenados estrangeiros retrata um patamar superior de degradação. A dificuldade de compreensão linguística, de contato com os familiares em seu país de origem, de compreensão do processo jurídico brasileiro são alguns exemplos da especialidade de sua situação. Elegeu-se o impedimento de progressão de regime como a problemática a ser refletida com o propósito de demonstrar a necessidade de aplicar os avanços que se encontram no mundo das ideias.

Passadas três décadas, a utopia da ressocialização persiste entre os operadores do direito e os doutrinadores. O palco de discussão é dividido entre os embates por desvendar a “verdadeira função” da pena e por ajustar as ferramentas existentes, reciclando os modelos delineados para, finalmente, atingir a ressocialização.

Baratta desconstruiu o ideal da ressocialização e ressaltou a necessidade de diminuir os muros do cárcere, pois as consequências desse modelo de punição seriam a exclusão e a anulação dos indivíduos, com sua “desculturação” e “prisionização”. Portanto, a progressão de regime executaria o papel de diminuir a exposição do indivíduo aos malefícios da prisão, afastando-se sua idealização como etapa pedagógica à ressocialização.

Por fim, consoante a teoria do autor, conclui-se que não há justificativas para a negação ao estrangeiro de seu direito de progressão de regime de cumprimento de pena. Além de afrontar a legislação nacional e internacional, não se vislumbra objetivo além de constranger esses seres humanos a sofrimento excessivo.

Anexo: Algumas decisões judiciais

Tribunal de Justiça de São Paulo (01.10.2013 – 31.10.2013)

Acórdão

Objeto

Resultado

Argumento

Data do julgamento

Agravo de Execução Penal 0139889-18.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. J. Martins

Evitar progressão de regime.

Agravo improvido.

Ao estrangeiro, assim como ao nacional, são aplicáveis as regras de progressão de regime, desde que cumpridos os requisitos legais, não havendo como diferenciar os reeducandos em razão de sua naturalidade, ainda que estando no país em situação irregular.

03.10.2013

Agravo de Execução Penal 0138639-47.2013.8.26.0000

3.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Geraldo Wohlers

Obtenção de livramento condicional.

Agravo improvido.

Livramento condicional possui por escopo reconduzir de modo paulatino o reeducando para o convívio social, finalidade que se revela absolutamente prejudicada em se cuidando de criminoso estrangeiro em situação irregular no país. Não se defere promoção a estágio intermediário (consoante essa orientação) por ser ele propício a transgressões diversas devido à vigilância extremamente branda, com maior razão se deve barrar benefício de maior amplitude.

08.10.2013

Agravo de Execução Penal 0138773-74.2013.8.26.0000

4.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Luis Soares de Melo

Evitar progressão de regime.

Agravo provido.

Incompatibilidade da concessão do benefício da progressão para o regime aberto a estrangeiros em situação desconhecida no país.

08.10.2013

Agravo de Execução Penal 0148515-26.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Encinas Manfré

Evitar progressão de regime.

Agravo improvido.

Hipótese na qual, além de favorável o atestado referente ao comportamento carcerário do sentenciado, inexiste anotação a respeito de falta disciplinar. Presença dos requisitos objetivo e subjetivo exigíveis. Outrossim, de somenos seja estrangeiro o recorrido. Consideração ao princípio da igualdade, bem ainda ao art. 5.º, caput, da CF. Inexistência de instauração de procedimento para expulsão desse agravado.

10.10.2013

Agravo de Execução Penal 0129248-68.2013.8.26.0000

16.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Borges Pereira

Obtenção de livramento condicional.

Agravo provido.

Livramento condicional indeferido à sentenciada, em razão de ser estrangeira, em situação irregular no território nacional, e que possui contra si decreto de expulsão. Evidente ofensa a princípios constitucionais, tendo em vista que estão presentes os requisitos para a concessão da benesse. Trata-se de direito do preso, ainda que estrangeiro.

15.10.2013

Agravo de Execução Penal 0275384-68.2012.8.26.0000

14.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Hermann Herschander

Evitar progressão de regime.

Agravo provido.

A existência de decreto de expulsão e a situação irregular do estrangeiro no Brasil tornam incompatível a situação do agravado com o cumprimento de pena no regime semiaberto, tendo em vista o risco de tornar inexequível o cumprimento da sentença condenatória.

17.10.2013

Agravo de Execução Penal 0100541-90.2013.8.26.0000

13.ª Câmara de Direito Criminal

Relator Desembargador Renê Ricupero

Evitar Progressão de Regime

Agravo improvido.

Presença dos requisitos exigidos para a concessão da progressão de regime. Ausência de decisão visando à sua expulsão, sendo o risco de fuga mera suposição que não justifica a manutenção em regime mais gravoso. Princípio da isonomia.

17.10.2013

Agravo de Execução Penal 0109529-03.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. De Paula Santos

Obtenção de progressão de regime.

Agravo improvido.

Indeferimento da progressão de regime pelo juízo a quo, enfatizando existir decreto de expulsão, além de atestado de “mau” comportamento carcerário. Requisito subjetivo ausente. Pedido de progressão indeferido.

17.10.2013

HC 0140997-82.2013.8.26.0000

7.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Grassi Neto

Obtenção de progressão de regime.

Ordem denegada.

Estrangeiro em situação irregular no país que venha a ser condenado não preenche os requisitos para a progressão de regime, uma vez que está formalmente impedido de exercer atividade laboral. Assim, em que pese o fato de o reeducando ser estrangeiro não impeça de per si o benefício, é de rigor o indeferimento do pedido de progressão para o regime aberto.

17.10.2013

Agravo de Execução Penal 0133684-70.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Tozola Neto

Evitar progressão de regime.

Agravo improvido.

O preenchimento do requisito objetivo, diante do cumprimento, pelo agravado, de 2/5 de sua pena, é incontroverso. Conforme se depreende da folha de antecedentes expedida pela Vara das Execuções Criminais, o agravado, no curso do cumprimento de sua pena, não cometeu falta disciplinar alguma. Além do mais, segundo informações constantes do processo (fls. 19), embora tenha sido instaurado inquérito de expulsão, não há, ainda, decreto de expulsão, de modo que não se pode pressupor que o agravante será obrigatoriamente expulso do país. Inexiste impedimento legal à progressão de regime prisional de sentenciado estrangeiro, exceto se houver decreto de expulsão contra ele, o que, repita-se, não ocorre no caso dos autos.

22.10.2013

Agravo de Execução Penal 0135977-13.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. De Paula Santos

Evitar progressão de regime.

Agravo improvido.

Pedido de progressão ao regime semiaberto deferido pelo juízo a quo, existindo atestado favorável de comportamento carcerário e inexistindo anotação a respeito de falta disciplinar. Presentes os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão do benefício ao agravado estrangeiro. Consideração ao princípio da igualdade, nos termos do art. 5.º, caput, da CF. Inexistência de instauração de procedimento para expulsão do sentenciado.

24.10.2013

Agravo de Execução Penal 0169044-66.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Encinas Manfré

Obtenção de progressão de regime.

Agravo improvido.

A existência de decreto de expulsão gera impossibilidade de concessão de progressão de regime prisional.

24.10.2013

Agravo de Execução Penal 0175539-29.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Encinas Manfré

Evitar progressão de regime.

Agravo improvido.

Hipótese na qual, além de favorável o atestado referente ao comportamento carcerário do sentenciado, inexiste anotação a respeito de falta disciplinar. Presença dos requisitos objetivo e subjetivo exigíveis. Outrossim, de somenos seja estrangeiro o recorrido. Consideração ao princípio da igualdade, bem ainda ao art. 5.º, caput, da CF. Inexistência de instauração de procedimento para expulsão desse agravado.

31.10.2013

Agravo de Execução Penal 0159525-67.2013.8.26.0000

15.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. De Paula Santos

Evitar progressão de regime.

Agravo provido.

Pedido de progressão ao regime aberto deferido pelo juízo a quo, existindo atestado favorável de comportamento carcerário e inexistindo anotação a respeito de falta disciplinar. Porém, trata-se de agravada estrangeira com situação irregular no país e inquérito de expulsão com instauração já determinada, o que torna a situação incompatível com o regime prisional aberto.

31.10.2013

Agravo de Execução Penal 0095396-53.2013.8.26.0000

7.ª Câm. de Direito Criminal

Rel. Des. Grassi Neto

Evitar progressão de regime.

Agravo provido.

Estrangeiro em situação irregular no país que venha a ser condenado não preenche os requisitos para a progressão de regime, uma vez que está formalmente impedido de exercer atividade laboral. Assim, em que pese o fato de o reeducando ser estrangeiro não impeça de per si o benefício, é de rigor o indeferimento do pedido de progressão para o regime aberto.

31.10.2013

Superior Tribunal de Justiça (01.01.2011 – 31.10.2013)

Acórdão

Objeto

Resultado

Argumento

Data do julgamento

HC 180.995/SP

Rel. Min. Gilson Dipp

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

Tendo em vista ser ausente o decreto de Expulsão, não se pode negar a progressão para regime menos gravoso em razão de sua situação irregular no país. Além disso, o simples fato de o paciente não dispor de autorização para o exercício de atividade laboral remunerada no país não impede a sua progressão ao regime semiaberto, no qual, por regra, o apenado fica sujeito a trabalho em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar

13.09.2011

HC 204.689/SP

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

A condição jurídica de não nacional do Brasil e a circunstância de o réu estrangeiro não possuir domicílio em nosso país não legitimam a adoção, contra tal acusado, de qualquer tratamento arbitrário ou discriminatório. Ausência de decreto de expulsão.

18.10.2011

HC 186.490/RJ

Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura

Obtenção de livramento condicional.

Ordem concedida.

O decreto de expulsão existente não impede o deferimento da benesse, pois as autoridades administrativas podem efetivá-lo após o cumprimento integral da reprimenda, ou mesmo antes (art. 67 da Lei 6.815/1980).

15.12.2011

HC 219.017/SP

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

Apesar de haver decreto de expulsão, o condenado contraiu matrimônio com uma brasileira no ano de 2005, com quem tem dois filhos também nascidos no Brasil, situação que, a princípio, impossibilitaria a decretação de sua expulsão, nos termos do art. 75, II, do Estatuto do Estrangeiro e da Súmula 1 do STF. A possibilidade de fuga não justifica a negação à progressão de regime. Precedente do STF: “fato de o condenado por tráfico de droga ser estrangeiro, estar preso, não ter domicílio no país e ser objeto de processo de expulsão, não constitui óbice à progressão de regime de cumprimento da pena” (HC 97.147/MT, 2.ª T., rel. Min. Ellen Gracie, rel. p/ acórdão Min. Cezar Peluso, DJe 12.02.2010).

15.03.2012

HC 199.990/SP

Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze

Obtenção de livramento condicional.

Ordem concedida.

É perfeitamente possível, desde que não exista processo ou decreto de expulsão em desfavor do apenado, a concessão de livramento condicional ao estrangeiro em situação irregular no Brasil, sob pena de violação aos princípios constitucionais da isonomia e da individualização da pena.

17.04.2012

HC 173.955/SP

Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze

Obtenção de livramento condicional.

Ordem denegada.

Há incompatibilidade entre as condições legais necessárias à concessão do livramento condicional – obter ocupação lícita e manutenção de residência fixa – com a existência de inquérito ou decreto de expulsão de estrangeiro, dada a impossibilidade de sua permanência no país, com ou sem trabalho lícito, em função da prática de conduta que tornou a sua continuidade no Brasil nociva à conveniência e aos interesses nacionais.

24.04.2012

HC 186.906/SP

Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

Tanto a execução penal do nacional quanto a do estrangeiro submetem-se aos cânones constitucionais da isonomia e da individualização da pena. A disciplina do trabalho no Estatuto do Estrangeiro não se presta a afastar o correspectivo direito-dever do condenado no seio da execução penal. Benesse concedida.

26.06.2012

HC 217.149/SP

Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

Tanto a execução penal do nacional quanto a do estrangeiro submetem-se aos cânones constitucionais da isonomia e da individualização da pena. A disciplina do trabalho no Estatuto do Estrangeiro não se presta a afastar o correspectivo direito-dever do condenado no seio da execução penal. Benesse concedida.

16.08.2012

HC 252.627/RJ

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de livramento condicional.

Recurso não conhecido.

Ordem denegada.

Seria inviável a concessão do livramento condicional ao sentenciado estrangeiro que possui decreto de expulsão deferido.

04.12.2012

HC 252.745/SP

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

A situação irregular de estrangeiro no país não é circunstância, por si só, capaz de afastar o princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros, mormente se não há confirmação da existência de processo de expulsão contra o apenado.

05.03.2013

AgRg no HC 260.768/SP

Rel. Min. Og Fernandes

Obtenção de progressão de regime.

Negado provimento.

A condição de estrangeiro com decreto de expulsão expedido não obsta o deferimento da progressão de regime prisional.

19.03.2013

HC 228.730/SP

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de progressão de regime.

Ordem denegada.

Mostra-se inviável a concessão do benefício de progressão de regime ao sentenciado estrangeiro que possui processo de expulsão em andamento.

21.03.2013

AgRg no HC 266.037/MG

Rel. Min. Marilza Maynard

Obtenção de progressão de regime.

Agravo desprovido.

A existência de processo de expulsão impede a concessão da progressão de regime prisional, de modo que se justifica a cautela do magistrado das execuções ao oficiar a Delegacia de Imigração antes de conceder o benefício.

18.04.2013

HC 262.291/SP

Rel. Min. Marilza Maynard

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem denegada.

O fato de permanecer em situação irregular no Brasil não é razão para negar a progressão de regime, no entanto, há decreto de expulsão expedido pela autoridade competente, circunstância que impede a concessão da benesse legal.

23.04.2013

HC 235.222/SP

Rel. Min. Marisa Maynard

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem concedida de ofício.

Progressão de regime concedida de ofício, tendo em vista que não há decreto de expulsão.

02.05.2013

HC 264.957/SP

Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem concedida de ofício.

Uma vez preenchendo os requisitos e tendo o decreto de expulsão contra si arquivado, em razão de o paciente possuir filho brasileiro que está sob sua guarda e dependência econômica, concedeu-se a benesse de ofício.

16.05.2013

HC 163.871/SP

Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem concedida de ofício.

A proibição de progressão de regime para estrangeiro expulso constitui generalidade que vai de encontro ao princípio da individualização da pena, ademais, deve ser resguardado o princípio da igualdade, garantido pelo art. 5.º, caput, da CF, tanto aos brasileiros como aos estrangeiros residentes no País. O fato de a paciente ser estrangeira e estar em processo de expulsão do país não constitui óbice à progressão de regime de cumprimento de pena.

16.05.2013

HC 248.292/SP

Rel. Min. Campos Marques

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem denegada.

A progressão de regime ao preso estrangeiro, que tenha decretada a expulsão, decorrente de sua situação irregular no país, deve estar amparada em elementos concretos que assegurem a futura aplicação da medida.

18.06.2013

HC 224.581/SP

Rel. Min. Marilza Maynard

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem denegada.

Processo de expulsão pendente em desfavor do sentenciado estrangeiro em situação irregular no país torna inadmissível a concessão da progressão de regime.

20.06.2013

HC 257.167/SP

Rel. Min. Campos Marques

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem denegada.

A progressão de regime ao preso estrangeiro, que tenha decretada a expulsão, decorrente de sua situação irregular no país, deve estar amparada em elementos concretos que assegurem a futura aplicação da medida.

25.06.2013

HC 248.441/SP

Rel. Min. Assusete Magalhães

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem concedida.

A não residência no país não é suficiente para impedir a obtenção da progressão de regime. Mesmo a existência de processo de expulsão – inocorrente, in casu – não impediria o deferimento da progressão de regime ao estrangeiro, já que a efetivação da expulsão poderá ser realizada após o cumprimento da pena, ou mesmo antes, nos termos do art. 67 da Lei 6.815/1980.

06.08.2013

HC 272.176/SP

Rel. Min. Campos Marques

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem concedida de ofício.

A situação irregular do estrangeiro, quando não acompanhado de processo ou decreto de expulsão, não é suficiente para impedir o acesso ao benefício pretendido.

20.08.2013

HC 206.344/SP

Rel. Min. Campos Marques

Obtenção de livramento condicional.

Recurso não conhecido.

Ordem concedida de ofício.

A situação irregular do estrangeiro, quando não acompanhado de processo de expulsão em andamento ou decreto com o mesmo propósito, não é suficiente para impedir o acesso ao livramento condicional.

27.08.2013

HC 249.883/SP

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de progressão de regime.

Ordem denegada.

Mostra-se inviável a progressão de regime do paciente estrangeiro contra quem foi expedido decreto de expulsão.

05.09.2013

HC 272.807/SP

Rel. Min. Laurita Vaz

Obtenção de progressão de regime.

Ordem denegada.

Mostra-se inviável a progressão de regime do paciente estrangeiro contra quem foi expedido decreto de expulsão.

17.09.2013

HC 247.481/SP

Rel. Min. Moura Ribeiro

Obtenção de progressão de regime.

Recurso não conhecido.

Ordem denegada.

Manutenção da decisão que indeferiu a progressão de regime não apenas com base na condição de estrangeiro do paciente, mas, também, na ausência de preenchimento do requisito subjetivo, consubstanciada na gravidade concreta do delito perpetrado e na falta de elementos aptos a demonstrar o merecimento do reeducando para cumprir a pena em regime menos gravoso. Não há processo ou decreto de expulsão.

17.10.2013

Supremo Tribunal Federal (01.01.2000 – 30.11.2013)

Acórdão

Objeto

Resultado

Argumento

Data do julgamento

HC 83.723-9/MG

Rel. Min. Sepúlveda Pertence

Obtenção de livramento condicional.

Ordem negada.

É que o decreto de expulsão, subordinada à prévia execução da pena imposta no País, constitui empecilho suficiente ao livramento condicional do estrangeiro condenado.

09.03.2004

HC 97.147/MT

Rel. Min. Cezar Peluso

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

O fato de a paciente estar na condição de estrangeira não residente no Brasil, ainda que em situação irregular no país, não impede que ela obtenha os benefícios próprios da execução penal, dentre eles o da progressão de regime prisional. Assevera, outrossim, que a existência de decreto de expulsão contra a paciente também não pode influenciar nas regras relativas à execução da pena, pois se trata de ato administrativo discricionário do Presidente da República (art. 67 da Lei 6.815/1980).

04.08.2009

HC 99.400/RJ

Rel. Min. Carmem Lúcia

Obtenção de livramento condicional.

Ordem negada.

É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o decreto de expulsão, de cumprimento subordinado à prévia execução da pena imposta no país, constitui empecilho ao livramento condicional do estrangeiro condenado.

19.11.2010

HC 117.878/SP

Rel. Min. Ricardo Lewandowski

Obtenção de progressão de regime.

Ordem concedida.

O fato de a paciente estar na condição de estrangeira não residente no Brasil, ainda que em situação irregular no país, não impede que ela obtenha os benefícios próprios da execução penal, dentre eles o da progressão de regime prisional. Assevera, outrossim, que a existência de decreto de expulsão contra a paciente também não pode influenciar nas regras relativas à execução da pena, pois se trata de ato administrativo discricionário do Presidente da República (art. 67 da Lei 6.815/1980).

19.11.2013

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Zaffaroni, Eugênio Raúl. Criminologia: aprominación desde um margén. Santa Fé de Bogotá: Temis S.A., 1998.

[0] Artigo apresentado como parte integrante da avaliação do Grupo de Estudos Avançados – Escolas Penais, no Instituto Brasileiro de Ciências Penais e Criminologia (2013).

[1] Baratta, Alessandro. Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. 1990. Disponível em: [http://www.ceuma.br/portal/wp-content/uploads/2014/06/BIBLIOGRAFIA.pdf]. Acesso em 03.10.2013, p. 1.

[2] Entende-se por identificação o ato de reconhecimento do aplicador da lei com o sujeito a ser julgado, entre um “igual”, ou alguém distante de sua realidade social.

[3] Baratta, Alessandro. Marginalidade social e justiça. Revista de Direito Penal, 21/22, p. 5-25, Rio de Janeiro, jan.-jun. 1976, p. 13.

[4] Baratta, Alessandro. 2011, p. 167.

[5] No contexto estrutural social capitalista, vale pontuar a faceta educacional de ensinar a moral do trabalho, formatando naquele indivíduo a resignação para a sua exploração.

[6] Molina, Antonio Gárcia-Pablos. La supuesta funión resocializadora del derecho penal: utopia, mito y eufemismo. Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales, vol. 32, n. 2, 1979, p. 646.

[7] A interiorização do trabalho como a virtude capaz de dar o valor do indivíduo e a aprendizagem da submissão à disciplina imposta são elementos essenciais para a exploração da mão de obra do indivíduo durante e pós-cárcere.

[8] A educação disponibilizada caracteriza-se como um instrumento para ensinar a obedecer às regras, e entender o certo e o errado; ou seja, distante de um modelo que incite uma construção pessoal autônoma e crítica para com a realidade.

[9] Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1999. (Pensamento criminológico; v. 1), p. 186.

[10] Esclarece-se que não se trata de processos premeditados e estruturados a acontecer. O autor parte de uma constatação da realidade.

[11] Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal cit., p. 186.

[12] Idem, p. 167.

[13] Item 14 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, 1983.

[14] Art. 1.º da LEP.

[15] Quando há vagas para tais programas dentro das unidades prisionais.

[16] São Paulo. TJSP, Agravo em Execução Penal 0262725-27.2012.8.26.0000, rel. Toloza Neto, j. 12.03.2013. Disponível em: . Acesso em: 01.10.2013.

[17] No mesmo sentido ver no Anexo os seguintes julgados: TJSP, Agravo de Execução Penal 0138773-74.2013.8.26.0000, 4.ª Câm. de Direito Criminal, rel. Des. Luis Soares de Melo, j. 08.10.2013; TJSP, Agravo de Execução Penal 0275384-68.2012.8.26.0000, 14.ª Câm. de Direito Criminal, rel. Des. Hermann Herschander, j. 17.10.2013; TJSP, Agravo de Execução Penal 0169044-66.2013.8.26.0000, 15.ª Câm. de Direito Criminal, rel. Des. Encinas Manfré, j. 24.10.2013; TJSP, Agravo de Execução Penal 0159525-67.2013.8.26.0000, 15.ª Câm. de Direito Criminal, rel. Des. De Paula Santos, j. 31.10.2013; STJ, HC 228.730/SP, rel. Min. Laurita Vaz, j. 21.03.2013.

[18] Constituição Federal, art. 3.º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

[19] Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, item 23: “Com a declaração de que não haverá nenhuma distinção de natureza racial, social, religiosa ou política, o Projeto contempla o princípio da isonomia, comum à nossa tradição jurídica”.

[20] A expulsão está regulamentada pelos arts. 65 a 75 da Lei 6.815/1980 e pelos arts. 100 a 109 do Dec. 86.715/1981.

[21] Previstas no art. 75, I e II, a e b,da Lei 6.815/1980, alterada pela Lei 6.964/1981.

[22] Baratta, Alessandro. 1990, p. 2.

[23] Dentre as estratégias pensadas pelo autor encontra-se a “abertura do cárcere para a sociedade” (Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal cit., 1999, p. 203). Para saber mais sobre esse tipo de estratégia no contexto da reintegração social ver: Sá, Alvino Augusto de. Algumas ponderações acerca da reintegração social dos condenados à pena privativa de liberdade. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Pernambuco, p. 25-70, Pernambuco, jan.-jun. 2000; Sá, Alvino Augusto de et al. GDUCC – Grupo de diálogo universidade-cárcere-comunidade: uma experiência de integração entre a sociedade e o cárcere. Brasília: Ministério da Justiça, 2013; Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal cit.

[24] A título exemplificativo das condições carcerárias: superlotação dos cárceres, falta de colchões, de remédios, de alimentação adequada, de saneamento básico, o que propicia a proliferação de doenças e o seu não tratamento, o tratamento desrespeitoso com as necessidades femininas, com a maternidade, o desrespeito com as visitas dos encarcerados, a dificuldade de estabelecer contato com familiares, a ausência de vagas de trabalho e estudo etc.

[25] Há vedação de submissão de qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante, de acordo com o art. 5.º, III, da CF.

Thalita A. Sanção Tozi

Graduada e Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo.

Coordenadora adjunta do Grupo de Diálogo Universidade Cárcere e Comunidade (GDUCC).

Advogada.

Escolas Penais
Garantismo e facções criminosas – Correlação da teoria garantista com o surgimento e a existência do Primeiro Comando da Capital
Data: 24/11/2020
Autores: Julia Rosa Latuf

Resumo: O objetivo deste artigo é correlacionar a teoria garantista, que tem como principal expositor Luigi Ferrajoli, em sua obra Direito e razão, com o surgimento e a existência das facções criminosas, em especial a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC).

A escola criminal foi escolhida pela possibilidade não só de correlação dos pressupostos, conceitos e ideias que desenvolve, com o surgimento e o fortalecimento das facções criminosas, mas especialmente por apresentar um caminho de atuação do Judiciário para reverter a atual situação carcerária do país.

Conforme se demonstrará no artigo, a mitigação de direitos dos encarcerados por parte do Estado, mas também do Judiciário, dá ensejo (ou fomento) à necessidade de a comunidade carcerária se organizar em busca da efetivação de seus direitos essenciais. Marginalizados e distantes da sociedade, os presos acolhem como principal arma a capacidade de gerar medo nas pessoas, que servirá como “moeda de troca” com o Estado para alcançarem alguma de suas reivindicações.

O estudo da teoria garantista aponta ao Judiciário um dos principais poderes para iniciar a reversão da atual crise do sistema penitenciário, vez que, ao não corroborar com atitudes descumpridoras de direitos e garantias do Estado, o Judiciário poderá iniciar um processo de reversão, já que muito provavelmente a necessidade de esses presos se organizarem se reduziria.

Palavras-chave: Garantismo – Luigi Ferrajoli – Facções criminosas – Primeiro Comando da Capital.

Abstract: This article aims to link the theory of due process in criminal law (garantismo penale), developed by Luigi Ferrajoli on his work “Law and Reason” (Diritto e Ragione), with the rise and persistence of criminal organizations in general and, in particular, the Brazilian criminal group of the state of Sao Paulo, “First Command of the Capital” (or PCC in the Portuguese acronym for Primeiro Comando da Capital).

The criminal law discipline was chosen not only due to the possibility of interconnecting preconditions, concepts and ideas with the origins and development of criminal organizations, but above all due to the alternative means that criminal theory offers for the Courts to change the current issues the Brazilian imprisonment policy.

As it will be demonstrated throughout this article, the violation of rights of the imprisoned population carried out not only by the State, but also by the Courts, gives rise to (or fosters) the need for the imprisoned to organize themselves in order to safeguard their fundamental rights. Marginalized and apart from society, the imprisoned have as their main weapon the ability to cause fear, which will be used as bargaining power so that the population behind bars can have their demands met by the State.

The study of the Ferrajoli’s theory of due process in criminal law enlightens how the Courts play a key role in overcoming the current crisis on the prison system once, as long as the Judiciary Power does not endorse the violation of rights and fundamental liberties carried out by State authorities, the Courts will lead the way to a change of scenery, as it will probably mitigate the need for the imprisoned to organize themselves in order to pursue the enforce their legal safeguards.

Key words: Due Process in Criminal Law; Luigi Ferrajoli, Criminal Organizations; First Command of the Capital – PCC.

Sumário: Introdução – 1. Garantismo penal – 2. Do garantismo às facções criminosas: 2.1 Conceito de facções criminosas; 2.2 Breve histórico da facção Primeiro Comando da Capital; 2.3 Correlacionando garantismo com facções criminosas – Conclusão – Referências bibliográficas.

Introdução

O presente artigo tem como finalidade correlacionar a teoria garantista, exposta por Luigi Ferrajoli em seu livro Direito e razão, com o surgimento e até a necessidade da existência das organizações criminosas dentro dos presídios brasileiros, em especial o Primeiro Comando da Capital, facção mais expressiva no interior dos estabelecimentos prisionais do Estado de São Paulo.

Ferrajoli desenvolve sua principal obra com o intuito de refletir sobre a crise de legitimidade que, em suas palavras, “assola hodiernos sistemas penais”. [1]

Em larga síntese, a crise da qual o autor trata refere-se ao “embate” entre os fundamentos jurídicos, políticos e filosóficos do sistema penal, construído à luz do pensamento iluminista – que “identificou uma série de vínculos e garantias estabelecidas ao cidadão contra o arbítrio punitivo do Estado” [2] –, e a constante violação pelas leis ordinárias e pelas práticas por elas alimentadas.

Logo, para Ferrajoli, a crise está no “enfrentamento” da prática penal, quando comparada à previsão legislativa (especialmente constitucional, como se verá), vez que cotidianamente os agentes jurisdicionais, sob a justificativa de estarem agindo para “proteger” a sociedade do indivíduo criminoso, aplicam a legislação de forma bastante mitigada, tutelando (e tal inferência é pessoal e não do autor) mais o viés vingativo-punitivista da pena do que as finalidades propostas e adotadas sobre a pena, pelo nosso sistema jurídico.

Essa crise, conforme se explanará, gera efeito penal/punitivo/crimonógeno avassalador, que pode ser constatado em qualquer unidade prisional deste país (seja uma cadeia, penitenciária etc.).

E esse é o objetivo do presente trabalho: à luz das críticas, conclusões e conceitos elaborados por Ferrajoli em sua obra Direito e razão, fazer uma breve análise sobre o surgimento e fortalecimento das facções criminosas, que se multiplicam no interior dos presídios brasileiros, em especial a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC).

No decorrer do artigo será possível compreender um pouco da teoria de Ferrajoli, apreendendo noções mínimas sobre a teoria garantista, como os conceitos de legalidade estrita e mera legalidade, correlacionando com a importância de se ter um Estado Social Máximo – que garanta a existência digna dentro dos presídios – com os demais instrumentos de controle e combate às facções criminosas que surgem nos cárceres brasileiros.

Ademais, é essencial que se conceituem facções criminosas, para que então o leitor tenha a possibilidade de adentrar nesse universo. A história de surgimento dessas facções, em especial o Primeiro Comando da Capital (PCC), é importantíssima para que se possa traçar qualquer correlação com a teoria garantista.

Dessarte, somente com tais conceitos apreendidos é que se conseguirá correlacionar facções criminosas com a teoria garantista. Em especial neste tópico, o leitor terá acesso a relatos dos próprios presos da penitenciária Adriano Marrey, colhidos por meio do Grupo de Diálogo Universidade-Comunidade-Cárcere. Ao longo de meses de visita ao presídio se consegue perceber, em qualquer diálogo, uma constatação simples: é a ausência do Estado e a mitigação no cumprimento da legislação que geram o surgimento de uma outra organização, paralela a ele.

1. Garantismo penal

Desta feita, cumpre analisar, primeiramente, a obra de Luigi Ferrajoli para então correlacioná-la com as facções supracitadas.

O jurista divide sua principal obra – Direito e razão – em cinco partes para chegar a uma teoria geral do garantismo.

Nas três primeiras partes o autor aborda três sentidos dados à palavra razão (que dá título ao livro). No primeiro deles, Ferrajoli trata da razão no direito, englobando a racionalidade das decisões penais, em seu caráter epistemológico. Para ele, o garantismo penal “exige uma específica tecnologia legal e judiciária”, para que “a definição legislativa do desvio punível seja operada com referência a fatos empíricos exatamente indicados, e não a valores”, [3] destacando que a apuração jurisdicional deve ser feita “através de afirmações sujeitas a verificações da acusação e expostas à contradição da defesa, e não através de opções ou valorações como tais verificáveis ou não”. [4]

Num primeiro sentido, o autor conclui que a razão no Direito Penal deve equivaler a um sistema garantista em que o poder seja minimizado diante do saber do Judiciário, pois este condicionará a validade de suas decisões à verdade de suas motivações – controlada pelo empirismo e pela lógica.

Nesse particular, cumpre destacar os dizeres de Ferrajoli acerca da epistemologia garantista e das “premissas” dela resultantes.

“O direito penal dos ordenamentos desenvolvidos é produto predominantemente moderno. Os princípios sobre os quais se funda seu modelo garantista clássico – a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal o contraditório entre as partes, a presunção de inocência – são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo (...)

Sem dúvida, para além da heterogeneidade e da ambivalência de seus pressupostos teóricos e filosóficos, é certo que os princípios mencionados, tais como se consolidaram nas constituições e codificações modernas, formam em seu conjunto um sistema coerente e unitário. A unidade do sistema, (...) depende, segundo meu modo de ver, do fato de que os diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal (...)”. [5]

Segundo Ferrajoli, um modelo ideal – utópico, ideológico – é constituído por dois elementos: a definição legislativa e a comprovação jurisdicional do desvio punível, que correspondem a um conjunto de garantias penais e processuais do sistema punitivo que fundamentam.

O primeiro elemento, a definição legislativa ou, como também nomeia o autor, o convencionalismo penal, resulta do princípio da legalidade estrita. Tal princípio seria a base para qualquer determinação do que é punível, considerando-se punível tudo aquilo que formalmente for indicado pela lei, devendo a definição legal do desvio ser produzida com figuras empíricas e objetivas de comportamento, segundo as máximas clássicas nulla poena et nullum crimen sine lege e nulla poena sine crimine et sine culpa. [6]

Para determinação do punível, contudo, exigir-se-ia o implemento de duas condições: a primeira equivale ao princípio da reserva legal – submissão do juiz à lei. A segunda vai além e comporta “o caráter absoluto da reserva da lei penal, em virtude da qual a submissão do juiz é somente à lei”. [7]

Assim, “apenas se as definições legislativas das hipóteses de desvio vierem dotadas de referências empíricas e fáticas precisas é que estarão na realidade em condições de determinar seu campo de aplicação, de forma tendencialmente exclusiva e exaustiva”. [8]

E tal diferenciação tem importância para a teoria garantista, já que Ferrajoli afirma que desde a formulação da lei há uma série de princípios e “condutas” a serem observadas, e somente com o preenchimento destas é que se terá uma norma que atenda – quanto mais completo possível – à vontade do legislador e à conduta que se pretende punir, sem possibilidade de “elasticidade” do tipo penal.

O que se busca, assim, é a garantia de que desde a concepção da norma houve respeito e observação a princípios e preceitos legislativos, somente tipificando condutas “determinadas”, sem que o tipo penal disponha sobre conduta muito vaga ou indeterminável, de forma a tentar evitar uma interpretação ampliativa ou irrestrita demais da lei, especialmente na seara criminal.

“O sentido e o alcance garantista do convencionalismo penal reside precisamente nesta concepção, ao mesmo tempo nominalista e empírica do desvio punível, que remete às únicas ações taxativamente indicadas pela lei dela excluindo qualquer configuração ontológica, ou em todo caso, extralegal. (...). O que confere relevância penal a um fenômeno não é a verdade, a justiça, a moral, nem a natureza, mas somente o que, com autoridade, diz a lei. E a lei não pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio, mas somente comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente como tais, e por sua vez, aditados à culpabilidade de um sujeito”. [9]

Um exemplo fático e bastante correlato à questão do surgimento das organizações e facções criminosas no interior dos presídios refere-se à aplicação da Lei de Execução Penal e à questão da progressão de regime, prevista no Código Penal.

Pode-se dizer que o réu tem direito à progressão de regime do fechado para o semiaberto quando implementadas determinadas condições expressamente previstas no Código Penal.

Logo, a progressão de regime não pode ser negada, por exemplo, sob o argumento de que faltam vagas àquele preso para cumprir o restante da pena no regime semiaberto.

Contudo, diante da ausência de vagas para o regime mais benéfico ao réu, que o aproxime da vida em liberdade, cabe ao aplicador solucionar, à luz dos princípios constitucionais e da legislação vigente, essa questão prática. É claro que o aplicador também deve considerar que o Estado não consegue criar vagas para o cumprimento de pena em regime semiaberto com tanta facilidade. Assim, o juiz da execução penal não pode, sob essa justificativa somente – de que faltam vagas –, deixar o indivíduo com direito a progressão preso por mais tempo do que determina a lei, ferindo as premissas “básicas” da legalidade a que estamos sujeitos.

Apesar de singelo, esse exemplo é comum na vida daqueles que de alguma forma estão envolvidos com o sistema carcerário – sejam juízes, promotores, defensores públicos ou advogados e especialmente os réus que superlotam os presídios brasileiros.

No presídio Adriano Marrey, visitado para a realização do Grupo de Diálogo Universidade-Comunidade-Cárcere (GDUCC), para se ter uma ligeira ideia, dois dos quatro raios abrigavam (em 2013) cerca de 1.000 presos com direito à progressão para o regime semiaberto, mas que, sob a falácia da falta de vagas, estavam enclausurados, cumprindo regime fechado por tempo superior ao previsto em lei.

Assim, o modelo proposto por Ferrajoli ao analisar a razão no direito penal – a racionalidade das decisões – é modelo não só de racionalidade do Juízo, mas regulador de justiça formal. Se incorporados tais princípios ao ordenamento como constitucionais, passam a constituir um modelo normativo de legitimidade jurídica ou de validade, [10] devendo, por óbvio, ser obedecidos por todos os que de alguma forma estão envolvidos no processo, desde a elaboração até a aplicação da lei.

Frise-se que o princípio da legalidade estrita é pressuposto da estrita jurisdicionalidade, resultando, “assim, mediadas e conectadas, a primeira como pressuposto da segunda, pelo princípio cognitivo da significação normativa e da certeza probatória, no sentido (...) de que o juiz comprova ou prova como verdadeiro (que se cometera o delito) apenas (se o fato comprovado ou provado corresponder a) o que estiver taxativamente denotado na lei como delito”. [11]

Em sendo assim, o garantismo apresentado por Ferrajoli busca tornar legítimas apenas as práticas penais em que houve respeito, tanto por parte do legislador como do aplicador, ao maior número de garantias possíveis, sendo almejada a coesão, quanto mais próxima for possível, entre teoria e prática, entre normatividade e efetividade, conforme se apresentará.

Na segunda parte do livro, Ferrajoli aborda a palavra razão como “razão do direito”, no sentido axiológico e político, próprio da justiça penal, das justificações ético-políticas da qualidade, quantidade, necessidade das penas, englobando, ainda, análise das formas e critérios das decisões judiciais. “Esse segundo tema considera a fundamentação externa ou política do direito penal acerca dos valores, interesses e finalidades extra ou metajurídicas”. [12]

Vale ressaltar a diferenciação que Ferrajoli aduz na segunda parte de sua obra acerca da fundamentação interna e externa de direito penal, bem como a separação entre direito e moral.

Para o autor, a separação entre direito e moral é pressuposto metodológico do garantismo, sendo necessária a divisão entre “ser” e “dever ser”.

Tal separação pode significar: (a) autonomia dos juízos jurídicos em relação aos juízos ético-políticos, concernentes à legitimação interna ou validade; ou (b) o princípio normativo sobre a diversidade de funções e autonomia das normas jurídicas em relação às morais, que se refere ao problema político da justificação externa ou da justiça. [13]

Ferrajoli expõe três significados que, em sentido teórico, fazem alusão à separação entre juízos jurídicos, de validade, e juízos ético-políticos, de justiça. O primeiro deles refere-se a uma tese meta-lógica, aplicação da Lei de Hume, que “determina como uma falácia naturalista as derivações do direito válido (direito como é) do direito justo (como deve ser)”. [14]

“Proponho que se denominem ideologias todas as teses e doutrinas viciadas por falácias similares, seja porque trocam o dever ser com o ser, assumindo as normas como juridicamente válidas enquanto eticamente justas, ou porque, vice-versa, trocam o ser com o dever ser, aceitando as normas como eticamente justas enquanto juridicamente válidas. A primeira falácia é aquela que vicia, logicamente, qualquer forma de jusnaturalismo ou moralismo jurídico; a segunda é aquela que vicia, logicamente, qualquer forma de legalismo ou estatismo ético”. [15]

E conclui que são tais separações que, por serem contrárias às ideologias de legitimação e por minimizarem o dever ser sob o ser do ou no direito, são objeto de estudo da presente obra.

A tese científica sobre a separação entre direito e moral exclui a ideia de que a justiça seja condição necessária ou suficiente para validade das normas jurídicas.

Desta feita, o que o autor expõe, em larga síntese, é um dos pressupostos epistemológicos básicos do garantismo e, pode-se dizer, da secularização do direito, no sentido da separação entre direito e moral, entendida esta última como expressão de valores pessoais ou preferências subjetivas.

Através desse pressuposto epistemológico do garantismo, pretende-se elidir a confusão entre direito e moral, deixando claro que a submissão daquele à vlores meta e extrajurídicos acabam por fragilizar garantias processuais e direitos fundamentais.

Assim, uma vez que não se confunde “ser” (faticidade) e “dever ser” (normatividade), sendo os direitos e garantias uma expressão desse último, o garantismo cumpre a função de aproximar “dever ser” do “ser”, não mediante a normatização das práticas forenses cotidianas, mas sim na tentativa de conferir efetividade às normas, afastando, consequentemente, teses como a do moralismo jurídico, que derivam o “dever ser” do “ser” e fragilizam a eficácia de garantias e direitos fundamentais ao conferir normatividade aos fatos.

Para Ferrajoli, assim, o julgador, enquanto tal, deve proceder a uma análise ou crítica interna das normas, i.e, do “ponto de vista interno” (jurídico), de modo que o “ponto de vista externo” (sociológico ou ético-político) não seja capaz, por si só, de deslegitimar as normas jurídicas; isso porque tais critérios externos, dentre outros problemas, apresentam variabilidade e volatilidade no tempo. Os valores éticos e morais de hoje não são os mesmos de 40 anos atrás, por exemplo, e a condenação de um criminoso não pode depender de um julgamento moral do juiz, mas deve ter por base a análise de fundamentos internos da ordem jurídica – desde o tipo penal descrito, legalmente estabelecido, até os princípios de justiça positivados nos níveis superiores do ordenamento.

A terceira e última tese – meta cientifica – é baseada na autonomia do ponto de vista interno (ou jurídico) e externo (ético-político) no estudo do direito.

“É realmente evidente que somente o abandono de qualquer moralismo jurídico consente à ciência do direito a possibilidade de reconhecer a validade das normas jurídicas com base em parâmetros internos ao ordenamento questionado, independentemente das suas adesões a parâmetros de avaliação externa. Inversamente, somente o abandono de qualquer legalismo ético – ou seja, a negação de qualquer valor apriorístico das normas jurídicas bem como o reconhecimento do seu caráter puramente convencional –, consente à análise política e sociológica de identificar e criticar, com parâmetros externos e não jurídicos, os aspectos de injustiça ou de irracionalidade do direito positivo”. [16]

Nesse particular, cumpre expor, ainda, as três teses axiológicas trazidas por Ferrajoli ao abordar o utilitarismo jurídico, vez que tal tese se apresenta fundamental para correlação com o objeto deste artigo.

Os citados princípios axiológicos referem-se a três concepções do delito: (a) o direito penal não tem a tarefa de impor ou reforçar determinada moral, mas impedir o cometimento de ações danosas a terceiros; (b) o princípio normativo da separação, segundo o qual o julgamento não pode versar sobre a moralidade, caráter ou ainda sobre aspectos substanciais da personalidade do réu, mas sobre fatos penalmente proibidos que lhes são imputados, destacando o jurista que “um cidadão pode ser punido apenas por aquilo que fez, e não pelo que é”; [17] (c) por fim, o último princípio axiológico, que, segundo Ferrajoli, comporta que a sanção penal não deve possuir nem conteúdos nem finalidades morais.

E tais estudos trazidos pelo jurista italiano em muito se correlacionam com as vivências do cárcere e da execução penal, porque relativos ao tratamento penal, violência punitiva.

“Estes três princípios normativos definem, no seu conjunto, os fins da tutela e prevenção do direito penal, e, ao mesmo tempo, os limites nos quais se justifica a sua intervenção dentro de um modelo garantista. (...). Os três princípios, entretanto, refletem uma ética liberal: primeiramente, porque baseada no valor da liberdade de consciência das pessoas, na igualdade do tratamento penal a elas dispensado, e na minimização da violência punitiva; ao depois porque destinada unicamente ao legislador, excluídos os cidadãos, cuja moralidade, ao contrário, é tida como juridicamente irrelevante e impenetrável.

Podemos, ainda, identificar nos três princípios axiológicos os conteúdos ético-políticos exigidos do direito penal para a sua legitimação externa, bem como os limites impostos à legislação, à jurisdição e à execução penal. Com efeito, tais princípios representam (...), a base filosófico-política de todas as garantias penais e processuais (...), incorporadas em sentido positivo nos códigos e constituições, por meio da estrita legalidade ou taxatividade dos delitos, da exterioridade e materialidade das ações delituosas, da ofensividade do evento, da culpabilidade, do ônus da prova, do direito de defesa, bem como da sua conexa presunção de inocência diante da ausência de provas e de julgamento”. .

Ante o acima exposto, percebe-se que a primeira e a segunda parte da obra de Ferrajoli se conectam, vez que o modelo processual garantista, que tem estrutura empírica e cognitiva assegurada pelos princípios da estrita legalidade e jurisdicionalidade,

“foi concebido e justificado pela filosofia jurídica iluminista como a técnica punitiva racionalmente mais idônea – como alternativa a modelos penais decisionistas e substancialistas, orientados pela cultura política autoritária – a maximizar a liberdade e a minimizar o arbítrio de acordo com três opções políticas de fundo: o valor primário associado à pessoa e aos seus direitos naturais, o utilitarismo jurídico e a separação laica entre direito e moral”. [18]

Quanto ao terceiro significado de “razão” dado por Ferrajoli, da razão de direito penal, o autor aborda o tema da validade, da coerência lógica existente no sistema penal positivo entre seus princípios normativos superiores e as normas e práticas inferiores.

Apresenta, nesse ponto, que o modelo penal garantista foi adotado pelos sistemas jurídicos evoluídos, ainda que de maneira sumária e lacunosa.

Ao conceituar “garantismo”, Ferrajoli ressalta que tal modelo foi recebido em muitas constituições, e a brasileira não fica de fora desse rol, já que são extensos os artigos que preveem direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos. Entretanto, há grande distanciamento entre o que está previsto nas constituições – teoria – e o que se vivencia na prática. Vale citar:

“O modelo penal garantista recebido (...) como parâmetro de racionalidade, de justiça e de legitimidade da intervenção punitiva, é, na prática, largamente desatendido: seja ao se considerar a legislação penal ordinária, seja ao se considerar a jurisdição, ou pior ainda, as práticas administrativas e policialescas. Esta divergência entre normatividade do modelo em nível constitucional e sua não efetividade nos níveis inferiores corre o risco de torná-la uma simples referência, com mera função de mistificação ideológica no seu conjunto”. [19]

O distanciamento entre previsão constitucional e o que se vivencia na prática constitui-se na crise de legitimidade dos sistemas penais que Ferrajoli se propôs a estudar.

E o entendimento desse distanciamento é outro elemento central para que se possa construir uma correlação do garantismo com o surgimento e a existência das facções criminais, isso porque o não obedecimento às garantias previstas na Constituição Federal, seja em qualquer das fases do processo de elaboração ou aplicação da lei (seja pelo juiz, pelo agente penitenciário ou até mesmo pelo policial), gera um abismo entre teoria e prática. E desse abismo surgirá a necessidade de se lutar para alcançar condições mínimas de sobrevivência.

A título de exemplo, vale citar o caso dos produtos de higiene nos presídios brasileiros. As leis e, sobretudo, a Constituição Federal (art. 5.º, XLIX) garantem condições mínimas de respeito à integridade física e moral do preso. Determinam, ainda, ser de responsabilidade do Estado o fornecimento de produtos de higiene aos indivíduos encarcerados – o que é óbvio, já que foi o Estado quem determinou a privação da liberdade daquele indivíduo, devendo ser o ente responsável pelo fornecimento e cuidado para que os apenados tenham condições mínimas de sobrevivência no interior dos estabelecimentos prisionais.

Contudo, quando o Estado fere essa garantia, e não fornece produtos de higiene, cria-se uma situação de distanciamento entre previsão legislativa (normatividade) e prática (efetividade). Seria leviano demais imaginar que, se o Estado não fornece, então os encarcerados viverão sem os produtos de higiene. Leviano porque, apesar de encarcerados, esses indivíduos sabem o que é um sabonete, um papel higiênico, uma lâmina de barbear, e sabem que é direito deles ter acesso a tudo isso. Leviano porque o homem encarcerado não está sozinho, ele passa a viver em uma comunidade com tantos outros sob a mesma condição, e o homem que vive em sociedade passa a se organizar e, em conjunto, lutar por aquilo que julga ser necessário. Assim, sem seus produtos de higiene fornecidos pelo Estado, aqueles homens buscarão obtê-los de outra forma, e aqueles que tiverem acesso a tais raridades serão como quem tem olhos em terra de cegos.

Com esse pequeno exemplo, não se determinando ou condicionando a falta de produtos de higiene ao surgimento da facção criminosa, mas, como se verá à frente, a falta de garantias mínimas, de respeito aos direitos e, especialmente, a falta do Estado – ampliando o distanciamento entre normatividade e efetividade – que faz que determinada sociedade se organize para, em conjunto, buscar obter o que a eles é tido como essencial.

No caso dos presídios, a organização se deu por meio das facções criminosas, mas a ausência do Estado gera a necessidade de organização local – de um Estado paralelo – em diversas outras situações, como é o caso das milícias, por exemplo.

Desse modo, aceitar e “ampliar” o distanciamento entre o que está previsto na lei e o que acontece na prática é fomentar e disseminar a necessidade de criação de práticas paralelas ao poder do Estado, que, ausente em sua função de garantidor e provedor para aquela classe, passa a “permitir” que se crie uma organização daquele grupo de pessoas para alcançar bens e serviços que ele, Estado, não produz ou fornece, quando, pela lei, deveria fazê-lo.

Em paralelo a essa abordagem, vale destacar o estudo de Guillhermo O’Donnell sobre os países da América Latina e a reestruturação de seus Estados de Direito após período ditatorial, em que o citado autor conclui que a maioria dos países da América Latina não consolidou sistemas de Estados de Direito após transição para democracia, e classifica o Brasil, por ser um dos países mais desiguais da região, como um sistema de “não Estado de Direito”:

“Na América Latina há uma longa tradição de ignorar a lei ou, quando ela é acatada, de distorcê-la em favor dos poderosos e da repressão ou contenção dos fracos. Quando um empresário de reputação duvidosa disse na Argentina: ‘Ser poderoso é ter impunidade [legal]’, expressou um sentimento presumivelmente disseminado de que, primeiro cumprir voluntariamente a lei é algo que só os idiotas fazem e, segundo, estar sujeito à lei não é ser portador de direitos vigentes, mas sim um sinal seguro de fraqueza social. Isso é em particular verdadeiro, e perigoso, em embates que podem desencadear a violência do Estado ou de agentes privados poderosos, mas um olhar atento pode detectá-lo também na recusa obstinada dos privilegiados a submeter-se a procedimento administrativos regulares, sem falar da escandalosa impunidade criminal que eles costumam obter”. [20]

Com isso, o que se tem é uma “autorização” para agir em desconformidade com a lei, e isso engloba não só os tipos criminosos, mas diversos magistrados, promotores, agentes penitenciários, agentes da segurança pública e até mesmo advogados que se curvam ao “jeitinho” em detrimento da correta aplicação da lei.

Anoto, nesse particular, que o presente artigo busca criticar a posição do Judiciário que, ao referendar e mitigar direitos e garantias penais/de execução penal, é conivente com a inércia do Executivo em não promover meios e estrutura para implemento das garantias asseguradas na legislação vigente. O que se objetiva, assim, é, com base no pensamento de Ferrajoli, propor iniciativa de ações por parte dos agentes do Poder Judiciário, para poderem iniciar um processo de aproximação entre legalidade e efetividade.

Destarte, analisando a conceituação trazida por Ferrajoli e a análise feita por O’Donnell, resta evidenciado que, apesar da existência e construção de uma Constituição e de legislação bastante evoluída, o Brasil busca e encontra meios para reduzir a aplicação dessa legislação, pouco importando quantas e quais garantias de um indivíduo privado de sua liberdade serão retiradas. O texto de O’Donnell é trazido para este artigo exatamente para evidenciar a aceitação que o país tem com o “jeitinho” para se burlar a legislação.

E tais condutas estão intimamente ligadas com o surgimento das facções criminais, cada dia mais fortalecidas nos presídios brasileiros. Primeiro porque o número de encarcerados não para de crescer – e isso não decorre, necessariamente, do aumento do número de condenações, vez que, conforme estudos, é cada vez maior o número de presos preventivamente, [21] ou seja, de presos que ainda aguardam instrução e julgamento de seus processos.

Além do aumento da população carcerária, a ausência – cada vez maior – do Estado no interior dos presídios representa, automaticamente, fortalecimento da instituição que, paralelamente, coordenará aquele contingente.

O estudo da evolução e história do homem, por mais superficial que seja feito, nos leva a uma conclusão básica: o homem que vive em grupo se organiza e cria sua própria sociedade, com regras, hierarquia e valores próprios. Não há registros de homens que vivam juntos e que não organizem suas leis – o que engloba todas as esferas de relacionamento humano: família, trabalho, religião, amigos e até relacionamentos amorosos.

Assim, tendo como premissa básica que o homem, especialmente em condições iguais, irá se organizar, a ausência desse Estado fortalece ainda mais a organização, tendo em vista que aquele grupo terá que, junto e unido, lutar por itens, segurança e demais pressupostos que atingem suas necessidades básicas.

Na quarta parte de seu livro, Ferrajoli irá analisar a fenomenologia, em especial a ineficácia das garantias no direito penal italiano, e esses capítulos não serão abordados neste estudo.

Ainda cumpre ressaltar os dizeres da quinta e última parte da obra, oportunidade em que Ferrajoli busca elaborar a definição do termo garantismo, e o autor extrai dessa expressão três significados e seus consectários.

O primeiro deles é aquele que entende o garantismo como um modelo normativo de direito, um conjunto de normas de um Estado de Direito que visa, sob o plano político, minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o aspecto jurídico, vincular a função punitiva do Estado para garantir o cumprimento dos direitos dos cidadãos. Sob essa ótica, é garantista “utópico/inatingível” todo o sistema penal que se conforma, normativamente, com tal modelo, e que o satisfaz de forma efetiva, por completo, sem deixar lacunas entre teoria e prática. [22]

Dessarte, uma constituição pode ser extremamente garantista, mas ter o grau de garantismo rebaixado, quando se considera a aplicação/efetividade das normas constitucionais e infralegais. A primeira definição dada por Ferrajoli, portanto, seria de um sistema ideal, utópico, impossível de ser atingido em sua integralidade – a completa correlação entre legalidade e efetividade –, vez que, ao autor, invariavelmente haverá certo grau de incompatibilidade entre previsão e aplicação legal.

A partir desse modelo extremo, o autor aceita a existência de uma graduação de garantismo, em que o sistema penal pode ser elevadamente garantista, considerando os princípios, mas ter esse grau rebaixado quando considerada a prática.

Portanto: “uma constituição pode ser muito avançada em vista dos princípios e direitos sancionados e não passar de um pedaço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas – ou seja, de garantias – que propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito legítimo”. [23]

O segundo significado, segundo Ferrajoli, é o que define como garantismo aquele sistema em que se designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade, distinguindo essas duas tanto pela existência, quanto pelo vigor das normas.

A questão teórica central desse segundo significado de garantismo é a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos, que tendem a ser garantistas, válidos, mas não efetivos, e práticas operacionais que tendem a ser antigarantistas, efetivas, mas inválidas.

O garantismo, segundo essa definição, fundaria uma teoria da divergência, separando normatividade e realidade; direito válido e direito efetivo.

A título de exemplo, vale citar o art. 41 da LEP, que elenca em 16 incisos quais são os direitos dos presos, dispondo desde as garantias mais “singelas” – como o direito ao chamamento nominal – até as garantias essenciais ao ser humano – como alimentação suficiente, assistência material à saúde, jurídica etc.

Contudo, qualquer pessoa que tenha o mínimo contato com notícias do sistema carcerário saberá que não é assim. É fácil se constatar que, apesar de a Constituição prever respeito à integridade física e moral dos presos, poucos, ou quase nenhum dos direitos previstos na Lei de Execução, são respeitados.

Além da superlotação dos presídios, os apenados dificilmente têm assistência médica – por exemplo. Em muitos presídios é de conhecimento que o fornecimento de alimentação, além de insuficiente, é precário – vale citar os presídios em que não há cozinha no estabelecimento prisional e o fornecimento fica dependente da realização de entrega por outros órgãos; em alguns casos a comida chega imprópria para o consumo humano.

Por fim, o terceiro e último significado do garantismo, que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e interesses dos quais a tutela tem por finalidade. Para efetivação desse significado de garantismo é preciso que haja uma separação entre direito e moral; validade e justiça; entre o ponto de vista interno e externo na valoração do ordenamento; entre o ser e o dever ser do direito, somente alcançado com uma doutrina livre dessas influências externas à lei.

Esse foi o ponto de vista do pensamento iluminista, da ciência e da legislação, comum a toda perspectiva não conservadora – reformadora ou revolucionária. Em geral, forma o pressuposto de toda a doutrina democrática dos poderes do Estado, e não só dos poderes penais – porque externo é o ponto de vista de baixo, aquele que exprime valores extra, meta ou pré-jurídicos; fundadores; interesses e necessidades naturais; e interno o ponto de vista do alto. A não “consideração” de um ponto de vista externo, ou a sua confusão com o interno, forma a conotação específica de todas as culturas políticas autoritárias comuns, reunidas nas ideias de autofundação e auto justificação do direito e do Estado como valores em si, não meios.

Por conseguinte, tendo por base os três significados de garantismo, Ferrajoli preocupa-se em explicar o alcance teórico e filosófico geral dos significados, que delineiam elementos da teoria geral do garantismo:

“(...) o caráter vinculado do poder público no Estado de Direito; a divergência entre validade e vigor produzida pelos desníveis das normas e um grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior; a distinção entre ponto de vista externo – ético-político e interno – jurídico e a conexa divergência entre justiça e validade”. [24]

Pressupõe-se, para efetivar metodologicamente a aplicação do garantismo, uma separação entre direito e moral, entre ser e dever ser. Tal separação pode ser objeto privilegiado de investigação de análise jurídica – e metajurídica – relação entre direito e valores ético-políticos externos; jurídica – relação entre princípios constitucionais e leis ordinárias e entre leis e aplicações; sociológica – entre direito no seu conjunto de práticas efetivas.

Somente reconhecendo a divergência entre normatividade e efetividade, segundo Ferrajoli, é que se conseguirá emitir corretamente análises dos fenômenos jurídicos, evitando dúplice falácia – naturalista e normativa, da assunção dos fatos como valores, ou dos valores como fatos. Tal divergência, contudo, diz Ferrajoli, é insuperável, já que ligada à estrutura deôntica das normas. [25] Vale dizer que a estrutura é deôntica porque espelha um dever, um “dever ser”, logo, é algo que deve ser, mas ainda não é.

Nesse ponto vale ressaltar os dizeres do autor.

“Esta dupla falácia [da assunção dos fatos como valores, ou dos valores como fatos], está na base de muitas regressões ideológicas que caracterizam a história da cultura não apenas penal, mas jurídica. (...). Uma teoria do garantismo, além de fundar a crítica do direito positivo referente aos seus parâmetros de legitimação externa e interna é, por consequência, também uma crítica das ideologias: das ideologias políticas, sejam estas jusnaturalistas ou ético-formalistas, as quais confundem, sob o plano político externo, a justiça com o direito, ou pior, vice-versa; e das ideologias jurídicas, sejam estas normativas ou realistas, que paralelamente confundem, sob o plano jurídico ou interno, a validade com o vigor, ou, ao contrário, a efetividade com a validade”. [26]

Nesse diapasão, Ferrajoli afirma que o primeiro dos três significados de garantismo é o que melhor se relaciona com a formação moderna de Estado de Direito. Na seara penal, em linhas gerais, Estado de direito designa duas coisas: “o poder judicial de apurar e punir os crimes”, [27] ou seja, o poder sub lege, submetido às leis; ao passo que “o poder legislativo de defini-los [os crimes] é exercitado per leges”, [28] ou seja, faz a lei, mesmo estando, em certo ponto, submetido a ela, já que deve obedecer aos preceitos da lei constitucional.

Para a teoria garantista, o governo submetido às leis deve ser entendido no sentido estrito – qualquer poder deve ser limitado pela lei, condicionando formas e conteúdos. Os Estados constitucionais, aqueles com constituições rígidas, assim são denominados pelo autor já que “incorporam, nos níveis normativos superiores, limites não somente formais, mas, também, substanciais ao exercício de qualquer poder”. [29] E esse é o caso do Brasil – um Estado constitucional, que incorporou nos níveis normativos superiores limites formais e substanciais ao exercício dos Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário.

Por conseguinte, o Brasil deve respeitar o poder sub lege, aquele que se relaciona à legalidade em sentido estrito, que exige circunstâncias preordenadas e circunscritas para só então serem aplicadas.

É nesse capítulo que Ferrajoli irá determinar o que é o Estado para o garantismo, qual seu papel, qual deve ser sua maneira de atuação para que se chegue a uma atuação, a uma política criminal efetivamente garantista. E analisando o dever do Estado com o que ocorre na realidade dos presídios, fica claro que, ausente a atuação do Estado, aquela comunidade irá se organizar e estruturar, não só para lutar pelos seus direitos, mas para instaurar alguma ordem que oriente e determine as regras de convívio de milhares de sentenciados.

Desse modo, o modelo de Estado garantista é aquele que nasceu com as modernas constituições e é caracterizado, no plano formal, pelo princípio da legalidade – todo poder público está subordinado às leis gerais que disciplinam como se dará seu exercício, “e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes”. [30]

No plano substancial, a característica marcante do Estado Garantista é a “funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição (...) isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais”. [31]

Ao tratar da democracia, brilhantemente Ferrajoli expõe que uma democracia não se constitui sobre o poder de todos decidirem sobre tudo, mas no perfeito equilíbrio para que não haja supressão de um cidadão diante da maioria.

É preciso uma limitação, regras que definam quem pode decidir e como deve decidir. “Nem sequer por unanimidade pode um povo decidir (ou consentir que se decida) que um homem morra, ou seja privado sem culpa de sua liberdade”. [32] Nesse sentido, é perfeita a conexão com os casos criminais muito explorados pela mídia, em que há uma pré-condenação de indivíduos que muitas vezes sequer foram ouvidos pela justiça penal. Nesse sentido, a tirania da maioria não pode determinar os caminhos da ciência penal.

Ante o exposto, cumpre destacar a exposição de Ferrajoli acerca do Estado de Direito e do Estado Máximo.

Do liberalismo-absolutismo ao iluminismo-Estado de direito, a grande diferenciação, segundo o autor, está na

“positivação e constitucionalização destes direitos [vitais ao homem] por meio da (...) incorporação limitativa, no ordenamento jurídico, dos correspondentes deveres impostos ao exercício dos poderes públicos. É com a estipulação constitucional de tais deveres públicos que os direitos naturais se tornam direitos positivos invioláveis, e muda, por isso, a estrutura do Estado, não mais absoluto mas limitado e condicionado”. [33]

Logo, as obrigações do legislador, expressas tanto na Constituição Federal brasileira quanto na legislação extravagante, formam um conjunto de garantias dos cidadãos, impostas a qualquer poder para tutela dos indivíduos e das minorias que não têm poder. Como expõe Ferrajoli, graças a essas garantias “o legislador, mesmo se é ou representa a maioria do povo, não é nunca onipotente, dado que a violação delas confere vigor às normas não somente injustas, mas também inválidas, e portanto censuráveis e sancionáveis não só politicamente mas também juridicamente”. [34]

Partindo da premissa de que ao Estado cabe não só a punição, mas também a atuação para garantir e efetivar direitos de todos os cidadãos, uma vez mitigada e aceita a redução de direitos dos presos (por exemplo), tanto por parte do Judiciário, quanto pela própria sociedade, podemos inferir que poderá haver diminuição na atuação do Estado também diante de direitos e garantias dos “cidadãos livres”.

Vale exemplificar a situação. Tendo que é dever do Estado garantir educação e trabalho dentro dos presídios, uma vez aceito o pleno funcionamento de uma unidade prisional sem que seja oferecido trabalho ou educação aos presos, o Judiciário e a sociedade passam a aceitar uma inação do Estado. O que se infere a partir das análises sobre o Estado trazidas por Ferrajoli é que tal aceitação pode (e isso já acontece) afetar outros tantos deveres de atuação do Estado diante do cidadão – como a garantia de vaga em creche.

Assim, a institucionalização do discurso relativizador de garantias, dada sua “fácil utilização” pelos órgãos do Estado responsáveis pela efetivação de direitos, pode alcançar uma parcela cada vez maior da sociedade, e não só indivíduos encarcerados/marginalizados, transpondo a mitigação que hoje é expressiva e autorizada nos presídios, para parcela da população livre, alcançando toda a sociedade.

Nesse ponto vale ressaltar:

“A técnica garantista é sempre aquela da incorporação limitativa de direitos civis e correlativamente de deveres públicos nos níveis normativos superiores do ordenamento (...). Muda, porém, profundamente, a estrutura normativa do poder estatal, não (mais somente) limitado negativamente por vedações legais de impedir os ‘direitos de’, mas (também) funcionalizado positivamente por obrigações de satisfazer ‘direitos a’. E muda ainda a base de legitimação do Estado: enquanto o Estado de direito liberal deve somente não piorar as condições de vida dos cidadãos, o Estado de direito social deve ainda melhorá-las; deve não somente não ser para eles uma desvantagem mas, outrossim, ser uma vantagem. Essa diferença está ligada à diferente natureza dos bens assegurados pelos dois tipos de garantias. As garantias liberais ou negativas baseadas em vedações legais servem para defender ou conservar as condições naturais ou pré-políticas de existência: a vida, a liberdade, a imunidade (...). As garantias sociais ou positivas baseadas nas obrigações conduzem, ao invés, a pretensões e aquisições de condições sociais de vida: a subsistência, o trabalho, a saúde, o lar, a instrução etc.”. [35]

Em uma breve síntese, pode-se afirmar que, para Ferrajoli, um Estado Garantista terá maior equivalência entre legalidade e efetividade com respeito aos princípios, direitos e garantias fundamentais. E somente com atuação nesse sentido é que se poderá chegar a uma possibilidade de redução da criminalidade, tendo por óbvia a conclusão de que violência só gera violência, como os antepassados (principalmente na época de Talião) provaram.

Vale citar a excepcional passagem:

“A garantia destes direitos vitais é a condição indispensável da convivência pacifica. Por isso a sua lesão por parte do Estado justifica não simplesmente a crítica ou o dissenso, como por questões não vitais sobre as quais vale a regra da maioria, mas a resistência à opressão, até a guerra civil. ‘Sobre questões de existência, não se deixa à minoria’”. [36]

Conforme irá se demonstrar, as organizações e facções criminosas no interior dos presídios surgem e demonstram sua força por meio do medo, da opressão, da resistência e, por que não dizer, da guerra civil velada e travada com o Estado e que, em algumas situações, ficou escancarada para toda a sociedade.

2. Do garantismo às facções criminais

2.1 Conceito de facções criminosas

Após análise dos principais conceitos do garantismo, cumpre correlacioná-lo com a criação e a existência das “facções criminosas”. Contudo, é preciso, primeiramente, esclarecer o que se deve entender por “facções criminosas”.

É fácil perceber que não há até hoje um conceito único, ou um consenso sobre o que se entende por facções criminosas, e nem mesmo uma diferenciação do conceito de organização criminosa, embora desde os “primórdios” da criminologia, com a teoria positivista consagrada por Césare Lombroso, houvesse preocupação com essa “associação para o mal”. [37]

Perpassando pelas diversas escolas penais, deve-se destacar a perspectiva trazida pela teoria do labelling approach (ou teoria da rotulação social) e pela teoria crítica, vez que, ao fornecerem um novo prisma de análise do fenômeno delituoso, dão maior enfoque não mais às supostas causas da conduta criminosa, mas sim aos efeitos da criminalização. Isso porque é só deixando de olhar para supostas características que indiquem um “gene” criminoso – como propunham as escolas positivistas – que se conseguirá olhar para o crime como fruto da normatividade que se impõe na sociedade.

E tal modificação no enfoque de estudo da criminologia foi importante para uma melhor conceituação de “facção criminosa”. Nesse diapasão, vale citar as palavras de Bruno Shimizu, em sua monografia intitulada “Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas”:

“A própria tentativa de definição do que seja uma facção ou organização criminosa – contrapondo tal ideia à de agrupamento lícito – é imbuída de forte carga ideológica. Por certo, um agrupamento considerável e duradouro de pessoas não praticará apenas atos ilícitos ou lícitos. Mesmo entre as organizações tidas como lícitas, como uma empresa, não é raro que se averigue a prática de certos atos ilícitos, como fraudes ou crimes tributários, sem que, por isso, seja possível atribuir-lhes o rótulo de facção criminosa. Deste modo, por certo, de acordo com os postulados do labelling approach, a adoção dos termos ‘facções criminosa’ ou ‘crime organizado’ consiste em um etiquetamento criador de desviação em determinados grupos”. [38]

Destarte, fica evidente que o caráter criminoso desse grupo não decorre de sua essência, mas de uma atribuição dada por membros externos a ela, razão pela qual a perspectiva fornecida pela teoria do labelling approach se revela tão adequada à análise do objeto em estudo, uma vez que é precisamente a rotulação das pessoas encarceradas e do universo que as permeia, que as caracteriza como “facção criminosa”; grupo ilícito.

Cabe indagar: facção criminosa seria um agrupamento destinado à prática de crimes? Se assim se considerasse, então se poderia pressupor a existência de facções não criminosas? Se as respostam as essas perguntas fossem tão simples, o mesmo poderia se dizer do crime organizado em contraponto ao crime desorganizado.

A partir da análise de dados históricos, tem-se que o surgimento dos grupos no interior dos presídios brasileiros, em especial nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, se deu pelo crescente descontentamento dos presos com o tratamento prestado, que se mostrou demasiado violador dos direitos básicos e garantias fundamentais, conforme se verificará.

Conforme relata Shimizu em seu estudo, as facções surgiram muito mais com o intuito de garantir alguns direitos dos presos do que de praticar atos ilícitos, ou criminosos, por isso não é correta a nomeação “crime organizado” para tais agrupamentos.

Analisando todas essas vertentes e nuances, é preciso que fique claro que: por facções criminosas deve-se entender, ao menos durante a leitura do presente artigo, que se trata de um grupo de pessoas que, por partilharem de uma mesma realidade (estarem encarcerados), organizou-se. O princípio norteador desse agrupamento ou facção consiste na “defesa dos interesses da comunidade carcerária”. [39] Para este artigo, a prática de atos definidos na lei como crime não é essencial para caracterizar esse grupo como facção criminosa. Assim, usaremos essa nomenclatura apenas por não existir outra.

2.2 Breve histórico da facção Primeiro Comando da Capital

Feito o corte acerca do que se deve entender por facção criminosa durante a leitura deste artigo, é preciso narrar a história de fundação da facção criminosa denominada Primeiro Comando da Capital (PCC).

A facção foi escolhida devido à sua grande representatividade nos presídios paulistas, mas não somente isso. O enfoque será dado ao PCC porque é dele que foram obtidos relatos, tanto teóricos (dos livros, pesquisas e também dos jornais), quanto “práticos” – narrativa sobre a facção feita por indivíduos encarcerados, que têm contato maior e cotidiano com essa realidade. É como se acerca dessa facção se pudessem contar dois lados da mesma história: o que está disponível para conhecimento de todos através dos meios de pesquisa e o que os próprios sentenciados, aqueles que convivem com essa realidade, contam.

O PCC teve sua origem no Centro de Readaptação Penitenciária Anexo à Casa de Custódia de Taubaté, interior de São Paulo, estabelecimento prisional conhecido como “Piranhão”. Sabidamente, como se pode depreender de uma simples busca na Internet, para essa penitenciária eram transferidos os presos considerados “de alta periculosidade”, sendo submetidos a condições desumanas de cumprimento da pena.

Nesse estabelecimento prisional, no dia 31.08.1993, durante um jogo de futebol, os integrantes do time “Comando da Capital” fundaram a facção paulista, que surgiu para lutar contra as condições degradantes a que os presos eram submetidos, objetivando, futuramente, a desativação do local.

Vale relembrar o contexto histórico daquele período. Fazia parte da história recente a ocorrência do maior massacre de presos, no já desativado Presídio do Carandiru, em que 111 presos foram executados após ação da Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo na tentativa de conter uma rebelião. [40] Preocupados, aqueles presos passaram a buscar mecanismos para evitar qualquer situação semelhante à vivida no Carandiru.

Tais motivos, que fomentaram a criação da facção, podem ser descritos como o desenrolar de uma história que começa na década de 1980, com o início do governo de Franco Montoro no Estado de São Paulo.

O governador tentou implantar um projeto de humanização dos presídios do Estado, buscando dar transparência ao sistema, eliminar práticas tidas como comuns – de violência, tortura, abuso de poder –, almejando, por fim, estabelecer uma nova gestão dos presídios, com a criação de mecanismos de diálogo entre diretores e presos. [41]

Contudo, tal reformulação foi rechaçada por membros do Ministério Público e Magistrados Paulistas, que diziam ser essa política, além de ineficiente, conivente com a criminalidade. Várias foram as formas que esses órgãos buscaram para acabar com essa política do governo de Montoro. Ao final de seu mandato, restou não implantado tal projeto.

Com a eleição de Orestes Quércia, a aplicação das medidas propostas por Montoro foi afastada, e o Estado passou a agir com mais autoritarismo nas penitenciárias. O ápice de tal “política criminal”, segundo relatos, deu-se com o já citado massacre do Carandiru, em 1992.

Desta feita, fica hialino que a ausência de garantias de cumprimento de direitos dos presos, somada ao endurecimento no tratamento dispensado a estes, só fez crescer o medo e a revolta no meio daqueles que, encarcerados, estavam vivendo distantes de qualquer diálogo ou aproximação com a sociedade, “nas mãos” dos opressores.

“A extinção de qualquer possibilidade de diálogo aliada às medidas autoritárias, como a criação do ‘Piranhão’, que data do final da gestão Montoro, já demonstrando o declínio da política de humanização, figurou na base da formação do Primeiro Comando da Capital”. [42]

Ferrajoli, ao citar a necessidade de garantia dos direitos vitais, coloca que a lesão desses direitos, por parte do Estado, justificaria atos de resistência, opressão e até mesmo de guerra civil, [43] exatamente como se constata quando se analisa a história de criação do PCC.

Se transpormos essa situação para a vida fora das grades, é fácil constatar que a insatisfação popular pode levar a inúmeras formas de manifestação, especialmente quando não são respeitados direitos básicos como saúde e educação. A maior diferença é que a sociedade tem voz e é ouvida. Os meios de comunicação, o voto, a rua, e outras tantas formas podem e são utilizadas para externar um problema, uma infração a um direito ou garantia fundamental.

Entretanto, aos presidiários tudo isso é negado. Deles se afastam todos os ouvidos e o que acontece dentro das muralhas é narrado por uma parte dos envolvidos, geralmente só policiais. Somente aqueles que podem entrar e sair de presídios é que têm poder para falar e ser ouvido, o que, sem dúvida, gera distorções nas narrativas.

Josmar Jozino, em seu livro sobre o partido do crime, narra um episódio bastante ilustrativo quando quer explicar a falta de voz de indivíduos encarcerados. [44] Tal passagem ficou conhecida como “Bateria”. Os sentenciados passaram uma semana durante o mês de maio de 1993 batendo nas grades das celas para denunciar o espancamento de um preso recém-chegado. Como a batida era em todas as celas, o som não tinha como ser abafado e nem omitida a manifestação que ali se realizava. Bater nas grades, fazer um barulho, foi a forma que encontraram para serem ouvidos, já que não há diálogo com essa parcela segregada da população.

Com o passar dos anos, o PCC foi se organizando e cada vez mais se expandindo, apesar da crescente negativa das autoridades em reconhecer sua existência. A “megarrebelião” em 2001 [45] e os ataques ocorridos em 2006 [46] foram os dois maiores eventos que deram destaque à facção, e não deixaram outra opção às autoridades que não reconhecer, oficialmente, sua existência.

A violência nos presídios é narrada como marcante no início da facção. Em encontros realizados dentro do presídio Adriano Marrey, por meio do Grupo de Diálogo Universidade-Comunidade-Cárcere (GDUCC), promovido pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 2013, não foram poucos os relatos dos presos sobre a existência do PCC, seu surgimento e importância.

Em sua grande maioria, os sentenciados narram dois períodos da história do “partido”. O primeiro vai de antes de sua criação até sua estruturação e organização em que os marcos narrativos são de muita violência, morte, preconceito e dificuldades extremas de sobreviver ao cárcere. Um dos colegas do grupo citou que no início era preciso vencer os pequenos grupos que tentavam “aterrorizar” cada um dos presídios. Para isso, muitos foram mortos, até o que o “partido” conseguisse dominar a maioria dos presídios paulistas.

Antes de sua existência os presos narram que a vida era ainda mais difícil dentro do cárcere. No dia de visita, quem não tinha ninguém para receber era obrigado a passar o dia virado para a parede, sem poder sair dali para comer, andar ou mesmo fazer necessidades. Além disso, os presos contam que o respeito era imposto somente pelo uso da força, por isso o medo da morte era uma constante. Aliás, mortes eram corriqueiras e um sentenciado explica que tanto era assim que o diretor do presídio tinha até um convênio com a funerária que entrava diariamente no estabelecimento. É preciso ressaltar que as ameaças de morte vinham tanto dos outros presos, como também dos policias e agentes de segurança.

O segundo período, já mais recente, inicia-se a partir dessa consolidação do PCC. Em maior número e com poderes de autoridade, os “irmãos” (como se denominam os presos ligados à facção) passaram a viver sob a poderosa “mão” do lema maior do partido: paz, justiça, liberdade e igualdade (este último acrescentado mais recentemente, com o intuito de integrar também os homossexuais, transexuais, travestis etc.).

Conforme narraram os integrantes do GDUCC, a vida no presídio hoje é muito diferente de anos atrás. Segundo eles, é graças à organização do PCC que se reduziu a violência dentro dos estabelecimentos penais e que se consegue “dialogar” em prol de uma vivência mais digna atrás das grades (com fornecimento de artigos de higiene, comida, auxílio para conseguir um advogado, auxílio à família, entre outras medidas).

Não foram poucos que relataram que não estavam fazendo apologia ao crime, mas só expondo uma situação real, um dado obtido por meio do dia a dia após tantos anos atrás das grades.

Os dados teóricos corroboram essa narrativa, já que também se identificam duas fases de atuação do partido: uma primeira marcada por levantes violentos em presídios, buscando a eliminação de lideranças de facções rivais, [47] e uma segunda, com a chegada de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, à liderança do PCC.

Os ataques realizados em 2006 a estações policiais, agências bancárias, edifícios públicos, contando ainda com a queima de ônibus, assassinatos de agentes de segurança, policiais etc., foram a maior demonstração de enfrentamento por parte da facção, sendo considerado um episódio de guerra aberta contra os poderes públicos do Estado de São Paulo.

Desde então, conforme narrado pelos membros do citado grupo de diálogo e como podemos constatar pela simples leitura dos jornais, não houve nenhuma grande ação por parte do Comando; o que não encontra explicação plausível, senão em um possível arranjo celebrado entre a facção e o Estado.

2.3 Correlacionando garantismo e as facções criminosas

Cabe ressaltar o que foi dito no início do presente tópico. Muitos vinculam as facções criminosas com a criação de um Estado paralelo. É preciso que fique claro que tais organizações não agem sozinhas, totalmente isoladas do aparato estatal. Boaventura de Souza Santos, citado por Bruno Shimizu, nomeia de pluralismo jurídico toda situação em que no mesmo espaço geopolítico vigora mais de uma ordem jurídica. [48]

“Seu olhar [de Boaventura] debruçou-se sobre a existência de regras não oficiais tidas como legítimas e respeitadas de modo geral pela comunidade, sento tal direito informal gerido pelas lideranças comunitárias e pela associação local de moradores. Tais regras diziam respeito principalmente a questões envolvendo a posse da terra, tendo a comunidade desenvolvido seus próprios meios de solução de conflitos, dada a impossibilidade de acesso às instancias oficiais. (...). Os moradores da favela eram submetidos a um ‘estatuto de ilegalidade’ (...). A essa comunidade, aliás, o Estado voltava apenas sua face repressiva por meio de ações policiais violentas, em relação às quais pouco ou nada podiam fazer os moradores, desassistidos de qualquer forma de proteção a direitos humanos. A adesão a regras informais, portanto, consistiu em uma solução encontrada pela comunidade local a fim de colocar um termo à violência gerada pela autotutela dos interesses”. [49]

Nesse sentido, mas dentro de uma comunidade carcerária, exatamente a mesma necessidade de se organizar informalmente, diante de uma inação do Estado, também ocorreu. No contato com os sentenciados no Presídio Adriano Marrey durante o segundo semestre de 2013, por intermédio do GDUCC, ficou clarividente que o poder disciplinar – exercido pelos agentes de segurança e pelo diretor do presídio, e às vezes ratificado pelo Poder Judiciário – “convive” com as normas estabelecidas pela comunidade carcerária. Naquele presídio as regras a serem seguidas eram as do PCC, mas muitas vezes também deviam obedecer às regras do Estado.

Ressalto, nesse ponto, que o número ínfimo de funcionários designados para conter a massa carcerária é um dos motivos que reforça a necessidade de “aceitação” pelo diretor do presídio, por exemplo, das regras existentes pela facção criminosa, vez que o PCC exerce, inegavelmente, um poder de controle daqueles que a ele estão vinculados, os “irmãos”.

É importante frisar que as regras do PCC são seguidas, pois, em grande parte, é o Comando quem auxilia nas primeiras necessidades do sentenciado e muitas vezes de sua família.

Para Guaracy Mingardi, em O trabalho da inteligência no controle do crime organizado, a simbiose do Estado com as facções e/ou organizações criminosas é uma das cinco características que diferenciam crime organizado de crime comum:

“A quinta característica, ‘simbiose com o Estado’ é a mais polêmica (...) Em todas as organizações estudadas aparece uma ligação com a máquina do Estado. Um desmanche de carros roubados só consegue operar se tiver respaldo da fiscalização ou da polícia. (...) Para confirmar essa informação, basta verificar a tranquilidade com que os apontadores de jogo do bicho operam nos maiores centros urbanos”. [50]

Shimizu elenca que, por uma série de fatores, há uma dependência entre os funcionários do estabelecimento prisional e os líderes das facções, já que:

“A instituição penal é estruturalmente incapaz de dominar completamente a massa de internos, a administração é induzida a abrir-se às lideranças informais dos presídios, negociando e fazendo concessões, a fim de manter um nível satisfatório de controle sobre a população sob sua responsabilidade”. [51]

Frise-se: a instituição precisa negociar com os líderes das facções porque não tem estrutura para dominar a massa de sentenciados.

Ainda nesse diapasão, cabe citar um trecho da dissertação de mestrado de Ana Gabriela Mendes Braga:

“Os agentes estatais obtêm, ao permitir e participar das irregularidades e ilegalidades no meio prisional, vantagens diretas advindas da própria corrupção. E, indiretamente, a vantagem está no fato da multidão confusa continuar sob controle, ainda que esse controle advenha do poder das facções – o que pode significar um grande risco ao Estado quando há um desequilíbrio desse arranjo de poder (Estado – facções)”. [52]

Desta feita, fica claro que o Estado não tem condições, estrutura e nem mesmo interesse em tratar o problema do encarceramento com o mínimo de dignidade humana. Por mínimo de dignidade humana deve-se entender o oferecimento de condições básicas já estabelecidas na Constituição Federal e detalhadas na Lei de Execução Penal.

Ausente a atuação do Estado, qualquer agrupamento, por mais selvagem que possa ser, irá estabelecer regras para um convívio pacífico (isso entre o agrupamento) e, se houver necessidade, terá que buscar, de algum outro modo, a estruturação de sua forma de luta. Ou seja: sem condições e sem vontade para “arrumar” a situação, o Estado prende cada vez mais. Jogados e amontoados em celas, os presos são obrigados a conviver com aquela realidade por anos, muitos até por décadas. Seria ingênuo demais imaginar que toda aquela massa viverá de cabeça baixa, suportando todos os mandos e desmandos das autoridades, vendo cada vez mais seus direitos diminuídos, convivendo diariamente com a possibilidade de serem mortos, não só pelos companheiros de cela, mas pelos órgãos estatais, como ocorreu no Carandiru, em 1992.

Assim, sem estruturação mínima e obrigados a conviver, esse grupo de pessoas irá buscar se organizar. Ninguém, nem o mais primata dos homens, vive confortável com a ameaça constante de morte, por exemplo.

Nesse sentido, evidencia-se que as facções criminosas somente surgem a partir da omissão do Estado, que os marginalizou e os abandonou naquela situação. Ausentes as garantias, valerá a máxima “a união faz a força”, e é o que se tem feito.

Ressalto, nesse particular, que o dever de agir de modo a criar condições dignas de vivência dentro do cárcere é do Estado. Contudo, como ressaltado no tópico um deste artigo, a conivência do Judiciário e da sociedade com a omissão estatal só faz piorar o problema.

Primeiramente, quanto ao Judiciário, por envolver indivíduos detentores de conhecimento jurídico, esse Poder não deve mais se curvar às vontades do Estado e continuar atuando contra a previsão legal. Cada vez que um juiz da execução penal deixa de cumprir a lei, colocando um indivíduo que cumpriu o tempo de pena no regime fechado em liberdade, ele está corroborando com a atuação ilegal do Estado.

É certo que a solução não seria colocá-los em liberdade, mas, conforme propõe Ferrajoli, é necessária uma aproximação com os dizeres da lei, especialmente garantias fundamentais – e o direito à liberdade obviamente o é. Logo, se não for criada uma situação de emergência para ampliar o número de vagas para cumprimento do regime semiaberto, de certo o Estado continuará não agindo nessa esfera, especialmente porque se tem aceitado, se tem “dado um jeito” – ilegal, frise-se – para a questão.

O ponto que conecta a existência e o crescimento das facções criminais é também um apontamento de solução, vez que não se pode mais aceitar atuação jurisdicional infralegal sob os argumentos da inação do Estado.

Inegavelmente é dever do Estado, mas cabe à comunidade jurídica questionar seus posicionamentos atuais, visando, quem sabe, “criar” situação de urgência para que só então o Estado passe a atuar em tutela dos encarcerados.

É preciso esclarecer, ainda, que o PCC pode ser caracterizado como uma facção criminosa porque pratica crimes, mas, ao mesmo tempo, a prática de crimes ou a simples “filiação” ao Comando pode representar um grito de desespero. A esses homens, na maioria das vezes, nenhum dos direitos previstos na Lei de Execução Penal foi assegurado, e muitos encontram esta como a única moeda de troca para serem ouvidos.

É por meio do crime, do medo, da insegurança que geram na sociedade que as reivindicações poderão ser ouvidas. O apelo desses presos não é por luxo ou “frescura”, mas por uma vivência pacífica dentro do cárcere, vivência humana, com o mínimo de dignidade.

Como se viu, Ferrajoli é lógico ao explicar que é urgente a necessidade de aproximação das normas com a prática. Somente com uma aplicação do que é garantido por lei ao preso ou mesmo ao cidadão comum é que se conseguirá conviver pacificamente em sociedade.

Apenas a título de exemplo, cabe citar que, se o Estado fornecesse o “kit higiene” ao preso que chega num estabelecimento, ele não precisaria “dever” nada a nenhum dos outros. O papel higiênico deixa de ser uma moeda de troca, perde seu valor, porque todos passariam a ter. Ter esse item não é luxo, mas é garantia, é direito de todo e qualquer indivíduo que o Estado tira a liberdade, priva de seu direito mais básico que é o de ir e vir.

E essa é a correlação que se pode estabelecer entre o garantismo e as facções criminosas. Não porque é uma teoria ou modelo de sistema penal que teria fomentado o surgimento dessas facções, pelo contrário. Se o Estado (especialmente governos e Judiciário) aproximasse sua atuação cada dia mais da efetivação dos direitos e garantias fundamentais, muito provavelmente se desestabilizaria a força das facções. Contudo, o que se vê é aumentar o número de dificuldades, impedimentos, negações aos presos, que, isolados da “sociedade civil”, mas encarcerados e vivendo em um grande agrupamento, lutarão, com as armas que estiverem disponíveis, para fazer valer os seus direitos, ou alguns deles.

O Estado precisa aceitar a realidade do sistema carcerário e encarar esse problema com maturidade, sem medidas milagrosas ou com fácil aceitação popular. A concessão de direitos aos presos é urgente, não direitos “novos”, apenas a efetivação daquilo que já está previsto em nosso ordenamento. Urgente porque, com as atuais medidas, os governos e especialmente o Judiciário só fazem aumentar o número de encarcerados, muitos até sem perspectiva de julgamento.

O cumprimento do previsto na legislação penal, em especial da execução penal, é urgente, não havendo que se falar em elaboração de novas leis, sendo essencial que o passo inicial seja a efetivação daquilo que já está previsto em nosso ordenamento. Tal medida é urgente porque, com a atual “política criminal”, o governo só faz aumentar o número de encarcerados, o que, sem dúvida, só faz com que os partidos e as facções criminosas engordem, uma vez que cada um que entra no sistema carcerário, ao ser totalmente privado de liberdade, é também privado da sua condição humana e de qualquer assistência básica. E, se o Estado não faz nada por aquele homem, já há todo um aparato dentro do sistema carcerário, não relacionado ao Estado, que fará, que “socorrerá” o novo enclausurado.

Ademais, há de se considerar que, além da “inicial solidariedade”, tais homens estão fadados ao convívio diário por alguns (muitos) anos, constituindo essa gratidão como o início de um relacionamento naquela sociedade encarcerada.

Nas narrativas durante o GDUCC, os presos contam diversas oportunidades em que ajudam e são ajudados pelos “irmãos” (como são chamados os encarcerados, membros do PCC), seja para tratar de questões internas ou mesmo externas à vida do cárcere, pois não podemos olvidar que os sentenciados também têm família, filhos, uma casa para sustentar etc.

E mais. É preciso consignar que a maioria dos exemplos que se pode dar acerca da violação de direitos dos presos poderia ser efetivada ou cumprida com “simples” ordem judicial. É o caso da progressão de regime. Como narrado outrora, milhares são os presos que têm direito à progressão para o regime semiaberto, mas, sob a falácia da falta de vagas, a maioria dos juízes de execução penal mantêm esses indivíduos encarcerados até que se consiga uma vaga ou, a depender do caso, transcorra o tempo necessário para início do cumprimento em regime aberto.

Nesse caso, o juiz não atua sobre o argumento de que o Estado não fornece vagas. O Estado, vendo que a situação pode ser “ajeitada” de outra forma, que não o impelindo a aumentar o número de vagas, deixa também de agir.

E com toda essa omissão a realidade que se cria é de injustiça, insegurança e violação de direitos, vez que, embora condenado por tempo determinado, aquele indivíduo não sabe nunca quando sairá da prisão.

A obra de Ferrajoli, ainda que problematizando toda a crise do sistema penal, acaba por apresentar diversas opções de atuação do jurista diante de tais mazelas.

Ao apresentar que um dos principais pressupostos metodológicos do garantismo é a separação entre direito e moral, ser e dever ser, o jurista italiano cobra do “operador do direito” uma atuação técnica (mas também crítica) diante da norma jurídica.

Conforme exposto no primeiro tópico deste artigo, os juristas (no caso do exemplo dado, os juízes da execução) devem abandonar qualquer moralismo jurídico ao analisarem o caso concreto, pois “somente o abandono de qualquer legalismo ético – seja a negação de qualquer valor apriorístico das normas jurídicas bem como o reconhecimento do seu caráter puramente convencional – consente à análise política e sociológica de identificar e criticar, com parâmetros externos e não jurídicos, os aspectos de injustiça ou de irracionalidade do direito positivo”. [53]

Logo, o que poderia propor Ferrajoli diante do exemplo dado é, por parte do juiz, um abandono de inferências internas e análise meramente externa da norma jurídica, de forma que aquele que implementa as condições para cumprimento de pena em regime semiaberto deve ter tal direito respeitado. Ainda que o Estado não disponha de estabelecimentos suficientes para acolher tais condenados, o juiz não pode mitigar tal direito com esse argumento, mas deve fazer valer os outros elementos – externos, como os princípios – relativos àquela lei.

Tantos outros exemplos nessa mesma toada poderiam ser dados, vez que muitos direitos dos presos não são respeitados durante a execução da pena, e tantos são os juízes que justificam suas ações (ou “inações”) com o mesmo argumento: o Estado não fornece – sejam vagas, médicos, trabalho, estudo e demais instrumentos que garantiriam, talvez, vida digna dentro do cárcere.

Ante todo o exposto, é imperioso considerar que as omissões do Estado geram consequências devastadoras na vida daqueles que estão presos, mas o que se tem evidenciado é que o Estado não agirá enquanto não sentir real necessidade de fazê-lo. E a cobrança de tais medidas vem e deve vir de dentro do sistema judiciário.

E como visto, a “comunidade carcerária” não está e nem ficará parada, de braços cruzados, acompanhando seus direitos serem mais e mais mitigados. Como qualquer agrupamento humano, os presos também se organizam e impõem a sua lei.

Logo, a proposta geral trazida à luz dos estudos sobre a teoria garantista é de um projeto de democracia social, formado, portanto, por todos aqueles elementos com os quais se faz um Estado social de direito. E o Estado social de direito, para Ferrajoli,

“consiste na expansão dos direitos dos cidadãos e correlativamente dos deveres do Estado, ou, se se preferir, na maximização da liberdade e das expectativas e na minimização dos poderes. (...) Estado (e direito) mínimo na esfera penal, graças à diminuição das restrições da liberdade aos cidadãos (...) e Estado (e direito) máximo na esfera social, graças à maximização das expectativas materiais dos cidadãos e à correlativa expansão das obrigações públicas de satisfazê-las”. [54]

Conclusão

À luz de alguns conceitos e primícias trazidas por Ferrajoli ao explanar sua teoria garantista, juntamente com a análise do histórico de surgimento, formação e fortalecimento das facções criminosas no interior dos presídios (especialmente os do Estado de São Paulo), evidenciou-se, no decorrer deste artigo, que há uma solução, um caminho a ser escolhido para romper com o atual ciclo de fortalecimento das facções criminosas.

Partindo da premissa de que os homens se organizam em sociedade, e tendo como certo que no interior dos diversos estabelecimentos prisionais é flagrante a violação de direitos humanos e do indivíduo encarcerado, a formação de uma sociedade organizada, paralela às organizações já existentes, que se regerá por regras próprias, em busca daquilo que entendem por bem comum, é consequência lógica de todo esse contexto.

A partir dessa constatação, os conceitos, análises e críticas trazidas por Ferrajoli, são fundamentais para apontar um caminho a ser adotado por aqueles que, por deterem conhecimento e “poder” jurídico, devem atuar no rompimento do círculo vicioso que a “política criminal” atualmente adotada pelos governantes tem gerado – o encarceramento em massa fomenta e alimenta as já instituídas facções criminosas.

Assim, o que se objetivou ao longo deste artigo foi expor que uma possível solução para as mazelas do cárcere está nas mãos dos juristas que não podem mais aceitar a mitigação de direitos e garantias dos presos sob as falácias/justificativas de falta de estrutura, falta de pessoal, dentre outras.

Depender da ação, atuação e iniciativa exclusiva do Poder Executivo, não pode mais ser a desculpa para que Juízes, Promotores, Agentes Penitenciários, etc., deixem de atuar em cumprimento à lei.

Desse modo, o próprio Poder Judiciário, constatando a flagrante e crescente violação de direitos humanos e garantias fundamentais dos presos (sejam provisórios ou condenados) deve agir de acordo com a lei para, assim, iniciar um processo de mudança com consequente quebra de paradigmas no tocante às questões carcerárias e das facções criminais.

É hialino que estamos chegando a um ponto crítico e perigoso com a atual política criminal de encarceramento em massa e inação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso porque, é inegável o crescente aumento da população carcerária e, ante o total abandono do Estado no trato dessas pessoas, é também significativa a ampliação, propagação e crescimento dos membros das facções criminosas.

Em vista do atual cenário, e tendo fundamento nos estudos de Ferrajoli, temos que a solução também está nas mãos dos Juízes e demais agentes do Poder Judiciário (Promotores, Delegados, Agentes Penitenciários, Advogados e até Defensores Públicos), considerando que é grande o poder de atuação desses indivíduos.

Dessarte, o que se defende não é a espera pela conscientização do executivo/legislativo para situação atual, a fim de que só então iniciem ações que visem compelir a expansão das facções, mas sim a atuação imediata, especialmente dos Juízes e Promotores de Justiça, no intuito de exigirem e fazerem ser aplicada a legislação vigente, tanto na fase pré quanto pós condenatória.

O que não se pode mais aceitar são as falácias que “justificam” as violações dos direitos e garantias dos presos, pois, como se sabe, essa atuação só tem contribuído para fortalecimento das já instituídas facções criminosas e não redução de índices de reincidência.

Logo, a atuação de um Magistrado que vise impelir o Estado (enquanto poder executivo) a cumprir com os direitos previstos é a medida mais urgente, necessária e apontada pela teoria garantista como essencial para impelir o poder executivo a atuar.

O início do cumprimento da lei não pode mais depender da construção de presídios, da contratação de médicos/professores/agentes penitenciários para os estabelecimentos prisionais. O início depende de uma atuação jurídica que não mais feche os olhos para a realidade carcerária, que não mais autorize a mitigação dos direitos sob as falácias construídas pelo Poder Executivo. O início depende da coragem dos nossos juristas em atuar apenas e tão somente em conformidade com a previsão legal, especialmente em conformidade com a LEP.

Os juristas não podem mais aceitar a permanência de um indivíduo encarcerado por tempo superior ao previsto pela lei com a desculpa de   que “faltam vagas para cumprimento no regime semiaberto”.

E é nesse sentido que a teoria garantista precisa – urgentemente – ser adotada como um primeiro passo rumo ao fim das mazelas e mitigações daqueles indivíduos que, apesar de encarcerados, são, acima de tudo, humanos, pares pertencentes à sociedade e que um dia voltarão às ruas e ao convívio social.

Referências bibliográficas

Braga, Ana Gabriela Mendes. A identidade do preso e as leis do cárcere. São Paulo (Dissertação de Mestrado). USP, 2008.

Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010.

Jozino, Josmar. Cobras e lagartos: a vida íntima e perversa nas prisões brasileiras: quem manda e quem obedece no partido do crime. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

Lombroso, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007.

Mingardi, Guaraci. O trabalho da inteligência no controle do crime organizado. Estudos Avançados, n. 61, p. 51-69, 2007.

O’Donnell, Guillhermo; Pinheiro, Paulo Sérgio (org.). Democracia, violência e injustiça – o estado de direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra. 2000. In: Azevedo, Rodrigo Ghiringhellii de. Curso de sociologia jurídica. 2010.

Santos, Boaventura de Souza. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: Souto, Cláudio; Falcão, Joaquim. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1999.

Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011.

[1] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 15.

[2] Idem, ibidem.

[3] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 15.

[4] Idem, p. 16.

[5] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 38.

[6] Idem, ibidem.

[7] Idem, p. 39.

[8] Idem, p. 38-39.

[9] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 39.

[10] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 94.

[11] Idem, ibidem.

[12] Idem, p. 16.

[13] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 205.

[14] Ibdem

[15] Idem, ibidem.

[16] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 206.

[17] Idem, ibidem, p. 208.

[18] Idem, p. 16.

[19] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 785.

[20] O’Donnell, Guillhermo; Pinheiro, Paulo Sérgio (org.). Democracia, violência e injustiça – o estado de direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 346. In: Azevedo, Rodrigo Ghiringhellii de. Curso de sociologia jurídica. 2010. p. 117.

[21] Disponível em: [http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/02/05/prende-primeiro-pergunta-depois-41-dos-presos-no-brasil-sao-provisorios.htm]. Acesso em: 04.07.2015.

[22] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 785.

[23] Idem, p. 786.

[24] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 786.

[25] Idem, p. 789.

[26] Idem, ibidem.

[27] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 789.

[28] Idem, ibidem.

[29] Idem, p. 790.

[30] Idem, ibidem.

[31] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 790.

[32] Idem, p. 793.

[33] Idem, ibidem.

[34] Idem, ibidem.

[35] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 795.

[36] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 790.

[37] Lombroso, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007. p. 185.

[38] Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011. p. 76.

[39] Idem, p. 81.

[40] Disponível em: [http://www.brasildefato.com.br/node/10761].

[41] Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011. p. 132-133.

[42] Idem, p. 135.

[43] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 793.

[44] Jozino, Josmar. Cobras e lagartos: a vida íntima e perversa nas prisões brasileiras: quem manda e quem obedece no partido do crime. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. p. 27-28.

[45] Disponível em: [http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u46349.shtml].

[46] Disponível em: [http://noticias.uol.com.br/ultnot/retrospectiva/2006/materias/pcc.jhtm].

[47] Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011. p. 140.

[48] Santos, Boaventura de Souza. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: Souto, Cláudio; Falcão, Joaquim. Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1999. Apud Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011.

[49] Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011. p. 92-93.

[50] Mingardi, Guaraci. O trabalho da inteligência no controle do crime organizado. Estudos Avançados, n. 61, p. 51-69, 2007. Apud Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011.

[51] Shimizu, Bruno. Solidariedade e gregarismo nas facções criminosas: um estudo criminológico à luz da psicologia das massas. São Paulo: IBCCrim, 2011. p. 90.

[52] Braga, Ana Gabriela Mendes. A identidade do preso e as leis do cárcere. São Paulo (Dissertação de Mestrado). USP, 2008, p. 80.

[53] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 206.

[54] Ferrajoli, Luigi. Direito e razão cit., p. 799.

Julia Rosa Latuf

Bacharel em direito pela PUC-Campinas.

Assessora de Magistrado pelo Tribunal de Justiça do Paraná

Direitos Humanos
Era das Chacinas – breve discussão sobre a prática de chacinamento na era democrática
Data: 24/11/2020
Autores: Camila de Lima Vedovello

Resumo : As chacinas se tornaram constantes em São Paulo a partir da década de 1990, coincidindo com a reabertura democrática. O espaço principal são os bairros periféricos, e os alvos tendem a ser os jovens, pardos ou negros, moradores desses bairros. Nessa perspectiva, analisamos como as chacinas inserem-se em uma lógica de atingir sujeitos considerados “perigosos” partindo de um viés permeado pelo preconceito de classe e de cor. Observamos também os possíveis agentes dessas ações violentas, buscando na historicidade a formação e o crescimento de grupos de extermínio, que têm sua gênese – como hoje conhecemos – nos chamados “Esquadrões da Morte”, surgidos durante o período da Ditadura Civil-Militar brasileira. Assim, buscamos entender o processo que levou as chacinas se tornarem, em São Paulo, uma das causas da morte violenta e como agem os grupos de extermínio nessa prática, tentando desvendar quem são os vitimados e quem são os agentes das chacinas. Para tanto, debatemos os chamados Crimes de Maio de 2006, enveredando pelas execuções ocorridas na época e pelas análises sobre essas execuções, além de debater a importância do movimento social Mães de Maio pela busca por justiça e pela punição dos executores de seus filhos e entes.

Palavras-chave: Chacinas; periferia; grupos de extermínio; crimes de Maio de 2006; Mães de Maio.

Abstract : The killings have become constants in Sao Paulo from the 90s, coinciding with the beginning of the democratic period. The main living space where the massacres occur are the suburbs and the targets tend to be young, brown or black, residents of these neighborhoods. In this perspective, we analyze how the killings inserted into a subject hit the people considered “dangerous” starting from a bias permeated by class and color prejudice. We also noted the possible agents of these violent actions, seeking the historicity, the formation and growth of groups of extermination that have their genesis – as we know – the so-called “Esquadrões da Morte”, emerging during the Brazilian Civil-Military Dictatorship period. We seek to understand the process that led the massacres become, in São Paulo, one of the causes of violent death and how the death squads act in this practice, trying to figure out who are the victims and who are the agents of the killings. Therefore, we discuss the so-called Crimes of May 2006 embarking by the executions committed at that time and the analysis of these executions, and also we discuss the importance of the social movement “Mothers of May” to the struggle for justice and punishment of the executors of his children and loved.

Keywords : Massacres; Suburbs; death squads; crimes of May 2006; Mothers of May.

Sumário: 1. Violentadores e violentados: gênese das chacinas e dos chacinados – 2. Crimes de Maio de 2006 – uma breve análise de uma grande chacina – Considerações finais – Referências bibliográficas.

1. Violentadores e violentados: gênese das chacinas e dos chacinados

Apenas muito recentemente pesquisadores da área de Ciências Sociais se debruçaram sobre o tema da violência.[2] Michel Misse (2011, p. 7) relata em seu livro Crime e violência no Brasil contemporâneo que somente nos anos 1970 os cientistas sociais começaram a se aproximar de temas referentes à violência,[3] sendo que, durante a década de 1970, as perspectivas de análise acabavam por relacionar diretamente a criminalidade e a violência urbana à pobreza, contribuindo para uma ampliação de visões que acabavam por criminalizar a pobreza.[4]

Um marco, no Brasil, da discussão acerca do tema da chamada violência e, mais distintamente, da violência urbana, é o trabalho de Alba Zaluar, A máquina e a revolta, de 1985, em que a autora investiga o bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e chega à conclusão de que se estabelece nas classes populares uma diferenciação entre os moradores, a partir das categorizações de “bandidos” em contraposição aos “trabalhadores”.[5]

Ao falarmos sobre violência e criminalidade, muitos estudos acabam por perpassar, ou ao menos tangenciar, o que se convencionou chamar no Brasil de periferia.[6]

A construção da categoria periferia se deu no Brasil em contraposição ao centro. A periferia seriam os arredores da cidade, o que está longe dos olhos, o local em que falta estrutura estatal, onde a pobreza e a violência imperam. Muitos estudos sociológicos[7] trabalhavam as periferias a partir dessa lógica descritiva já exposta, como bem colocou Marques (2005, p. 23):

“(...) Os espaços periféricos representariam um conjunto desses elementos – espaços de moradia da força de trabalho responsável por fazer girar a máquina econômica da metrópole, nos quais não há presença estatal e as casas são autoconstruídas em loteamentos clandestinos e irregulares”.

Assim, os estudos sobre periferia, no Brasil, até muito recentemente, olhavam para o que faltava nos arredores das cidades e não para o que de fato existia. Esses estudos, como o de Kovarick[8] (1979), mostram-se importantes ao demonstrar uma lógica de mercado que trabalha com uma exclusão de sujeitos a fim de fazer girar a economia nas grandes metrópoles, mas cabe ressaltar que as periferias não se encerram nessas análises.

Mais recentemente, apareceram estudos que entendem a periferia como a existência de sujeitos que produzem e que se entendem como da periferia, fazendo parte de uma cultura periférica ou, nas palavras de Tiarajú Pablo D’Andrea (2013), os sujeitos periféricos. Para o autor, três processos foram fundamentais para que esses sujeitos se vissem com orgulho[9] (2013, p. 19): “(...) Três processos sociais importantes se desdobraram a partir de uma relação com esse orgulho que se cristalizou: os coletivos artísticos da periferia, o PCC e o lulismo. (...)”.

Os coletivos artísticos da periferia gerariam nesses sujeitos a noção de representatividade, o PCC seria responsável pelo chamado proceder[10] e o lulismo, por um aumento do poder consumidor. Dentro dessa trajetória de ver e reconhecer-se enquanto sujeito da periferia e sentir orgulho dela, destaca-se, nos anos 1990, o RAP, representado pelos Racionais MC’s, que cantam não só um orgulho pautado na racialidade, mas também na territorialidade periférica.[11]

Para além das inexistências das periferias, Vera da Silva Telles (2011) aborda as existências e como, entre os anos 1990 e 2000, uma “modernização urbana” atinge as periferias, trazendo consigo aparatos próprios da sociedade de consumo, além de abordar as conexões e atrelamentos entre o legal e o ilegal nesses locais (2011, p. 156):

“(...) no decorrer dos anos 1990 e mais intensamente na virada dos anos 2000, as redes de saneamento e de eletricidade cobriram quase todo o espaço urbano, até seus pontos mais extremos; o mesmo pode ser dito em relação aos equipamentos de saúde e educação, sobre os quais pesa a qualidade duvidosa dos serviços prestados. E mais: houve a multiplicação nos bairros populares de programas sociais de escopo variado, embora de forma fragmentada e descontínua, e a quase onipresença de ONG’s articuladas a redes de natureza e extensão variada. No entanto, o mais importante é a consolidação da cidade como centro econômico de primeira grandeza, inteiramente conectado aos circuitos globalizados da economia, desdobrando-se na multiplicação de grandes equipamentos de consumo que atingem as regiões mais distantes das periferias pobres”.

É também no decorrer dos anos 1990 que as chacinas começam a se tornar fatos recorrentes no Rio de Janeiro e em São Paulo. No momento de reabertura democrática, os assassinatos, efetuados em grande parte por policiais militares e/ou agentes de segurança do Estado, tomam os jornais e as demais mídias.[12]

Os movimentos sociais Mães de Maio e Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência do Rio de Janeiro batizaram, respectivamente, esse momento histórico como “Democracia das Chacinas” e “Era das Chacinas”. Sobre o termo “Era das Chacinas”, relatam as Mães de Maio (2011, p. 2-3):

“Conforme já pudemos gritar em tantos outros momentos (como em nosso livro ‘Mães de Maio – do Luto à Luta’ – Nós por nós, São Paulo, 2011), não é por outra razão que noss@s companheir@s da Rede de Comunidades e Movimentos contra a violência do Rio de Janeiro batizaram o período democrático que passamos a viver, depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, de ‘A Era das Chacinas’, o nome mais apropriado para a fase atual dessa longa História de Massacres que nos conforma. Afinal, na sequência da tão alardeada ‘abertura democrática’ e a promulgação da dita ‘Constituição Cidadã’, menos de dois anos depois, a Chacina de Acari anunciaria o que nos esperava pela frente... E, de lá para cá, uma sucessão de chacinas e massacres concentrados, de trabalhadores pobres, pretos e periféricos ressurge constantemente, como que traçando nós e borrões na já altíssima, fria e constante curva das estatísticas de homicídios cotidianos no Brasil. (...)”.

Embora não citem no trecho supra, tanto as Mães de Maio quanto a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência do Rio de Janeiro partem do pressuposto de que a Polícia[13] e os Agentes do Estado são responsáveis por parte dessas chacinas, que ocorrem, em grande medida, em bairros periféricos, atingindo, muitas vezes, pessoas a esmo.

Entretanto, não é a partir da reabertura democrática que a Polícia começa a cometer arbitrariedades contra a população. Bruno Paes Manso (2012, p. 105) relata violações por parte da Polícia, nas periferias paulistanas, entre os anos 1950 e 1970:

“Nas periferias dos anos 1950, 1960 e 1970, são as camadas mais pobres da sociedade consideradas as mais propensas a comportamentos criminosos, sofrendo inúmeras violações de direitos por parte da polícia. (...)”.

Sem nos estendermos demasiadamente sobre a história de comportamentos violentos por parte da polícia contra a população,[14] retornaremos ao momento em que no Rio de Janeiro se forma o chamado Esquadrão da Morte,[15] o qual, cerca de uma década depois, terá sua formação também em São Paulo.

No final dos anos 1950, no Rio de Janeiro, começam a surgir denúncias de execuções realizadas por um grupo organizado de policiais. Nesse grupo, como coloca Costa (1998, p. 9), destaca-se a figura do detetive Milton Le Cocq de Oliveira, que, após ser morto em uma troca de tiros com um famoso bandido do Rio, o Cara de Cavalo,[16] em 1964, dará nome à Scuderie Le Cocq. Esta iria, posteriormente, vingar a morte do detetive, matando Cara de Cavalo com mais de 100 tiros, conforme coloca a autora, sendo responsável pela execução de centenas de “suspeitos” ou bandidos no Rio.

Em São Paulo, o Esquadrão da Morte se estabelece a partir do final dos anos 1960, já após o Golpe Militar,[17] e começa efetivamente a funcionar com mais força e em conjunto com o Estado na execução[18] de “suspeitos” e “bandidos”, após o delegado Sérgio Paranhos Fleury ser chamado para participar da repressão política, como expõe Costa (1998, p. 25): “(...) O esquadrão paulista agiu enquanto grupo independente entre 1968 e início de 1969. Após esta data, mais ou menos até o início dos anos setenta, ele passou a atuar em conjunto com a repressão política”.

A Polícia Militar de São Paulo, como um todo, manteve-se afastada do Esquadrão da Morte paulista durante suas ações. Será, com as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), que, muito possivelmente,  parte da polícia paulista assumirá o papel de limpeza social por meio do extermínio, como explicita Caco Barcelos em seu livro Rota 66- A História da Polícia que Mata.

“(...) A fase em que a polícia militar passou a atuar exterminando em escala crescente supostos marginais da cidade de São Paulo ocorreu nos anos setenta, após o término das ações do Esquadrão da Morte chefiado pelo delegado Fleury, inicialmente através da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Eles assumiram a missão de ‘limpar a sociedade’, como meio de encobrir os seus crimes e envolvimento com traficantes de drogas” (Costa, 1998, p. 27).

Bruno Paes Manso (2012, p. 131-132) exporá como a ROTA seria criada em outubro dos anos 1970 a fim de prevenir os assaltos a bancos efetuados pela guerrilha contra a Ditadura Militar e como, após o fim da existência dos grupos armados que lutavam contra a Ditadura, a prática de “abater o inimigo” terá como alvo o criminoso comum ou os suspeitos de serem criminosos.[19]

Se os policiais militares paulistas começam a executar a população suspeita ou criminosa durante a Ditadura Militar, não será com o fim do regime que essa prática terminará. As práticas violentas apreendidas durante o regime militar se institucionalizarão na corporação policial. Fato demonstrado pelos grupos de extermínio atuantes após a reabertura do regime.

“O discurso democrático instaurado no Brasil após 1985 não conseguiu intervir na autonomia do funcionamento dos aparelhos repressivos, fazendo com que continuasse existindo, por parte desses aparelhos, a violência ilegal, como a tortura, por exemplo. Essas práticas ilegais se manifestam de forma velada através da ação de grupos militares de extermínio, das torturas sofridas pelos presos, da intimidação de civis realizada de forma violenta. Apesar de serem práticas conhecidas pela população são práticas quase ‘invisíveis’. Pois, na maioria das vezes, não há punição para os policiais que fazem desse tipo de violência uma prática” (Vedovello, 2008, p. 56).

Em 1990, com a Chacina de Acari, no Rio de Janeiro, a prática de chacinamentos[20] começa a se instaurar frequentemente em diversas partes do Brasil. Em 1992, com a Chacina do Carandiru, realizada dentro de uma instituição pública, pela Tropa de Choque de São Paulo, contra presos rebelados, as chacinas chegam a São Paulo e se tornam mais e mais frequentes com o passar do tempo.

Assim, apenas dois anos após a promulgação da Constituição de 1988 – a chamada “Constituição Cidadã” – temos a primeira grande chacina da era democrática, com o desaparecimento forçado de 11 jovens que passavam o final de semana em um sítio em Magé, no Rio de Janeiro. Sobre o caso de Acari, Araújo (2007, p. 37) relata:

“Os ‘Onze de Acari’, como ficaram conhecidos, desapareceram em Magé, em um sítio pertencente àavó de um dos desaparecidos. A maioria dos jovens morava na favela de Acari enquanto outra parte morava nas proximidades. (...).

Em todas as versões que circularam nos jornais sobre o ‘Caso Acari’ consta que o grupo viajou para fugir de policiais que estavam tentando extorquir dinheiro de alguns deles que tinham envolvimento em assaltos e roubos de carga de caminhão. Segundo uma reportagem colada no caderno de Tereza os motivos do sequestro estariam ligados a drogas, assaltos e extorsão, sendo que dias antes do desaparecimento dos onze jovens no sítio em Magé, a casa de Edméia havia sido invadida por policiais e três adolescentes haviam sido sequestrados. Os policiais teriam exigido uma grande quantidade de dinheiro para pagar o resgate, caso não fosse pago matariam os três”.

Araújo (2007, p. 38-43) destaca, ainda, que diversos jornais trouxeram versões diferentes para o fato do desaparecimento, surgindo hipóteses de execução realizada por policiais, até mesmo tentativa de assalto. Será nas investigações da Chacina de Vigário Geral e da Chacina da Candelária, em 1993, porém, que nomes de policiais citados no caso de Acari reaparecem, estabelecendo uma ligação entre os casos e um grupo de extermínio ligado ao 9.º Batalhão da Polícia Militar de Rocha Miranda, no Rio de Janeiro, os chamados “Cavalos Corredores”.

Se no Rio de Janeiro a prática de chacinamentos na era democrática tem como ponto de partida a Chacina de Acari, em São Paulo é com uma grande chacina ocorrida dentro de uma instituição estatal – a Casa de Detenção de São Paulo –, com o Massacre do Carandiru, que se instalam os chacinamentos enquanto prática recorrente.

No dia 02.10.1992, a Tropa de Choque, comandada pelo Coronel Ubiratan, adentrou o presídio para tentar conter uma rebelião. O resultado final da operação foi de 111[21] presos mortos dentro da Casa de Detenção de São Paulo.

Ferreira, Machado e Machado (2012, p. 12), ao escreverem sobre o aniversário de 20 anos do Massacre do Carandiru, apontam algumas considerações do promotor de justiça militar, em denúncia oferecida contra 120 policiais militares.

“Em março de 1993, o promotor de justiça militar Luiz Roque Lombardo Barbosa ofereceu denúncia contra 120 policiais militares envolvidos no massacre, afirmando, na peça inicial da ação penal, ter o episódio se tratado de ‘verdadeira ação bélica, pois os policiais militares, fortemente armados, desencadearam a maior matança já consignada mundialmente em um presídio’. De acordo com a denúncia, ‘as penas privativas de liberdade a que estavam sujeitos os detentos, transformaram-se, arbitrária e ilicitamente – em penas capitais – 111 (cento e onze) mortos’. Pela primeira vez no procedimento criminal, afirma-se que a operação não foi simplesmente excessiva, mas sim ‘desastrosa’. De acordo com o promotor, não havia risco de fuga dos presos, não houve estratégia ou planejamento por parte dos comandantes e os policiais militares teriam entrado no pavilhão com animus necandi (vontade de matar)” (Ferreira, Machado, Machado, 2012, p. 12).

O Massacre do Carandiru inaugura não só as chacinas paulistas da era democrática, mas traz em si a possibilidade de as práticas de chacinas ocorrerem com imensos números de vítimas. Se em 1992 tivemos 111 mortos, em 2006, nos chamados – pela mass media – “Ataques do PCC” e – pelos movimentos sociais – “Crimes de Maio de 2006”, tivemos cerca de 564 mortos.

2. Crimes de Maio de 2006 – Uma breve análise de uma grande chacina

Sexta-feira, 12.05.2006, fim de semana do Dia das Mães, algo acontecia na cidade de São Paulo, tirando a metrópole de sua rotina.

Os presídios paulistas se rebelaram – os jornais davam conta de mais de 70 rebeliões espalhadas pelo Estado.[22] Como rastilho de pólvora, espalharam-se notícias sobre ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC)[23] contra a Polícia Militar. As ruas ficaram esvaziadas na capital, baixada e interior. Boatos sobre shoppings e terminais rodoviários com bombas prestes a explodir espalharam a ideia de que as cidades paulistas, principalmente a cidade de São Paulo – além dos presídios –, estavam tomadas e de que era necessário recolher-se sob o signo do pânico.[24]

A ONG Justiça Global, em seu documento “São Paulo sob Achaque” (2011), identifica esquemas de corrupção e de extorsão por parte da polícia[25] contra lideranças do PCC como um dos pontos fulcrais dos acontecimentos de maio de 2006.

“A corrupção policial, embora pouco considerada nos estudos sobre esse tema, foi um importante fator para o estopim dos ataques do PCC. Esta conclusão consta, inclusive, de um relatório da Polícia Civil que esteve em um processo sob segredo de justiça até janeiro de 2010. Os líderes do PCC conceberam os ataques de maio em grande parte como revanche pelas extorsões praticadas pela polícia. Desde 2005, os policiais civis da cidade de Suzano achacavam os líderes do PCC, interceptando ilegalmente as conversas telefônicas de seus familiares e cobrando propinas para não os prenderem. Em março de 2005, o enteado de Marcola, Rodrigo Olivatto de Morais, foi sequestrado por policiais civis em Suzano. Ele foi espancado, ameaçado, detido ilegalmente na Delegacia de Suzano e liberado mediante o pagamento de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) de resgate, efetuado pelo dito líder do PCC que, no dia em que se iniciaram os ataques de maio de 2006, avisou no DEIC: ‘(isso) não vai ficar barato’” (Justiça Global, 2011, p. 26).

Depois de cerca de uma semana de ataques noticiados contra bases da Polícia Militar, ônibus incendiados, policiais mortos de um lado e “suspeitos” mortos de outro, a cidade pareceu voltar “ao normal”, incluindo-se nisso uma propalada “recuperação da ordem” por parte do governo do Estado de São Paulo, capitaneado pela figura de seu então governador, Cláudio Lembo.

Os dados, porém, nos revelam o que as periferias estavam sentindo: os “Ataques do PCC”; assim chamados pela grande mídia, foram respondidos por uma imensa violência, perpetrada em muitos casos por agentes estatais contra a população moradora das periferias. O Relatório sobre os Crimes de Maio de 2006, realizado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, assim coloca os homicídios:

“Ainda que não existam números oficiais, pesquisas estimam, no período de 12 a 21 de maio de 2006, com base nos boletins de ocorrência e laudos periciais de mortes causadas por armas de fogo, um universo de 564 (quinhentas e sessenta e quatro) mortos e 110 feridos. Com relação às vítimas de homicídio, estas podem ser identificadas como civis – correspondendo a 505 (quinhentas e cinco) mortes – e agentes públicos – correspondendo a 59 (cinquenta e nove) mortes.[26] A cada morte de 1 (um) agente público, ocorreram 8,6 mortes de civis”.

Portanto, em nove dias, segundo dados oficiais, mais de 500 pessoas são assassinadas, para cada morte de agente público ocorreram 8,6 mortes de civis.

Os números sobre os civis mortos são alarmantes e, atrás de cada número, há alguém com uma história particular, com uma trajetória de vida e com laços consanguíneos e relações de parentesco e afetividade.

As pessoas assassinadas durante os Crimes de Maio de 2006 acabaram por virar estatísticas sobre violência urbana e morte violenta no Estado de São Paulo.

O movimento social Mães de Maio surge a partir da dor das mães e familiares das vítimas dessa onda de chacinas ocorridas durante o mês de maio de 2006 e se propõe a trazer à tona os autores das chacinas por meio da federalização dos casos.[27]

É pela exposição das suas dores, por meio de atos, vigílias, passeatas, documentários, livros, que essas mães tentam retirar seus filhos e entes do lugar da não existência, para o lugar da reparação, da justiça. Adriana Vianna (s/d., p. 6), ao relatar as estratégias utilizadas pelas Mães de Acari[28] para exigir reparação, nos lembra que a retomada da dor enquanto estratégia de luta por justiça se dá para retirar esses casos da irrelevância social ou, nas palavras da autora:

“As formas adotadas nos atos públicos mencionados e em inúmeros outros de teor semelhante só faz sentido se tivermos claro que há uma pré-inscrição dessas mortes no terreno da desimportância social e simbólica que se desdobra no modo pelo qual vão ser registradas, classificadas e tratadas na polícia e no judiciário. Corpos que nunca foram encontrados, como no caso de Acari e cujas pistas, de acordo com mães e militantes engajados, não foram perseguidas ou mortes que iniciaram sua carreira policial-burocrática sob o registro de ‘auto de resistência’, estão previamente enquadrados em categorias de irrelevância social. Tratava-se de ‘bandidos’, foram ‘mortes em confronto’, eram ‘traficantes’. Com isso, fala-se de uma espécie de morte previsível e rotinizada que, por um lado, teria sido procurada e tacitamente aceita por esses sujeitos e, por outro, que não merece o reconhecimento que se expressaria no esforço de investigá-las de modo que pareça exaustivo e determinado”.

Assim como as Mães de Acari, as Mães de Maio buscam não só o reconhecimento de seus entes enquanto sujeitos, mas também tentam fazer que o Estado se responsabilize por essas mortes, punindo os agentes públicos responsáveis pelas execuções.

Considerações finais

Ao pensarmos as chacinas no Brasil e, em especial, nas metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo, fica claro como, a partir da formação dos grupos denominados de Esquadrão da Morte, a prática de execução de “suspeitos” e “bandidos” enquanto forma de higienização social ou de retaliação se transforma quase como um modus operandi de grupos de agentes públicos – em grande parte, policiais. Cabe ressaltar que, em São Paulo, a formação do Esquadrão da Morte está ligada à Ditadura Civil-Militar e que, segundo as análises citadas, é com as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) que a polícia paulista se torna um agente executor.

A partir da década de 1990 vemos as chacinas se colocando enquanto práticas cada vez mais rotineiras em nossa sociedade, sendo os Crimes de Maio de 2006 um marco no que tange a esse tipo de violência, pela quantidade de civis executados em um curto período de tempo, em diversas chacinas espalhadas não só pela cidade de São Paulo, mas pelo Estado inteiro.

Ressaltamos que o movimento social Mães de Maio – assim como as Mães de Acari e a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, ambos no Rio de Janeiro – se mostra enquanto mola propulsora para a reparação e justiça social em relação a essas práticas de chacinamentos, além de escancarar como a violência policial se institui no nosso Estado Democrático de Direito: dentro de uma lógica militarizada, de extermínio de “suspeitos” e “bandidos” que têm entre suas vítimas, em sua maioria, a população periférica.

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[1] O presente artigo foi escrito como trabalho final para aprovação no Grupo de Estudos Ciências Criminais e Direitos Humanos do IBCCrim.

[2] Usamos a categoria de violência a partir da concepção de Michel Misse: “A violência, assim, passa a significar o emprego da força ou da dominação sem qualquer legitimidade. É violento aquele de quem se diz que não pode usar da força e a usa, ou aquele de quem se diz que abusa do poder que lhe fora conferido para usá-la em certas circunstâncias. É violento, enfim, aquele que usa a força para impedir o conflito e abafar toda resistência. (...)” (Crime e violência no Brasil contemporâneo. Estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. x).

[3] Entre os importantes estudos que trataram da violência urbana e da criminalidade no Brasil, podemos destacar os trabalhos de José Ricardo Ramalho – Mundo do crime – a ordem pelo avesso (1979); Julita Lemgruber – Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres (1983); Antônio Luiz Paixão – Recuperar ou punir? Como o Estado trata o criminoso (1987); Teresa Caldeira – Cidades de muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo (2000); além dos diversos artigos e estudos de Michel Misse, Sérgio Adorno, Paulo Sérgio Pinheiro, entre diversos outros.

[4] O sociólogo Edmundo Campos Coelho, em seu texto intitulado “Sobre sociólogos, pobreza e crime”, publicado na Revista Dados, em 1980, expõe que, apesar dos discursos que colocam a criminalidade como uma forma de sobrevivência, essa tese não se confirma, mostrando-se frágil, politicamente reacionária e sociologicamente perversa, servindo apenas para formar mentalidades e juízos de valores que promovem uma repressão de forma mais acentuada às classes populares. Devemos considerar que a elite também comete crimes, mas, devido à sua classe social e ao status, a maioria deles não é julgada e muitas vezes nem denunciada.

[5] Mais recentemente, Gabriel Feltran (Fronteiras de tensão. Um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Unicamp. 2008, p. 127-140), em sua tese “Fronteiras da tensão,” esmiúça, a partir da análise da trajetória da família de Maria e de seus três filhos, como nas fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, a vida de “família trabalhadora” pode transitar para o “mundo do crime”, subvertendo a ordem moral estabelecida e demonstrando como essas categorias não são estanques. Assim, os filhos de Maria entram cedo para o mercado de trabalho, assim como também entram cedo para o crime, primeiro com o uso de drogas e, posteriormente, com assaltos e roubos de carros, fazendo que a “família trabalhadora” tentasse de diversas formas retirar seus filhos da “vida do crime”.

[6] Alguns importantes autores vão, em análises recentes, contribuir para uma compreensão dos espaços periféricos e de favelização. Mike Davis (Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006), em seu livro Planeta favela, discorrerá sobre os processos de favelização ao redor do mundo, tentando mostrar como moradias precárias com grande adensamento populacional vêm crescendo nos países ditos subdesenvolvidos. Cabe lembrar que favela e periferia não são a mesma coisa, visto que podem existir favelas nos centros das grandes metrópoles, como a Favela do Moinho, em São Paulo, e a Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, assim como podem existir bairros, creditados como periféricos, onde inexistam favelas.

Outro teórico que trouxe importantes análises sobre espaços ditos próprios das classes populares foi Loïc Wacquant. Em seu livro Condenados da cidade (Os condenados da cidade – estudos sobre marginalidade avançada. Observatório IPPUR/UFRJ-FASE. Rio de Janeiro: Revan, 2001), ele analisa os guetos norte-americanos, assim como as banlieue francesas, como espaços de marginalização, ou seja, espaços para segregar sujeitos nas margens da sociedade, como um todo, seja essa segregação proveniente da cor da pele ou da classe social. As análises de Wacquant perpassam a perspectiva de que o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, entre algumas outras causas, geraria o que o autor chama de hipergueto, que seriam os guetos amplificados, sem a organicidade e os papéis sociais definidos existentes nos guetos tradicionais. Para o autor, há possibilidades de se traçarem paralelos ente os guetos, as banlieue e as favelas e periferias brasileiras.

[7] Discorrendo sobre a emergência dos debates sobre periferia no Brasil, Feltran (Gabriel de Santis. Debates no “mundo do crime”, repertórios da justiça nas periferias de São Paulo. In: Cabanes, Robert; Georges, Isabel; Rizek, Cibele; Telles, Vera da Silva (orgs.). Saídas de emergência. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 217-218) explicita: “Desde os anos 1970 até os anos 1990, o debate sobre as periferias urbanas se consolidou nas ciências sociais brasileiras. Os temas do mercado de trabalho popular, do sindicalismo e do operariado nascente nesses territórios se desdobraram por três décadas, acompanhando as transformações (radicais) da temática no período. A magnitude da migração para o Sudeste, os impactos da constituição de um proletariado urbano e suas implicações metropolitanas, bem como as idiossincrasias da família operária e as transformações na religiosidade católica em ambiente urbano, foram temas correntes. A questão das favelas, as alternativas de infraestrutura urbana e o déficit habitacional da metrópole ocuparam intelectuais e militantes. A efervescência das mobilizações desses territórios, nos anos 1980, deslocou parte significativa do debate para o tema dos movimentos sociais urbanos e, na década seguinte, para a reflexão sobre construção democrática, participação e políticas públicas”.

[8] O livro A espoliação urbana, de Lúcio Kovarick, é um clássico sobre a urbanização das metrópoles brasileiras. Para o autor, com a crescente industrialização, há um também crescente mercado imobiliário que expulsa os trabalhadores das chamadas Vilas Operárias, forçando-os a procurar lugares mais acessíveis, criando, assim, as periferias. A questão econômica é central nas análises de Kovarick, como podemos observar nesse trecho (A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979. p. 41): “A periferia como fórmula de reproduzir nas cidades a força de trabalho é consequência direta do tipo de desenvolvimento econômico que se processou na sociedade brasileira das últimas décadas. Possibilitou, de um lado, altas taxas de exploração do trabalho, e de outro, forjou formas espoliativas que se dão ao nível da própria condição urbana de existência a que foi submetida a classe trabalhadora”.

[9] Boris Fausto (Crime e cotidiano. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 39) relata como rótulos pejorativos, como “vagabundos”, estigmatizam as camadas destituídas da sociedade ao longo da história brasileira.

[10] O proceder seria, em uma breve descrição, uma conduta moral que a comunidade e os seus pares esperam do sujeito.

[11] Celso Frederico (Da periferia ao centro: cultura e política em tempos pós-modernos. Estudos Avançados, vol. 27, n. 79, 2013, p. 244) lança uma crítica ao trabalho de Tiarajú Pablo D’Andrea, ao considerar suas análises sobre o sujeito periférico demasiado otimistas e pouco consideram o que Frederico chama de colonização pelo consumo nas periferias. Para ele, as classes populares não são em si progressistas e, ao mesmo tempo em que encontramos nas periferias sujeitos e conteúdos culturais críticos e com posturas anticapitalistas, encontramos também sujeitos e conteúdos culturais reacionários, ou, nas palavras do autor, regressistas.

[12] Entre as chacinas ocorridas no Brasil entre 1990 e 2015, destacamos: Chacina de Acari (1990); de Matupá (1991); Massacre do Carandiru (1992); Chacina da Candelária e Vigário Geral (1993); Alto da Bondade (1994); Corumbiara (1995); Eldorado dos Carajás (1996); São Gonçalo e da Favela Naval (1997); Alhandra e Maracanã (1998); Cavalaria e Vila Prudente (1999); Jacareí (2000); Caraguatatuba (2001); Castelinho, Jd. Presidente Dutra e Urso Branco (2002); Amarelinho, Via Show e Borel (2003); Unaí, Caju, Praça da Sé e Felisburgo (2004); Baixada Fluminense (2005); Crimes de Maio (2006); Jacarezinho e Complexo do Alemão (2007); Morro da Providência (2008); Canabrava (2009); Vitória da Conquista e os Crimes de Abril na Baixada Santista (2010); Praia Grande (2011); Chacina do ABC, de Saramandaia, da Aldeia Teles Pires, da Penha, Japeri, Favela da Chatuba, Várzea Paulista, os Crimes de Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro em SP (2012), a Chacina do Jd. Rosana, Vila Funerária, Chacina da Maré (2013), Chacina de Belém do Pará (2014), Chacina do Cabula (2015), Chacina do Pavilhão Nove (2015), Chacina de Manaus (2015), Chacina de Barueri e Osasco (2015).

[13] Dominique Monjardet (O que faz a polícia – sociologia da força pública. São Paulo.  Edusp, 2002) nos traz um importante estudo sobre a polícia enquanto instituição, destrinchando as diversas dimensões da instituição policial, em seu livro O que faz a Polícia.

[14] Em seu livro Crime e cotidiano, Boris Fausto (op. cit., p. 162-167) expõe como a violência policial era uma prática instituída no começo do século XX, embora práticas de tortura e execuções sumárias não aparecessem de forma rotineira. Já Márcia Regina da Costa (Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 60: a constituição do Esquadrão da Morte. Anais do XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambú, 1998, p. 3) irá relatar como durante os anos 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, com a criação de uma tropa de elite chamada “Polícia Especial”, a instituição policial do Rio de Janeiro e de São Paulo passa a ter como técnica de atuação a prática de tortura e de execução.

[15] Para Michel Misse (Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, vol. 8, n. 3, p. 371-385, Porto Alegre, set.-dez. 2008), existe no Rio de Janeiro, em sua área metropolitana, assim como pode existir em outras metrópoles, um processo que o autor chama de “acumulação social da violência”, ampliador da violência ao longo das décadas precedentes.

[16] Cara de Cavalo era muito conhecido no Rio de Janeiro, frequentava a quadra da Mangueira, onde era passista e, em homenagem a ele, após sua morte, o artista plástico Hélio Oiticica criou a obra “Seja Marginal, Seja Herói”.

[17] É durante a Ditadura Militar, por meio do Dec.-lei 317, de 18.03.1967, que a Polícia Militar será adaptada à Doutrina de Segurança Nacional e é por intermédio do Dec.-lei 667/1969 que se estabelece um sistema binário de policiamento, excluindo-se as outras guardas fardadas e instituindo-se a Polícia Militar como instituição legítima de policiamento ostensivo no Brasil.

[18] Em julho de 1970, Hélio Bicudo (Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1976, p. 19) é designado como Procurador da Justiça do Estado, em São Paulo, para investigar os crimes cometidos pelo esquadrão, como relatado em seu livro Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. Nesse mesmo mês e ano, a Revista Veja publica uma extensa reportagem sobre os Esquadrões da Morte, seguida de pesquisa de opinião pública, naquele momento, em que 60% dos paulistanos e 33% dos cariocas entrevistados eram favoráveis à existência do Esquadrão da Morte.

[19] O jornalista Caco Barcellos (Rota 66 – a história da polícia que mata. São Paulo: Globo, 1992. p. 127-128), em seu romance policial Rota 66 – a história da polícia que mata, irá relatar como a prática de extermínio efetuada pela polícia não sofreu grandes alterações, nem foi combatida pelos chefes de Estado, sejam eles da época da ditadura ou do regime democrático: “Nosso Banco de Dados também mostra que a violência da Polícia Militar não sofre grande influência e nem pode ser explicada somente por uma circunstância de quem está no comando político do Estado. Durante os anos do regime militar, os governadores Abreu Sodré e Paulo Egídio Martins sempre apoiaram em público ações enérgicas da PM durante o policiamento. O mais notório incentivador foi o engenheiro Paulo Salim Maluf, que governou São Paulo de 79 a 82. Nesse período, os policiais militares passaram a matar em média uma pessoa a cada trinta horas, aproximadamente trezentas por ano. (...) A partir de 1990 se observa um grande incentivo aos homens da ROTA, que ganharam equipamentos e carros novos. (...) A violência dos matadores bateu todos os recordes. Em 1991, mais de mil suspeitos foram mortos, média de três vítimas por dia. Em 92, nos cinco primeiros meses, passaram a matar quase quatro por dia. (...)”.

[20] Ângela Mendes de Almeida (Estado autoritário e violência institucional. Disponível em: [http://www.ovp-sp.org/debate_teorico/debate_amendes_almeida.pdf]) descreve como se dão as práticas de chacinas, muitas delas com policiais envolvidos enquanto agentes: “(...) Atuando sempre em equipe de dois, ou de quatro, disfarçados com ‘toucas ninja’, alguns vestidos com trajes civis, outros semifardados, às vezes com auxílio de civis, entram em uma favela ou comunidade e executam sumariamente algumas pessoas. Essas execuções são sempre feitas em locais públicos – praças, bares – e com a calma suscitada pela confiança de ter a polícia do seu lado: verificam se todas as vítimas estão bem mortas, se não estão, aplicam novos tiros, e saem calmamente. (...)”. Tatiana Merlino, na reportagem “Em cada batalhão da PM tem um grupo de extermínio,” para a Revista Caros Amigos, relata como essa prática da execução é institucionalizada nos batalhões paulistas.

[21] Alguns relatos dão conta de que o número de mortos poderia ser mais que o dobro do número oficial.

[22] No dia 21.05.2006, nove dias após o começo do conflito, o jornal O Estado de São Paulo traz em seu Caderno Metrópole o número de 73 presídios paulistas rebelados, e o jornal Folha de São Paulo divulga nesse mesmo dia, em seu Caderno Cotidiano, o número de 82 rebeliões em presídios.

[23] A primeira grande demonstração de força do PCC ocorreu em 2001, quando 29 presídios paulistas se rebelaram, sob o comando da facção. Segundo Biondi (Junto e misturado: imanência e transcendência no PCC. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). UFSCar. 2009, p. 46): “A ‘megarrebelião’ de 2001 foi a primeira grande ação do Primeiro Comando da Capital (PCC), cujo nascimento e crescimento ocorreram silenciosa e imperceptivelmente para a grande maioria da população do Estado. (...)”.

[24] Paulo Arantes faz uma avaliação sobre a construção do pânico durante os ataques de maio de 2006, em seu texto Duas vezes pânico na cidade.

[25] A corrupção policial não é, de modo algum, uma ideia brasileira. William Foote White, em seu livro Sociedade de esquina, ao traçar uma etnografia das relações sociais urbanas, existentes em Conerville, descreve as relações entre policiais e gângsteres, ressaltando as relações mercantis presentes entre a atividade policial e o jogo de números. Foote White, inclusive, nos mostra como era existente uma lógica de porcentagem que revelava o quão corrupto ou não um policial poderia ser, assim existiam os “tiras 25%”; “tiras 50%” e os “tiras 100%”, esses incorruptíveis. Sobre a corrupção policial, nos anos 1940, nos Estados Unidos, extrai-se do livro de White (Sociedade de esquina. A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 14): “Os tiras são subornados. Eles chamam isso de ‘salário sindical’. O patrulheiro recebe cinco dólares por mês de cada loja que vende jogos de números em sua área de ronda. Os policiais civis recebem o mesmo, mas podem andar em qualquer lugar de Cornerville. Eles dividem o território entre si. Entram em diferentes folhas de pagamento e dividem o suborno. (...)”.

[26] Grifos dos redatores do Relatório.

[27] Em seu livro Do luto à luta (São Paulo: Giramundo Artes Gráficas, 2011. p. 20), o Movimento Mães de Maio assim se define: “O movimento Mães de Maio é uma rede de Mães, Familiares e Amig@s de vítimas da violência do Estado Brasileiro (principalmente da Polícia), formado aqui no estado de São Paulo a partir dos famigerados Crimes de Maio de 2006. Foi a partir da Dor e do Luto gerado pela perda de noss@s filh@s, familiares e amig@s que nos encontramos, nos reunimos e passamos a caminhar juntas”.

[28] As Mães de Acari se configuram também enquanto um movimento social, formado por mães e familiares dos desaparecidos na Chacina de Acari, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1990.

Camila de Lima Vedovello

Mestre em Ciências Sociais (Unesp-Marília).

Professora da Rede Pública Estadual (SEE-SP).

Coordenadora  Adjunta do Grupo de Estudos sobre Ciências Criminais e Direitos Humanos (IBCCrim).

Direitos Humanos
Substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes acima do sétimo mês ou em risco, em habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo
Data: 24/11/2020
Autores: FERNANDA PERON GERALDINI

Resumo : As dificuldades enfrentadas pelas mulheres encarceradas no Brasil não são poucas, especialmente diante de uma gravidez. Por se tratar de uma fase que demanda cuidados, o art. 138, IV, do CPP permite às mulheres presas provisoriamente que cumpram essa custódia em casa após o sétimo mês ou em caso de risco. Porém, essa possibilidade de prisão domiciliar vem encontrando resistência por parte de alguns julgadores. Nesse sentido, a pesquisa pretendeu verificar como o Tribunal de Justiça paulista tem aplicado a norma, analisando dados e conteúdo de 40 acórdãos em habeas corpus julgados desde o início da vigência do artigo, inserido pela Lei 12.430/2011. A partir dos resultados, constata a ainda insuficiente aplicação prática da legislação pertinente, mesmo diante do grave risco de perecimento de direitos.

Palavras-chave : Mulher gestante; prisão provisória; prisão domiciliar; habeas corpus.

Abstract : The difficulties faced by incarcerated women in Brazil are not few, especially when pregnant. In face of a moment that demands care, the Criminal Procedure Code (Article 138, item IV) allows women on pre-trial detention to comply with this custody at home, after the seventh month of pregnancy, or in case of risk. However, the house arrest has been facing resistance from some judges. In this sense, the intention of the research was to verify how the São Paulo Court of Justice has applied the norm, by analysing data and content of 40 sentences in Habeas Corpus judged since the beginning of the article’s validity, inserted by law 12.430/2011. From the results, the still insufficient practical application of relevant legislation is evidenced, even before the serious risk of extinction of rights.

Keywords : Pregnant women; pretrial detention; house arrest; habeas corpus.

Sumário: Introdução – 1. Conteúdo e contexto do art. 318, IV, do CPP – 2. Pesquisa de jurisprudência e metodologia – 3. Análise quantitativa e algumas interpretações possíveis: 3.1 Tempo de gestação e risco; 3.2 Tipo penal; 3.3 Parecer da Procuradoria de Justiça; 3.4 Liminar; 3.5. Mérito – 4. Análise qualitativa das decisões: 4.1 Casos sem julgamento de mérito; 4.2 Denegações; 4.2.1 Falta de documentação; 4.2.2 Obrigação de o Estado fornecer atendimento; 4.2.3 Mera faculdade do juiz; 4.2.4 Decisões após o parto; 4.3 Concessões; 4.3.1 Saúde da gestante e do nascituro ou recém-nascido; 4.3.2 Dignidade da pessoa humana; 4.3.3 Más condições do estabelecimento prisional; 4.3.4 Prisão domiciliar como mera modalidade de prisão cautelar – 5. Casos emblemáticos: 5.1 Cíntia, a mãe insensível; 5.2 Paula, dez gramas e uma perda irreparável – Conclusão – Referências bibliográficas – Anexo I: Acórdãos utilizados na pesquisa.

Introdução

As primeiras discussões sobre a construção de presídios para mulheres no país foram travadas na década de 1920. Naquele período, debatia-se a reforma do sistema penitenciário brasileiro, pautada pelo recém-chegado conceito de ressocialização. Em geral, as mulheres permaneciam nas piores celas localizadas nos presídios mistos, acarretando diversos problemas de convívio.

Com a reforma, passaram a ser construídos ou adaptados prédios exclusivos para o cárcere feminino, geralmente geridos por instituições religiosas caritativas (Angotti, 2012, p. 176). Nos diversos diplomas normativos editados desde então, as questões do cárcere feminino foram regulamentadas como peculiaridades e de maneira tímida, sem abranger todas as suas necessidades (Espinoza, 2004, p. 106).

Durante a reforma penitenciária, a preocupação com a maternidade também permeou os discursos. Alguns penitenciaristas entendiam ser obrigação estatal proteger a maternidade e a infância, considerando o escopo de reinserção social e humanização da pena. Já outros acreditavam tratar-se de cuidado excessivo com as presas, que não mereceriam tal tratamento diferenciado, ao qual sequer as mulheres pobres tinham acesso.

Porém, a questão não era propriamente efetivar um direito da mulher, mas resguardar a santidade de sua condição materna. Acreditava-se no potencial salvador da maternidade, capaz de implantar na mulher marginalizada sentimentos puros e femininos (Angotti, 2012, p. 248).

Assim, diversos projetos de cárceres femininos passaram a prever estruturas destinadas a gestantes e mães a partir do final da década de 1930. A legislação foi alterada, ao longo das décadas, a fim de assegurar essas conquistas, além do direito da mulher presa ao pré-natal, entre outras previsões.

Entretanto, ao longo de todo esse período, os direitos das mulheres grávidas presas vêm sendo sistematicamente desrespeitados, pois estas raramente recebem condições adequadas no cárcere. Dados do Ministério da Justiça (2008, p. 14) apontam que apenas 27,45% dos estabelecimentos exclusivamente femininos possuíam estrutura para gestantes.

Ademais, há diversos registros de instalações insalubres, falta de acompanhamento médico suficiente, violência obstétrica, entre outras violações graves à saúde e integridade física e psicológica das detentas e seus bebês (Cejil et al., 2007; Pastoral Carcerária, 2012; ONU, 2012).

Diante dessa realidade constatada pelos próprios órgãos estatais, o Código de Processo Penal foi alterado para possibilitar à mulher grávida presa provisoriamente que responda ao processo em prisão domiciliar a fim de facilitar seu acesso a uma gestação, parto e pós-parto adequados. Porém, apesar de prevista em lei, essa garantia não é concretizada na prática, vez que numerosos juízes se recusam a aplicar a norma aos casos concretos. [2]

Assim, a fim de colaborar para a compreensão dessa realidade, o presente artigo se dispôs a verificar como o Judiciário paulista tem aplicado a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar para mulheres gestantes presas acima do sétimo mês ou em situação de risco, conforme prevê o art. 318, IV, do CPP.

Para isso, a pesquisa empírica buscou verificar, em análise quantitativa e qualitativa, como os desembargadores do TJSP tratam da questão em sede de habeas corpus. Foram coletados todos os acórdãos relacionados ao tema, totalizando 40 casos, dos quais foram extraídos dados processuais e argumentos utilizados pelos julgadores.

Os resultados quantitativos da pesquisa, bem como algumas interpretações possíveis, estão relatados no item 3, enquanto o item 4 se refere à avaliação qualitativa, referente aos principais argumentos empregados para negar ou conceder as ordens de habeas corpus.

Para facilitar a compreensão dos conceitos discutidos na pesquisa empírica, o item 1 oferece breve exposição do conteúdo do art. 318, IV. Como o foco do artigo é a própria coleta realizada, essas explicações não buscam extenuar o tema, mas apenas facilitar a compreensão dos termos e conceitos jurídicos usados pelos julgadores.

Por fim, o item 5 apresenta dois casos destacados durante a leitura dos acórdãos. Não representam a maioria das situações, mas foram considerados importantes para discutir a temática numa perspectiva mais ampla. Se números podem esconder ou revelar a realidade, estudar casos permite refletir sobre as pessoas mais impactadas por ela.

1. Conteúdo e contexto do art. 318, IV, do CPP

A intenção deste item é apenas iniciar o estudo do inciso para facilitar a compreensão dos dados encontrados na pesquisa. Assim, não serão aprofundados conceitos jurídicos e históricos relacionados à prisão provisória ou ao encarceramento feminino.

A Lei 12.403/2011 foi promulgada na tentativa de reforçar o caráter de ultima ratio da prisão, reduzindo o uso da prisão provisória aos casos comprovadamente necessários. Para isso, introduziu, no Código de Processo Penal (CPP), diversos tipos de medidas cautelares diversas da prisão, alterou o regime de fiança, entre outras disposições.

No Brasil, cerca de 40% dos presos são provisórios (CIDH, 2013). Ou seja, são pessoas presumidamente inocentes, mas que permanecem encarceradas durante o processo de conhecimento em razão de ordem judicial. Para que isso ocorra, o juiz, ao determinar a prisão preventiva, deve justificar expressamente a presença dos requisitos legais previstos no art. 312, respeitadas as exigências do art. 313, ambos do CPP.

A princípio, a prisão cautelar é cumprida em estabelecimento adequado denominado Centro de Detenção Provisória (CDP). Ainda assim, muitas pessoas ainda permanecem sob custódia em cadeias públicas e delegacias gerenciadas pela Secretaria de Segurança Pública (Ministério da Justiça, 2012).

Geralmente, a estrutura desses estabelecimentos é ainda mais precária do que a das penitenciárias. Por possuírem alta rotatividade de pessoas, os CDP raramente contam com locais para trabalho e estudo, e costumam resumir-se às celas, corredores e pátios, muitas vezes com acentuada insalubridade.

Diante disso, a Lei 12.403/2011 introduziu a possibilidade de cumprimento de prisão provisória no local de domicílio do acusado. Dispõe o CPP:

“Art. 317. A prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial”.

Assim, observa-se que a prisão domiciliar é uma modalidade de cumprimento da prisão cautelar. Ou seja: primeiro, o juiz avalia a possibilidade de conceder liberdade provisória àquela acusada. Caso não seja possível – havendo razões para que ela permaneça custodiada cautelarmente –, o julgador deve considerar a possibilidade de colocá-la num local de cumprimento mais adequado, que é a própria residência.

Importante destacar que a prisão domiciliar não se confunde com a libertação da acusada. Altera-se apenas o local de cumprimento da prisão processual. A acusada não se encontra livre, uma vez que só pode sair da residência em condições estipuladas pelo juiz. Assim, apesar de sua maior possibilidade de trânsito – considerando a vigilância mínima –, não é possível confundir tal situação com liberdade.

A figura também se diferencia da medida cautelar de recolhimento domiciliar previsto no art. 319, V, do CPP. Neste, o indiciado pode sair e trabalhar durante o dia, devendo recolher-se no período noturno. Trata-se de um dos institutos criados justamente para evitar a prisão cautelar.

A prisão domiciliar será concedida nos casos de vulnerabilidade social relatados nos incisos do art. 318. A previsão é claramente humanitária e privilegia a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF). As hipóteses de concessão são as seguintes:

“Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:

I – maior de 80 (oitenta) anos;

II – extremamente debilitado por motivo de doença grave;

III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;

IV – gestante a partir do 7.º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.

Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo”.

A maior proteção se justifica pela acentuada vulnerabilidade dos grupos sociais em questão. No inc. IV, nota-se a intenção do legislador em proteger a maternidade, a gestante e o próprio nascituro. Além disso, a pessoa nessas condições ofereceria mínima periculosidade social, justificando a menor restrição (Nucci, 2014, p. 98).

Uma previsão semelhante já fora inserida na Lei de Execução Penal (LEP), em seu art. 117, o qual permite que pessoas vulneráveis – inclusive gestantes e parturientes – possam cumprir pena em regime aberto em prisão domiciliar. Apesar de se referir a presos condenados, havia forte entendimento jurisprudencial aplicando esse benefício aos provisórios, como medida de isonomia e garantia de direitos fundamentais. [3]

O art. 14, § 3.º, da LEP garante, também às presas provisórias, o direito ao acompanhamento médico “principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido”. Ademais, o art. 89 da mesma Lei assegura que as penitenciárias femininas serão dotadas de seção para gestante e parturiente.

Obrigações semelhantes, referindo-se aos cuidados necessários com a gestante ou a parturiente, são trazidas pelas Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, em seu item 23, complementado pelas Regras para o Tratamento de Mulheres Prisioneiras ou Regras de Bangkok, especialmente no item 48, ambos aprovados na ONU e ratificados pelo Brasil, possuindo, portanto, força de lei.

Não obstante, as previsões legais nem sempre são atendidas, levando mulheres a permanecerem sem o necessário atendimento. Essa realidade é amplamente conhecida por diversas entidades que militam na área (Pastoral Carcerária et al., 2012, p. 3) e até por departamentos oficiais (Depen, 2011, p. 58). Além disso, órgãos internacionais de direitos humanos já registraram a deficiência do atendimento a gestantes. [4]

Nesse sentido, importante destacar que a única demanda do art. 318 é a prova idônea do cumprimento de seus requisitos. Não se exige, portanto, que o juiz avalie as condições do presídio no qual a mulher se encontra para, caso estas não sejam suficientes, autorizar que a gestante cumpra custódia domiciliar.

A previsão também se amolda à proteção da criança envolvida, já que esta não deve permanecer encarcerada em razão do princípio da intranscendência da pena, segundo o qual esta nunca passará da pessoa do condenado (art. 5.º, XLV, da CF).

A criança também recebe especial proteção, com prioridade absoluta (art. 227 da CF), e seus direitos devem ser considerados com primazia. Também, o art. 8.º do ECA assegura à gestante atendimento pré e perinatal, além de acompanhamento psicológico e condições ao aleitamento materno.

Assim, diante da prisão de uma mulher grávida, cabe à defesa da acusada requerer rapidamente a concessão da prisão domiciliar, informando e comprovando o fato ao Juízo. Por se tratar de matéria de ordem pública, que envolve liberdade e direitos fundamentais, nada impede que o juiz conceda a ordem de ofício.

Porém, caso o juiz discorde da pretensão da defesa, caberá a esta acessar a segunda instância. Nesse tribunal, dada a urgência da medida, poderá impetrar uma ordem de habeas corpus (HC), destinado a corrigir uma situação em que alguém sofre ou é ameaçado de “sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5.º, LXVIII, da CF).

Essa ação de habeas corpus será julgada por um corpo de três desembargadores, que poderão concordar ou discordar da decisão combatida, mantendo-a ou revogando-a. Por se tratar de liberdade, o julgamento deverá ser célere, razão pela qual permite um julgamento liminar, antes mesmo de ser ouvida a autoridade coatora, que decidiu manter a prisão.

Ou seja, o desembargador relator recebe o caso e imediatamente decide se, provisoriamente, concede ou nega o pedido. Essa decisão vale até o julgamento do mérito, na decisão final do processo de HC, quando o desembargador pode manter ou revogar a liminar.

Caso opte por concordar com o pedido da defesa, seja na liminar ou no mérito, o tribunal emite um alvará de soltura, determinando que a gestante seja colocada em prisão domiciliar. Assim, o juiz de primeira instância deve obedecer à determinação superior, só podendo determinar a prisão caso haja nova motivação.

2. Pesquisa de jurisprudência e metodologia

A pesquisa empírica buscou verificar, em análise quantitativa e qualitativa, como o TJSP tem aplicado o art. 318, IV, do CPP, em sede de habeas corpus, desde o início da vigência dessa modificação legal. Para tanto, o levantamento serviu-se do mecanismo de busca de jurisprudência disponibilizado no portal oficial do referido tribunal. A coleta foi realizada em 12.12.2014, entre 10h58min e 11h18min.

Foram utilizadas duas chaves de pesquisa, a fim de evitar perdas devido a sinônimos: “318 IV gestante Habeas Corpus” e “318 IV grávida Habeas Corpus”. A primeira chave gerou 47 resultados, enquanto a segunda originou mais 35, excluídos aqueles repetidos.

Em breve leitura, foram ignorados os que apenas mencionavam as chaves de pesquisa e selecionados aqueles cujos pedidos se fundamentavam no referido inciso. Assim, chegou-se ao universo de 40 acórdãos, listados no Anexo I.

Em seguida, foram extraídos e tabelados os dados considerados relevantes (ver item 3) e coletadas as principais justificativas para as decisões de mérito (ver item 4). Informações sobre data de distribuição e data da liminar foram obtidas no próprio portal do tribunal, na área de consulta de processos, mediante pesquisa pelo número do habeas corpus.

Os habeas corpus analisados foram distribuídos entre 26.04.2011 e 13.10.2014 e julgados entre 26.07.2011 e 04.12.2014. O critério de disponibilização dos casos no site do tribunal (e, consequentemente, de coleta para a pesquisa) é a publicação dos acórdãos, sendo possível que pedidos distribuídos naquele intervalo estejam fora da coleta, por ainda não terem acórdãos publicados.

Por fim, cabe uma justificativa. A escolha pela pesquisa em acórdãos de habeas corpus deveu-se ao interesse em verificar a celeridade do julgamento desses pedidos, uma vez que se trata de assunto extremamente urgente, dada a iminência do parto, e que envolve direitos fundamentais, demandando ainda mais presteza na decisão. Porém, importante ressaltar que os acórdãos colhidos pouco informam sobre a aplicação daquele inciso em primeira instância, tampouco nos tribunais superiores.

Ainda assim, as decisões refletem as posições da cúpula do judiciário bandeirante, o qual fornece importantes linhas decisórias para os demais magistrados. Nesse sentido, a pesquisa é relevante para indicar como vêm decidindo e argumentando os juízes na questão da gestante presa provisoriamente.

3. Análise quantitativa e algumas interpretações possíveis

O objetivo dessa classificação foi definir como os desembargadores se posicionaram nos casos, seja em decisão liminar ou de mérito. Além disso, buscou-se observar como alguns critérios fáticos podem influenciar, como tempo de gestação e risco, tipo penal imputado ou parecer do Ministério Público.

Neste item, apesar de se tratar da exposição dos dados numéricos extraídos na pesquisa, optou-se por utilizar algumas informações específicas sobre os casos, antecipando detalhes da análise qualitativa, apenas para fins de uma possível interpretação dos dados.

3.1 Tempo de gestação e risco

Com base na leitura dos relatórios dos casos inseridos nos acórdãos, foi possível verificar o tempo da gestação no momento do pedido. Obviamente, essa não é a forma mais confiável de se obter tal dado. Mas, além de ser a única possível dentro dos limites dessa pesquisa, ela permite conhecer a mesma informação da qual o julgador dispunha no momento de decidir.

A pesquisa demonstrou que a maior parte dos pedidos é feita com a gravidez avançada, acima de sete meses. Os casos de risco à gestante foram contabilizados separadamente, ignorando o tempo de gestação, por tratar-se de um requisito legal autônomo.

Gráfico 1: Tempo de gestação e risco

Fonte: Acórdãos em habeas corpus no TJSP coletados na pesquisa.

Os seis casos em que o tempo de gestação sequer foi citado (ao menos no relatório do acórdão) foram indeferidos, o que pode sinalizar a importância de fornecer essa informação com precisão, destaque e comprovação documental.

O pedido mais comum é o que indica o tempo de sete meses ou mais de gestação, talvez por reproduzir a letra da lei. A pesquisa demonstrou que o avanço da gestação não é critério determinante para o deferimento da liminar, nem para a concessão ou denegação em sede de mérito, uma vez que há igualmente decisões contrárias e favoráveis em todas as etapas da gravidez.

Já entre os casos de risco, dois julgadores rejeitaram o pedido e ressaltaram a importância de documentos comprobatórios dessa situação. [5] Os outros quatro, todavia, obtiveram liminar e julgamento favoráveis. Assim, é possível afirmar que, nas situações de risco, a prova documental deste é elemento fundamental para a concessão.

3.2 Tipo penal

Como foi dito, a legislação não apresenta qualquer outro requisito para a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, além daqueles descritos no art. 318. Todavia, parte dos acórdãos menciona a gravidade abstrata do delito como forma de argumentar pela negativa do pedido. Ou seja, esses desembargadores alegam de maneira superficial a suposta periculosidade da acusada, a fim de negar que sua prisão preventiva seja cumprida na própria residência.

Gráfico 2: Tipos penais imputados

Fonte: Acórdãos em habeas corpus no TJSP coletados na pesquisa.

Logo de início, nota-se a grande incidência de mulheres grávidas acusadas por tráfico de drogas, que chegam a 70% do total. A tendência é compatível com a distribuição dos tipos penais entre as mulheres presas no sudeste do país (Ministério da Justiça, 2011, p. 68).

Essa constatação permite acrescer a problemática das gestantes encarceradas à questão dos impactos sociais perniciosos da guerra às drogas. Assim, o crescimento exponencial das prisões de mulheres acusadas de tráfico de entorpecentes também se reflete no encarceramento de muitas mulheres grávidas, geralmente em situação de vulnerabilidade.

Nos crimes de tráfico de entorpecentes, todos os 13 acórdãos de improcedência faziam referência à gravidade abstrata do delito imputado como obstáculo para a liberdade provisória e a prisão domiciliar. Note-se que o crime de tráfico de drogas em si é cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa.

Por outro lado, os 13 acórdãos procedentes superam esse argumento, preterindo-o em favor da dignidade da gestante e do nascituro, [6] da presunção de inocência somada à inexistência de prova robusta [7] ou da diferença elementar entre liberdade provisória e prisão domiciliar, [8] conforme explicado no item anterior.

Dessa forma, observa-se que o tipo penal imputado não define o destino do habeas corpus. Ainda assim, é preciso destacar a necessidade de disseminação do entendimento de Nucci (2014), destacado em alguns acórdãos, no sentido de ser impossível a exigência dos requisitos para a liberdade provisória na decisão sobre a colocação do preso preventivo em sede domiciliar (ver item 4.3.4), por serem institutos jurídicos distintos.

3.3 Parecer da Procuradoria de Justiça

Cabe ao órgão da Procuradoria de Justiça emitir parecer sobre o pedido a ser analisado no habeas corpus. Além de ser o órgão acusatório, o Ministério Público tem a função de fiscal da lei, devendo assegurar seu cumprimento, mesmo que isso signifique pedir a liberdade ou a absolvição de um acusado em processo penal.

Em 24 situações, a Procuradoria posicionou-se pela denegação do pedido. Dentre essas, o tribunal concedeu apenas sete ordens. Já os 10 casos em que a PGJ se posicionou favoravelmente tiveram a ordem concedida pelo tribunal, sendo que apenas dois deles obtiveram a liminar rejeitada.

Do exposto, é possível concluir que o tribunal e a Procuradoria tendem a concordar sobre os casos que merecem ou não a concessão da ordem. Porém, não é possível afirmar, nos limites dessa pesquisa, se a opinião do procurador influencia o voto ou se são as características dos casos que determinam essa coincidência.

Ainda assim, é especialmente relevante o papel do procurador na concessão das ordens, uma vez que um posicionamento favorável desse órgão tem grande chance de indicar uma decisão final favorável.

3.4 Liminar

A decisão liminar em sede de habeas corpus é restrita, em razão da dificuldade de apreciação célere de pedidos complexos. Todavia, trata-se de momento importante no processo, que pode significar a garantia ou o perecimento do direito das mulheres, dado o rápido avanço gestacional.

Gráfico 3: Decisões liminares

Fonte: Acórdãos em habeas corpus no TJSP coletados na pesquisa.

A pesquisa revelou que a liminar foi deferida em apenas 16 casos, sendo que todos terminaram com a concessão, no mérito, da ordem de habeas corpus. Ou seja, dos 40 processos analisados, nenhuma liminar concedida foi cassada ao final.

Dos 24 casos em que a liminar foi negada, o que representa 60% do total, apenas quatro resultaram na posterior procedência do pedido.

Assim, apesar de, nos limites dessa pesquisa, não ser possível compreender se há relação de condicionalidade entre essas informações, pode-se afirmar que o resultado da liminar tende a ser mantido na decisão de mérito, especialmente no caso de deferimento.

Nos casos de negativa, a liminar é apreciada em uma média de 3,4 dias. Já na hipótese de concessão, a média atinge 7,9 dias.

Quatro casos destacados foram excluídos do cálculo da média anterior, por representarem situação peculiar. Nestes, a liminar foi analisada, mas só foi reapreciada e decidida após a chegada de novas informações, vindo a ser deferida em três dos casos. [9] Nesse grupo, a decisão liminar chega a demorar de um a dois meses, descaracterizando totalmente a celeridade esperada nessa modalidade decisória.

3.5 Mérito

A pesquisa demonstrou que, em metade dos casos, os habeas corpus foram julgados procedentes para conceder a prisão domiciliar. Em três desses casos, porém, a prisão domiciliar foi concedida apenas em sede liminar, sendo deferida a liberdade provisória ao final.

Gráfico 4: Decisões de mérito

Fonte: Acórdãos em habeas corpus no TJSP coletados na pesquisa.

A média de duração dos processos cujo pedido foi deferido é de 70,75 dias, enquanto o processamento dos casos denegados demora, em média, 10 dias a mais. Exceção é a 8.ª Câm. Crim., na qual a média de demora até a decisão de mérito chega a 113 dias.

Importante destacar que a média de demora até a decisão liminar e o julgamento de mérito vem diminuindo ao longo dos anos, após significativa piora entre 2011 (ano de promulgação da lei, contando com apenas cinco casos) e 2012, como demonstra o gráfico a seguir.

Gráfico 5: Média de tempo até as decisões

Fonte: Acórdãos em habeas corpus no TJSP coletados na pesquisa.

As decisões de mérito foram o principal foco da pesquisa, por permitirem a extração dos argumentos utilizados pelos julgadores. Mais informações sobre o teor desses documentos estão detalhadas no próximo item.

4. Análise qualitativa das decisões

A segunda parte da pesquisa consistiu na leitura dos 40 acórdãos, a fim de compreender quais foram os argumentos principais no julgamento dos habeas corpus. Especialmente, a intenção era descobrir quais os principais entraves para a concessão da prisão domiciliar no caso de gestantes presas provisoriamente.

4.1 Casos sem julgamento de mérito

Foram três os casos em que não houve decisão de mérito.

O processo que não foi conhecido se destacou, uma vez que, segundo o relatório, dizia respeito à mulher gestante acima de sete meses e portadora de HIV. Porém, o relator alegou falta de documentos comprobatórios da gravidez, da condição de saúde e, até mesmo, de cópia da decisão combatida, para sequer conhecer do HC. [10]

Já dentre os casos julgados como prejudicados por perda de objeto, um se reporta à revisão da decisão de primeira instância que concedeu a prisão domiciliar. [11] Os outros dois consideram o objeto do habeas corpus perdido quando existe notícia de sentença condenatória na primeira instância.

Porém, em uma dessas situações, [12] sequer havia trânsito em julgado da sentença. Mesmo reconhecendo ter havido apelação da defesa, o relator argumentou que ela havia sido condenada sem direito de recorrer em liberdade. Por fim, ressaltou que não houve, no HC, pedido subsidiário no caso de condenação.

De fato, a paciente ainda permanecia sendo presa provisória no momento do julgamento do HC, o que não justificaria a exigência do pedido subsidiário para o caso de condenação não definitiva. [13] Porém, cabe destacar a utilidade de incluir esse pedido na petição inicial do habeas corpus a fim de evitar tal situação.

4.2 Denegações

Conforme mencionado no item anterior, as denegações correspondem a 16 dentre os acórdãos coletados.

4.2.1 Falta de documentação

O parágrafo único do art. 318 determina que o juiz exija prova idônea dos requisitos estabelecidos no artigo. A falta de documentos comprobatórios do tempo de gravidez ou do risco foi alegada como a razão para o indeferimento em seis casos.

Nestes, os julgadores não se satisfizeram com a mera alegação ou, ainda, com um teste de gravidez. [14] Foi exigido um documento claro e expresso no sentido de demonstrar o avanço (se acima de sete meses) ou o risco da gestação.

Apesar de juridicamente aceitável, tendo em vista a previsão legal, tal postura não era a única possível. Diante de um caso extremo de demora, uma relatora optou por telefonar à unidade prisional em questão a fim de confirmar a evolução da gravidez. [15]

A princípio, tal diligência não pode ser exigida em todos os casos, pois a responsabilidade pela instrução da peça é ônus da defesa. Porém, por se tratar de norma de ordem pública – direitos fundamentais da gestante e do nascituro, cujo desrespeito pode acarretar perdas incomensuráveis –, seria interessante que o julgador tivesse a possibilidade de consultar algum órgão oficial ou sistema integrado de informações. [16]

4.2.2 Obrigação de o Estado fornecer atendimento

Em oito acórdãos, os julgadores expressamente alegaram a obrigação estatal de prestar atendimento à presa gestante como um dos motivos para rejeitar a substituição da prisão preventiva em prisão domiciliar.

De fato, como já mencionado no item 1, a Lei de Execução Penal determina, no § 3.º do art. 14, o acompanhamento médico da gestante e do recém-nascido. Ademais, o art. 89 prevê a seção para gestante e parturiente, bem como creche, nos estabelecimentos penais. Porém, diante do descumprimento reiterado dessa norma, coube ao legislador reafirmar a proteção, inserindo o disposto no art. 318, IV, do CPP.

Trata-se de previsão específica para a prisão provisória e com alteração recente (após a introdução dos mencionados artigos na LEP, em 2009). Nesse sentido, não se sustentaria a recusa desses julgadores em aplicar a legislação pertinente ao caso, com base na alegação da existência de uma previsão legislativa que, de tão ineficaz, já foi superada pelo próprio legislador no tocante às presas provisórias.

Assim, ainda que se trate de mero recurso argumentativo ou excesso de justificativa na decisão, é importante que os julgadores se sensibilizem para a situação dessas mulheres que, apesar de presumidamente inocentes, pouco recebem do Estado. Alguns desembargadores, por sua vez, optam por decidir de acordo com a realidade fática (ver item 4.3.2).

Em dois casos, [17] o pedido foi rejeitado por haver documentação nos autos indicando que ela estaria sendo atendida no presídio. Assim, é possível concluir pela utilidade de a defesa inserir, na instrução do pedido, informações sobre eventuais instalações precárias e a possível má qualidade do atendimento de saúde na unidade prisional em questão, a fim de evitar o perecimento da ação com base nessas alegações.

4.2.3 Mera faculdade do juiz

Diversos acórdãos denegatórios fundamentam sua posição no uso do termo “pode” pela letra da lei, de forma que a concessão não seria um dever do juiz.

Para tanto, é corrente a citação de Guilherme de Souza Nucci, segundo o qual “a prisão domiciliar constitui faculdade do juiz e não direito subjetivo do acusado”. Nesse sentido, cabe trazer excerto transcrito em um dos acórdãos. [18]

“não somente a gravidez espelha a necessidade de prisão domiciliar, mas o alto risco de haver complicações ou o estágio avançado, a partir do sétimo mês. Trata-se de concessão exclusiva à mulher presa e, mesmo assim, se o juiz reputar conveniente. Afinal, há previsão para dar guarida à gestante no cárcere, inclusive para amamentação do filho. Nos termos já aventados em nota anterior, quanto ao maior de 80 anos, se a acusada representar perigo extremo à sociedade, caso seja posta em liberdade, não se deve conceder a prisão domiciliar” (Código de Processo Penal comentado, 2014, p. 722).

Esse posicionamento também ilustra a noção de obrigação prestacional pelo Estado, conforme subitem anterior. Não é a posição, todavia, de um representante da Procuradoria-Geral de Justiça, cujo trecho do parecer foi transcrito em um acórdão: [19]

“Pese embora a pouco recomendável conduta da paciente, é caso, a meu juízo, de conceder a ordem, confirmando-se a medida liminar. Ainda que tenha sido posta na lei como mera faculdade do juiz, a ser analisada em cada caso, a possibilidade de concessão de prisão domiciliar às presas em final de gravidez configura, na verdade, um dever, sobretudo, em razão das precárias condições sanitárias das unidades do sistema penitenciário brasileiro”.

4.2.4 Decisões após o parto

Três dos casos [20] mencionam o fato de o parto ter ocorrido antes da data da decisão como um dos argumentos para a negativa. Infelizmente, nos limites dessa pesquisa, não foi possível descobrir quantas decisões, de fato, sucederam o parto.

Porém, é possível concluir pela relevância de se dar destaque à data presumida do parto, na petição inicial, como forma de incentivar a celeridade, ao menos na decisão liminar. [21]

Outra precaução fundamental diz respeito ao pedido de concessão da ordem com base no art. 318, III, no caso de a decisão ultrapassar a data do parto. Apesar de ser possível ao relator conceder o HC de ofício e de haver caso de concessão pelo inc. IV mesmo após o parto, [22] trata-se de importante estratégia defensiva a fim de evitar o resultado negativo, no caso de demora.

4.3 Concessões

Foram lidos 20 acórdãos referentes a concessões da ordem de habeas corpus. Dentre estes, como já mencionado, três resultaram no deferimento da liberdade provisória, após a prisão domiciliar ser concedida em liminar. Os principais argumentos para as concessões estão expostos a seguir.

4.3.1 Saúde da gestante e do nascituro ou recém-nascido

O objetivo da norma é proteger a saúde da mulher gestante e da criança ao nascer, especialmente vulneráveis nesse momento de suas vidas. Nesse sentido, 11 acórdãos mencionam expressamente o direito à saúde ou à integridade física da mulher e do nascituro como motivo para o deferimento.

Além disso, um julgado se refere apenas ao direito da criança, deixando expresso que a prisão acarretará violação ao direito de terceiro. Apesar de não privilegiar o direito da mulher, a argumentação pode ser útil para sensibilizar aqueles julgadores que rejeitam a medida por considerar a paciente não merecedora. Trata-se de um caso de tráfico de drogas, no qual o relator se posiciona no seguinte sentido:

“Conforme já me manifestei em outras oportunidades, não parece adequado que o encarceramento da paciente seja estendido ao seu filho recém-nascido, pois ainda que permaneça em berçário, será mantido injustificadamente em ambiente insalubre. Ademais, não é aconselhável a separação da parturiente do filho no período de amamentação, o que fatalmente ocorrerá se ela permanecer encarcerada. Ou seja, a manutenção da custódia acabará violando direitos de terceiros (o recém-nascido) e atentando contra o princípio da dignidade da pessoa humana”. [23]

4.3.2 Dignidade da pessoa humana

A expressão dignidade da pessoa humana aparece em 12 documentos. Entretanto, o conceito raramente é destacado na motivação das decisões. Na grande maioria, aparece apenas no relatório, como um dos argumentos da defesa.

Em outros casos, surge dentro da citação de jurisprudência dos Tribunais Superiores, utilizada na decisão. Quatro acórdãos de deferimento, três dos quais julgados pela 12.ª Câm. Crim., mencionam julgado do STJ (HC 217.009/MG, j. 06.12.2011) em que se decide pela concessão da prisão domiciliar (pelo inc. III) por razões humanitárias e considerando a dignidade da pessoa humana.

A dignidade da mulher somente foi destacada como motivo das decisões em três casos, um dos quais é o relatado no item 5.2. Os outros são casos idênticos, julgados pela 1.ª Câm., [24] em que o relator consignou a impossibilidade de o juiz reverter a prisão domiciliar sem justa fundamentação, mesmo após a condenação:

“Saliente-se, ainda, que a medida de cautela posta na norma do art. 318, IV do CPP não se esgota com o nascimento. Ela se volta à proteção da própria maternidade recente e, portanto, não pode ser revogada, pelo fundamento único, de que realizado o parto. Ofende a dignidade da pessoa da parturiente, ainda que ré em processo-crime, a recolocação em imediato regime de prisão preventiva, em unidade carcerária, sem preocupação com o resguardo necessário à saúde, não somente a sua, como aquela do próprio nascituro, devendo ser observado quanto a este a possibilidade de aplicação do art. 89 da LEP, decorrido o prazo de seis meses ali estabelecido, quando, somente então, haverá disponibilidade de creche para acolhê-lo, em contato com a mãe reclusa”.

4.3.3 Más condições do estabelecimento prisional

Diferentemente dos casos mencionados anteriormente (item 4.2.2), muitos julgadores [25] aplicaram o princípio do in dubio pro reo para entender que, diante da ausência de informações consistentes a respeito da estrutura do presídio (especialmente no tocante aos recém-nascidos), a ordem deve ser concedida. Por exemplo:

“A paciente é gestante, prestes a dar a luz a seu filho, conforme exame de fls. 46 e na esteira do quanto fundamentado pelo Procurador de Justiça, em seu parecer de fls. 55/57, os estabelecimentos penitenciários não têm tido estrutura suficiente para receber presas com bebês, de acordo com as suas necessidades. Muito pelo contrário”. [26]

Portanto, a pesquisa demonstrou que parte dos desembargadores parece compreender e se responsabilizar pelos problemas reais do sistema carcerário, ao menos no tocante às gestantes encarceradas e seus recém-nascidos. Diante da deficiência na prestação de serviços públicos pelo Poder Executivo, é responsabilidade do julgador efetivar direitos fundamentais, e não apenas reafirmar uma obrigação estatal já prevista em lei, mas não concretizada.

4.3.4 Prisão domiciliar como mera modalidade de prisão cautelar

A decisão que defere a prisão domiciliar não determina a liberdade do acusado. Pelo contrário, mantém a prisão preventiva, visto que a restrição à liberdade permanece, alterando-se apenas o lugar de cumprimento.

Obviamente, mudam também as condições de salubridade desse local, o que é a própria intenção da lei. Porém, o exercício da liberdade de locomoção da pessoa permanece restrito por ordem judicial, muito além do que seria no caso de uma liberdade provisória. Nesse sentido, incabível a exigência dos requisitos para a custódia cautelar (arts. 312 e 313 do CPP).

Três acórdãos [27] apontaram essa questão, utilizando e transcrevendo o seguinte excerto da obra de Guilherme Nucci (2014) – curiosamente, o mesmo doutrinador citado como fundamento em várias denegações:

“O que, realmente, há é a prisão preventiva, que pode ser cumprida em domicílio. Logo, não é o caso de substituir uma pela outra, mas de inserir o indiciado ou réu em local diverso do presídio fechado para cumprir prisão cautelar, advinda dos requisitos do art. 312 do CPP, logo, preventiva”.

Destacar esse entendimento nos pedidos pode ser interessante à defesa, pois retira o foco da discussão sobre a viabilidade ou não da libertação da paciente, o que implicaria merecimento e aferição dos requisitos, pousando-o sobre a mera modalidade de cumprimento da prisão cautelar.

5. Casos emblemáticos

Durante a leitura dos acórdãos, alguns casos se destacaram. Acredita-se que a breve menção dessas histórias colabore com a compreensão da complexidade inerente ao problema ora estudado.

5.1 Cíntia, a mãe insensível

Um dos casos, apesar de excluído da coleta, [28] merece menção em razão de um comentário feito pelo julgador no acórdão. Trata-se de um caso de furto, em que a paciente (com gravidez avançada) teria sido vista carregando objetos miúdos em uma sacola, enquanto os demais agentes levariam a televisão furtada. Foi presa em abril de 2013.

O HC, impetrado em julho, teve a liminar rejeitada e foi finalmente denegado em setembro. Informou o julgador:

“Realmente, em contato telefônico com Adriana Alkmin Pereira Domingues, Diretora da Penitenciária Feminina de Tupi Paulista, a paciente está recolhida na ala de amamentação do aludido estabelecimento prisional, estando seu filho com três meses de vida e devidamente assistido por médico pediatra.

De outra banda, a paciente é portadora de maus antecedentes (fls. 72) e, ainda, quando da prática do furto triplamente qualificado objeto deste writ, já se encontrava grávida, demonstrando insensibilidade e descaso com a criança que estava por vir”.

Em outubro de 2013, a paciente foi condenada ao regime aberto, convertido em pena restritiva de direitos. [29] Nesse sentido, as consequências da rejeição da prisão domiciliar foram eventualmente minoradas pela libertação da paciente.

Nota-se que a decisão relaciona gravidez e crime a partir do conceito de descaso, ao lado da obrigação estatal de prover assistência, possivelmente numa lógica de causa e consequência. Outra decisão [30] vai ao mesmo sentido, no trecho:

O fato de estar grávida não a impediu de praticar o delito e não a impede de reiterar a conduta criminosa. Também não justifica a segregação na residência, vez que o Estado deverá providenciar todo o cuidado necessário durante a gestação e para o parto”.

A pesquisa foi incapaz de identificar, mas, possivelmente, a questão da mulher grávida delinquente, supostamente insensível e descuidada com sua prole, que descumpre seu papel social enquanto mãe e se arrisca ao cárcere, exerça alguma influência na motivação dos julgadores, quando instados a beneficiar a mulher em razão da gravidez.

Trata-se de um conceito oriundo do positivismo criminológico, segundo o qual a mulher delinquente padeceria de uma natural falta de afeição maternal, em razão de sua sexualidade exacerbada, o que comprovaria sua degeneração moral (Lombroso apud Angotti, 2012, p. 154).

Ao contrário do sustentado, a imensa maioria das mulheres encarceradas que são mães se preocupa com os filhos do lado de fora. Tanto no momento do crime, muitas vezes cometido na intenção de sustentá-los, quanto no período do cárcere, quando entregam os filhos aos cuidados de avós, sogras, tias e pais (Helpes, 2014, p. 166).

5.2 Paula, dez gramas e uma perda irreparável

Em 16.04.2012, Paula [31] foi presa acusada de tráfico de drogas quando conduzia um veículo portando, aproximadamente, 10 gramas de cocaína e dois mil reais, os quais decorreriam das atividades ilícitas do corréu, seu companheiro.

Paula era primária, mãe de cinco filhos e, no momento da prisão, estava de, aproximadamente, quatro meses de gestação. Nenhuma das decisões disponíveis no portal do TJSP (no processo em primeira instância [32] ) sequer menciona tal condição.

Porém, a gravidez era de altíssimo risco. A paciente foi atendida pela médica do centro hospitalar do estabelecimento prisional e diagnosticada com “suspeita de início de centralização fetal”. A profissional recomendou “controle fetal diário, se possível ao nível hospitalar”, e ainda afirmou que só não internou Paula porque ali não existia ginecologista obstetra em plantão de 24 horas ou UTI neonatal. Esses dados constam do acórdão.

O HC foi impetrado pelo Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo somente em 10.08.2012. A demora pode se dever ao fato de haver advogados particulares nomeados na causa, mas que não fizeram o pedido.

Porém, no dia anterior, Paula já havia entrado em trabalho de parto prematuro, muito provavelmente em decorrência da complicação previamente relatada. [33] O bebê nasceu naquele dia, vindo a falecer cinco dias depois, em 14.08.2012 – mesma data em que a liminar foi deferida para conceder-lhe a prisão domiciliar em razão do risco.

A prisão domiciliar foi efetivada somente no dia 16. Antes do julgamento, a Procuradoria posicionou-se pela prejudicialidade do pedido, em razão da ocorrência do parto. O rel. Breno Guimarães, porém, optou por outro – louvável – caminho:

“Não se olvida que a situação da paciente não mais se amolda às hipóteses autorizadoras da prisão domiciliar. No entanto, forçoso reconhecer a existência de situação peculiar, autorizadora, a meu ver, da manutenção da benesse.

A paciente estava grávida enquanto presa provisoriamente. Necessitava de atendimento médico diferenciado, o qual, segundo a médica que a atendeu, não existia dentro do sistema penitenciário. Entrou em trabalho de parto prematuramente e a criança veio a falecer.

Assim, deve ser levado em consideração que a paciente suportou, recentemente, grave abalo, não sendo teratológico presumir que este a atingiu física e psicologicamente. Determinar seu retorno ao cárcere ao argumento de que ela não mais está grávida e de que, face ao falecimento da criança, não é necessário prestar cuidados a esta, seria desumano e violaria o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição Federal, em art. 1.º, inciso III.

Assim, por razões humanitárias e em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, a ordem é de ser concedida, convalidando a liminar anteriormente deferida”.

Em 25.09.2012, Paula foi condenada a cinco anos de reclusão em regime fechado, sendo-lhe negado o direito de recorrer em liberdade. O juiz determinou sua custódia na audiência. Porém, o julgamento do HC, que confirmou a liminar e manteve a prisão domiciliar, deu-se no dia 26 seguinte.

Assim, em 11.10.2012 (desconhecida a razão da demora), a paciente foi libertada por “motivo de concessão de HC”, sendo esta a última movimentação em seu prontuário. [34] Em janeiro de 2015, quando foi finalizado este artigo, constava como liberta, e sua apelação estava em andamento.

Conclusão

A pesquisa debruçou-se sobre um momento delicado na vida de 40 mulheres e 40 bebês. São, ao menos, 80 pessoas tocadas pelo sistema penal de maneira direta, sofrendo as consequências de uma estrutura devastadora em sua lógica e prática.

Os dados coletados permitem concluir que a prisão domiciliar para gestantes presas provisoriamente ainda não está disseminada no judiciário paulista. As denegações representam quase metade dos casos, e boa parte delas se fundamenta em interpretações jurídicas que não privilegiam a dignidade da pessoa humana.

A demora no processamento dos habeas corpus, em torno de 75 dias, permite alguns apontamentos. Em primeiro lugar, demonstra a necessidade de buscar cada vez mais celeridade na apreciação dos pedidos mais urgentes, como são os de habeas corpus impetrados em razão da vulnerabilidade dos pacientes.

Porém, o mais importante é destacar que é virtualmente impossível que um HC, impetrado aos sete meses de gestação, seja julgado antes do parto. De fato, a defesa não poderia impetrá-lo antes, já que, caso o fizesse, veria reduzida a chance de uma decisão liminar favorável. Porém, fazendo-o aos sete meses, corre o risco de, negada a liminar, ver o julgamento suceder o parto.

Assim, a pesquisa demonstra a necessidade urgente de uma solução alternativa à situação atual. A primeira ideia parece ser, obviamente, o incentivo à concessão em primeira instância. O juiz da causa é o mais próximo da mulher presa, devendo ser sensibilizado a atender às suas necessidades urgentes, bem como às do nascituro.

Em seguida, parece viável concluir pela imprescindibilidade das decisões liminares, especialmente nesses casos. É preciso destacar o risco de perecimento de direitos, já que o parto é iminente. Por isso, inclusive, a tramitação deveria ser prioritária nos casos de vulnerabilidade previstos no art. 318, inclusive de outros que não o inc. IV, por meio de julgamento preferencial ou, até mesmo, com o uso de tarja colorida nos autos do processo (Provimentos 50/1989 e 30/2013 da Corregedoria-Geral de Justiça, art. 192).

Ademais, cabe à defesa apresentar a máxima documentação possível, evitando depender do fornecimento de novas informações, seja pelo juiz da causa, por órgãos públicos ou pelo próprio defensor.

Além disso, é urgente que a informação da gravidez seja ressaltada desde o momento da prisão em flagrante. A existência de gravidez altera significativamente a circunstância da custódia cautelar, razão pela qual precisa ser de conhecimento de todos os agentes envolvidos no processo – delegados, promotores, juízes, entre outros.

Para isso, sugere-se a inserção da informação em destaque nos prontuários dos sistemas eletrônicos acessados por esses agentes. Contudo, tal providência deverá respeitar a privacidade da gestante e de seu filho, futuramente, de forma que a informação não fique exposta em sistemas de acesso público.

Por fim, na hipótese de se justificar a maior vigilância da paciente, no caso concreto, que sejam disponibilizadas formas menos vexatórias de acompanhamento, como visitas periódicas, vigilância discreta e, em último caso, o uso da tornozeleira eletrônica, com o intuito exclusivo de evitar a manutenção da gestante em cárcere.

As providências indicadas decorrem das análises realizadas na pesquisa, mas não abrangem todas as possibilidades de solução do problema. O primeiro passo, acredita-se, é dar visibilidade às mulheres grávidas presas provisoriamente, enquanto indivíduos presumidamente inocentes em situação de especial vulnerabilidade física e emocional, bem como aos filhos e filhas que carregam.

Referências bibliográficas

Angotti, Bruna. Entre as leis da ciência, do estado e de Deus: o surgimento dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: IBCCrim, 2012.

Cejil, Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional et al. Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Publicado em fevereiro de 2007. Disponível em: [http://www.asbrad.com.br/conte%C3%BAdo/relat%C3%B3rio_oea.pdf]. Acesso em: 05.01.2015.

CIDH, Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Informe sobre el uso de la prisión preventiva em las Americas. Publicado em 30.12.2013. Disponível em: [http://www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/Informe-PP-2013-es.pdf]. Acesso em: 15.01.2015.

Espinoza, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: IBCCrim, 2004.

Helpes, Sintia Soares. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. São Paulo: IBCCrim, 2014.

Ministério da Justiça. Mulheres presas – dados gerais. Projeto Mulheres/Depen. Disponível em: [www.mj.gov.br/depen]. Acesso em: 12.01.2015.

Nucci, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

Organização das Nações Unidas. Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Publicado em 08.02.2012. Disponível em: [http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/tortura/relatorio_visita_ao_Brasil_subcomite_prevencao_tortura_jun2012]. Acesso em: 12.01.2015.

Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz. Penitenciárias são feitas por homens e para homens. 2012.

Disponível em: [http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/relatorio-mulherese-presas_versaofinal1.pdf]. Acesso em: 05.01.2015.

Anexo I: Acórdãos utilizados na pesquisa

Habeas Corpus nº

Câmara Criminal nº

Data de distribuição

0079697-90.2011.8.26.0000

4

26/04/2011

0143101-18.2011.8.26.0000

12

29/06/2011

0193616-57.2011.8.26.0000

1

09/08/2011

0188769-12.2011.8.26.0000

16

04/08/2011

0223090-73.2011.8.26.0000

4

02/09/2011

0009802-08.2012.8.26.0000

16

18/01/2012

0020789-06.2012.8.26.0000

12

02/02/2012

0053356-90.2012.8.26.0000

1

15/03/2012

0086766-42.2012.8.26.0000

4

27/04/2012

0026371-84.2012.8.26.0000

8

09/02/2012

0102448-37.2012.8.26.0000

12

18/05/2012

0136873-90.2012.8.26.0000

7

28/06/2012

0172609-72.2012.8.26.0000

12

10/08/2012

0142064-19.2012.8.26.0000

3

04/07/2012

0243640-55.2012.8.26.0000

15

07/11/2012

0027379-62.2013.8.26.0000

14

14/02/2013

0037735-19.2013.8.26.0000

13

28/02/2013

0116744-30.2013.8.26.0000

10

12/06/2013

0095688-38.2013.8.26.0000

11

17/05/2013

0123463-28.2013.8.26.0000

8

21/06/2013

0098968-17.2013.8.26.0000

2

21/05/2013

0130591-02.2013.8.26.0000

1

02/07/2013

0133029-98.2013.8.26.0000

8

05/07/2013

0135328-48.2013.8.26.0000

4

11/07/2013

0124628-13.2013.8.26.0000

14

25/06/2013

0183216-13.2013.8.26.0000

3

25/09/2013

2060996-76.2013.8.26.0000

12

04/12/2013

0174106-87.2013.8.26.0000

8

06/09/2013

0170105-59.2013.8.26.0000

16

30/08/2013

2066580-90.2014.8.26.0000

13

29/04/2014

2067149-91.2014.8.26.0000

14

30/04/2014

2068827-44.2014.8.26.0000

11

05/05/2014

2131735-40.2014.8.26.0000

3

12/08/2014

2119574-95.2014.8.26.0000

2

25/07/2014

2130510-82.2014.8.26.0000

16

11/08/2014

2130671-92.2014.8.26.0000

12

11/08/2014

2131576-97.2014.8.26.0000

9

12/08/2014

2120023-53.2014.8.26.0000

4

25/07/2014

2158740-37.2014.8.26.0000

8

16/09/2014

2179523-50.2014.8.26.0000

13

13/10/2014

Habeas Corpus nº

Câmara Criminal nº

Data de distribuição

0079697-90.2011.8.26.0000

4

26/04/2011

0143101-18.2011.8.26.0000

12

29/06/2011

0193616-57.2011.8.26.0000

1

09/08/2011

0188769-12.2011.8.26.0000

16

04/08/2011

0223090-73.2011.8.26.0000

4

02/09/2011

0009802-08.2012.8.26.0000

16

18/01/2012

0020789-06.2012.8.26.0000

12

02/02/2012

0053356-90.2012.8.26.0000

1

15/03/2012

0086766-42.2012.8.26.0000

4

27/04/2012

0026371-84.2012.8.26.0000

8

09/02/2012

0102448-37.2012.8.26.0000

12

18/05/2012

0136873-90.2012.8.26.0000

7

28/06/2012

0172609-72.2012.8.26.0000

12

10/08/2012

0142064-19.2012.8.26.0000

3

04/07/2012

0243640-55.2012.8.26.0000

15

07/11/2012

0027379-62.2013.8.26.0000

14

14/02/2013

0037735-19.2013.8.26.0000

13

28/02/2013

0116744-30.2013.8.26.0000

10

12/06/2013

0095688-38.2013.8.26.0000

11

17/05/2013

0123463-28.2013.8.26.0000

8

21/06/2013

0098968-17.2013.8.26.0000

2

21/05/2013

0130591-02.2013.8.26.0000

1

02/07/2013

0133029-98.2013.8.26.0000

8

05/07/2013

0135328-48.2013.8.26.0000

4

11/07/2013

0124628-13.2013.8.26.0000

14

25/06/2013

0183216-13.2013.8.26.0000

3

25/09/2013

2060996-76.2013.8.26.0000

12

04/12/2013

0174106-87.2013.8.26.0000

8

06/09/2013

0170105-59.2013.8.26.0000

16

30/08/2013

2066580-90.2014.8.26.0000

13

29/04/2014

2067149-91.2014.8.26.0000

14

30/04/2014

2068827-44.2014.8.26.0000

11

05/05/2014

2131735-40.2014.8.26.0000

3

12/08/2014

2119574-95.2014.8.26.0000

2

25/07/2014

2130510-82.2014.8.26.0000

16

11/08/2014

2130671-92.2014.8.26.0000

12

11/08/2014

2131576-97.2014.8.26.0000

9

12/08/2014

2120023-53.2014.8.26.0000

4

25/07/2014

2158740-37.2014.8.26.0000

8

16/09/2014

2179523-50.2014.8.26.0000

13

13/10/2014

[1] Artigo produzido como trabalho de conclusão do Grupo de Estudos Ciências Criminais e Direitos Humanos do IBCCrim (2014).

[2] Percepção registrada, entre outros, pelo Defensor Público e Coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Bruno Shimizu, em entrevista publicada no portal da Instituição, disponível em:

[http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=47152&idPagina=3086]. Acesso em: 15.01.2015.

[3] Cite-se, por exemplo: STJ, HC 115.941/PE, j. 02.01.2009. De fato, as exigências do art. 318 são mais restritas do que as do art. 117, colocando idade superior para o idoso e inferior para a criança cujo responsável é encarcerado. No que tange às gestantes, a LEP não demanda o tempo mínimo de sete meses ou a presença de risco, mas essas exigências eram comuns na jurisprudência.

[4] Após visita, o Subcomitê de Prevenção à Tortura registrou em relatório: “48. O SPT recebeu alegações de prisioneiras gestantes e prisioneiras com crianças na prisão sobre a falta de cuidado obstetrício e o atraso na aplicação de vacinas em crianças, o que está em contradição com as leis brasileiras. 49. O SPT recomenda que mulheres grávidas recebam, de um profissional de saúde qualificado, aconselhamento regular a respeito de sua saúde. O SPT recomenda que se disponibilize às crianças que vivam com suas mães na prisão serviços de saúde contínuos e que seu desenvolvimento seja monitorado por especialistas” (ONU, 2012).

[5] HC 0086766-42.2012.8.26.0000 e HC 2158740-37.2014.8.26.0000.

[6] HC 0143101-18.2011.8.26.0000, HC 0133029-98.2013.8.26.0000 e HC 2119574-95.2014.8.26.0000.

[7] HC 0020789-06.2012.8.26.0000 (a despeito de este apreciar os requisitos da liberdade provisória para, ao final, conceder a prisão domiciliar).

[8] HC 0188769-12.2011.8.26.0000 e HC 0009802-08.2012.8.26.0000 (apesar de este último entender pela impossibilidade de liberdade provisória para crimes de drogas, como já ressaltado).

[9] No gráfico 3, apenas esses três casos foram destacados, uma vez que o outro foi contabilizado como liminar negada, já que essa denegação não alterou a situação da paciente.

[10] HC 2158740-37.2014.8.26.0000.

[11] HC 0037735-19.2013.8.26.0000.

[12] HC 0174106-87.2013.8.26.0000. Destaque-se que esse processo demorou 153 dias para ser julgado, muito acima da média.

[13] Outros dois casos semelhantes foram decididos de maneira oposta, concedendo a ordem por entender que a condenação não definitiva em nada prejudicaria. Para detalhes, ver item 4.3.2.

[14] HC 2131735-40.2014.8.26.0000.

[15] HC 0102448-37.2012.8.26.0000, apesar de só tê-lo feito após o parto, deferindo a liminar 61 dias após a impetração do writ.

[16] No HC 0170105-59.2013.8.26.0000, o relator declarou que acessou o “Sistema de Inteligência de Informações desse E. Tribunal” (fl. 4), mas apenas para verificar que a paciente havia sido atendida em uma Santa Casa e tinha recebido alta. Porém, não teve a mesma diligência para comprovar o tempo de gravidez da paciente, pois negou a prisão domiciliar alegando falta de documentação. Isso demonstra a importância de a gestação estar registrada em um sistema informativo integrado.

[17] HC 2066580-90.2014.8.26.0000. Menciona condições de permanência do recém-nascido porque o julgamento deu-se após o parto.

[18] HC 2120023-53.2014.8.26.0000.

[19] HC 0130591-02.2013.8.26.0000. Destaques não originais.

[20] HC 0098968-17.2013.8.26.0000, HC 2066580-90.2014.8.26.0000 e HC 2068827-44.2014.8.26.0000

[21] No HC 0026371-84.2012.8.26.0000, por exemplo, o relator menciona que a liminar foi deferida em março, estando o parto previsto para abril. No caso, a distribuição deu-se em fevereiro, e o julgamento (favorável) apenas em agosto. Assim, apesar da demora de 35 dias para a liminar, nota-se uma preocupação do julgador em fazê-lo antes do parto.

[22] HC 0102448-37.2012.8.26.0000.

[23] HC 2119574-95.2014.8.26.0000.

[24] HC 0130591-02.2013.8.26.0000 e HC 0193616-57.2011.8.26.0000.

[25] Por exemplo, nos seguintes casos: HC 2060996-76.2013.8.26.0000, HC 0143101-18.2011.8.26.0000, HC 0095688-38.2013.8.26.0000, HC 0183216-13.2013.8.26.0000, HC 0183216-13.2013.8.26.0000 e HC 0193616-57.2011.8.26.0000.

[26] HC 0183216-13.2013.8.26.0000 – destaques não originais.

[27] HC 0188769-12.2011.8.26.0000, HC 2130671-92.2014.8.26.0000 e HC 0009802-08.2012.8.26.0000. Destaque-se que este último entende pela impossibilidade de liberdade provisória para crimes de drogas, mas concede a prisão domiciliar com base no argumento apontado.

[28] HC 0142348-90.2013.8.26.0000. Excluído da coleta porque o pedido foi feito com base no inc. III.

[29] Autos 0001130-83.2013.8.26.0482, 1.ª Vara Criminal da Comarca de Presidente Prudente.

[30] Trecho citado no HC 2179523-50.2014.8.26.0000, de autoria do Des. Ricardo Tucunduva, mas sem referência ao processo original.

[31] HC 0172609-72.2012.8.26.0000. Ainda que o processo seja público, optou-se pela alteração do nome a fim de evitar exposição desnecessária. Vale destacar que esse caso também foi mencionado pelo juiz de Direito Marcelo Semer, em seu blog pessoal: [http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2012/10/dignidade-humana-prisao-domiciliar-por.html]. Acesso em: 14.01.2015.

[32] Autos 0034026-54.2012.8.26.0050, 5.ª Vara do Foro Central Criminal Barra Funda.

[33] Agradecimento à pediatra neonatal Dra. Ana Carla Peron Zuccoli (CRM 76691) pelos esclarecimentos técnicos médicos nesta e em outras questões ao longo deste estudo.

[34] Agradecimento à estagiária da Defensoria Pública Bárbara Marques pela informação localizada.

Fernanda Peron Geraldini

Graduada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2012).

  Advogada.

Direitos Humanos
Militarização policial e constitucionalidade: compatibilidade do modelo policial militar com um Estado Democrático de Direito
Data: 24/11/2020
Autores: Gabriela Sutti Ferreira

Resumo: Este artigo se propõe a analisar brevemente a construção do espaço público brasileiro. Em seguida, refletir sobre sua implicação a formação normativa policial até 1988 e a compatibilidade desta com o modelo democrático de direito.

Palavras-chave : Polícias – Constituição – Uso progressivo da força – Desmilitarização – Estado Democrático de Direito.

Abstract: This article briefly analyzes the construction of the Brazilian public space. Then, I reflect about the implication of that construction in law enforcement rules up to 1988, and the compatibility of law enforcement rules with a Democratic State of Law system.

Keywords: Law enforcement agencies – Constitution – Progressive use of force – Law enforcement demilitarization – Democratic State of Law.

Sumário: Introdução – 1. Organização do espaço público e sua possível relação com a atuação policial – 2. Tratamento das polícias nas Constituições até 1988 – 3. Propostas para ajustamento da polícia ao Estado Democrático de Direito: uso progressivo da força e desmilitarização – Conclusão – Referências bibliográficas.

Introdução

O debate acerca da estrutura policial no Brasil não é inovador,[2] embora o assunto tenha ganhado destaque midiático por causa da conhecida recomendação da ONU para que haja desmilitarização das polícias estaduais no Brasil.[3] Mais recentemente, com a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, houve recomendação ao Estado brasileiro para que fossem unificadas as polícias militar e civil, além de aconselhar a modificação para um modelo civil de policiamento.[4]

No âmbito acadêmico, existem posicionamentos diversos sobre a questão no país, sendo possível dividi-los em dois campos: aqueles que propõem medidas a fim de introduzir ensino de direitos humanos no treinamento e na prática policiais[5] e os que defendem serem ineficazes tais propostas sem que haja mudança estrutural das polícias, especialmente da militar.[6]

Este trabalho visa a trazer uma análise sociológica sobre a organização do espaço público brasileiro e sua possível relação com a atuação policial. Ressalta-se que os estudiosos utilizados não sintetizam, tampouco representam a opinião de toda a área do conhecimento à qual pertencem.

Posteriormente, faz-se um breve apanhado normativo sobre o tratamento formal das polícias na Constituição para, finalmente, trazer as propostas de uma atuação policial mais conforme às expectativas de um Estado Democrático de Direito e deixar espaço para que o leitor avalie a adequação dessas propostas.

1. Organização do espaço público e sua possível relação com a atuação policial

Para discutir um modelo de atuação policial e entender seu papel dentro de certa sociedade, deve-se primeiramente compreender como esta se organiza, ou seja, como aponta Roberto Kant de Lima, quais são as expectativas sociais de determinado grupo quanto à segurança pública.[7] Tal noção, segundo o antropólogo, passa pela organização do espaço público.[8]

Segundo Kant de Lima, os tipos de sociedade podem ser divididos em dois: aquelas em que o espaço público é “construído a partir de um contrato coletivo que nasce da interação dos interesses divergentes presentes em um determinado tempo e lugar”[9] e aquelas em que o espaço público é tido como uma “apropriação particularizada do Estado”.[10] Para exemplificar essa divisão, utiliza dois exemplos: o modelo anglo-americano e o brasileiro.

No primeiro tipo de organização, todos têm de obedecer igualmente às regras construídas e, por ser mais negocial, caso a legitimidade da regra seja posta em dúvida, cria-se uma nova ordem em que todos estarão de acordo para que possam ser beneficiados pelo convívio naquele grupo.[11] Por serem vistos como iguais e por ser a liberdade dentro desse agrupamento entendida como um limite possível entre esses iguais, as regras estão ligadas à previsibilidade: são explícitas e estabelecem comportamentos previsíveis a todos.[12]

Caso o conflito surja dentro desse grupo, primeiramente recorre-se a advertir os transgressores e a reprimir seu comportamento. Se for inevitável o conflito, há possibilidade de utilização de mecanismos de negociação e barganhas, que são institucionalizados. Se mesmo assim o indivíduo entender que determinada regra é injusta, pode recorrer ao julgamento por seus pares,[13] evidenciada essa possibilidade pelo modelo de julgamento nos tribunais estadunidenses.

Nesse tipo de sociedade, portanto, ao menos formalmente, os indivíduos são vistos como iguais e a escala social é diferenciada de acordo com mérito e condições pessoais e sociais. Entendem que os recursos estão disponíveis a todos e aqueles que ascendem socialmente conseguiram essa façanha por terem feito as escolhas mais acertadas em sua trajetória.

O Estado, segundo esse modelo, por ser visto como construído a partir da negociação entre indivíduos e executor dessas mesmas negociações. Os resistentes a essa ordem quista formalmente por todos são vistos de duas formas: ou não querem obedecer às regras daquele grupo e devem ser colocados à sua margem[14] ou não obtiveram direito à participação na vida pública.[15]

Isso também se reflete no sistema judiciário estadunidense, pois, embora enfrente críticas quanto à injustiça com partes mais fracas, a verdade processual[16] é entendida como construída negocialmente e o surgimento de conflitos é “fonte de ordem quando devidamente solucionados”.[17] Por esse motivo, existem mecanismos que apontam essa tendência, como o plea bargain e a possibilidade de a promotoria escolher abstratamente os casos que investigará.

Já no modelo brasileiro há diferenças quanto à organização do espaço público. A noção do termo “público” aqui se relaciona ao espaço apropriado pelo Estado,[18] e não à sociedade como um todo, ao coletivo de indivíduos. Por isso, embora as regras sejam gerais, não se aplicam da mesma forma para todos. Como o Estado é visto como estrutura descolada da sociedade na qual se insere e como é o encarregado de aplicar as regras, nesse modelo tal aplicação considera os papéis diferentes de cada indivíduo ou de cada grupo para manter a ordem. O conflito, sob essa ótica, deve ser sufocado em vez de negociado, uma vez que todos são desiguais e as relações sociais se baseiam nessa desigualdade.

Portanto, as regras são dotadas de imprevisibilidade: sua interpretação depende do papel ocupado pelo indivíduo ou pelo grupo que adota certo comportamento.

Ademais, a ascensão social é dificultada, porque as diferenças são estruturantes da sociedade e, se houvesse grande margem de mobilidade social, a complementaridade estaria comprometida.

Essa característica também está presente no sistema judiciário pátrio. Embora tenha cedido espaço a mecanismos negociais há vinte anos com o surgimento dos juizados especiais,[19] tenham a Constituição e o movimento constitucionalista estabelecido hierarquia de princípios que se ligam a sociedades negociais, como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência, na prática não se quer construir o conflito e harmonizar diferenças naturais de entendimento e de comportamentos dentro da sociedade, mas evitá-los e puni-los.[20]

Nos dois tipos de sociedade, a polícia tem como papel garantir a aplicação de regras de utilização do espaço público.[21]

Em sociedades negociais, a polícia serve para reforçar as regras criadas pelo coletivo – ao menos formalmente – e não pelo Estado, identificar potenciais conflitos e utilizar-se de mecanismos para negociar o uso desse espaço. Pode manter a ordem ou contribuir para que grupos insistentes em questionar as regras possam legitimamente adquirir cidadania e compor harmonicamente uma nova ordem social.

Todavia, em sociedades em que o Estado se apropria do espaço público, essa apropriação é excludente: não há espaço para todos. Isso gera um risco de conflito iminente por fragilizar a estrutura social. Ao mesmo tempo em que não há espaço para todos, os segmentos sociais dependem uns dos outros simbioticamente e qualquer sinal de conflito deve ser extinto a fim de impossibilitar a ruptura da ordem social existente. A polícia aqui teria o papel de identificar os conflitos não para reforçar a ordem escolhida formalmente por todos e dar margem para que os dissidentes tenham voz e negociem suas pautas, mas para forçosamente conciliar interesses divergentes e, num último grau, sufocá-los.

A legitimidade de tal ação viria da interpretação do que quer o Estado para aquela sociedade, e não do que esta constrói coletivamente. Como os indivíduos e os grupos são distintos, só são capazes de fornecer “visões parciais e particularizadas de si mesma”.[22] A polícia interpretaria não apenas os fatos, mas os papéis de cada um dentro dessa ordem social para aplicar desigualmente regras pensadas para tratar desiguais.

O Estado e a polícia veem-se como partes destacadas da sociedade que entendem ter o papel de reprimir e manter o status quo. Fazem-no, entretanto, disfarçadamente, porque ao mesmo tempo em que formalmente tratam a todos como iguais, no cotidiano os tratam de acordo com o segmento social ao qual pertencem.[23]

Como a mudança para uma diretriz mais democrática e igualitária é apenas formal, a polícia continua a agir sob os moldes de uma ideologia autoritária, sustentada historicamente pela elite brasileira desde a formação do nosso Estado-nação: usa a violência para reprimir as camadas mais baixas da pirâmide social que sustenta a ordem social.[24]

Historicamente, vê-se que a formação da polícia brasileira sempre esteve atrelada à elite e serviu para conter levantes populares[25] e indesejáveis sob a lógica da organização do trabalho:[26] aqueles excluídos socialmente, os pobres e os revoltosos eram vistos como inimigos e seus interesses deveriam ser suplantados.

Como exemplo, aponta-se a origem da polícia militar paulista. Essa instituição acredita ter sido fundada a partir do Corpo de Guardas Municipais Voluntárias de 1831, sucedido pelo Corpo de Municipais Permanentes, pela Guarda de Polícia, Força Policial e Força Pública.[27]

Essas forças foram encarregadas de prender escravos fugidos e sufocar levantes e greves que iam de encontro aos interesses da aristocracia paulista. Tais feitos compõem as estrelas do brasão da Polícia Militar:

“[C]riação do Corpo de Guardas Municipais, chamada de Milícia Bandeirante (1831); a segunda celebra a participação na repressão à revolução Farroupilha, no Sul (1838); a terceira, os Campos dos Palmas (1839), trata do desbravamento e colonização do caminho para o Iguaçu, combatendo ‘índios hostis’; a quarta, a repressão da Revolução Liberal de Sorocaba (1842); a quinta, a Guerra do Paraguai (1865 a 1870); a sexta, décima sexta, a repressão da Revolução Federalista e da Revolta da Armada (1893); a sétima, a intervenção nos conflitos com imigrantes italianos na Questão dos Protocolos (1896); a oitava, a repressão a Canudos (1897); a nona, a repressão à Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido (1910); a décima, a repressão à Greve Operária (1917); a décima primeira, a repressão às revoltas tenentistas desencadeadas pela rebelião do Forte de Copacabana (1922); a décima segunda, a defesa do governo na Revolução de São Paulo (1924); a décima terceira, a perseguição à Coluna Prestes-Miguel Costa, chamada de ‘Campanhas do Nordeste e de Goiás’ (1926); a décima quarta, a luta contra a Revolução Outubrista de Getúlio Vargas (1930); a décima quinta, a Revolução Constitucionalista (1932); ‘movimentos extremistas’ (1935-37); a décima sétima, a Segunda Guerra Mundial (1942-45); e, finalmente, a décima oitava: o apoio à ‘Revolução de Março’ (1964)”.[28]

Também a polícia se preocupava em ditar o comportamento para a população paulista, coibindo prática de jogos em bares, banhos no rio Tamanduateí e não permitindo que crianças brincassem nas ruas, a fim de tornar essa população mais “civilizada”.[29]

Atualmente, de acordo com Regina Célia Pedroso, uma das artimanhas empregadas para dissimular a manutenção da ordem vigente seria investir num discurso não de prevenção de crimes, mas de amedrontamento da população por meio do combate armado entre “marginais” e policiais.[30]

Adriano Oliveira, em seu relato sobre a experiência em sala de aula com policiais militares, apontou que:

“Muitos militares argumentaram que os segmentos médio e alto da sociedade não querem uma ‘polícia autônoma’, mas sim uma polícia que só atue coercitivamente entre os segmentos de menor renda. Afirmaram, ainda, que muitos moradores de bairros considerados abastados não aceitam ser revistados pela ação policial”.[31]

Nesse sentido, Maria Tereza Nobre e Frederico Leão Pinheiro afirmam:

“(...) A imagem da polícia, para as elites, é a de que essa instituição e as Forças Armadas representam o ‘braço armado do Estado’, e como um de seus aparelhos, deve manter a ordem social e conter manifestações que poderiam ameaçá-la. Essa atribuição pode ser revista, uma vez que as situações que envolvem esses confrontos representam, na maioria das vezes, apenas o descontentamento popular, ou a reivindicação de direitos, ou simplesmente a expressão da vontade popular acerca de algum problema que atinge a sociedade, não ameaçando a ordem social, nem cabendo aí nenhum tipo de repressão”.[32]

Pode-se depreender que, mesmo num contexto formalmente democrático, a polícia ainda obedece aos setores mais altos da sociedade e age sobre os segmentos mais pobres.

2. Tratamento das polícias nas Constituições até 1988

Para compreender um dos prováveis reflexos da organização social, deve-se passar pela análise normativa quanto ao tema estudado, o que será feito a partir de então.

Embora guardas municipais nos moldes do entendido atualmente como polícia militar tenham existido desde o Império[33] – mesmo que na forma de guardas encarregadas de proteger interesses das lideranças locais, a exemplo da polícia paulista estudada supra – e seu papel tenha sido mais influente politicamente que o do Exército mesmo durante a República Velha,[34] por terem equipamentos e um contingente maior e melhor que os da União, a disciplina constitucional sobre o tema surgiu apenas em 1934.[35]

Não significa, porém, que a União não tivesse tratado da matéria. Havia interesse em normatizar tais polícias, por estas serem um óbice ao crescimento do Exército e da Marinha.[36] Diversos foram os decretos da União nesse sentido.[37]

A Constituição de 1934, visando a minimizar o poderio das polícias estaduais, braço armado das elites estaduais, e fortalecer o poder central, disciplinou as funções daquelas e das Forças Armadas, colocando as polícias militares definitivamente como reserva do Exército e de competência privativa da União:

“Art. 5.º Compete privativamente à União: 

(...)

XIX – legislar sobre:

l) organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados e condições gerais da sua utilização em caso de mobilização ou de guerra;

(...)

Art. 167. As polícias militares são consideradas reservas do Exército, e gozarão das mesmas vantagens a este atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União”.[38]

O status de força reserva continuou presente na Constituição de 1937:

“Art. 16. Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias:

(...)

XXVI – organização, instrução, justiça e garantia das forças policiais dos Estados e sua utilização como reserva do Exército”.[39]

A Constituição de 1946, mesmo dentro de um curto intervalo democrático, também estabeleceu ser a polícia reserva do Exército:

“Art. 5.º Compete à União:

(...)

XV – legislar sobre:

(...)

f) organização, instrução, justiça e garantias das polícias militares e condições gerais da sua utilização pelo Governo federal nos casos de mobilização ou de guerra;

(...)

Art. 183. As polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército.

Parágrafo único. Quando mobilizado a serviço da União em tempo de guerra externa ou civil, o seu pessoal gozará das mesmas vantagens atribuídas ao pessoal do Exército”.[40]

Até então, todas as Constituições brasileiras do século XX colocaram as polícias militares como forças reservas do Exército, convocáveis em casos extremos de defesa nacional, como guerras. Com a ditadura instaurada em 1964, contudo, a ligação se torna mais forte, havendo a incorporação dos Corpos de Bombeiros, anteriormente civis, às Polícias Militares e estabelecendo a divisão entre Polícia Militar e Polícia Civil. Esta ficaria encarregada do trabalho investigativo e mais burocrático, enquanto aquela, da atividade ostensiva. Tal modelo de segurança pública, a Grande Reforma Policial, foi consolidado para acabar com o pluralismo policial existente.[41]

Esse movimento deu maior força à ingerência do Exército na segurança pública, porque as polícias passaram a serem consideradas não apenas forças de reserva, como auxiliares, ou seja, com controle e coordenação submetidos ao Exército, enquanto as Secretarias de Segurança Pública teriam a atribuição de orientá-las e planejá-las.[42]

A reforma foi posta pela Constituição de 1967 e pelo Dec.-lei 317, do mesmo ano.

Nota-se com a leitura do referido decreto-lei que, além de definir as atividades da polícia militar, também determina que o comando delas seja feito por oficial do Exército:

“Art. 5.º O Comando das Polícias Militares será exercido por oficial superior combatente, do serviço ativo do Exército, preferentemente do pôsto de Tenente-Coronel ou Coronel, proposto ao Ministro da Guerra pelos Governadores de Estado e de Territórios ou pelo Prefeito do Distrito Federal. 

§ 1.º O provimento do cargo de Comandante será feito por ato dos Governadores dos Estados, Territórios ou pelo Prefeito do Distrito Federal, após ser designado por decreto do Poder Executivo Federal, o oficial que ficará à disposição dos referidos Govêrno e Prefeito para êsse fim. 

§ 2.º O oficial do Exército, nomeado para o Cargo de Comandante da Polícia Militar, será comissionado do mais alto pôsto da Corporação, se sua patente fôr inferior a êsse pôsto. 

§ 3.º O oficial da ativa do Exército, nomeado para o Comando da Polícia Militar, na forma dêste artigo, e considerado em ‘função militar’, para fins de satisfação de requisitos legais exigidos para promoção como se estivesse no exercício de cargo de Comandante de Corpo de Tropa do Exército. 

§ 4.º Em caráter excepcional, ouvida a Inspetoria-Geral das Polícias Militares, o cargo de Comandante poderá ser exercido por oficial da ativa, do último pôsto, da própria Corporação. 

§ 5.º O oficial nomeado nos têrmos do parágrafo anterior, comissionado ou não, terá precedência hierárquica sôbre os oficiais de igual pôsto da corporação. 

Art. 6.º Oficiais do serviço ativo do Exército poderão servir no Estado-Maior ou como instrutores das Polícias Militares, obedecidas para a designação as mesmas prescrições do artigo anterior, salvo quanto ao pôsto.serviço policial e as necessidades de cada Unidade da Federação.[43]  

A Constituição de 1967 e a EC 1/1969 trazem o seguinte texto sobre polícias:

“Art. 8.º Compete à União:

(...)

XVII – legislar sôbre:

(...)

v) organização, efetivos, instrução, justiça e garantias das polícias militares e condições gerais de sua convocação, inclusive mobilização.

(...)

Art. 13. Os Estados se organizam e se regem pelas Constituições e pelas leis que adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos nesta Constituição, os seguintes:

(...)

§ 4.º As polícias militares, instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares reserva do Exército, não podendo os respectivos integrantes perceber retribuição superior à fixada para o correspondente posto ou graduação do Exército, absorvidas por ocasião dos futuros aumentos, as diferenças a mais, acaso existentes”.[44]

Com o final da ditadura e expectativa de superar os horrores nela concretizados, como as graves violações aos direitos humanos, esperava-se que uma nova Constituição pudesse melhor garantir direitos fundamentais e superar desigualdades perpetradas no regime anterior.

Por tal motivo, trouxe a Constituição de 1988, que consagrou o país como um Estado Democrático de Direito, como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e como objetivo redução material de desigualdades logo em seu início.[45] Também abarcou o conhecido rol de direitos e garantias fundamentais em seguida.[46]

O modelo democrático foi escolhido haja vista suas características de cooperação entre os indivíduos e melhor resolução de conflitos e interesses sociais.

Explica Jorge Zaverucha que a democracia contribui para o implemento e para a melhoria de direitos humanos não apenas pelo aspecto descrito supra, como também por excepcionalmente usar a força contra os que descumprem as normas, por afastar eventuais governantes que possam abusar de seu poder, por tornar públicos potenciais abusos contra direitos humanos e pela capacidade de exigir controle do monopólio estatal da força.[47]

Todos esses aspectos foram eleitos para suplantar o legado do regime autoritário. Entretanto, no que diz respeito às polícias, o art. 144 da CF dita cidadã manteve a organização anterior:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

(...)

§ 6.º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.[48]

Portanto, mesmo com esforços para consolidar a democracia no país, que passa pelo tratamento igualitário entre indivíduos pelo Estado e por toda a sociedade, uma estrutura montada para centralizar o comando da segurança pública numa instituição fundada para garantir a defesa nacional e que objetiva o combate a um inimigo perdurou.

3. Propostas para ajustamento da polícia ao Estado Democrático de Direito: uso progressivo da força e desmilitarização

Tendo em vista a organização do espaço público brasileiro, marcado por desigualdades, autoritarismo e manutenção do status quo, haja vista a preocupação constitucional a partir de 1988 em romper com essas características e a continuidade do modelo de policiamento fortalecido pela ditadura, modificações na estrutura das polícias seriam necessárias?

Conforme dito supra, é possível dividir as respostas a este problema em dois grupos. Falemos primeiramente sobre a disciplina do uso progressivo (ou diferenciado) da força e o ensino de direitos humanos nas escolas de formação policial.

Para este grupo, bastaria que houvesse um melhor treinamento dos policiais para lidar com diferentes situações e para agir de acordo com o grau de risco à vida de eventuais vítimas, de terceiros e dos agentes envolvidos naquele contexto.

A força policial pode ser empregada por meio da simples presença de agentes em determinado local, pela verbalização com membros da sociedade para resolver problemas menos graves, pelo uso de técnicas de defesa pessoal e pelo uso de armas não letais e letais.[49]

Para reconhecer tais contextos e agir proporcionalmente a eles, Paulo Storani sugere que o treinamento policial seja pautado por três aspectos: o conhecimento técnico, o conhecimento tático e o controle emocional.

O conhecimento técnico está ligado ao conhecimento sobre o uso das ferramentas disponíveis para o policial e seu correto manuseio; o conhecimento tático diz respeito à escolha mais adequada para o evento e ao saber agir em equipe – seu papel dentro de uma ação em conjunto; e o controle emocional é “estar em condições emocionais de decidir com qualidade”,[50] que dependeria de treinamento para lidar com situações de estresse.

Apenas por meio deles o agente controlaria o estresse que uma situação potencialmente de risco pode gerar e faria um julgamento melhor para saber se deve agir e como agir para evitar o máximo de dano a ele, a seus colegas, a potencial agressor, a eventuais vítimas e a terceiros.

Para que os três aspectos sejam efetivados, propõe a adoção de diretivas objetivas para a ação: a identificação real do agressor; o estudo do cenário para saber se deve ou não agir; se há anteparos para proteger o policial e a resposta proporcional ao risco.[51]

Como todos os aspectos pontuados dependem de treinamento, acompanhamento psicológico rotineiro e melhorias nas condições de trabalho dos agentes para efetivar as diretivas propostas, pode-se depreender que, para o autor, bastaria a melhoria da estrutura de trabalho dos policiais que haveria menos erros na atuação dos agentes.

Fábio Manhães Xavier sugere uma medida ligada à necessidade de treinamento: esclarecer as diretrizes normativas para que o policial aja com mais segurança sobre o acerto de suas decisões na rotina de trabalho. Trata o autor dos diplomas da Organização das Nações Unidas correspondentes diretamente ao uso de arma de fogo, dos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Arma de Fogo e do Código de Condutas dos Encarregados de Aplicação da Lei.

Esclarece que seria mais correta a expressão “uso diferenciado da força”, pois a palavra “progressivo” faz crer que o uso da força deve sempre ser elevado do nível mais brando para o nível mais elevado em todas as situações, quando seria possível seu retrocesso caso o agressor colabore com o agente, por exemplo.[52]

Além disso, o uso de arma de fogo não estaria restrito à hipótese de disparo, uma vez que, em comparação com a versão em inglês, o substantivo “uso” também corresponderia ao ato de apontar a arma de fogo para dissuadir eventual agressor de perpetuar sua ação.[53]

Por último, que a força letal não pode ser usada na defesa do patrimônio[54] e que o adjetivo “letal” está ligado à arma e não à ação policial, uma vez que o agente não objetiva matar, mas conter a agressão.[55]

Carlos Afonso Gonçalves da Silva, por seu turno, sugere diversas medidas para que os policiais consigam se enxergar como parte da sociedade à qual pertencem e querem proteger, como ampliação da carga horária do ensino de direitos humanos nas escolas de formação, com aulas ministradas em parceria ou por convênio com instituições de ensino superior,[56] cursos de aperfeiçoamento para os professores desses cursos,[57] um controle externo mais rígido pelo Ministério Público[58] e garantias de direitos trabalhistas aos policiais.[59]

Todavia, tais propostas seriam suficientes dentro da estrutura militar para que houvesse uma polícia não somente repressiva, como preventiva?

Conforme Roberto Kant de Lima, a ethos militar[60] presente na polícia militar dificultaria a atuação junto à população, porque a hierarquização requer “obediência estrita e a negação de autonomia”.[61] A autonomia, segundo o antropólogo, é necessária para o policial mediar conflitos adequadamente e decidir como trabalhar, sem temer ordens superiores.

A hierarquia rígida militar faz sentido para cenários de guerra,[62] em que o contexto é emergencial e a ameaça deve ser combatida de maneira organizada.

O militarismo também condicionaria o policial a combater um inimigo e exterminá-lo e não administrar os conflitos sociais[63] com criatividade e reconhecendo-se como parte daquele meio que o circunda. Logo, não poderia o policial enxergar no cidadão que teria cometido alguma infração penal como um inimigo.[64]

Ademais, a formação policial se pauta em treinar mecanicamente os agentes, retirando-lhes a capacidade de pensar criticamente sobre questões sensíveis apresentadas em seu cotidiano, como problemas relacionados a crianças e a adolescentes, discriminações e política antidrogas.[65]

Por último, sugere que a hierarquização seja, no mínimo, menos elitizada que atualmente, em que há diferenciação entre oficiais e praças na polícia militar e delegados e policiais civis na polícia civil. Ou seja, que a hierarquia se baseie em critérios meritórios para exercício de cada função e afirma ser melhor que os cursos oferecidos aos policiais abranjam atividades práticas para melhor construção do saber aplicado em seu trabalho.[66]

Não apenas a hierarquização é alvo de crítica, como a ligação entre as polícias militares e as Forças Armadas. No entender de Luiz Augusto de Santana, por terem missões distintas, a saber, a “defesa da Pátria [e] a garantia dos poderes constitucionais” pelas Forças Armadas e garantia da segurança pública pela polícia, não haveria razão em manter esta como força auxiliar daquela. A hierarquização apenas serviria para subordinar melhor as polícias militares às Forças Armadas.[67]

A militarização é vista como óbice à democracia também por Adriano Oliveira,[68] Nilo Batista,[69] e como empecilho para que os policiais sejam reconhecidos como parte da sociedade, que podem reivindicar por direitos trabalhistas, por Maria Teresa Nobre e Frederico Leão Pinheiro.[70]

Outro ponto desfavorável à militarização policial é que tal estrutura se distanciaria e seria “mais infensa aos governos civis”,[71] prejudicial à democracia, tendo em vista o histórico de instituição das polícias militares. Essa distância não seria apenas institucional, mas também física, pois os quartéis onde ficam os policiais militares são afastados da população que devem proteger.[72]

Outro ponto debatido e defendido pela desmilitarização seria a unificação das atividades investigativa e ostensiva – ou seja, polícia civil e polícia militar, respectivamente – numa única carreira, pois uma depende da outra: a experiência daqueles que patrulham ajuda a desenvolver atividades investigativas e os interessados na carreira policial poderiam ter a chance de exercer as duas funções. Financeiramente compensaria, ademais, manter uma única instituição. Sendo essa instituição una de caráter civil, estaria também de acordo com os modelos de polícia de outros países ditos democráticos.[73]

Conclusão

Se a organização do espaço social brasileiro, mesmo dentro de uma democracia, ainda pode ser vista como baseada em desigualdades e ainda sofre com o legado autoritário, a modificação da polícia ou meramente de sua atuação talvez não resolva essas mazelas. Uma polícia concebida por elites para suprimir o que lhes desinteressa, mesmo disseminando o uso progressivo (ou diferenciado) da força ou desmilitarizando-se, pode ainda manter um tratamento desigual entre indivíduos na sociedade. Sabido é que mudanças institucionais devem vir acompanhadas de modificações sociais para que não culminem em discursos comoventes, porém descolados da realidade que se destinam a refletir e a orientar.

No entanto, é possível concluir que seria um passo importante repensar a militarização, especialmente por ela ser um obstáculo à aproximação entre policiais e a sociedade. Não havendo treinamento voltado para o combate a um inimigo e uma rígida hierarquia que impossibilite a formação criativa pelo agente de soluções para os conflitos sociais, os policiais poderiam enxergar mais criticamente a realidade que os circunda e identificar-se com ela. O uso progressivo (ou diferenciado) da força não traria essa capacidade ao condicionar mecanicamente o policial a agir sem que desenvolva técnicas de negociação, de administração dos interesses sociais.

Ademais, se a militarização e o tratamento constitucional que traz as polícias militares como forças auxiliares do Exército fossem atinentes à democracia, não seriam consolidados num regime de exceção. A confusão entre segurança pública e defesa nacional na época foi conveniente no sentido de contribuir para a formação de um forte aparato de repressão contra os tidos inimigos do país.

Também é de difícil compreensão a existência de duas polícias, uma para realizar o trabalho ostensivo e outra para o investigativo, quando as duas atividades se complementam e coordenadas são melhores para desenvolver técnicas de resolução de conflitos.

Numa ordem democrática, a desmilitarização contribuiria, por fim, para que a polícia retornasse à sua função precípua, como relembra Jorge Zaverucha:[74] a proteção dos indivíduos.

Portanto, se houve uma escolha por um regime político em que a cooperação entre indivíduos é essencial e objetiva vencer desigualdades materiais, uma das necessidades é rever essa que é uma das instituições mais identificáveis com o poder estatal e assim contribuir para que autoritarismos sejam superados e interesses sociais normalmente suplantados tenham voz, tendo sua legitimidade reconhecida e obtendo efetivação.

Referências bibliográficas

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[1] Trabalho apresentado em janeiro de 2015 para obter aprovação no Grupo de Estudos Ciência Criminais e Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Turma de 2014.

[2] Como visto em Benvenuti, Patrícia. Campanha pede pela desmilitarização da polícia. Brasil de Fato, 03.02.2009. Disponível em: [http://www.brasildefato.com.br/node/2296]. Acesso em: 09.01.2015. A proposição de projetos a respeito no Congresso Nacional, sem levar em conta os debates acadêmicos e na sociedade civil, datam da década de 1990. Nela, por exemplo, o então deputado federal Hélio Bicudo propôs a desmilitarização e unificação das polícias, mas não foi adiante por, segundo ele, lobby da polícia militar.

[3] Conforme veiculado por vários portais de noticias, por exemplo: [http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.html]. Acesso em: 09.01.2015.

[4] Brasil. Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, vol. I, parte V, 2014, p. 971. Disponível em: [http://www.cnv.gov.br/images/relatorio_final/Relatorio_Final_CNV_Parte_5.pdf]. Acessado em: 09.01.2015.

Ao lado dessa recomendação, todavia, frisa-se outra constante do mesmo documento no sentido de aprimorar o ensino de direitos humanos nas escolas de formação militares e policiais e reformular o concurso de ingresso nas Forças Armadas e na área de segurança pública e avaliação contínua de seus agentes para valorizar o conhecimento acerca da democracia e dos direitos humanos (Brasil. Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade cit., p. 967).

[5] A seguir estão listados exemplo de autores nessa linha, ou seja, que propõem seja a inserção de disciplinas ligadas a direitos humanos nas escolas de formação de policiais militares, seja a defesa do uso progressivo ou, conforme sugestão de Fábio Manhães Xavier, uso diferenciado da força. Tal uso consiste em aplicação pelos agentes policiais de níveis distintos de força conforme a situação concreta apresentada a eles e pode ser dividida em cinco níveis: presença de policiais nas ruas; verbalização e comunicação policial; técnicas defensivas sem utilização de armas; uso de armas não letais e, por último, uso de armas letais, como sugerido pelo Instituto Sou da Paz (Regulações sobre o uso da força pelas polícias militares dos Estados de São Paulo e do Pernambuco. Pensando a segurança: Direitos Humanos, vol. 2, p. 249-250, Brasília, Distrito Federal, 2010).

Alguns desses autores são: Xavier, Fábio Manhães. A importância da formação na mudança de paradigmas do uso da força. In: Ministério da Justiça. Uso progressivo da força: dilemas e desafios. Cadernos Temáticos da Conseg: 1.ª Conferência Nacional de Segurança Pública, n. 5, p. 26-40, Brasília, Distrito Federal, 2009; Storani, Paulo. Uso comedido da força letal: construindo um protocolo de engajamento. Cadernos Temáticos da Conseg: 1.ª Conferência Nacional de Segurança Pública, n. 5, p. 47-58, Brasília, Distrito Federal, 2009; Silva, Carlos Afonso Gonçalves da. O ensino de direitos humanos na polícia civil de São Paulo: aspectos formacionais das academias de polícia, desafios e perspectivas. Tese de doutorado em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. São Paulo, 2007, p. 192-219.

[6] Exemplos de autores que defendem a mudança por entenderem ser a estrutura militar na polícia oposta a valores democráticos: Carneiro, Henrique. Corporação de São Paulo vê “glória” na repressão de movimentos populares. Revista Adusp, p. 81-87, out. 2012; Cintra Junior, Dyrceu Aguiar Dias. A desmilitarização das polícias militares. Juízes para Democracia, vol. 4, ano 12, p. 10, abr. 1998; Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial”: a formação policial em questão. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 41, ano 11, p. 241-256, São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2003; Santana, Luiz Augusto de. Ou a desmilitarização das polícias militares, ou a limitação do direito penal militar aplicado a seus integrantes. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, n. 34, p. 227-234, 2002; Viana, Túlio. Desmilitarizar e unificar a polícia: a polícia militar brasileira é um modelo anacrônico de segurança pública, que favorece abordagens policias violentas, com desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Disponível em: [http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/01/desmilitarizar-e-unificar-a-policia/]. Acesso em: 09.01.2015; Zaverucha, Jorge. Polícia, democracia, estado de direito e direitos humanos. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 3, p. 37-54, jan.-jun. 2004.

[7] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial” cit., p. 244.

[8] Também nesse sentido: Pedroso, Regina Célia. Estado autoritário e ideologia policial.São Paulo: Associação Editorial Humanitas; Fapesp, 2005. p. 40.

[9] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial” cit., p. 245.

[10] Idem, p. 247.

[11] Idem, p. 245.

[12] Idem, ibidem.

[13] Idem, p. 246.

[14] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial” cit., p. 248.

[15] Idem, p. 246.

[16] Kant de Lima, Roberto. Polícia e exclusão na cultura judiciária. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, n. 1, vol. 9, p. 173, maio 1997. Aqui o autor utiliza a expressão verdade pública, que se liga ao chamado por ele de sistema de verdade ou regime de verdade,forma de administração do conflito social por meio da prestação judiciária.

[17] Kant de Lima, Roberto. Polícia e exclusão na cultura judiciária cit., p. 170-171.

[18] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial” cit., p. 246.

[19] Brasil. Lei 9.009/1995. Brasília, DOU 27.09.1995.

[20] Mais detalhadamente esse aspecto: Kant de Lima, Roberto. Polícia e exclusão na cultura judiciária cit., p. 175.

[21] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial” cit., p. 247.

[22] Idem, p. 249.

[23] Idem, p. 250: “A ênfase interpretativa do sistema, que sobrepõe a pirâmide implícita no ethos judiciário ao paralelepípedo constitucional, é institucionalmente reforçada, com a valorização da imparcialidade associada à distância dos fatos, para melhor escolher qual princípio se aplica a qual caso”.

[24] Conforme entendimento de Regina Célia Pedroso: “A utilização da violência se faz adequada, visto que a ideologia autoritária privilegia a manutenção da desigualdade entre os homens, a partir da qual a ordem ocupa o lugar de destaque: crença cega na autoridade e, por outro lado, o desprezo pelos inferiores, ‘débeis’ e que são socialmente aceitáveis como vítimas”. Também: “as rupturas políticas em nossa história praticamente inexistem no nível das relações sociais e pessoais. Ao assumirem o poder, novos governos praticam velhas políticas públicas e se preocupam em edificar um imaginário popular calcado na ‘nova ordem’ vigente” (Estado autoritário e ideologia policial cit., p. 48-49).

[25] Carneiro, Henrique. Corporação de São Paulo vê “glória” na repressão de movimentos populares cit., p. 82.

[26] Pedroso, Regina Célia. Estado autoritário e ideologia policial cit.,p. 51-52.

[27] Carneiro, Henrique. Corporação de São Paulo vê “glória” na repressão de movimentos populares cit., p. 81.

[28] Carneiro, Henrique. Corporação de São Paulo vê “glória” na repressão de movimentos populares cit., p. 82-83.

[29] Idem, p. 85.

[30] Pedroso, Regina Célia. Estado autoritário e ideologia policial cit.,p. 49.

[31] Oliveira, Adriano. Um estudo etnográfico da instituição da polícia militar. In: Costa Neves, Paulo Sérgio da; Rique, Célia D. G.; Freitas, Fábio (org.). Polícia e democracia: desafios à educação em direitos humanos. Recife: Ed. Bagaço, 2002. p. 199.

[32] Nobre, Maria Teresa; Leão Pinheiro, Frederico. Superando a dicotomia sociedade x polícia militar: relato de uma experiência. In: Costa Neves, Paulo Sérgio da; Rique, Célia D. G.; Freitas, Fábio (org.). Polícia e democracia: desafios à educação em direitos humanos. Recife: Ed. Bagaço, 2002. p. 189.

[33] Raphael, Joel Cordeiro. A constitucionalização da segurança pública: a interseção entre a segurança pública e a defesa nacional. Tese de Conclusão de Curso em Direito. Universidade de Brasília. Brasília-DF, 2014, p. 21-22.

[34] Idem, p. 25.

[35">. Leal, Ana Beatriz; Pereira, Oswaldo Munteal Filho. Sonho de uma polícia cidadã: Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Rio de Janeiro: NIBRAHC, 2010. p. 137. Aqui surge pela primeira vez a disciplina sobre as polícias militares.

[36] Raphael, Joel Cordeiro. A constitucionalização da segurança pública cit., p. 25.

[37] Conforme Ana Beatriz Leal e Oswaldo Munteal Filho, alguns exemplos são: “2.2. O Decreto 11.497, de 23.02.1915, estabelecia que as polícias estaduais seriam organizadas de forma similar ao Exército e a ele se incorporariam em caso de mobilização ou por ocasião de grandes manobras. É uma lei federal regulando a convocação de forças estaduais.

2.3. O Decreto 3.216, de 03.01.1917, instituiu a Força Policial e o Corpo de Bombeiros da Capital como forças auxiliares do Exército Nacional para fins de isenção das exigências do sorteio militar, considerando-as, também, forças permanentemente organizadas que poderiam ser incorporadas ao Exército Nacional em caso de mobilização deste ou para treinamento nas manobras atuais.

2.4. O Decreto 12.790, de 02.01.1918, estabeleceu definitivamente a situação de forças auxiliares do Exército às Polícias Militares. Vê-se que até então a legislação federal está preocupada com o emprego das PMs, quando mobilizadas e incorporadas ao Exército. Não está tratando, ainda, dos aspectos relativos à função policial. Era a época das PMs aquarteladas como se fossem organizações militares do Exército e a ênfase do seu adestramento puramente castrense.

2.5. Em julho de 1933, o Aviso 102 do Ministério do Exército estabeleceu os parâmetros para a organização, a instrução, o armamento, a incorporação, os efetivos, os direitos, os deveres e outros assuntos das PMs. Era um esboço do atual R.200. Ainda não estabelecia regras sobre a atividade policial, mas reconhecia a sua existência ao fazer distinção entre efetivos de paz e efetivos de mobilização” (Sonho de uma polícia cidadã cit., p. 137).

[38] Brasil. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.

[39] Brasil. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, DOU 10.11.1937.

[40] Brasil. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, DOU 18.09.1946.

[41] Raphael, Joel Cordeiro. A constitucionalização da segurança pública cit., p. 30.

[42] Soares, Luiz Eduardo. Arquitetura da institucional da segurança pública no Brasil: três propostas de reforma constitucional. Disponível em: [http://www.luizeduardosoares.com/?p=997]. Acesso em: 09.01.2015: “(3.1) Segundo a Constituição, as polícias militares são forças auxiliares e reserva do Exército (art. 144, parágrafo 6.º) e sua identidade tem expressão institucional por intermédio do Decreto n. 88.777, de 30 de setembro de 1983, do Decreto-Lei n. 667, de 02 de julho de 1969, modificado pelo Decreto-Lei n. 1.406, de 24 de junho de 1975, e do Decreto-Lei n. 2.010, de 12 de janeiro de 1983[2]. Em resumo, isso significa o seguinte: o Exército é responsável pelo ‘controle e a coordenação’ das polícias militares, enquanto as secretarias de Segurança dos estados têm autoridade sobre sua ‘orientação e planejamento’. Em outras palavras, os comandantes gerais das PMs devem reportar-se a dois senhores. Indicá-los é prerrogativa do Exército (art. 1.º do Decreto-Lei 2.010, de 12 de janeiro de 1983, que modifica o art. 6.º do Decreto-Lei 667/69), ao qual se subordinam, pela mediação da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (que passou a integrar o Estado-Maior do Exército em 1969), as segundas seções (as PM2), dedicadas ao serviço de inteligência, assim como as decisões sobre estruturas organizacionais, efetivos, ensino e instrução, entre outras. As PMs obrigam-se a obedecer regulamentos disciplinares inspirados no regimento vigente no Exército (art. 18 do Decreto-Lei 667/69) e a seguir o regulamento de administração do Exército (art. 47 do Decreto 88.777/83), desde que este não colida com normas estaduais”.Embora se refira à Constituição de 1988, veremos que tal estrutura advém das Constituições de 1967 e de 1969, além de ser possível notar que leis infraconstitucionais anteriores à de 1988 também tratam do assunto.

[43] Brasil. Dec.-lei 317, de março de 1967. Brasília, DOU 14.03.1967.

[44] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DOU 24.01.1967 e EC 1. Brasília, DOU 30.10.1969.

[45] “Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

(...)

Art. 3.º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

[46] Vide arts. 5.º a 17 da CF, de 05.10.1988.

[47] Zaverucha, Jorge. Polícia, democracia, estado de direito e direitos humanoscit., p. 43.

[48] brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. DOU 05.10.1988.

[49] Vide nota 4.

[50] Storani, Paulo. Uso comedido da força letal cit., p. 49-50.

[51] Idem, p. 56.

[52] Xavier, Fábio Manhães. A importância da formação na mudança de paradigmas do uso da força cit., p. 27-30.

[53] Idem, p. 30-34.

[54] Idem, p. 36-37.

[55] Xavier, Fábio Manhães. A importância da formação na mudança de paradigmas do uso da força cit., p. 34-35.

[56] Silva, Carlos Afonso Gonçalves da. O ensino de direitos humanos na polícia civil de São Paulo cit., p. 200-202.

[57] Idem, p. 202-204.

[58] Idem, p. 207-212.

[59] Idem, p. 213-216.

[60] A identificação dos seus membros com a instituição à qual pertencem.

[61] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial” cit., p. 252.

[62] Idem, ibidem.

[63] Idem, ibidem.

[64] Nesse sentido: Cintra Junior, Dyrceu Aguiar Dias. A desmilitarização das polícias militares cit., p. 10: “O militar é treinado para abater inimigos em guerra, situação esta que se instala exatamente com a quebra do princípio democrático. O policial, ao contrário, não pode ver no cidadão que tenha cometido um crime ou abalado a segurança pública em situação determinada, um inimigo. (...)”;Dallari, Dalmo de Abreu. Desmilitarizar a polícia. Disponível em: [https://blogdodelegado.wordpress.com/policia/desmilitarizar-a-policia/]. Acesso em: 09.01.2015: “A função dos policiais é prestar serviços ao seu próprio povo e não enfrentar inimigos. (...)”; Viana, Túlio. Desmilitarizar e unificar a polícia cit.: “Diante das desmensuradas diferenças de funções existentes entre as Forças de Segurança e as Forças Armadas, é natural que seus membros recebam treinamento completamente diferente. Os integrantes das Forças Armadas são treinados para enfrentar um inimigo externo em casos de guerra. Nessas circunstâncias, tudo que se espera dos militares é que matem os inimigos e protejam o território nacional. Na guerra, os prisioneiros são uma exceção e a morte é a regra.

As polícias, por outro lado, só deveriam matar nos casos extremos de legítima defesa própria ou de terceiro. Seu treinamento não é para combater um inimigo, mas para neutralizar ações criminosas praticadas por cidadãos brasileiros (ou por estrangeiros que estejam por aqui), que deverão ser julgados por um poder próprio da República: o Judiciário. Em suma: enquanto os exércitos são treinados para matar o inimigo, polícias são treinadas para prender cidadãos. (...)”.

[65] Kant de Lima, Roberto. Direitos civis, estado de direito e “cultura policial”, p. 252.

[66] Idem, p. 254.

[67] Santana, Luiz Augusto de. Ou a desmilitarização das polícias militares, ou a limitação do direito penal militar aplicado a seus integrantes cit., p. 230.

[68] Oliveira, Adriano. Um estudo etnográfico da instituição da polícia militar cit., p. 203: “O modelo militar não é racional – racionalidade como a busca de um fim por meios que tenham maior probabilidade de concretizar a conquista do fim – nem democrático, e por isso, tem de ser reformulado, pois há anos, a eficácia e as ações desse modelo não vêm contribuindo para o combate à criminalidade e a concretização do Estado de Direito”.

[69] Batista, Nilo. Militarização das favelas é estado de sítio inconstitucional. Entrevista disponível em: [http://www.anovademocracia.com.br/no-84/3788-entrevista-nilo-batista-qmilitarizacao-de-favelas-e-estado-de-sitio-inconstitucionalq]. Acesso em: 09.01.2015: “O adestramento das forças armadas é feito para a guerra, que é um lugar de não direito. O do policial é feito para o direito, para a legalidade. Na organização militar, a obediência, a ordem, devem ser vinculantes. A legalidade não está em questão. Até porque você está em um ambiente de não legalidade. O policial tem o dever de checar a legalidade de uma ordem que lhe for atribuída. Coisa completamente diferente no âmbito militar. E essa aproximação entre o poder punitivo e suas agências e o poder militar é muito ruim para a democracia. Se você olhar para o século XX, que foi um século com muitos genocídios, perto de cada genocídio você vai encontrar, ou forças policiais militarizadas, ou forças militares com funções policiais.(...)”.

[70] Nobre, Maria Teresa; Leão Pinheiro, Frederico. Superando a dicotomia sociedade x polícia militar cit., p. 190: “As discussões chegam a apontar algumas perspectivas de superação desse impasse, que passa pela necessidade de serem reconhecidos como cidadãos ‘comuns’ – embora tenham uma função específica –, com direito a se organizar e a reivindicar, como vimos acima, sendo a desmilitarização da polícia apontada como fundamental nesse processo”.

[71] Cintra Junior, Dyrceu Aguiar Dias. A desmilitarização das polícias militares cit., p. 10. Também aponta essa característica: Muniz, Jacqueline. Reform of the military police: the military model and its effects. Report on Human Rights Workshop – Police reform in Brazil: diagnoses and policy proposals. Centre of Brazilian Studies, Oxford, 11.05.2002. Disponível em: [http://www.nevusp.org/downloads/down107.pdf]. Acesso em: 09.01.2015: “In effect the police have become a law unto themselves, unaccountable to democratic authorities, and autonomous of both state and society. (...)”.

[72] Dallari, Dalmo de Abreu. Desmilitarizar a polícia cit.: “Já o fato de estar instalada em quartéis e ser, por isso, de difícil acesso, afasta essas polícias do povo. A par disso, a graduação militar de seus membros e o uso de fardamento militar, em lugar de um uniforme civil, lembram muito mais um exército do que uma polícia, sendo também um fator de distanciamento”.

[73] Viana, Túlio. Desmilitarizar e unificar a polícia cit.; Muniz, Jacqueline. Reform of the military police cit.: “In addition, the two state-level police forces (military police and civil, investigatory police) have entire separate structures even though they have an identical territorial remit. This has resulted in a dual and semi-centralized system, in which police work is divided very inefficiently between the two forces”.

[74] Zaverucha, Jorge. Polícia, democracia, estado de direito e direitos humanos cit., p. 45.

Gabriela Sutti Ferreira

Graduada pela Faculdade de Direito da USP.

Advogada

Infância
A regra de tratamento de inocência antes do trânsito em julgado de sentença condenatória na seara da infância e juventude e a execução provisória da medida socioeducativa
Data: 24/11/2020
Autores: Giancarlo Silkunas Vay

Resumo: O presente artigo traz o estado da arte na Jurisprudência acerca da execução provisória das medidas socioeducativas no âmbito dos processos socioeducativos, bem como, em seguida, busca refutar os argumentos centrais para tal proceder, apontando sua incompatibilidade para com o sistema de garantias dos adolescentes, sobre quem recai a regra de tratamento de inocência até o advento de sentença condenatória transitada em julgado.

Palavras-chave: Adolescente; infracional; processo socioeducativo; execução antecipada; medida socioeducativa.

Abstract: This paper presents the state of the art in criminal law precedents regarding the provisional execution of educational measures in the context of socio-educational procedures. Then, it seeks to refute the central arguments for such a course, pointing to its incompatibility in relation to the system of guarantees granted to teenagers, which includes the presumption of innocence principle, until the advent of a conviction has become final.

Key words: Teenagers, violations, socio-educational procedures, anticipated execution socio-educational measures.

Sumário: 1. Da problemática – 2. Da crítica à jurisprudência dominante: 2.1 Da inexistência de previsão legal para conferir tratamento diferenciado à apelação em processo socioeducativo; 2.2 Do argumento de que o superior interesse do adolescente e a sua proteção integral justificariam o cumprimento imediato da medida socioeducativa; 2.3 Do argumento de que o princípio da intervenção precoce na vida dos adolescentes justificaria o cumprimento imediato da medida socioeducativa; 2.4 Do argumento de que a efetividade da sentença socioeducativa para a ressocialização dos adolescentes justificaria o cumprimento imediato da medida socioeducativa; 2.5 Do argumento de que a aplicação de medida socioeducativa em adolescente internado provisoriamente seria uma confirmação dos efeitos da antecipação de tutela, possibilitando-se, assim o cumprimento imediato da medida; 2.6 Do argumento de que a previsão do art. 215 do ECA que assim dispõe: “O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte” afastaria a aplicação automática do efeito suspensivo – 3. Conclusão – 4. Referências bibliográficas.

“O processo infracional, assim, parafraseando Dworkin, precisa ser levado a sério. O problema fundamental reside no fato de que a justificativa para a exceção encontra-se encoberta ideologicamente. Acredita-se, muito de boa-fé, a maioria, que se está realizando um bem. Salvando um adolescente. Esqueceu-se de que para o uso do poder existem pelo menos dois limites: o processo e o ético” (Alexandre Morais da Rosa).

1. Da problemática

O TJSP possui entendimento consolidado de que a internação provisória, prevista no art. 108 do ECA, não seria medida cautelar, mas sim uma “antecipação dos efeitos da tutela”, sendo que, pegando emprestada a processualística do Código de Processo Civil, seria possível a execução provisória da medida socioeducativa aplicada em sentença, na forma do art. 520, VII, do CPC. [1]

Tal entendimento encontra eco em outros tribunais de justiça, [2] bem como respaldo no STJ, sendo que, inclusive, assim constou em seu Informativo 553, publicado no presente ano. [3]

Ocorre que, não entrando na celeuma da preponderância retributiva ou educativa da medida socioeducativa, (embora a lei do Sinase deixe claro que exista essa dupla finalidade, inclusive aquela por meio desta), o ordenamento jurídico proíbe a restrição da liberdade como regra, tratando-a como algo excepcional. Sendo assim, por qual razão a jurisprudência tem priorizado o aguardo do trânsito em julgado de sentença condenatória à internação em “execução provisória da sentença”, e não em liberdade por meio do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, inclusive em atenção ao direito constitucional de convivência familiar?

2. Da crítica à jurisprudência dominante

O Estatuto da Criança e do Adolescente trazia, originalmente, a seguinte redação no art. 198, VI:

“Art. 198. Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude fica adotado o sistema recursal do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, e suas alterações posteriores, com as seguintes adaptações:

(...) VI – a apelação será recebida em seu efeito devolutivo. Será também conferido efeito suspensivo quando interposta contra sentença que deferir a adoção por estrangeiro e, a juízo da autoridade judiciária, sempre que houver perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”.

Com o advento da Lei 12.010/2009, o referido inc. VI foi suprimido, razão pela qual a regra dos “efeitos da apelação” passou a ser, portanto, a disposição constante no art. 520 do CPC, tanto em razão do disposto no caput do art. 198 do ECA (citado supra) quanto em virtude do art. 152, caput, do ECA, que diz que “Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente”.

Nessa toada, passou a constar do art. 520 do CPC:

“Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que:

I – homologar a divisão ou a demarcação;

II – condenar à prestação de alimentos;

III – (Revogado pela Lei 11.232, de 2005)

IV – decidir o processo cautelar;

V – rejeitar liminarmente embargos à execução ou julgá-los improcedentes;

VI – julgar procedente o pedido de instituição de arbitragem;

VII – confirmar a antecipação dos efeitos da tutela”.

Assim sendo, revogada a disposição da lei especial (ECA) que trazia exceção à regra geral do CPC referente aos efeitos conferidos quando do recebimento da apelação nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, a interpretação esperada seria a de que, assim, as apelações relacionadas aos processos socioeducativos também fossem recebidas no duplo efeito, uma vez que a lei não aponta nenhuma especificidade em relação a esse âmbito.

Todavia, não foi o que ocorreu, entendendo a jurisprudência à época, de forma majoritária, muito embora em lugar algum estivesse presente texto legal que excepcionasse a aplicação da regra geral do CPC aos processos de apuração de ato infracional, que tal disposição não valeria para os processos socioeducativos, pois a Lei 12.010/2009 teria sido editada exclusivamente para questões atinentes à convivência familiar. Tal posicionamento se amparou, basicamente, no art. 1.º de tal Lei, que assim dispõe: “Esta Lei dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, na forma prevista pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente”.

Atento a tal cenário, o legislador, quando da elaboração da Lei 12.594/2012 (Sinase), propositalmente alterou o art. 198, caput, do ECA a fim de fazer constar, de maneira expressa, que o sistema recursal do CPC também se aplica aos processos socioeducativos:

“Art. 198. Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, inclusive os relativos à execução das medidas socioeducativas, adotar-se-á o sistema recursal da Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), com as seguintes adaptações”.

Assim, da carta de motivações do PL 1.627/2007, que deu origem à Lei 12.594/2012 (Sinase), constou: “6. O sistema em questão tem como finalidade precípua estabelecer conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que devem ser observados no processo de apuração de ato infracional, assim como quando da execução das medidas socioeducativas”. [4]

De toda sorte, ainda se verifica, rotineiramente, a utilização do argumento de que se justifica a não aplicação do efeito suspensivo: (i) o superior interesse dos adolescentes e a sua proteção integral; (ii) o princípio da intervenção precoce na vida do adolescente; (iii) a efetividade da sentença socioeducativa para a ressocialização dos adolescentes; (iv) a aplicação de medida socioeducativa em adolescente que no curso do processo foi internado provisoriamente seria uma confirmação dos efeitos da antecipação de tutela, ao que se justificaria excepcionar a regra do art. 520, caput, do CPC em razão do seu inc. VII; (v) a previsão do art. 215 do ECA que assim dispõe: “O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte”.

Analisemos os argumentos um a um.

2.1 Da inexistência de previsão legal para conferir tratamento diferenciado à apelação em processo socioeducativo

Antes de mais nada, aponta-se que não existe qualquer comando expresso que faça diferenciação entre uma sentença em processo socioeducativo e qualquer outra afeta à Justiça da infância e juventude. Assim sendo, em uma análise literal, não há qualquer razão para que o julgador confira tratamento diferenciado no momento de receber uma apelação de adolescente condenado em 1.ª instância por ato infracional, ou referente à destituição do poder familiar. Cabe ao julgador observar o art. 198, caput, do ECA, que remete ao art. 520 do CPC e, assim, receber a apelação nos efeitos devolutivo e suspensivo.

2.2 Do argumento de que o superior interesse do adolescente e a sua proteção integral justificariam o cumprimento imediato da medida socioeducativa

No que concerne ao argumento de que “o superior interesse do adolescente e a sua proteção integral” (art. 3.1 do CDC e art. 100, parágrafo único, II e IV, do ECA) justificariam o cumprimento imediato da medida, devemos ponderar que a doutrina da proteção integral não deve ser utilizada como um argumento falacioso para a perpetuação das práticas menoristas próprias da doutrina da situação irregular acolhida pelos Códigos de Menores de 1927 e 1979.

Conforme aponta Kathia Regina Martin-Chenut, Professora Doutora pela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne, a doutrina da proteção integral foi concebida no cenário internacional como proteção não da criança em si – o que poderia redundar no proposto pela doutrina anterior –, mas de seus direitos, visando sua integral efetivação: “A ideia de proteção continua existindo, mas a criança abandona o simples papel passivo para assumir um papel ativo e transformar-se num sujeito de direito”. [5] Trata-se, inclusive, do que determina o art. 100, parágrafo único, IV, do ECA quando define o que vem a ser o princípio do interesse superior da criança e do adolescente:

“Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

(...) IV – interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.

Isso porque o juiz não tem condições, nem nunca terá, para saber o que é melhor para o adolescente. O juiz não conhece o adolescente, não sabe o que ele passou até ter seu caso sob apreciação do Judiciário, na grande maioria das vezes não provém da mesma classe social e sequer chegou a frequentar o local em que ele mora. Muitas vezes nem sabemos o que é melhor para nós mesmos, então teríamos condições de saber o que seria melhor para um terceiro desconhecido? E nem se diga que relatos da equipe técnica do juízo ou da Fundação Casa trariam essa proficiência ao magistrado, pois, enquanto aquela conversa poucos minutos, em ambiente hostil, para descrever em laudas “a verdade” sobre o adolescente, os técnicos da Fundação tão somente descrevem o retrato de um determinado momento da vida do adolescente sob o filtro, obviamente, da subjetividade de quem o analisa.

Sendo assim, não cabe ao juiz se colocar como substituto paterno do adolescente, uma vez que é funcionário do Estado cuja missão é “[c]umprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício” (art. 35, I, da Loman), zelando pelos direitos positivados no ordenamento jurídico, e não, ainda que imbuído de boas intenções, como aquele que sabe o que é melhor para o adolescente e, portanto, aplica-lhe castigo correcional “para o seu próprio bem”.

Vale, aqui, a reflexão de dois expoentes na doutrina da infância e juventude. Para Emilio Garcia Méndez, Doutor e Professor da Universidade de Buenos Aires, ex-consultor do Unicef para a América Latina, “as piores atrocidades da infância se cometeram muito mais em nome do amor e da compaixão do que da própria repressão. No amor não há limites, na justiça sim. Por isso nada contra o amor quando ele mesmo se apresenta como um complemento da justiça. Porém, tudo contra o amor quando se apresenta como um substituto cínico ou ingênuo da justiça”. [6] Na mesma linha de raciocínio, o juiz Alexandre Morais da Rosa, Doutor pela Universidade Federal do Paraná e Professor na Universidade Federal de Santa Catarina dispõe que: “o enunciado da ‘bondade da escolha’ provoca arrepios em qualquer operador do direito que frequenta o foro e convive com as decisões. Afinal, com uma base de sustentação tão débil, é sintomático prevalecer a ‘bondade’ do órgão julgador. O problema é saber, simplesmente, qual é o seu critério, ou seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Uma nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos ‘justiceiros', sempre lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puro narcisismo; gente lutando contra seus próprios fantasmas. Nada garante, então, que a ‘sua bondade’ responde à exigência de legitimidade que deve influir do interesse da maioria. Neste momento, por elementar, é possível indagar, também aqui, dependendo da hipótese, ‘quem nos salva da bondade dos bons?’, na feliz conclusão, algures, de Agostinho Ramalho Marques Neto”. [7]

Dessa forma, imprestável o argumento de se utilizar a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse do adolescente justamente para privá-lo de liberdade “para o seu bem”. Como devido respeito, se medida socioeducativa realmente fosse para o bem de alguém, ela não seria aplicada como resposta à prática de ato infracional que lesiona bem jurídico alheio, mas, em verdade, haveria filas nas portas das unidades de internação e ações individuais pedindo vaga em tais locais (tal qual se faz para creche e escola), para que, inclusive, a elite brasileira conseguisse matricular seus filhos mais “revoltados” em tais locais.

Apresenta-se como mais cauteloso, em atenção à proteção integral dos direitos do adolescente, que se espere o julgamento definitivo do recurso para que, ao final, ocorrendo condenação transitada em julgado, seja responsabilizado pelo ato ilícito praticado.

2.3 Do argumento de que o princípio da intervenção precoce na vida dos adolescentes justificaria o cumprimento imediato da medida socioeducativa

A utilização do argumento de que “o princípio da intervenção precoce na vida dos adolescentes” (art. 100, parágrafo único, VI, do ECA) justificaria o cumprimento imediato da medida também não procede, uma vez que diz mais respeito à aplicação de medidas protetivas do que socioeducativas.

Quando da análise do referido princípio, o intérprete deve considerar o ordenamento jurídico como um todo. Assim, destaca-se, inicialmente, que a Constituição Federal traz:

“Art. 227. (...) § 3.º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: (...) V– obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”.

E a Convenção dos Direitos da Criança:

“Art. 37. Os Estados-Partes zelarão para que:

(...) b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado”.

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente ainda apresenta o “princípio da intervenção mínima” (art. 100, parágrafo único, VII, do ECA), havendo, ainda, outras normas do direito internacional de direitos humanos que negam a intervenção precoce no que concerne à restrição de liberdade do adolescente, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude (Regras de Beijing):

“17. Princípios norteadores da decisão judicial o das medidas: 17.1 A decisão da autoridade competente pautar-se-á pelos seguintes princípios:

(...) b) as restrições à liberdade pessoal do jovem serão impostas somente após estudo cuidadoso e se reduzirão ao mínimo possível”.

E as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade:

“1. Afirma que a reclusão de um jovem em um estabelecimento deve ser feita apenas em último caso e pelo menor espaço de tempo necessário”.

Todos limitadores do princípio da intervenção precoce no que tange à aplicação das medidas socioeducativas, ao que não deve tal princípio ser empregado para que se imponha aos adolescentes o cumprimento antecipado da medida socioeducativa.

2.4 Do argumento de que a efetividade da sentença socioeducativa para a ressocialização dos adolescentes justificaria o cumprimento imediato da medida socioeducativa

Quanto ao argumento de que “a efetividade da sentença socioeducativa para a ressocialização dos adolescentes” seria argumento bastante para o cumprimento imediato da medida, sugere-se que se analise a situação por outro viés: que consequências traria a efetivação da sentença socioeducativa antes do trânsito em julgado no caso de adolescente que, após julgamento de mérito de seu recurso de apelação, tiver comprovada a sua inocência?

Como reparar os efeitos deletérios do escanteamento de um adolescente que, justamente na idade em que começa a descobrir a liberdade, se vê lançado em uma instituição total em razão de algo que efetivamente não praticou? Como fazer voltar o mal realizado? Ou prefere-se o conveniente discurso de que a medida socioeducativa é um bem e que, caso aplicada a quem não merecia, ao menos algo de bom ele recebeu?

Não há maior sentimento de injustiça do que o de ser punido por aquilo que não se praticou e, quando essa punição vem do Estado, a simbologia que essa ação equivocada carrega é a de falência e descaso do sistema para com o seu povo, não sendo de se estranhar que, diante de uma injustiça institucionalizada, o adolescente – até então inocente – seja um dos mais interessados em se voltar contra o próprio sistema que o retirou de seu seio social e lhe introduziu o estigma de infrator.

Cabe aqui lembrar as lições deixadas por Ervin Goffman, [8] de que, quando da imposição do estigma de infrator (rotulação), o que se percebe, justamente, é que há uma tendência para que a pessoa passe a se comportar a partir das expectativas que os gestores da moral lhe impõem: aquilo que os outros veem no sujeito (identidade social virtual) passa a suplantar aquilo que ele realmente é (a sua identidade social real), tanto em razão dos novos enfrentamentos que tal pessoa passará em virtude do estigma, quanto em razão de uma assunção do papel social que lhe foi conferido pelos demais (Role engulfment), até mesmo como forma de defesa. Eis o que o autor chama de “profecia autorrealizável”.

No âmbito criminológico, esses conceitos coincidem com a ideia de institucionalização ou prisionização de Donald Clemmer, [9] que descreve como carreira criminal a sequência: (1) delinquência primária; (2) resposta ritualizada apresentada pelo Judiciário com a consequente estigmatização; (3) consequente distanciamento social e redução de oportunidades; (4) surgimento de uma subcultura delinquente com reflexo na autoimagem; (5) estigma decorrente da institucionalização; (6) delinquência secundária (reincidência).

Na esfera da infância e juventude esse cenário não é diferente, sendo especialmente agravado. Adolescentes que já sofreram uma responsabilização socioeducativa, ainda que em meio aberto, sofrem preconceito junto aos demais colegas de sala e até mesmo junto aos professores, não sendo incomum serem apelidados de os “LA” ou os “PSC”. Assim o sendo, que dirá daquele adolescente que efetivamente passar pela Fundação Casa?

Assim, em que pese a preocupação em ressocializar o adolescente autor de ato infracional, os custos da efetivação de uma sentença que aplique medida socioeducativa indevidamente em alguém que ainda poderá vir a ser considerado inocente são altos demais, muito mais deletérios do que uma intervenção tardia em quem de fato fosse merecedor. Eis a razão da regra de interpretação do in dubio pro reo: entre agir e correr o risco de prejudicar, e não agir e deixar de aplicar a medida, parece preferível a opção que resguarde a liberdade dos adolescentes. Cabe ao Estado, se não for possível ressocializar, ao menos tomar todos os cuidados para não atingir seu efeito contrário: a dessocialização.

Quanto à efetivação da sentença, isso não deixará de ocorrer, ao final, com o trânsito em julgado da decisão definitiva.

2.5 Do argumento de que a aplicação de medida socioeducativa em adolescente internado provisoriamente seria uma confirmação dos efeitos da antecipação de tutela, possibilitando-se, assim, o cumprimento imediato da medida

O argumento de que “a aplicação de medida socioeducativa em adolescente que no curso do processo foi internado provisoriamente seria uma confirmação dos efeitos da antecipação de tutela, ao que se justificaria excepcionar a regra do art. 520, caput, do CPC em razão do seu inciso VII”, também não se sustenta.

No processo de responsabilização socioeducativo há um paralelismo com o processo penal no que se refere à investigação da prática de ato tipificado por lei penal (seja ato infracional ou crime), o qual necessariamente precisa, para que seja aplicada a sanção correspondente (seja medida socioeducativa ou pena), que se verifique uma certa ritualística que confira grantias ao acusado contra a ingerência do poder punitivo institucionalizado. Trata-se da garantia do devido processo legal, com previsão constitucional e, portanto, aplicável para adolescentes e adultos:

“Art. 5.º (...) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Ademais, a Constituição também prevê regra de tratamento àquele que ainda não recebeu uma sentença penal condenatória: o de não ser considerado culpado:

“Art. 5.º (...) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Assim, quando a Constituição refere que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, se refere ela a ninguém, e não apenas aos adultos. O fato de constar no dispositivo “sentença penal” e não “infracional” é absolutamente circunstancial, uma vez que, materialmente, a sanção socioeducativa, tal qual a medida de segurança, é pena, apesar do tratamento diferenciado conferido quando da sua aplicação. Ainda, o termo “infracional” é introduzido no ordenamento jurídico pelo ECA em 1990, não tendo o Constituinte de 1988 a pretensão de excluir adolescentes de tal proteção.

Aliás, temos que a previsão insculpida no art. 228 da CF, da inimputabilidade daqueles que possuem menos de 18 anos, é uma garantia ao adolescente e não um fator que poderá agravar a sua situação. Não é por outra razão que diversos diplomas normativos fazem questão, apesar da desnecessidade, de expressamente prescrever que não se poderá dar tratamento mais gravoso a adolescente do que o que seria conferido se adulto fosse, seja penal ou processual.

Nesse diapasão, a Lei 12.594/2012 (Sinase):

“Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: I – legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto”.

E as Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad):

“54. Com o objetivo de impedir que se prossiga à estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo ato que não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito, nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem”.

Certo, ainda, que o Comitê de Direitos Humanos – órgão composto por especialistas em direitos humanos, independentes e autônomos, que produz importantes análises interpretativas das normas relacionadas ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, esclarecendo o seu alcance e significado – emitiu o Comentário Geral 13, a respeito da disposição constante no art. 14.4 do PIDCP (“No processo aplicável às pessoas jovens a lei penal terá em conta a sua idade e o interesse que apresenta a sua reabilitação”), que assim dispôs:

“16. (...) Juveniles are to enjoy at least the same guarantees and protection as are accorded to adults under article 14”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão máximo para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, a quem compete conferir a interpretação autêntica das normas de direitos humanos em âmbito regional, elaborou a Opinião Consultiva 17/02, na forma do art. 64.1 da CADH, que, dentre outros dispositivos, assim ponderou a respeito das garantias judiciais das crianças e adolescentes (arts. 8.º e 25 da CADH):

“111. En este sentido, la Directriz 56 de Riad garantice que ‘deberá promulgarse una legislación por la cual se garantice que todo acto que no se considera un delito, ni es sancionado cuando lo comete un adulto, tampoco deberá considerarse un delito ni ser objeto de sanción cuando es cometido por un joven’”.

Tendo constado do voto concorrente do juiz Sérgio García Ramírez que:

“25. (...) En suma, el niño será tratado en forma específica, según sus propias condiciones, y no carecerá – puesto que es sujeto de derecho, no apenas objeto de protección – de los derechos y las garantias inherentes al ser humano y a su condición específica”.

Nesse cenário, entende-se que, se o adulto não cumpre pena antecipada, mas tão somente ao final do processo que o responsabilize, transitado em julgado, também não pode o adolescente cumprir, sendo expressa a previsão, ademais, do princípio do estado de inocência ao adolescente em diplomas como a Convenção dos Direitos da Criança (“A criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo, direito às garantias seguintes: Presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida” – art. 40.2, b, I), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (“Qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida” – art. 14.2), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (“Supõem-se inocentes os jovens detidos sob detenção provisória ou em espera de julgamento (‘prisão preventiva’) e deverão ser tratados como tais” – art. 17, primeira parte) e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude – Regras de Beijing (“Respeitar-se-ão as garantias processuais básicas em todas as etapas do processo, como a presunção de inocência” – art. 7.1, primeira parte).

Assim, absolutamente descabida qualquer tentativa de associar o cumprimento da internação provisória com antecipação de pena. Aliás, diga-se o óbvio, a internação provisória é medida cautelar, aproximando-se da prisão preventiva dos adultos, devendo ser aplicada e durar tão somente nas hipóteses em que “demonstrada a necessidade imperiosa da medida” (art. 108 do ECA), sendo que, em aproximação com a cautelar empregada para os adultos, tal necessidade imperiosa se verifica do preenchimento dos requisitos dos arts. 313 e 312 do CPP, bem como de seu art. 319, sob pena de se conferir tratamento mais severo ao adolescente do que ao adulto.

Uma medida cautelar se presta a acautelar algo como, por exemplo, a prova a ser produzida. Nunca poderá ser utilizada para fazer que alguém cumpra pena antecipada. Isso é fazer da regra de tratamento do estado de inocência letra morta, é rasgar a Constituição e todos os diplomas normativos aqui citados à exaustão, é ressuscitar o espírito menorista dando-lhe apenas nova roupagem argumentativa. Como disse Alexandre Morais da Rosa, o processo infracional precisa ser levado a sério!

Sendo assim, tratando-se a internação provisória de medida cautelar, e não de antecipação do provimento final, não há como se dizer que a sentença condenatória de 1.º grau “confirma os efeitos da tutela antecipada”. Dizer isso seria o equivalente a dizer que a sentença de 1.º grau confirma a aplicação de pena antes do devido processo legal e em violação ao estado de inocência.

Temos que a escolha do ECA pela sistemática recursal do CPC, especificamente para atos infracionais, deve ceder em face da opção constitucional e convencional pelo estado de inocência, sendo absolutamente estranho, nessa seara, falar em “efeito suspensivo”. No bojo do processo que aplica pena restritiva de liberdade não há o que se suspender, simplesmente porque a sentença penal não é auto executável até o seu trânsito em julgado.

Utilizando-se terminologia própria do direito processual civil, não se pode executar provisoriamente sentença condenatória em processo socioeducativo, uma vez que se trata de título executivo inexigível, pois não completo o seu ciclo de formação que exige o trânsito em julgado para a defesa – conforme imposição constitucional e convencional –, o que, ao menos na esfera cível, talvez fosse facilmente detectável com uma exceção (objeção) de pré-executividade.

Ressalte-se que questão parecida se verificou há pouco tempo, no STF, quando da extirpação do ordenamento jurídico – ao menos para os adultos – da prisão automática como decorrência da sentença de 1.º grau, mesmo nos casos em que o acusado estiver recolhido preventivamente. [10]

Daí que, se o direito de recorrer em liberdade, afastando-se os famigerados arts. 594, 393 e 595 do CPP (revogados) e as disposições da Lei 8.038/1990 (civilista), é considerado para os adultos, com maior razão deve-se conceder ao adolescente que goza de prioridade absoluta.

Nesse mesmo sentido, recentemente o STF encampou os argumentos que ora se apresentam, permitindo que o adolescente respondesse até o término do processo em liberdade:

“Habeas corpus. Ato infracional. Roubo qualificado. Art. 157, § 2.º, II, do CP. Medida socioeducativa de internação. Insurgência contra sua imposição, sob o fundamento de que a sentença não indicou as razões pelas quais as medidas em meio aberto ou semiaberto não seriam adequadas à ressocialização do paciente. Questão não analisada pelo STJ. Apreciação per saltum. Impossibilidade. Supressão de instância configurada. Precedentes. Internação provisória. Revogação, no curso da instrução, pelo juízo de primeiro grau. Aplicação, na sentença, de medida socioeducativa de internação, com determinação de sua imediata execução, ‘independentemente da interposição de recurso’. Inadmissibilidade. Inexistência de motivação idônea. Internação que, antes do trânsito em julgado da sentença, não se desveste de sua natureza cautelar. Hipótese que traduz antecipação da tutela jurisdicional de mérito, incompatível com a presunção de inocência como ‘norma de tratamento’. Princípio que tem aplicação ao processo de apuração de ato infracional. Apelação, ademais, que deve ser recebida no seu efeito devolutivo e suspensivo, nos termos do art. 198 da Lei 8.069/1990 e do art. 520, caput, do CPC. Constrangimento ilegal manifesto. Superação, nesse ponto, do óbice processual representado pela Súmula 691 do STF. Conhecimento parcial da impetração. Ordem, nessa parte, concedida.

(...)

3. O princípio da presunção de inocência (art. 5.º, LVII, da CF), como norma de tratamento, veda a imposição de medidas cautelares automáticas ou obrigatórias, isto é, que decorram, por si sós, da existência de uma imputação e, por essa razão, importem em verdadeira antecipação de pena.

4. A presunção de inocência se aplica ao processo em que se apura a prática de ato infracional, uma vez que as medidas socioeducativas, ainda que primordialmente tenham natureza pedagógica e finalidade protetiva, podem importar na compressão da liberdade do adolescente, e, portanto, revestem-se de caráter sancionatório-aflitivo.

5. A internação provisória, antes do trânsito em julgado da sentença, assim como a prisão preventiva, tem natureza cautelar, e não satisfativa, uma vez que visa resguardar os meios ou os fins do processo, a exigir, nos termos do art. 108, parágrafo único, do ECA, a demonstração da imperiosa necessidade da medida, com base em elementos fáticos concretos.

6. Revogada, no curso da instrução, a internação provisória, somente a superveniência de fatos novos poderia ensejar o restabelecimento da medida.

7. Constitui manifesto constrangimento ilegal, por ofensa ao princípio da presunção de inocência e ao dever de motivação, previsto no art. 93, IX, da CF e no art. 106 da Lei 8.069/1990, a determinação, constante da sentença, de imediata execução da medida de internação, “independentemente da interposição de recurso”.

8. Nos termos do art. 198 da Lei 8.069/1990 e do art. 520, caput, do CPC, a apelação interposta contra sentença que impõe medida socioeducativa de internação deve ser recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo, uma vez que não importa em “decidir o processo cautelar” nem em “confirmar a antecipação dos efeitos da tutela” (art. 520, IV e VII, do CPC). Inadmissível, portanto, sua execução antecipada.

9. Somente a interpretação sistemática do art. 108, parágrafo único, da Lei 8.069/1990 – no sentido de que, antes do trânsito em julgado, admite-se apenas internação de natureza cautelar, cuja necessidade cumpre ao juiz demonstrar – autoriza imunizar a internação cautelar contra o efeito suspensivo da apelação.

10. Ordem concedida, para determinar a desinternação do paciente, a fim de que aguarde, em liberdade, o trânsito em julgado da sentença que lhe impôs a medida socioeducativa de internação, salvo a superveniência de fatos que justifiquem a adoção dessa providência cautelar” (STF, HC 122.072/SP, 1.ª T., rel. Min. Dias Toffoli, j. 02.09.2014).

O que, infelizmente, parece não ter causado repercussão alguma no modo como os tribunais de justiça e mesmo o STJ lidam com referida temática.

2.6 Do argumento de que a previsão do art. 215 do ECA, que assim dispõe: “O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte”, afastaria a aplicação automática do efeito suspensivo

Por fim, a tese de que a previsão do art. 215 do ECA, que assim dispõe: “O juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte”, afastaria a aplicação automática do efeito suspensivo também não prospera.

Referido dispositivo se encontra inserido sob o capítulo destinado à defesa dos interesses individuais, difusos e coletivos, tratando-se de procedimento atinente à tutela coletiva (lato sensu) dos direitos da criança e do adolescente, divorciado dos demais procedimentos previstos no Estatuto.

O “individuais”, ali presente, refere-se aos “direitos individuais indisponíveis” (art. 200, IX, do ECA), direitos esses tutelados por meio de ação civil pública (Precedentes no STJ: REsp 1.321.501/SE, 1.ª T., rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 23.04.2014; AgRg no REsp 1.016.847/SC, 2.ª T., rel. Min. Castro Meira, DJe 07.10.2013; REsp 399.357/SP, 3.ª T., rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.04.2009; REsp 609.329/PR, 4.ª T., rel. Min. Raul Araújo, DJe 07.02.2013), não se misturando com os demais procedimentos previstos no Estatuto, mormente o referente ao processo socioeducativo.

Entender de forma diversa é tornar letra morta todo o constante no art. 198 do Estatuto, algo que, por óbvio, não desejou o legislador, tanto que, se assim fosse, não teriam sido realizadas duas reformas em tal dispositivo (Leis 12.010/2009 e 12.594/2012) a fim de melhor adaptá-lo às problemáticas já apontadas.

Ademais, retome-se, aplicar uma norma voltada à prática civilista ao processo socioeducativo é ignorar que se está, aqui, a lidar com a restrição de liberdade, concebendo-se tratamento mais gravoso ao adolescente do que o que seria conferido se adulto fosse.

3. Conclusão

Tendo em vista o que foi aqui delineado, parece urgente que se conteste veementemente qualquer tipo de associação da internação cautelar prevista no art. 108 do ECA com uma antecipação dos efeitos da tutela, seja por violação direta à Constituição Federal e tratados internacionais de direitos humanos, seja por subverter totalmente a sistemática protetiva dos direitos das crianças e dos adolescentes, submetendo os adolescentes à processualística própria do direito civil, adequado para soluções patrimoniais e não pensado para restrições de liberdade.

Aliás, com o acatamento do entendimento jurisprudencial dominante, alcançam-se hipóteses ridículas em que caberia ao advogado/defensor ter de analisar, quando da aplicação da internação provisória, a presença dos requisitos do art. 273 ou 461 do CPC. Assim, (1) estaria o juiz realizando um prejulgamento ao apontar a existência de verossimilhança e prova inequívoca da infração e da autoria?; (2) estaríamos diante de uma hipótese de fácil reversibilidade da medida, na hipótese de cederem os requisitos da antecipação da tutela? Como restituir o tempo privado ou mesmo as implicações de ordem subjetiva que uma instituição total como a unidade de internação poderá causar ao adolescente?; (3) voltando a utilizar conceitos como fumus boni iuris e periculum in mora, como deveria o juiz fundamentar o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação caso o adolescente não seja colocado de imediato no cárcere? Dever-se-ia, então, o magistrado realizar um pré-julgamento e avaliar, portanto, o risco de esse adolescente reincidir?; (4) em se aplicando a processualística civilista também na fase de execução provisória, dever-se-ia observar o art. 475-O do CPC em que a execução “corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exequente [no caso o Ministério Público, sendo vedada a execução provisória de ofício], que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido”? Nesse último particular, deveria o Ministério Público prestar fiança a ser destinada ao acusado no caso de reforma da sentença? E de que valor seria tal fiança? Ou dependeria do caso em concreto a variar quanto à classe econômica, cor e local de residência do acusado?

Enxergar como correto o cerceamento à regra de tratamento de inocência até o advento do trânsito em julgado da sentença condenatória é continuar a tratar o adolescente como res, como coisa, como objeto a que se aplicam medidas tutelares ao prudente juízo do pai ou médico social da vez, negando ao adolescente a almejada emancipação de direitos, relegando-o, mais uma vez, à famigerada condição de menor. É continuar encobrindo de argumentos, ainda que desprovidos de racionalidade, a vontade de encaminhar ao cárcere aquele que se tem como indesejável.

4. Referências bibliográficas

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[1] (1) Issa Ahmed: “Nas sentenças de procedência de representação, por ato infracional, caberá a regra geral do ECA, ou seja, o recurso é recebido e processado no efeito devolutivo, dado que a natureza da medida socioeducativa reclama intervenção rápida do Estado e necessária à ressocialização, especialmente sob a perspectiva pedagógica, onde o tempo é fator preponderante. Soma-se a esse argumento a possibilidade da internação provisória (tutela antecipada) art. 108 do ECA quando ainda não existe instrução probatória, nem sentença, bastando suficientes indícios de autoria e materialidade. Logo, permitido está manter a contenção, depois de proferida a sentença, e não depender do trânsito em julgado para início de sua execução”; (2) Ricardo Anafe (Pres. da Seção de Direito Público): “Com a edição da Lei 12.010/2009, que revogou o art. 198, VI, do ECA, adotou-se o sistema recursal do Código de Processo Civil, com interpretação sistemática do art. 198, caput, da legislação menorista, com o art. 520 do CPC, que determina o recebimento dos recursos de apelação no duplo efeito como regra geral. Referido dispositivo processual, no entanto, contempla exceções, entre elas, a do inc. VII, que exclui o efeito suspensivo na hipótese de decisão que confirma a antecipação dos efeitos da tutela. A decretação da internação provisória, que requer a presença de indícios de autoria e materialidade, além da imperiosa necessidade da medida, tem natureza jurídica de tutela antecipada”; (3) Carlos Dias Motta: “De acordo com o art. 520, VII, do CPC, a apelação será recebida somente no efeito devolutivo na hipótese em que a interposição do referido recurso se der em face de sentença que confirmou a antecipação dos efeitos da tutela. Realmente, ao decretar a internação cautelar do menor (fls. 35/36), o MM. Juízo a quo, por assim dizer, antecipou os efeitos da tutela jurisdicional, os quais foram posteriormente confirmados pela sentença de mérito”; (4) Walter Barone: “Conforme se apura dos autos, logo de início houve a decretação da internação provisória dos ora agravantes, que responderam ao processo custodiados (fls. 31/32), justificando-se, pois, o imediato cumprimento da medida de internação do coagravante Tadeu, aplicada na sentença, a qual, na verdade, confirmou os efeitos da tutela antecipada de internação provisória que já vinha sendo cumprida, observado que ao jovem Natanael foi aplicada a medida de liberdade assistida”; (5) Lidia Conceição: “Entretanto, com a revogação do referido artigo pela Lei 12.010/2009, parte da doutrina e da jurisprudência passou a entender que as apelações interpostas nos feitos da Justiça da Infância e Juventude deveriam ser recebidas no duplo efeito, em respeito à regra do art. 520 do CPC. Ocorre que, em regra, tal entendimento não pode ser admitido, uma vez que representa um óbice à execução provisória das sentenças, afastando-se do princípio da proteção integral dos interesses das crianças e dos adolescentes e da proximidade temporal entre a ocorrência dos fatos e o cumprimento da medida socioeducativa, indispensável a dar eficácia ao procedimento de reeducação do jovem, notadamente na hipótese de internação provisória que, desde logo, pressupõe o início do processo de reeducação do agravante. Isso porque as medidas socioeducativas têm por escopo primordial a ressocialização do adolescente, possuindo um intuito pedagógico e de proteção aos direitos dos jovens. (...) Ademais, não há que se falar em ofensa ao princípio da presunção de inocência na execução provisória da medida socioeducativa, posto que tal garantia não deve ser considerada absoluta, uma vez que, como visto, as medidas previstas no art. 112 do ECA não possuem apenas caráter punitivo, representando principalmente um mecanismo de proteção ao adolescente, de cunho pedagógico e ressocializador, levando em consideração, na sua aplicação, não apenas a prática do ato infracional, como também as demais circunstâncias pessoais do jovem que o levaram à conduta infracional, bem como a proteção integral dos seus direitos”; (6) Roberto Maia: “Dispõe o art. 520 do CPC que a apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo, podendo o recurso ser recebido apenas no efeito devolutivo quando interposto em face de sentença que confirma a antecipação dos efeitos da tutela (art. 520, VII, do CPC). Pois bem, é dos autos que o agravante se encontra custodiado desde o recebimento da representação, quando teve decretada sua internação provisória e, como bem ressaltou o MM. Juízo a quo, a situação processual sob exame se enquadra na exceção à atribuição de efeito suspensivo já reconhecida pela STJ nos autos de HC 188.194/DF (2010/0193756-2), devendo a custódia cautelar ser compreendida como antecipação dos efeitos da tutela”; (7) Eros Piceli (Vice-Presidente): “Apesar da revogação do inc. VI do art. 198 do ECA, ante a procedência da representação, a internação provisória inicialmente decretada convalidou-se. Ao conferir apenas efeito devolutivo ao recurso, não violou o juiz o disposto no art. 520 do CPC, pois aplicou a regra do inc. VII do referido dispositivo legal. Assim, ao decretar a internação provisória do menor, o juiz antecipou os efeitos da tutela jurisdicional”; (8) Artur Marques (Pres. da Seção de Direito Privado): “A internação provisória inicialmente decretada convalidou-se pela procedência da representação. E, ao conferir apenas o efeito devolutivo ao recurso, não violou o magistrado o disposto no art. 520 do CPC, pois aplicou a regra constante do inc. VII do referido dispositivo legal. E isso porque, decretada a internação provisória do paciente quando do recebimento da representação, o juiz antecipou os efeitos da tutela jurisdicional, sendo-lhe permitido, agora, negar-lhe o duplo efeito”; (9) Pinheiro Franco (Pres. Seção de Direito Criminal): “Daí porque não era mesmo caso de se deferir a [nome do adolescente] o direito de aguardar o julgamento do recurso em liberdade, mostrando-se correto, portanto, o recebimento da apelação apenas no efeito devolutivo, único cabível nos casos de antecipação da tutela (art. 520, VII, do CPC), como forma de dar cumprimento imediato ao processo de recuperação do menor e possibilitar seu retorno ao convívio social”.

[2] Exemplificativamente: (1) TJRS: “Apelações cíveis. Ato infracional. Tráfico de drogas e resistência. Internação provisória decretada durante a instrução processual. Recurso recebido no efeito devolutivo (art. 520, VII, do CPC). Possibilidade de execução imediata da medida socioeducativa. (...) 1. Os adolescentes permaneceram internados provisoriamente durante toda a instrução processual, havendo a sentença apenas confirmado, no aspecto da privação de liberdade, a antecipação de tutela anteriormente deferida, com o que a apelação deve ser recebida apenas no efeito devolutivo (art. 520, VII, do CPC), ante a sistemática do CPC, como expressamente estatui o caput do art. 198 do ECA, de modo que a medida aplicada pode ser, desde já, executada. Precedentes do STJ. (...)” (TJRS, ApCiv 70064978588, 8.ª Câm. Civ., rel. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 02.07.2015); (2) TJPR: “Apelação. Estatuto da Criança e do Adolescente. Representação procedente. Atos infracionais equiparados aos crimes de roubo majorado. Preliminar. Recebimento do recurso no duplo efeito. Não cabimento. Implementação imediata da medida socioeducativa que protege os interesses dos próprios adolescentes. Aplicação de medida socioeducativa de semiliberdade para um dos adolescentes e internação para os outros dois menores (...) I – O processo socioeducativo de apuração de ato infracional tem sua regulamentação procedimental, consoante os termos do art. 198 do ECA, remetido à observância das normas do Código de Processo Civil; e levando em consideração que segundo entendimento pacificado na jurisprudência pátria, a medida socioeducativa privativa da liberdade tem a mesma natureza de tutela antecipada, eis que nos termos do art. 121, §2.º, do ECA, não comporta prazo determinado e deve ser revisitada a cada seis meses, tem-se como justificado o recebimento em regra do apelo no efeito apenas devolutivo, nos termos do art. 520, VII, do CPC; até porque, entende-se tenha a sentença proferida logrado expressar como presentes os requisitos ensejadores da necessidade de proteção do adolescente, haja vista o risco que existe para sua própria formação mantê-lo em liberdade, sendo a melhor interpretação para o caso, portanto, a que aplica o método sistemático de aplicação da norma, daí sendo permitido o recebimento do apelo do ECA apenas no efeito devolutivo, possibilitando a aplicação imediata da medida socioeducativa, em observância até mesmo da própria função, finalidade e caráter da medida socioeducativa, que não se tratando de pena, procura tão só assegurar o imediato bem estar do menor, porquanto o adolescente infrator se mantido em liberdade corre sério risco de exposição longínqua àqueles mesmos fatores e elementos que o fizeram incorrer em atos infracionais reiterados. (...)” (TJPR, RAECA 1340286-9/Curitiba, 2.ª Câm. Crim., rel. Laertes Ferreira Gomes, Unânime, j. 09.07.2015); (3) TJPE: “Estatuto da Criança e do Adolescente. Ato infracional equiparado ao crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 12 da Lei 10.826/2003). Preliminar. Efeito suspensivo ao recurso de apelação. Incabível no presente caso. Sentença que confirmou a antecipação da tutela. Rejeição da preliminar. (...) 1. Segundo o previsto no art. 520, VII, do CPC, a apelação será recebida só no efeito devolutivo quando a decisão recorrida confirmar a antecipação dos efeitos da tutela. É exatamente a hipótese dos autos, em que a sentença questionada confirmou a necessidade de limitar a liberdade da adolescente, aplicando-lhe a medida socioeducativa cabível, tal como ocorreu no início da presente ação, quando a menor foi apreendida em flagrante de ato infracional e mantida em regime de internação provisória. (...)” (TJPE, 4.ª Câm. Crim., Des. Marco Antônio Cabral Maggi, j. 30.04.2014, Publicado em  08.05.2014).

[3] “Direito da criança e do adolescente. Possibilidade de cumprimento imediato de medida socioeducativa imposta em sentença. Nos processos decorrentes da prática de atos infracionais, é possível que a apelação interposta pela defesa seja recebida apenas no efeito devolutivo, impondo-se ao adolescente infrator o cumprimento imediato das medidas socioeducativas prevista na sentença. Primeiramente, em que pese haver a Lei 12.010/2009 revogado o inc. VI do art. 198 do ECA, que conferia apenas o efeito devolutivo ao recebimento dos recursos, continua a viger o disposto no art. 215 do ECA, o qual dispõe que ‘o juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte’. Assim, se é verdade que o art. 198, VI, do ECA não mais existe no mundo jurídico, a repercussão jurisprudencial dessa mutatio legis parece ser inexistente, tamanha a evidência de que a nova lei não veio para interferir em processos por ato infracional, mas apenas em processos cíveis, sobretudo nos de adoção. Isso porque, pela simples leitura da Lei 12.010/2009 percebe-se que todos os seus dispositivos dizem respeito ao processo de adoção, o que permite inferir, induvidosamente, que, ao revogar o inc. VI do art. 198 do ECA – que também tratava de recursos contra sentenças cíveis –, não foi, sequer em hipótese, imaginado pelo legislador que tal modificação se aplicaria a processos por ato infracional, que nada têm a ver com processos de adoção de crianças e adolescentes. Lógico inferir, portanto, que os recursos serão, em regra, recebidos apenas no efeito devolutivo, inclusive e principalmente os recursos contra sentença que acolheu a representação do Ministério Público e impôs medida socioeducativa ao adolescente infrator. Ademais, cuidando-se de medida socioeducativa, a intervenção do Poder Judiciário tem como missão precípua não a punição pura e simples do adolescente em conflito com a lei, mas sim a recuperação e a proteção do jovem infrator. Sendo assim, as medidas previstas nos arts. 112 a 125 do ECA não são penas e possuem o objetivo primordial de proteção dos direitos do adolescente, de modo a afastá-lo da conduta infracional e de uma situação de risco. Além disso, diferentemente do que ocorre na justiça criminal comum, que se alicerça sobre regras que visam proteger o acusado contra ingerências abusivas do Estado em sua liberdade, a justiça menorista apoia-se em bases peculiares, devendo se orientar pelos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, definidos no art. 227 da CF e nos arts. 3.º e 4.º do ECA. Por esse motivo, e considerando que a medida socioeducativa não representa punição, mas mecanismo de proteção ao adolescente e à sociedade, de natureza pedagógica e ressocializadora, não há de se falar em ofensa ao princípio da não culpabilidade, previsto no art. 5.º, LVII, da CF, pela sua imediata execução. Assim, condicionar, de forma automática, o cumprimento da medida socioeducativa ao trânsito em julgado da sentença que acolhe a representação constitui verdadeiro obstáculo ao escopo ressocializador da intervenção estatal, além de permitir que o adolescente permaneça em situação de risco, exposto aos mesmos fatores que o levaram à prática infracional” (HC 301.135/SP, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 21.10.2014, DJe 01.12.2014).

[4] Disponível em: [http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=483743&fi

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[5] Adolescentes em conflito com a lei: o modelo de intervenção preconizado pelo direito internacional dos direitos humanos. Textos reunidos. Revista do Ilanud, n. 24, São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, p. 83.

[6] Evolución historica del derecho de la infancia: ¿Por que una historia de los derechos de la infancia? In: Ilanud; ABMP; SEDH; UNFPA (org.). Justiça, adolescente e ato infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: Ilanud, 2006.

[7] Imposição de medidas socioeducativas: o adolescente como uma das faces do homo sacer (Agamben). In: Ilanud, ABMP, SEDH, UNFPA (orgs.). Justiça, adolescente e ato infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: Ilanud, 2006.

[8] Estigma: la identidad deteriorada. 5. ed. Buenos Aires: Amorrortu Ed., 1993; Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.

[9] The prison community apud Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? O crime e o criminoso: entes políticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

[10] “Habeas corpus. Inconstitucionalidade da chamada ‘execução antecipada da pena’. Art. 5.º, LVII, da Constituição do Brasil. Dignidade da pessoa humana. Art. 1.º, III, da Constituição do Brasil. 1. O art. 637 do CPP estabelece que ‘[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença’. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5.º, LVII, que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’. 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei 7.210/1984, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos ‘crimes hediondos’ exprimem muito bem o sentimento que Evandro Lins sintetizou na seguinte assertiva: ‘Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente’. 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados – não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subsequentes agravos e embargos, além do que ‘ninguém mais será preso’. Eis o que poderia ser apontado como incitação à ‘jurisprudência defensiva’, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Min. Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2.º da Lei 2.364/1961, que deu nova redação à Lei 869/1952], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inc. LVII do art. 5.º da Constituição do Brasil. Isso porque – disse o relator – ‘a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição’. Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1.º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida” (HC 84.078, Tribunal Pleno, rel. Min. Eros Grau, j. 05.02.2009, DJe-035, Divulg. 25.02.2010, Public. 26.02.2010, Ement. vol-02391-05, p. 1.048).

Giancarlo Silkunas Vay

Pós-graduando no Instituto de Criminologia e Política Criminal.

Defensor Público no Estado de São Paulo.

Presidente do Grupo de Trabalho de Infância e Juventude do IBCCrim

Infância
Remissão e prescrição: um diálogo necessário entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a sistemática penal
Data: 24/11/2020
Autores: Bruno César da Silva e Naiara Volpato Prado

Resumo : O presente artigo tem por objetivo analisar os institutos da remissão e da prescrição na sistemática do direito da criança e do adolescente e como se dá a aplicação de ambos em conjunto, em especial respondendo a questões práticas, como o marco inicial de contagem do lapso prescricional e o prazo em si nos casos das medidas aplicadas em sede de remissão, buscando solucionar a omissão legislativa com a realização de um diálogo com o sistema penal.

Palavras-chave : Remissão – Prescrição – Adolescente – Ato infracional – Proteção integral.

Abstract: This article aims to analyze the doctrines of remission and the statute of limitation in the system of rights for children and adolescents and also to verify how they are applied, particularly in relation to practical issues, as for example, when the statute of limitation begins to count and the time frame established, in the case of measures implemented for remission. It seeks to solve the legislative omission by establishing a dialogue with the criminal justice system.

Key words:  Remission, statute of limitation, teenagers, infringement, full protection.

Sumário: Introdução – 1. O instituto da remissão no Estatuto da Criança e do Adolescente: 1.1 Conceito e natureza jurídica; 1.2 Os tipos de remissão: judicial e extrajudicial ou ministerial: 1.2.1 Da remissão ministerial ou pré-processual; 1.2.2 Da remissão judicial: 1.3 Natureza jurídica da decisão que concede a remissão; 1.4 Remissão e o instituto da transação (Lei 9.099/1995) – 2. Prescrição: 2.1 Conceito e natureza jurídica; 2.2 A contagem do prazo prescricional; 2.3 Causas interruptivas e suspensivas da prescrição; 2.4 Prescrição e sua aplicação no Estatuto da Criança e do Adolescente – 3. Prescrição e seus desdobramentos no instituto da remissão: 3.1 Lacuna legislativa; 3.2 Parâmetro para contagem da prescrição no instituto da remissão no ECA e seus marcos: inicial, interruptivo e suspensivo – Conclusão.

Introdução

O instituto da remissão veio estampado de forma expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de modo a conferir aos jovens acusados da prática de atos infracionais um benefício já previsto na sistemática penal aos adultos que cometem crimes, vez que permite a extinção ou a suspensão do processo antes da sentença, considerando a natureza da infração, as características pessoais do infrator adolescente e as demais circunstâncias que envolvam os fatos ocorridos.

Não obstante, há o instituto da prescrição previsto no Código Penal, que, embora não esteja expressamente previsto no ECA, há predominância absoluta quanto a sua aplicação, para que não haja discrepância no tratamento de adultos e adolescentes que cometem atos infracionais, entendimento este ratificado pela Súmula 338 do STJ.

Ocorre que o benefício da remissão veio trazido pela Lei 8.069/1990 sem algumas especificações, e a necessidade de aplicação do instituto da prescrição em casos em que houve a concessão do benefício ensejou a necessidade de interpretação de algumas lacunas legislativas para que sua aplicação no ECA não venha a trazer prejuízos ao adolescente acusado da prática de ato infracional.

As dúvidas que se põem são: Qual o termo inicial para contagem do prazo prescricional quando estamos diante de uma remissão cumulada com medida socioeducativa? Qual o prazo prescricional a ser utilizado diante da análise de ambos os institutos?

Diante dessa problemática, expomos os institutos envolvidos da remissão e da prescrição e seus desdobramentos no ECA, fazendo uma analogia ao instituto da transação previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais – Lei 9.099/1995.

Ao final, expomos uma nova sistemática para contagem do prazo prescricional, nos casos envolvendo a concessão da remissão cumulada com medida socioeducativa prevista no ECA, considerando os preceitos dos próprios institutos e, ainda, os princípios regentes de proteção à criança e ao adolescente previstos no sistema.

1. O instituto da remissão no Estatuto da Criança e do Adolescente

1.1 Conceito e natureza jurídica

A palavra remissão vem do latim remissio, que significa misericórdia, perdão, clemência. Tal possibilidade é expressamente prevista no ECA, em seu Capítulo V, Título II, por meio dos arts. 126 a 128.

O instituto processual trazido pelo Estatuto está pautado em toda a dinâmica moderna, que, por intermédio dos avanços ao longo dos anos, trouxe uma sistemática mais branda aos atos infracionais praticados por adolescentes, visando à função educacional e não apenas punitiva.

Assim, estamos diante de mais um elemento de reforço ao princípio da igualdade material previsto no art. 5.º, caput, da CF, de modo a tratar crianças e adolescentes de maneira desigual em relação aos adultos em razão da sua condição peculiar, vez que possuem status de pessoa ainda em desenvolvimento. De acordo com Celso Bandeira de Mello:

“O preceito magno da igualdade é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela sujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas”. [1]

A sistemática atual, com fulcro no princípio da excepcionalidade, visa garantir que a medida socioeducativa, principalmente as que importem em restrição de liberdade, seja utilizada apenas em última hipótese. O instituto da remissão traz essa ideia, em que ocorre uma verdadeira composição entre o Estado e o adolescente, com adoção de um procedimento diferenciado, evitando as consequências advindas de uma condenação, em hipóteses em que a natureza da infração, circunstâncias e características do jovem infrator permitem o benefício em prol do jovem e de toda a sociedade.

A excepcionalidade da medida foi ratificada pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase (Lei 12.594/2012), em seu art. 35, II, que traz:

“Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

(...)

II – excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se os meios de autocomposição de conflitos”.

O instituto também vem em sintonia com as Regras Mínimas das Nações Unidas (Res. 40/33, de 29.11.1985), que recomenda a substituição da jurisdição quando não há extrema necessidade de procedimentos formais.[2]

As características precípuas do instituto da remissão, segundo Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lepore e Rogério Sanches Cunha, são:

“a) não importa em reconhecimento a responsabilidade, havendo um ajuste entre o adolescente e o Estado, onde é necessário o consentimento do jovem e de seu representante legal;

b) não prevalece para efeitos de antecedentes, independente de quantas remissões lhe forem concedidas e, ainda

c) pode ser cumulada com medida socioeducativa, desde que não importe em restrição de liberdade”.[3]

Assim, o benefício foi criado para beneficiar os adolescentes acusados da prática de atos infracionais levando-se em conta a natureza da infração, a sua circunstância e suas características pessoais, evitando-se dar continuidade ao processo de apuração do ato infracional, que estigmatiza o adolescente e enseja, muitas vezes, uma sentença condenatória.

O instituto da remissão, quando cumulado com medida socioeducativa, possui pressupostos firmados em consenso entre o adolescente e o Estado-juiz, e nessa hipótese, embora tenha o perdão como resultado, ele é atingido por meio da transação, que muito se assemelha com a prevista na Lei 9.099/1995, que rege os Juizados Especiais Cíveis e Criminais.[4]

1.2 Os tipos de remissão: judicial e extrajudicial ou ministerial

Existem duas hipóteses de remissão que serão brevemente explanadas no presente artigo, para posterior análise da prescrição e seus desdobramentos nesse instituto.

1.2.1 Da remissão ministerial ou pré-processual

A remissão ministerial ou pré-processual, prevista no art. 126 do ECA, é possível antes da representação pelo membro do Ministério Público acerca do ato infracional supostamente praticado pelo adolescente, e ocorre, portanto, antes da instauração de um procedimento judicial para apuração dos fatos ocorridos. Importante ressaltar que nesse momento o adolescente não foi formalmente acusado e não há nenhuma certeza de que os fatos tenham realmente ocorrido. Tal possibilidade observa as consequências do ato, a gravidade e as circunstâncias que envolvam o delito, que pode ou não ter sido cometido pelo adolescente.

Aplicada a remissão pelo Parquet, esta pressupõe a exclusão do processo e deve ser homologada pelo juízo competente, que, em caso de discordância, remete os autos ao Procurador-Geral de Justiça, nos termos do art. 181, § 2.º, da Lei 8.069/1990.[5]

A remissão, nessa fase processual, não deveria ter cumulação com medida socioeducativa, mesmo porque sequer houve instauração do procedimento judicial, permeado pelo devido processo legal. Ademais, é incontestável que qualquer imposição de medida ao adolescente importa na restrição de seus direitos, e para que isso ocorra, todas as garantias legais do devido processo devem ser observadas.

No entanto, esse não é o posicionamento do STJ, que permite a cumulação de medida socioeducativa no momento da homologação da remissão pelo magistrado, apesar das críticas possíveis a esse entendimento, com as quais concordamos.[6] [7]

Importante frisar que tal possibilidade, quando aceita, exige o consentimento do adolescente e, consequentemente, de seu representante legal e do advogado ou defensor que lhe acompanhe no ato, tudo para garantir a lisura do procedimento e o consentimento das partes envolvidas.[8]

Mesmo porque, se não observada, ensejaria nulidade do procedimento, vez que estaria sendo imposta restrição de direitos sem o devido processo legal e a ampla defesa, princípios basilares do direito penal, que, em âmbito de adolescentes, devem ser aplicados com ainda maior rigor para proteção quando da restrição de seus direitos. Vejamos o V. Acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal do Estado do Paraná que nulificou o procedimento que, permissa venia, não observou os trâmites já expostos:

“Recurso de apelação. ECA. Estelionato. Tentativa. Remissão concedida pelo Ministério Público, com aplicação de medida socioeducativa. Sentença homologatória que excluiu as medidas requeridas. Irresignação ministerial. Juízo de retratação. Reforma em parte. Nulidades. Falta de consentimento do adolescente, em relação às medidas aplicadas. Ausência de defensor ao menor. Decisão anulada, de ofício, prejudicado o exame de mérito” (Ac 12.189, 1.ª Câm. de Direito Penal, Recurso de Apelação ECA 87.998-7/Jacarezinho, rel. Clotário Portugal Neto).

Em que pese não concordarmos com a cumulação de medida socioeducativa nessa modalidade de remissão, o entendimento pela possibilidade ainda prevalece e é aplicado pelo STJ, o que surtirá efeitos no tema abordado no que tange ao termo inicial da prescrição, conforme demonstraremos no discorrer do presente artigo.

1.2.2 Da remissão judicial

Iniciado o processo de apuração de ato infracional por meio da representação, o magistrado poderá optar pela sua paralisação, mediante a concessão da remissão judicial, que muito se assemelha com a remissão ministerial exposta anteriormente, com a peculiaridade de ser aplicada quando já houve início do procedimento judicial, o que normalmente ocorre na audiência de apresentação, e sempre após o recebimento da representação, como forma de extinção ou suspensão do processo, nos termos do art. 127 do ECA.[9]

“Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação”.

A remissão pode ser cumulada com medida socioeducativa que não importe na restrição de liberdade do adolescente, previstas no rol taxativo do ECA consistentes em advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida.

O instituto da remissão, tanto pré-processual como processual, prescinde de culpa do adolescente e, por isso, não importa para fins de reincidência, podendo ser concedida quantas vezes forem necessárias.[10]

Importante salientar que a remissão judicial concedida ao adolescente precede a sentença judicial e não se confunde com ela, vez que é um ato bilateral de acordo entre as partes, que suspenderá a apreciação do decisum final, que pode, muitas vezes, nem vir a ser aplicado no caso concreto, se todas as condições do pacto forem cumpridas, com posterior e consequente extinção do procedimento infracional.

1.3 Natureza jurídica da decisão que concede a remissão

Primeiramente, antes da análise propriamente dita acerca da prescrição no instituto da remissão e suas consequências, importante salientar acerca da natureza jurídica da decisão que concede a remissão.

Pelo nosso entendimento, não é plausível considerarmos que a natureza jurídica da decisão que concede a remissão, seja pré-processual ou judicial, tenha caráter de sentença de mérito condenatória, mesmo porque a remissão concedida exatamente suspende o procedimento judicial de apuração do ato infracional antes da sentença condenatória, suspendendo o procedimento.

Assim, entendemos que na concessão e aceitação da remissão ocorre uma transação entre o Estado e o adolescente que antecede a sentença definitiva, e, até por isso, não gera os efeitos da reincidência. Por isso, a melhor forma interpretativa é considerarmos que a natureza da decisão que concede a remissão, tanto judicial quanto pré-processual, possui um caráter de ato homologatório.

Na remissão, há um verdadeiro acordo entre o Estado e o adolescente, que antecede a aplicação da sentença, o que justifica o posicionamento esposado. Tal entendimento vem de encontro com a semelhança ao instituto da transação previsto pela Lei 9.099/1995, que será a seguir aventado.

1.4 Remissão e o instituto da transação (Lei 9.099/1995)

Quando fazemos a confrontação do Estatuto da Criança e do Adolescente com o instituto da transação trazido pela lei penal nas hipóteses de delitos de menor gravidade, não se está defendendo o “direito penal juvenil”, defendido por alguns autores, mas apenas garantindo que o adolescente não seja punido em âmbito infracional mais gravemente que o imputável em âmbito criminal, o que afrontaria os princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade e do superior interesse da criança e do adolescente. [11]

Assim, o instituto da transação, previsto para delitos de menor potencial ofensivo por meio da Lei 9.099/1995, pode ser usado como parâmetro para o preenchimento das lacunas que encontramos no instituto da remissão, encontrado nos arts. 126 a 128 da Lei 8.069/1990. Tal possibilidade tem embasamento no art. 152 do ECA, que leciona:[12]

“Art. 152. Aos procedimentos aplicados nesta lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente”.

A aplicação da Lei dos Juizados Especiais no âmbito do Estatuto é tese aceita pelos autores de maneira quase que unânime, e o instituto da transação, previsto na Lei dos Juizados Especiais – Lei 9.099/1995, em muito se confunde com o instituto da remissão previsto no ECA, o que possibilita seu uso para o preenchimento das lacunas existentes.

A transação é cabível nos delitos de menor potencial ofensivo, com pena restritiva de direitos ou multa, desde que o acusado concorde com as condições impostas, concedida antes da sentença penal condenatória, e também não pressupõe a culpabilidade do agente.

Assim, muito se discute acerca da natureza jurídica da decisão que concede a transação na Lei 9.099/1995, vez que não pressupõe a culpabilidade do infrator, não é considerada para fins de reincidência e ainda é concedida mediante um acordo feito e aceito pelas partes.

A matéria esteve em discussão no Plenário do STF, por meio do RE 795.567, no que tange aos efeitos da decisão que concede a transação penal. Em voto recente proferido pelo Min. Teori Zavascki em 29.05.2014, este relativizou o princípio que obriga a instauração da persecução penal em crimes de ação pública e entendeu que as consequências advindas da transação devem ser unicamente estipuladas no instrumento do acordo entre as partes e que os demais efeitos penais e civis não serão constituídos. Veja o trecho do voto:[13]

“A sanção imposta com o acolhimento da transação não decorre de qualquer juízo estatal a respeito da culpabilidade do investigado, já que é estabelecida antes mesmo do oferecimento de denúncia, da produção de qualquer prova ou da prolação de veredito. Trata-se de ato judicial homologatório expedido de modo sumário, em obséquio ao interesse público na célere resolução de conflitos sociais de diminuta lesividade para os bens jurídicos tutelados pelo estatuto penal” (STF, RE 795.567, rel. Min. Teori Zavascki, j. 29.05.2014).

Assim, entendeu o Ministro que a decisão que concede a transação é um ato homologatório, prescinde de instauração de processo e, portanto, não possui natureza de sentença penal condenatória.

O Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, também argumentou e defendeu que a transação é um acordo entre as partes e frisou que, para o Ministério Público, a sentença que concede a transação tem caráter homologatório e não de sentença penal condenatória.[14]

O STF já havia se manifestado em sua plenária no sentido de que a Lei 9.099/1995 possui normas de direito processual e material, vejamos:

“(...) A Lei 9.099/1995, que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que a regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça criminal, que privilegie a ampliação do espaço de consenso, valorizando, desse modo, na definição das controvérsias oriundas do ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal. Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e positiva às premissas ideológicas que dão suporte às medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/1995, atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89) (...) (Inq 1.055 QO/AM, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. 24.04.1996, DJ 24.05.1996, p. 17.412, Ement. vol-01829-01, p. 28).

Nesse raciocínio, a natureza jurídica da decisão que concede a remissão, analogicamente e seguindo os parâmetros da transação, também possui natureza jurídica homologatória, pelos mesmos fundamentos esposados para a natureza jurídica da decisão que concede a transação, vez que tratam de institutos assemelhados.

2. Prescrição

2.1 Conceito e natureza jurídica

A prescrição é causa extintiva da punibilidade, prevista no art. 107, IV, do CP, em consonância com os ditames da Constituição Federal, que veda expressamente qualquer espécie de prisão perpétua em seu art. 5.º, XLVII, b. A única exceção ao instituto da prescrição são os delitos de racismo e ação de grupos armados, civis e militares, que são imprescritíveis.[15]

Os fundamentos desse instituto, que surgiu na legislação penal francesa no final do século XVIII, são a segurança jurídica ao responsável pela infração penal, a luta contra a ineficiência do Estado, que deve atuar com eficiência e celeridade, nos termos do art. 37, caput, da CF, e a pertinência e eficiência da sanção.[16]

Quanto à segurança jurídica, Bento Faria discorre em sua obra Código Penal brasileiro comentado:

“Decorrido certo lapso temporal, desde a prática do crime, sem que se tenha instaurado procedimento criminal contra o delinquente e, se instaurado, sem que se tenha prosseguido neste procedimento, ou desde a sentença condenatória, sem que se tenha feito executar a pena, a memória do fato punível apagou-se e a necessidade do exemplo desaparece (...) E seria repugnante aos princípios de equidade e de justiça que ficasse perpetuamente suspensa sobre a cabeça do criminoso a ameaça do procedimento criminal”. [17]

Já quanto à eficiência da aplicação de sanção em certo período de tempo, para que a pena seja mais justa e útil, Beccaria discorre em sua obra Dos delitos e das penas:

“É, pois, de suma importância a proximidade do delito e da pena, se quiser que nas mentes rudes e incultas o quadro sedutor de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da ideia associada à pena. A longa demora não produz outro efeito além de dissociar cada vez mais essas duas ideias; e ainda que o castigo de um delito cause uma impressão, será menos a de um castigo que de um espetáculo, e isso só ocorrerá após ter-se atenuado nos espectadores o horror de um certo delito em particular, que serviria para reforçar o sentimento de pena”. [18]

A prescrição possui diversos desdobramentos nos diferentes institutos previstos pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal. Não iremos aqui explanar todas as possibilidades de aplicação desse instituto repleto de ramificações, mas apenas aventar as principais possibilidades de cabimento.

2.2 A contagem do prazo prescricional

Existem dois tipos de prescrição, com diferentes conceitos, modo de aplicação e contagem, sendo elas a prescrição da pretensão punitiva e a prescrição da pretensão executiva.

A prescrição da pretensão punitiva é subdividida em três modalidades principais: prescrição propriamente dita, prescrição intercorrente e prescrição retroativa, e caracteriza-se pela não ocorrência do trânsito em julgado da condenação.[19]

De forma sucinta, a prescrição propriamente dita está disciplinada no art. 109, caput,do CP: “A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final (...), regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime...”. Seu cálculo baseia-se na pena máxima em abstrato cominada ao delito respectivo e observa os incisos do art. 109 do CP. Como exemplo podemos citar um delito de lesão corporal, em que a pena varia de três meses a um ano. Nesse caso, o prazo prescricional, de acordo com o inc. V do art. 109, seria de quatro anos.[20]

O termo inicial, para a prescrição da pretensão punitiva propriamente dita, baseia-se no art. 111 do CP:

“A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: I – do dia em que o crime se consumou; II – no caso da tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa; III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência; IV – nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido”.

A modalidade de prescrição intercorrente da pretensão punitiva se verifica quando ocorre a publicação da sentença penal condenatória até o seu trânsito em julgado para acusação, ou seja, ocorre posteriormente à sentença. Frisa-se, não há necessidade do trânsito em julgado para a defesa.[21]

Nesse caso, o cálculo é baseado na pena em concreto já aplicada, nos termos da Súmula 146 do STF: “A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação”. Seu termo inicial começa a fluir com a publicação da sentença condenatória recorrível, conquanto haja trânsito em julgado para acusação. Assim, tal instituto evita a demora na intimação do réu da sentença e os julgamentos eternos dos recursos da defesa.[22]

Já a prescrição retroativa, que ocorre após a prolação da sentença, observa a pena em concreto, com o requisito de que tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença para acusação, seja pela não interposição de recurso, seja pelo não provimento de seu recurso no tribunal. Nesse diapasão, se há apenas recurso da defesa, a pena fixada na sentença não poderá sofrer majoração pelo tribunal, nos termos do art. 617 do CPP ao consagrar o princípio da non reformatio in pejus. O termo inicial é a publicação da sentença ou acórdão condenatório desde que haja trânsito em julgado para acusação. Seu nome se justifica, vez que sua contagem ocorre de forma retroativa, ou seja, entre a publicação da sentença e o recebimento da denúncia ou queixa.[23]

E, finalmente, explanaremos a prescrição da pretensão executória, que não se subdivide, aparecendo somente após o trânsito em julgado da condenação para ambas as partes envolvidas: defesa e acusação. É a perda do dever de executar a pena imposta. Por óbvio, é contada com base na pena em concreto fixada na sentença ou no acórdão e seu termo inicial baseia-se no art. 112 do CP, podendo ser do dia em que transita em julgado a sentença condenatória para acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou do livramento condicional, ou do dia em que se interrompe a execução, salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena.

2.3 Causas interruptivas e suspensivas da prescrição

Analisaremos as causas interruptivas e suspensivas de acordo com as diferentes modalidades de prescrição. Vejamos.

As hipóteses de interrupção previstas para a prescrição da pretensão punitiva estão delineadas pelo art. 117, I a IV, do CP:

“Art. 117. O curso da prescrição interrompe-se:

I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;

II – pela pronúncia;

III – pela decisão confirmatória da pronúncia;

IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis”.

A interrupção do prazo prescricional tem efeitos imediatos, vez que o intervalo temporal volta a ser contado desde o início, desprezando o tempo já transcorrido, reiniciando a contagem do lapso prescricional. Por tratar-se de matéria prejudicial ao réu, seu rol é taxativo, não possibilitando a interpretação analógica para inclusão de situações assemelhadas não trazidas expressamente pela lei.[24]

Outrossim, as hipóteses de interrupção da prescrição da pretensão executiva estão elencadas nos demais incisos do art. 117:

“Art. 117. O curso da prescrição interrompe-se:

(...)

V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena;

VI – pela reincidência”.

Já as hipóteses de suspensão previstas para a prescrição da pretensão punitiva estão previstas no art. 116 do CP:

“Art. 116. Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre:

I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime;

II – enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro”.

A consequência da suspensão do lapso prescricional é que este obsta, momentaneamente, sua fluência. Importante salientar que a suspensão condicional do processo, benefício trazido pela Lei 9.099/1995 em ser art. 89, também suspende a fluência do caso prescricional da pretensão punitiva.[25]

As causas suspensivas também aparecem no bojo da prescrição da pretensão executiva, nos termos ainda do art. 116, parágrafo único, do CP: “Depois de passada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo”. Tal providência aparece, pois nesse caso o Estado não está se omitindo voluntariamente, mas sim compulsoriamente. Ainda, embora não previstas expressamente, o STF considera como causas suspensivas a suspensão condicional da pena (sursis) e o livramento condicional.[26]

2.4 Prescrição e sua aplicação no Estatuto da Criança e do Adolescente

A possibilidade de a aplicação do instituto da prescrição se estender ao procedimento previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é matéria relativamente pacificada na doutrina e na jurisprudência, vez que não é admissível tratamento mais severo ao adolescente do que ao adulto, conforme preceituam o art. 227, § 3.º, IV e V, da CF,[27] o item 54 das Regras Mínimas das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Infantil – Regras de RIAD[28] e o art. 35, I, do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase:

“Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

I – legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto”.

Os tribunais brasileiros também vêm pontificando esse entendimento. Nesse sentido, o STJ consolidou esse entendimento ao erigir a Súmula 338, que estipula que “A prescrição penal é aplicável nas Medidas Socioeducativas”.

Para o STJ, o instituto tem cabimento no procedimento socioeducativo, inclusive com o redutivo do art. 115 do CP em razão da idade do agente. O entendimento da corte, no que tange aos parâmetros de aplicação, é pautado na pena máxima em abstrato cominada ao crime ou contravenção penal correspondente ao ato infracional, amparado analogicamente pelo Código Penal, limitado aos três anos, visto que, teoricamente, é o período máximo de cumprimento de medidas socioeducativas, observando-se, ainda, o redutivo pela metade por se tratar de pessoa menor de 21 anos.[29]

Essa também é a posição acolhida pelo STF, sob o fundamento de que as normas gerais do Código Penal se aplicam de forma subsidiária em caso de omissão legislativa do Estatuto da Criança e do Adolescente.[30]

“Apelação cível. Ato infracional equiparado a lesões corporais e ameaça. Prescrição da medida socioeducativa. Ocorrência. Prazo máximo da pena prevista no tipo penal. Pena em abstrato. Precedentes do STF e desta corte. Apelo desprovido, de plano” (TJRS, ApCiv 70042018671, 7.ª Câm. Civ., rel. Jorge Luís Dall’Agnol, j. 30.06.2011).

A aceitação do redutivo também já é aceita nos tribunais superiores e no STF, conforme a seguir colacionado:

“Habeas corpus – Adolescente submetido ao procedimento de apuração de ato infracional equiparado ao crime de ameaça (CP, art. 47), incidência, na espécie, do art. 115 do CP, que reduz, pela metade, o prazo prescricional – reconhecendo a extinção da punibilidade – precedentes do STF – Habeas corpus concedido, de ofício” (STJ, REsp 1.005.143, Impetrante: Defensoria Pública da União, rel. Min. Celso de Melo, j. 28.06.2011).

Tal assertiva vem pautada nos princípios básicos do direito infracional, que prevê a excepcionalidade e brevidade da medida, a intervenção imediata, proporcional e mínima necessária e a razoabilidade de sua duração para que não haja insegurança jurídica ao adolescente e que o decurso ilimitado do tempo não prejudique a efetividade e a razão de ser da medida socioeducativa aplicada.[31]

3. Prescrição e seus desdobramentos no instituto da remissão

3.1 Lacuna legislativa

Embora o STJ tenha editado súmula ratificando a aplicação do instituto da prescrição no ECA, o Estatuto não previu e não adequou todas as hipóteses possíveis e a forma de contagem como fez no Código Penal. Tal constatação pode ser evidenciada nas hipóteses de concessão da remissão cumulada com medida socioeducativa, mesmo porque os artigos que tratam da remissão no ECA (arts. 126 a 128) não especificam como seria a base para essa contagem, os marcos interruptivos e suspensivos, gerando uma insegurança jurídica na aplicação do instituto e uma lacuna legislativa, que é preenchida com a interpretação sistemática, em conjunto com as demais normas do sistema, inclusive utilizando-se do instituto da transação.[32]

3.2 Parâmetro para contagem da prescrição no instituto da remissão no ECA e seus marcos: inicial, interruptivo e suspensivo

Primeiramente, importante salientar que os parâmetros aqui defendidos são permeados pelo consenso que se chegou ao longo dos anos e com diferentes reformas legislativas de que a infância e a adolescência devem ter a proteção de toda a sociedade, em todos os âmbitos em que aparecem. Tal premissa aparece no arcabouço legal brasileiro, partindo da norma máxima da Constituição Federal, que prevê a proteção máxima e integral a esses seres humanos ainda em desenvolvimento.

Em consonância com seus preceitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente também veio para firmar esse compromisso. Diante disso, só nos faz concluir que todas as interpretações envolvendo adolescentes não podem ser prejudiciais, não se admitindo, em hipótese alguma, analogias e interpretações desfavoráveis a essa classe amplamente protegida pelo sistema jurídico.

Diante das lacunas apresentadas e considerando as premissas aventadas, estamos convencidos de que o parâmetro para a contagem da prescrição deve observar alguns critérios. Vejamos.

Primeiramente, para que ocorra uma analogia ao Código Penal sem ferir os princípios que protegem os adolescentes no ECA, defendemos que, no caso de aplicação da prescrição no instituto da remissão cumulada com medida socioeducativa, deve-se ter como base de cálculo a pena em abstrato do delito previsto no Código Penal, limitada ao máximo de três anos de aplicação de medida socioeducativa. Decorrido tal prazo, não se poderia exigir a execução da medida aplicada, já que não se faria mais possível a retomada da ação socioeducativa, valendo lembrar que não é cabívela aplicação de internação-sanção quando do descumprimento da medida aplicada em sede de remissão.

A limitação aos três anos é plenamente justificável, sob pena de sujeitar o adolescente, pessoa ainda em desenvolvimento, a medidas mais severas que o adulto. Ademais, os jovens não se sujeitam ao Código Penal, não podendo ocorrer analogias in malam partem, em decorrência de lacuna legislativa em sua legislação vigente (ECA). Caso não fosse esse o entendimento, considerando a limitação temporal de três anos, estaríamos diante de várias infrações imprescritíveis, o que seria uma interpretação totalmente desfavorável ao adolescente e feriria os princípios previstos no ECA e na Constituição Federal.

A pena para cômputo analisada em abstrato decorre do entendimento de que a decisão que concede a remissão não possui caráter de sentença condenatória, mas apenas homologatória. Assim, os parâmetros para análise da contagem do prazo prescricional observariam o prazo em abstrato do delito correspondente no Código Penal, limitado aos três anos.

A analogia nesses casos é pautada na prescrição da pretensão punitiva propriamente dita, que observa a ocorrência da prescrição antes da sentença penal condenatória, vez que a decisão que concede a remissão não possui caráter de sentença e, sim, homologatória no momento em que ocorre a transação entre o adolescente e o Estado.

Ademais, importante salientar que também se aplica o redutivo pela metade do art. 115 do CP.

Nesse ínterim, para efeitos da prescrição, o marco inicial de contagem do prazo prescricional em sede de remissão no ECA, quando concedida de forma pré-processual pelo membro ministerial, observaria a data da ocorrência do fato, observando o parâmetro do art. 111, I, do CP.

Já nas hipóteses de remissão judicial, ou processual, o marco inicial de contagem do prazo prescricional é o recebimento da representação ofertada pelo Ministério Público, já que é onde se inicia o procedimento.

Iniciado o prazo prescricional, aventamos para as causas interruptivas e suspensivas que irão interromper ou suspender o prazo prescricional nas hipóteses de concessão da remissão tanto judicial quanto extrajudicial.

Na hipótese da remissão extrajudicial ou ministerial, após o início do prazo prescricional, que ocorrerá da data do ato infracional, a única causa interruptiva é o recebimento da representação, em analogia ao art. 117, I, do CP, que prevê as hipóteses interruptivas da prescrição da pretensão punitiva.

Já na hipótese da remissão judicial, em que o marco inicial é o recebimento da representação, não há que se falar em marco interruptivo.

A decisão que concede a remissão, seja judicial ou extrajudicial, não possui caráter de sentença condenatória, e, por isso, não interrompe o lapso prescricional. Ademais, não seria viável nenhum marco interruptivo sem expressa previsão legal, e, nesse ponto, o art. 117 do CP é taxativo para as hipóteses de interrupção, não podendo haver interpretações expansivas.

O início ou continuação de cumprimento da medida também não é causa interruptiva da prescrição, tanto na remissão judicial quanto na extrajudicial. O art. 117, V e VI, trata das hipóteses de prescrição da pretensão executiva, ou seja, quando já houve aplicação da pena e por isso não pode ser aplicada analogicamente à decisão concessiva da remissão. Tal conclusão é lógica, vez que não há nesse momento processual cumprimento ou continuação de pena, pois a decisão que concede a remissão não possui caráter de sentença condenatória.

Também não é possível a aplicação de nenhuma causa suspensiva da prescrição no instituto da remissão por não haver hipótese expressa no art. 116 do CP, que também é um rol taxativo e não pode sofrer interpretações expansivas, principalmente prejudiciais quando tratamos de crianças e adolescentes, pessoas ainda em desenvolvimento.

Se diferente fosse o entendimento, estaríamos diante de uma interpretação in malam partem aos adolescentes, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê expressamente essa possibilidade, que foi assemelhada ao Código Penal para preenchimento das lacunas existentes e não podem, de forma alguma, trazer interpretações prejudiciais aos jovens.

O entendimento esposado é calcado nos princípios da atualidade, excepcionalidade, intervenção mínima e brevidade da medida que estão plenamente ancorados pelo art. 227 da Carta Magna, que dispõe expressamente:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela Emenda Constitucional 65, de 2010)

(...)

§ 3.º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(...)

V – obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”.

Os princípios vêm ratificados pelos arts. 100, 121, caput,e 122, § 2.º, todos da Lei 8.069/1990.

O art. 100 traz a direção para aplicação de todas as medidas socioeducativas trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, considerando o caráter pedagógico da medida e o fortalecimento dos vínculos familiares, mencionando expressamente acerca do superior interesse da criança e do adolescente no momento da intervenção, excepcionalidade, intervenção mínima e rápida do Estado para aplicação da medida:

“Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:

(...)

IV – interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;

VI – intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;

VII – intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente”.

O entendimento também se coaduna com a intervenção precoce e rápida do Estado diante do cometimento do ato infracional. Isso porque a demora nas providências, aplicação de medida e apuração dos fatos ocorridos prejudica a efetividade do seu caráter pedagógico. Assim, qualquer medida socioeducativa aplicada não possui cunho estritamente repressivo e sancionador, mas precipuamente educacional, por isso a importância da imediação entre o ato infracional e a aplicação da medida. Cleber Augusto Tonial traz essa ideia:[33]

“Afirma-se, por isso mesmo, que um dos princípios da medida socioeducativa é a imediatidade, porque é altíssimo o risco de perda do objeto socioeducativo quando a intervenção não guarda nenhuma relação temporal com a data da conduta que se pretende reprovar. De forma que o decurso do tempo é o elemento degradante da finalidade pedagógica de qualquer medida socioeducativa. Sob esse aspecto, as medidas são entidades perecíveis. Tanto mais quanto maior tempo transcorrer entre a conduta e a sua aplicação ou execução. E, o que é inegável, tanto mais aceleradamente quanto mais nos afastarmos temporalmente do injusto típico”.

Assim, não há que se falar em interrupção ou suspensão do prazo prescricional no caso das medidas socioeducativas fixadas cumulativamente ao instituto da remissão, vez que a demora no cumprimento de qualquer medida socioeducativa prejudica o seu caráter pedagógico. Caso fosse admitida, o jovem poderia ser compelido a voltar a cumprir a medida anos depois, o que vai em total desencontro com todos os princípios explícitos e implícitos trazidos pelo ordenamento no que tange às crianças e adolescentes, ferindo em especial a efetividade da medida, que somente ocorre quando ela é adequada e aplicada de imediato ao jovem infrator.

Nesse raciocínio, não há razão para se permitir a aplicação de causas interruptivas e suspensivas da prescrição no instituto da remissão, que, além de não estarem expressamente no rol dos arts. 116 e 117 do CP, ainda permitiriam a interpretação in malam partem aos jovens e feririam os princípios de brevidade e imediatidade da medida, com uma interpretação contrária ao sistema e à Constituição Federal.

Conclusão

Em que pese a lacuna legislativa existir, no que tange à contagem do lapso prescricional no instituto da remissão previsto no ECA, deve haver uma interpretação cuidadosa e sistemática das normas do sistema, de modo a não prejudicar esse ser humano ainda em desenvolvimento e ferir princípios maximus da Constituição Federal, em especial o art. 227, que prevê a proteção máxima e integral às crianças e aos adolescentes em quaisquer circunstâncias.

Assim, após a análise das premissas aventadas, concluímos que a interpretação que mais se adéqua para suprir a lacuna existente no que tange à contagem do prazo prescricional no instituto da remissão cumulado com medida socioeducativa é baseando-se na pena em abstrato do delito, vez que a concessão da remissão não implica natureza condenatória e, portanto, não delimita a concretude da medida, possuindo natureza homologatória, conforme entendimento já esposado na discussão da matéria no STF no que tange ao instituto assemelhado da transação da Lei 9.099/1995.

Concluímos, ainda, que não é possível a aplicação dos marcos interruptivos e suspensivos previstos no Código Penal, vez que tal sistemática feriria o princípio da taxatividade e, ainda, os princípios que permeiam o ECA de brevidade, imediatidade e excepcionalidade da medida imposta.

Assim, após interpretação sistemática dos institutos envolvidos, sem que haja interpretação in malam partem aos adolescentes, o parâmetro para contagem do prazo prescricional deve observar a pena em abstrato correspondente ao delito praticado previsto no Código Penal, respeitando o limite de três anos. Não obstante, há de ser considerado na contagem do lapso prescricional o redutivo trazido pelo art. 115 do CP, para que não haja discrepância no tratamento de jovens no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente mais severo que o permitido aos adultos em âmbito de Código Penal. Decorrido tal prazo, não se poderia exigir a execução da medida aplicada, já que não se faria mais possível a retomada da ação socioeducativa, valendo lembrar que não é cabível a aplicação de internação-sanção quando do descumprimento da medida aplicada em sede de remissão.

[1] Bandeira de Mello, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 9.

[2] Disponível em: [http://jus.com.br/artigos/13369/a-possibilidade-do-ministerio-publico-conceder-remissao-pre-processual-cumulada-com-medida-socioeducativa. Acesso em: 07.06.2014.

[3]  Rossato, Luciano Alves; Lepore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 380.

[4] Disponível em: [http://jus.com.br/artigos/5577/aspectos-procedimentais-da-remissao-sob-o-enfoque-constitucional]. Acesso em: 05.07.2014.

[5] Rossato, Luciano Alves; Lepore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 381.

[6] Disponível em: [http://jus.com.br/artigos/13369/a-possibilidade-do-ministerio-publico-conceder-remissao-pre-processual-cumulada-com-medida-socioeducativa]. Acesso em: 07.06.2014.

[7] A possibilidade de cumulação de medida pelo membro ministerial, embora prevaleça, não é o melhor entendimento, vez que o art. 127 do ECA não deve ser interpretado de maneira isolada, devendo o operador do direito atentar-se para os demais mandamentos previstos no próprio ECA, em especial, o art. 180, que determina que o Ministério Público pode, sim, conceder a remissão (inc. II), mas, para a aplicação de medida socioeducativa, o Estatuto pressupõe a existência de representação ou, em outras palavras, de ação socioeducativa (inc. III). Portanto, ao nosso entendimento, a cumulação de medida socioeducativa apenas pode ocorrer em se tratando de remissão concedida na fase judicial, como forma de extinção ou suspensão do processo.

[8]   Rossato, Luciano Alves; Lepore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 381-382.

[9]  Rossato, Luciano Alves; Lepore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 382-383.

[10] Rossato, Luciano Alves; Lepore, Paulo Eduardo; Cunha, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 380.

[11] Azevedo, Nayara Aline Schmitt. Apontamentos para uma abordagem criminológica do sistema socioeducativo a partir da aproximação do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Juizados Especiais;Revista de Direito da Infância e da Juventude: RDIJ, v. 1, n. 2, p. 177-201, jul./dez. 2013.

[12] Azevedo, Nayara Aline Schmitt. Apontamentos para uma abordagem criminológica do sistema socioeducativo a partir da aproximação do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Juizados Especiais;Revista de Direito da Infância e da Juventude: RDIJ, v. 1, n. 2, p. 177-201, jul./dez. 2013.

[13] Disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=267964]. Acesso em: 11.06.2014.

[14] Disponível em: [http://jus.com.br/artigos/29227/o-stf-e-a-natureza-juridica-da-sentenca-de-transacao-penal]. Acesso em: 11.06.2014.

[15] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 891.

[16] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 891.

[17]  Faria, Bento. Código Penal brasileiro comentado. Rio de Janeiro: Record, 1961. p. 197.

[18] Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 85.

[19] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 894.

[20] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 896.

[21] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 911.

[22] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 912.

[23] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 914-915.

[24] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 904.

[25] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 910.

[26] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 922.

[27] Disponível em: [http://marcosbandeirablog.blogspot.com.br/2010/03/prescricao-das-medidas-socioeducativas.html]. Acesso em: 06.06.2014.

[28] Proposta de tese institucional para o II Encontro Estadual de Defensores Públicos. Tese 32. Proponentes: Núcleo Especializado da Infância e Juventude.

[29] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 933.

[30] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. Parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 1, p. 933.

[31] Proposta de tese institucional para o II Encontro Estadual de Defensores Públicos. Tese 32. Proponentes: Núcleo Especializado da Infância e Juventude.

[32] Azevedo, Nayara Aline Schmitt. Apontamentos para uma abordagem criminológica do sistema socioeducativo a partir da aproximação do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei dos Juizados Especiais;Revista de Direito da Infância e da Juventude: RDIJ, v. 1, n. 2, p. 177-201, jul./dez. 2013.

[33] Disponível em: [http://jus.com.br/artigos/14173/prescricao-da-pretensao-socioeducativa-qual-parametro]. Acesso em: 05.07.2014.

Bruno César da Silva

Defensor Público do Estado de São Paulo com atuação junto à Vara da Infância e Juventude de Ribeirão Preto/SP.

Membro do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Mestre em Sistema de Garantias Fundamentais pela Instituição Toledo de Ensino.

Naiara Volpato Prado

Advogada coordenadora da carteira de processos civis passivos da empresa de energia Elektro Eletricidade e Serviços Ltda no escritório Abramides e Goncalves.

Graduada pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru.

Parecer
PARECER TÉCNICO AO PLS 508/2013 E SEU SUBSTITUTIVO
Data: 24/11/2020
Autores: ROGÉRIO FERNANDO TAFFARELLO

I. Objeto da consulta

Parecer técnico oferecido às entidades Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD, Justiça Global, Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH, art. 19, Associação para Reforma Prisional – ARP e Greenpeace Brasil a respeito do PLS 508/2013, apresentado pelo Sen. Armando Monteiro no contexto das muitas manifestações populares iniciadas em junho de 2013 e que pretende coibir atos de violência – sobretudo patrimonial, mas também contra pessoas. Referido projeto de lei foi publicado no Diário do Senado Federal de 05 de dezembro de 2013 e levado à tramitação perante a E. Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara Alta do Congresso Nacional.

O texto proposto pelo Sen. Armando Monteiro visa a “tipifica[r] como crime de vandalismo a promoção de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos”.

Estabelece, assim, uma inusitada e criativa figura criminal de “vandalismo” em seu art. 1.º, caput e § 1.º, estatuindo-lhe figuras equiparadas em seu § 2.º e causas de aumento de pena (que impropriamente chamou de qualificadoras) em seus §§ 3.º e 4.º, com a intenção, ainda, de impor o regime inicial fechado de cumprimento de pena para qualquer de suas figuras (§ 5.º).

No corrente ano de 2014, no âmbito da CCJ-SF, a proposição foi encaminhada ao relator, Sen. Pedro Taques, que não lhe constatou vícios de legalidade, juridicidade, regimentalidade e técnica legislativa, mas o considerou “demasiadamente amplo” e, com vistas a atender uma demanda oficial pela neocriminalização e, ao mesmo tempo, melhor adaptar o texto às liberdades públicas salvaguardadas pela Constituição, propôs-lhe texto substitutivo.

Então, de acordo com o substitutivo do Sen. Pedro Taques, não mais haveria a tipificação do “vandalismo” e de suas figuras equiparadas e majoradas, mas se “altera[riam] dispositivos do Código Penal para reprimir crimes ocorridos em manifestações ou concentração de pessoas”.

O texto do substitutivo propõe alterar disposições vigentes do Código Penal que concernem a circunstâncias agravantes genéricas (art. 61 do CP) e a previsões da parte especial atinentes aos delitos de homicídio (art. 121), lesão corporal (art. 129) e dano (art. 163), sempre no sentido de recrudescer o tratamento penal nas hipóteses em que fatos se cometam no bojo de concentrações de pessoas.

II. Contextualização fática

Para avaliar a juridicidade da proposição legislativa em sentido amplo, o que inclui a consonância com o interesse público, determinada pelos valores constitucionais que a norteiam, não se pode desconsiderar os fatos concretos que a motivam e impulsionam.

As manifestações populares do último ano emergiram, como é fato notório, em fins de maio sob a forma de protesto contra o aumento dos valores das passagens de ônibus e metrô em algumas capitais estaduais.

Foram inicialmente noticiadas pelos meios de comunicação como atos de grupos localizados e numericamente limitados, que se punham a interromper indevidamente o trânsito de veículos em ruas e avenidas. Já havia, porém, confrontos com forças policiais, inclusive com a presença de tropas de choque das polícias militares.

Assim foi que, na semana do dia 10 de junho de 2013, diversos foram os editoriais da imprensa escrita e audiovisual reclamando uma resposta mais enérgica do Estado contra os manifestantes, invariavelmente invocando o direito “de ir e vir” dos que sofriam as agruras de congestionamentos intermináveis, mas se olvidando da garantia inscrita no art. 5.º, XVI, da Constituição da República. Frases de efeito de alguns governantes estaduais e de editorialistas reputavam manifestantes em geral como “vândalos” e “baderneiros”, sem que integrantes dos Poderes Executivo ou Legislativo viessem a debate público esclarecer a necessidade de garantir-se o direito de reunião e de protesto em sua extensão constitucional.

Nesse contexto, manifestação popular programada para o início da noite da quinta-feira, 13 de junho de 2013, na cidade de São Paulo, sofreu violentíssima repressão policial, resultando em dezenas de presos e feridos entre populares e até mesmo entre profissionais da imprensa. Ante as detenções arbitrárias de jornalistas que apenas exerciam seu direito fundamental ao trabalho – o qual, por sua natureza peculiar, tem especial tutela constitucional sob o manto da liberdade de imprensa – e as lesões graves causadas por policiais militares contra esses profissionais, tendo dois deles sido atingidos no rosto por tiros de balas de borracha, acarretando (como é fato notório) a um fotógrafo a perda de um olho, o noticiário a partir do dia 14 de junho tornou-se bem mais crítico à ação oficial, retratando inúmeros abusos sob a forma de prisões arbitrárias e agressões físicas a cidadãos por agentes do Estado.

Como reação à violência estatal que marcou a noite de 13 de junho em São Paulo, a causa dos manifestantes passou a obter adesão jamais imaginada. Na manifestação subsequente, programada para o fim da tarde da segunda-feira 17 do mesmo mês, marcharam centenas de milhares de cidadãos por ruas e avenidas da cidade. Concomitantemente, outras capitais apresentaram o mesmo crescimento exponencial de manifestantes nas ruas, os quais não necessariamente compartilhavam das mesmas causas, gerando perplexidade de gestores públicos e analistas. Protestos tornaram-se quase diários. Entre as muitas e variadas pautas políticas que neles se viam, destacaram-se a violência policial – estopim da eclosão dos grandes atos coletivos –, a corrupção, a insatisfação com a prestação de serviços públicos e a crise de representação política.

Tal situação perdurou especialmente durante os meses de junho e julho, mas atos coletivos esporádicos subsistem até os dias atuais, dez meses mais tarde.

Após os atos de junho, emergiram, entre manifestantes, grupos adeptos da autointitulada “tática black bloc” e outros que se valiam de atos contra a propriedade (notadamente agências bancárias e alguns prédios públicos específicos) como meio de resistir à violência policial, divergindo o seu foco ao tempo em que se iniciava a repressão contra manifestantes em geral.

Manifestações e conflitos entre populares e agentes estatais ocorreram inclusive durante a Copa das Confederações, em 2013, incutindo receio em governantes, anunciantes privados e representantes da Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), bem como em cidadãos, de que atos violentos possam atrapalhar em alguma medida a paz durante a realização da Copa do Mundo de futebol em junho e julho deste ano de 2014. Alguns atos coletivos contra a Copa do Mundo já foram realizados neste ano, repetindo-se cenas de violência e abuso policial que evidenciam um quadro político e social ainda instável e irresolvido.

Tais episódios, havidos nos meses recentes, implicaram diversos debates na seara pública acerca de uma suposta necessidade de adotarem-se medidas legislativas específicas e extraordinárias para a contenção dos problemas de violência física e patrimonial, atualmente associados – corretamente ou não – à realização de manifestações populares no país.

Ao se analisar a questão, porém, é preciso não perder de vista que a eclosão das manifestações multitudinárias em meados de junho último – e a radicalização de alguns atos – foi largamente alimentada pelas cenas de repressão policial abusiva vistas nos primeiros atos e, sobretudo, naquele da noite de 13 de junho:

“[n]a verdade quem inaugura a ação violenta são os próprios governos, através das orientações que deram a suas polícias (...) em um primeiro momento (a atitude) foi de criminalização das manifestações populares e espontâneas. As falas eram no sentindo de que se tratava de uma grande baderna, e a sociedade respondeu indo às ruas cada vez mais, repudiando essa leitura”.[4]

III. Parecer técnico

Feitas as considerações necessárias à análise da proposta, passa-se, ora, à sua apreciação jurídica.

III.A) Constitucionalidade formal

Não há vícios formais verificados na proposição, cuja iniciativa no âmbito do Senado Federal atende ao disposto no art. 22, inc. I, da Constituição da República, bem como nos arts. 48, caput, e 61, caput, da mesma Carta.

A proposição também atende à suficiência, no que lhe é aplicável, ao regramento da Lei Complementar n. 95/1998 – consectário do art. 59, parágrafo único, da Constituição – e ao Regimento Interno do Senado Federal.

III.B) Constitucionalidade material

Mais delicado e complexo faz-se o exame da constitucionalidade material do texto projetado.

III.B.a) Quanto ao texto original

A proposta original, da lavra do Sen. Armando Monteiro, assim dispôs:

“O Congresso Nacional decreta:

Art. 1.º É crime de vandalismo promover ou participar de atos coletivos de destruição, dano ou incêndio em imóveis públicos ou particulares, equipamentos urbanos, instalações de meios de transporte de passageiros, veículos e monumentos, mediante violência ou ameaça, por qualquer motivo ou a qualquer título.

  Pena – reclusão, de quatro a doze anos e multa, além das penas correspondentes à violência e à formação de quadrilha, e ressarcimento dos danos causados.

  § 1.º O crime também se configura pela presença do agente em atos de vandalismo, tendo em seu poder objetos, substâncias ou artefatos de destruição ou de provocação de incêndio ou qualquer tipo de arma convencional ou não, inclusive porrete, bastão, barra de ferro, sinalizador, rojão, substância inflamável ou qualquer outro objeto que possa causar destruição ou lesão.

  § 2.º Incorre nas mesmas penas aquele que idealiza, coordena, estimula a participação, convoca ou arregimenta participantes para fins de atos de vandalismo, mediante distribuição de folhetos, avisos ou mensagens, pelos meios de comunicação, inclusive pela internet.

Formas qualificadas

  § 3.º Se o crime for cometido utilizando-se o agente de infiltração em manifestação popular de natureza pacífica e democrática, de cunho político ou reivindicatório de direitos, a pena será acrescida em um terço.

  § 4.º Se o agente portar ou utilizar armamento ou artefato de guerra, inclusive ‘coquetel molotov’ ou granada, a pena será acrescida da metade até dois terços.

Cumprimento da pena

  § 5.º Qualquer que seja o tempo de condenação, a pena será cumprida inicialmente em regime fechado.

Art. 2.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Como se pode observar, o projeto, em sua conformação original, visava a consagrar mais uma lei penal autônoma no ordenamento, estabelecendo uma neocriminalização sem maiores pretensões no sentido de lograr-lhe uma adequação organizativa no subsistema legislativo penal.

Consequentemente, o primeiro problema dogmático e principiológico que se lhe imporia seria o de indagar sobre o bem jurídico fundamental pretensamente tutelado pela incriminação, de forma a minimamente legitimar a sua introdução no ordenamento jurídico. Trata-se de problema invariavelmente presente em leis penais pontuais, as quais não indicam e nem indiciam com segurança desejável o bem jurídico que visam a proteger, relegando essa tarefa à doutrina, que, vez ou outra confrontada com erros técnicos do legislador, nem sempre consegue cumpri-la a contento.

Na espécie, é possível supor que a figura criminal de “vandalismo” voltar-se-ia à proteção do bem jurídico paz pública, tutelado em nossa legislação pelos arts. 286 a 288 do Código Penal e pelo art. 2.º da Lei 12.850/13; nenhum dos quais, todavia, guarda semelhança substancial com a figura projetada principal, a do art. 1.º, caput, do PLS em sua versão original. Por outro lado, há ainda que se admitir, argumentativamente, que vise a tutelar o patrimônio, público e privado, interpretação que resulta da leitura da figura principal, mas que esbarra nos §§ 1.º a 4.º do mesmo art. 1.º, que compreendem figuras equiparadas e majoradas do tipo legal de crime proposto.

Em verdade, a estrutura e o conteúdo do caput e dos parágrafos do art. 1.º do texto originalmente projetado divergem entre si, seja pelas lesões jurídicas que supõem (ou que estabelecem como ficção, o que por si só representa grave problema material na medida em que se aparta da tutela de qualquer bem jurídico), seja pelo fato de o primeiro representar crime de dano, e os demais, de perigo. Adicione-se ainda que o dano patrimonial, bem como a perturbação à paz pública sob a forma de associação criminosa, já estão devidamente contemplados pela ordem jurídica vigente, no bojo do próprio Código Penal, razão por que se faz despicienda e mesmo inusitada a pretensão de abordá-los em lei autônoma, tendente a acarretar indesejável confusão na interpretação sistemática do ordenamento.

A redação empregada é defeituosa, a começar pela adoção do substantivo “vandalismo”, o qual possui certo apelo popular e mediático, mas é excessivamente coloquial e desconhece definição semântica segura, razão pela qual se revela inidôneo para atender às exigências de segurança jurídica, de que a norma penal seja certa e taxativa, emanadas do princípio da legalidade (CRFB, art. 5.º, inc. XXXIX; CP, art. 1.º). Crítica semelhante merece o núcleo “promover” encontrado no tipo principal, cuja indeterminação tende a permitir uma inconstitucional ampliação indefinida do âmbito de incidência da proibição penal, bem como o emprego das expressões “por qualquer motivo ou a qualquer título”, repetitivas e inúteis no contexto de uma norma incriminadora. A situação piora ainda mais a partir da leitura dos §§ 1.º e 2.º, que utilizam vocabulário vago e indeterminado (“presença do agente em atos de vandalismo”; “qualquer objeto que possa causar destruição ou lesão”; “estimula a participação”; etc.) e, por via de consequência, contemplam condutas absolutamente irrelevantes sob o ângulo da ofensividade, não implicando tutela a bem jurídico algum.

Revela-se manifesta a violação ao princípio da proporcionalidade ao se analisarem as penas cominadas, cabendo observar que à figura típica simples projetada prevê-se sanção mínima (quatro anos de reclusão) equivalente ao quádruplo daquela reservada pelo Código Penal ao crime de lesão corporal de natureza grave (CP, art. 129, § 1.º), ao dobro daquela cominada ao crime de redução à condição análoga à de escravo (CP, art. 149), ao dobro daquela estatuída para o crime de atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo (art. 261), e mesmo – no que toca a figuras alegadamente assemelhadas – ao quádruplo da pena mínima cominada para o delito de associação criminosa ou a oito vezes aquela reservada ao crime de dano qualificado (CP, art. 163, parágrafo único). De outra parte, a simples “presença do agente em atos de vandalismo” (art. 1.º, § 1.º), adicionada do porte de aparente “coquetel molotov” (art. 1.º, § 4.º),[5] ainda que não o haja utilizado, acarretar-lhe-ia penas mínima e máxima injustificavelmente idênticas às do crime de homicídio doloso consumado (seis a vinte anos de reclusão).

Ainda no que toca à breve exegese do texto originalmente projetado, é de se notar que o § 5.º do art. 1.º do PLS ofende frontalmente jurisprudência constitucional consolidada do Supremo Tribunal Federal. Como é amplamente sabido, no julgamento do Habeas Corpus n. 111.840/ES, rel. Min. Dias Toffoli, o Plenário da Suprema Corte declarou incidentalmente a inconstitucionalidade, por violação ao princípio da individualização da pena (art. 5.º, XLVI, CRFB), da previsão legal do art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos –, que impunha a obrigatoriedade, para os delitos ali arrolados (e seus equiparados), do estabelecimento do regime inicial fechado de cumprimento de pena. Inviável, portanto, ao legislador pretender reavivar essa inconstitucional previsão normativa.

Finalmente, cumpre assinalar que a imposição de diversas restrições a manifestações populares esbarra diretamente nas disposições generosas com as quais a Constituição da República positivou as liberdades de reunião, de associação e de manifestação do pensamento. Ao que aqui importa, eis o mais relevante de seus dispositivos.

CRFB, art. 5.º, XVI: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

De se notar que, nesse ponto, como em diversos outros do texto constitucional – e é uma característica particular da Constituição brasileira –, o legislador constituinte, ao afirmar um direito integrante do rol principiológico de liberdades públicas fundamentais, fê-lo mediante a positivação de norma com densidade de regra, e não estritamente de princípio. Tal circunstância impede ao legislador ordinário – senão também ao Poder Constituinte Derivado, a teor do art. 60, § 4.º, inc. IV, da Constituição – estabelecer norma legal restritiva do exercício desse direito, o qual já foi condicionado ex ante e, fora dessas condições, está plenamente garantido pela norma constitucional.

As restrições admissíveis ao exercício do direito de reunião em quaisquer espaços públicos são, portanto, desde 1988, tão só a necessidade de que o ato seja pacífico, sem armas, previamente comunicado à autoridade competente e não impeça outra reunião coletiva prevista para ocorrer simultaneamente no mesmo local; nenhuma outra. Veja-se:

“Aí [na dicção constitucional acima transcrita] a liberdade de reunião está plena e eficazmente assegurada, não mais se exige lei que determine os casos em que será necessária a comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por esta, do local da reunião. Nem se autoriza mais a autoridade a intervir para manter a ordem, o que era utilizado para dificultar o exercício da liberdade de reunião e até para o exercício do arbítrio de autoridade. Agora cabe apenas um aviso, mero aviso, à autoridade que terá o dever, de ofício, de garantir a realização da reunião”.[6]

Nessa medida, sem prejuízo da motivação certamente legítima do autor do PLS, revela-se inviável qualquer pretensão legislativa no sentido de criminalizar a presença de pessoas em manifestações que portem “qualquer objeto que possa causar destruição ou lesão”, mormente ante a significação indeterminada do objeto a que se refere o dispositivo projetado. Ou de criminalizar uma vaga “infiltração em manifestação popular de natureza pacífica e democrática”, ou ainda o exercício da liberdade de expressão por meio da divulgação de folhetos ou em meios de comunicação físicos ou eletrônicos.

De resto, o parecer exarado pelo Sen. Pedro Taques no âmbito da CCJ e disponibilizado a essa comissão aos 13 de março do corrente ano clarifica, às suas fls. 03/04, o conflito do texto original com a axiologia constitucional:

“O tipo penal ora proposto [...] é demasiadamente amplo. Por exemplo, uma pessoa que participa de uma manifestação social que, por atos de alguns, descamba para o vandalismo poderia ser considerada agente do crime de vandalismo mesmo que não tenha nenhuma relação com os vândalos. No limite, inclusive aquele que incentiva pela Internet a participação de outras pessoas em passeatas legítimas poderia ser considerado agente do crime de vandalismo, caso sejam praticados crimes por terceiros.

  O direito de livre manifestação do pensamento e o direito de reunião são direitos fundamentais garantidos por nossa Constituição, em seu art. 5.º, incisos IV e XVI. Esses dois direitos fundamentais consagrados pelas grandes declarações de direitos ainda do século XVIII passam a ser compreendidos cada vez mais não somente em uma concepção individualista, mas também coletiva. Isso significa que são verdadeiros direitos de titularidade difusa e ligados umbilicalmente ao princípio democrático, em que os cidadãos participam ativamente da gestão da vida pública”.

A conclusão necessária a que se chega é a de que o texto originalmente projetado no âmbito do PLS n. 508/2013 deve ser rejeitado, ante as diversas inconstitucionalidades materiais insanáveis que apresenta.

III.B.b) Quanto ao substitutivo apresentado à CCJ

Necessário, então, avaliar-se o substitutivo proposto ao projeto em referência pelo Sen. Pedro Taques por ocasião do parecer que forneceu à CCJ, suprarreferido. Eis o texto respectivo:

“O Congresso Nacional decreta:

  Art. 1.º O art. 61, do Código Penal – Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigor[ar] com a seguinte alteração:

  ‘Art. 61. .................................................................................

  II – ..........................................................................................

  m) com a utilização de máscara, capacete ou qualquer outro utensílio ou expediente destinado a dificultar a identificação do agente’.

  Art. 2.º O art. 121, do Código Penal – Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte alteração:

  ‘Art. 121. .....................................................................

  § 2.º ...................................................................................

  VI – Se o crime é cometido em manifestações, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário’.

  Art. 3.º O art. 129, do Código Penal – Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar acrescido do seguinte § 12:

  ‘Art. 129. ..................................................................................

  § 12. Aumenta-se a pena pela metade se a lesão for praticada durante manifestações populares, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário’.

  Art. 4.º Acrescente-se parágrafo segundo ao art. 163 do Código Penal – Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, renumerando-se o atual parágrafo único como parágrafo primeiro:

  ‘Art. 163. ........................................

  Dano em manifestações públicas

  § 2.º Se o dano ao patrimônio público ou privado for praticado durante manifestações públicas, concentrações populares ou qualquer encontro multitudinário.

  Pena – reclusão, de 2 a 5 anos e multa’.

  Art. 5.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Tem-se, pois, uma proposição com vistas a: (i) incluir nova circunstância integrante do rol de agravantes genéricas inscrito no art. 61, II, do Código Penal; (ii) adicionar nova hipótese qualificadora do delito de homicídio, no art. 121, § 2.º, do Código Penal; (iii) adicionar novel causa especial de aumento de pena ao crime de lesão corporal dolosa, art. 129 do CP; (iv) tipificar o crime de dano em manifestações públicas, introduzindo o § 2.º do art. 163 do Código Penal e lhe cominando pena mínima correspondente ao quádruplo daquela atualmente prevista para as hipóteses de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, do CP).

Examinemos cada uma das alterações propostas:

(i) Em primeiro lugar, tem-se a pretensão de positivar circunstância agravante aplicável a todo crime praticado “com a utilização de máscara, capacete ou qualquer outro utensílio ou expediente destinado a dificultar a identificação do agente”.

Não nos parece haver, aqui, afronta específica ao direito de não constituir prova contra si – nemo tenetur se detegere –, tutelado pelo art. 5.º, inc. LXIII, da Constituição Federal e pelo art. 8.º, 2, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Sucede, porém, que a intenção de o agente esconder a própria identidade é da própria essência do ato criminoso, sendo, em democracia, ônus que se impõe ao Estado – e não ao cidadão – a devida apuração de fatos delituosos e a identificação e punição dos responsáveis. Tal ônus é intransferível, e jamais se cogitou, entre nós – mesmo no ápice de roubos a bancos em grandes cidades, havido nos anos 80 e 90, por exemplo –, punir-se mais gravemente cidadãos que praticassem ilícitos escondendo suas faces. Espanta, pois, que se tencione ora estabelecer uma circunstância agravante nesse sentido a reboque de atos praticados em manifestações populares que, como acima visto, constituem expressão da vida democrática de um Estado Democrático de Direito.

A resolução do problema da identificação do agente não pode transbordar em recrudescimento da lei penal, mas deve passar pelo aumento da aptidão e eficácia das agências penais responsáveis pela identificação dos infratores. Mutatis mutantis, e data maxima venia, esse vetor legal trilharia o mesmo caminho de uma obrigação de o agente criminoso portar crachá identificador para viabilizar a persecução criminal, sob pena de incidência em incremento de sua reprimenda. A inviabilidade da medida torna-se indisfarçável ao se suporem situações práticas análogas à proposta.

Ora, na medida em que é inerente ao delito a pretensão do agente de não ser responsabilizado, não há como dissociar do fato típico, ilícito e culpável que o configura o eventual uso de máscara, capacete ou disfarce qualquer. E a identificação do autor é ônus e dever do Estado, que, em atos praticados no bojo de concentrações de pessoas, tem inclusive melhores condições de flagrar a prática e identificar eventuais responsáveis do que em tantas outras ilicitudes cometidas longe das vistas de terceiros. Pretender o contrário é medida desproporcional e, destarte, afronta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República nos termos do art. 1.º, inc. III, da Constituição.

A inserção de uma tal circunstância agravante no ordenamento ainda implicaria uma dificuldade prática tendente a consagrar inúmeras injustiças concretas: visto que a redação projetada refere-se a “[...] expediente destinado a dificultar a identificação do agente”, tem-se claro que se tenciona punir mais severamente quem veste o utensílio com o específico fim de praticar delitos. Como se tratariam juridicamente, então, situações em que pessoas vestem máscaras escolhidas para protestar contra atos do governo, ou ainda para divertir-se em festas de Carnaval, folclóricas, regionais, etc., e se veem acidentalmente envolvidas em tumultos quaisquer, com eventual resultado lesivo a terceiro? Avulta a impossibilidade de se separar com segurança quem tenha vestido uma máscara para praticar ilícitos e quem tenha vestido o mesmo item para finalidade diversa, e não há margem para obtenção de certeza jurídica a respeito da intencionalidade do agente pretérita ao fato.

A experiência forense cotidiana aponta não ser razoável a criação de (inconstitucional) presunção em desfavor do indivíduo, requerendo-se-lhe a apresentação de prova que demonstre sua intenção pretérita – prova essa que é, resolutamente, impossível de ser produzida. Ter-se-ia, pois, mais uma violação ao art. 1.º, inc. III da Constituição da República.

(ii) Ao depois, projeta-se uma novel circunstância qualificadora para o crime de homicídio, assim definida: “se o crime é cometido em manifestações, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário”. Aqui surge grave problema.

Desde logo, necessita-se recordar que o homicídio qualificado duplica a pena mínima do delito de seis para elevadíssimos doze anos de reclusão, o que indica que a legislação reserva a figura qualificada exclusivamente para hipóteses extraordinariamente graves de um delito que, por si só, na figura simples, já é gravemente tratado, porquanto representa o atentado ao maior bem jurídico fundamental que todo cidadão possui, e que constitui condição primeira para a fruição dos demais bens e direitos: a vida.

Ora, o agir com animus necandi, o tirar intencionalmente a vida de alguém, já é ato extremamente grave, e nessa grave medida é tratado pela legislação. Há que se ter muito cuidado com os tipos qualificados, pois, à luz do princípio da proporcionalidade, o tipo qualificado deve contemplar hipótese que justifique um tratamento penal duas vezes mais severo – ou seja, o tratamento, para um só fato, equivalente ao do cometimento de dois homicídios autônomos entre si (e que não mereçam o benefício do crime continuado, art. 71 do CP).

Analisando-se o rol de qualificadoras do art. 121 (§ 2.º), constata-se que duas delas (incs. I e II) supõem o cometimento do crime com motivação especialmente repugnante ou vil, os motivos torpes e os fúteis; uma terceira (inc. III) qualifica o delito praticado de maneira particularmente cruel ou insidiosa – como o uso de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura –, ou aquele de cuja prática resulte perigo comum a uma quantidade indeterminada de pessoas; ainda outra (inc. IV) supõe especial perfídia do agente, que pratica o crime mediante traição, emboscada ou dissimulação de suas intenções; e, por fim, uma última hipótese (inc. V) para os homicídios praticados com a intenção de assegurar a prática, o proveito ou a ocultação de outro crime qualquer. Em comum, todas essas circunstâncias – umas de caráter subjetivo, outras de caráter objetivo – indicam um especial desapreço do agente ao bem jurídico vida e à dignidade da vítima, refletindo-se no extraordinário desvalor de sua conduta e na conseguinte resposta penal que a lei lhe dedica.

Tal situação, à toda evidência, não se verifica na hipótese do crime “cometido em manifestações, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário”. Não há como supor especial desvalor da conduta criminosa tão só em virtude de o fato dar-se no bojo de manifestações populares, e menos ainda no caso de uma qualquer “concentração de pessoas” ou “encontro multitudinário” – locuções que, de resto, tornam o tipo excessivamente aberto e indeterminado, violando-se a certeza semântica que o princípio da legalidade lhe impõe e dando margem a potenciais aplicações arbitrárias.

Ao contrário: do ponto de vista da tipicidade subjetiva, é muito mais viável falar-se em uma menor reprovabilidade de eventuais fatos criminais cometidos no âmbito de multidões, em que exaltações e desinteligências não são incomuns. Exemplo disso são os casos cotidianos de pessoas responsáveis e cumpridoras de seus deveres domésticos e profissionais que, em arquibancadas de futebol, em filas ou no trânsito das cidades, comportam-se de maneira antissocial, muitas vezes praticando atos inimagináveis aos que com elas convivem naqueles ambientes em que mantêm conduta exemplar.

A hipótese com que se pretende justificar um tratamento penal duas vezes mais grave para o homicídio é, se não valorativamente neutra, provavelmente atenuadora da culpabilidade, e não agravadora. E não permite analogia possível com a gravidade de qualquer das demais hipóteses qualificadoras do homicídio atualmente vigentes. É, portanto, absolutamente injustificada e desproprocional, razão por que deve ser rejeitada pelo E. Senado Federal.

(iii) Em terceiro lugar, cabe examinar a proposta de introdução de § 12 ao art. 129 do Código Penal, o qual imporia uma causa especial de aumento de pena na razão de sua metade “se a lesão for praticada durante manifestações populares, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário”.

O mesmo raciocínio desenvolvido para a hipótese anterior é também aplicável a esta, conquanto não se trate, aqui, de tipo qualificado. Com efeito, descabe o aumento de pena em qualquer razão – mormente em metade de seu montante – pela mera circunstância de o fato haver sido praticado em uma manifestação popular ou em uma indefinida concentração ou encontro de pessoas. Não há, como visto, desvalor adicional da conduta praticada nesses casos, sem o qual não se justifica qualquer exasperação de pena.

Note-se, ademais, que a abertura da hipótese a uma dada “concentração de pessoas” tenderá – aqui ou na qualificadora projetada para o homicídio – a fazer que, na prática, veja-se seu campo de incidência estendido a fatos havidos no âmbito de pequenos grupos quaisquer, sem nenhuma relação com a finalidade visada pelo legislador, ampliando-se as potenciais injustiças e desproporcionalidades concretas na aplicação da lei.

(iv) Finalmente, analisamos a novel qualificadora projetada para o crime de dano nos termos do PLS em questão, a qual visa a tratá-lo com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa “se o dano ao patrimônio público ou privado for praticado durante manifestações públicas, concentrações populares ou qualquer encontro multitudinário”.

Chama a atenção, desde logo, o fato de que a pena mínima ora proposta seja o quádruplo daquela prescrita para as quatro hipóteses de dano qualificado atualmente vigentes, e nada menos que vinte e quatro vezes a pena mínima da figura simples do crime. De se notar também a circunstância de que o texto do substitutivo não diverge da sistemática codificada na medida em que trata de forma igual – e extremamente severa – qualquer dano praticado ao patrimônio público ou particular, sendo que o atual art. 163 do CP, com razão, qualifica o delito cometido contra o patrimônio público (parágrafo único, inc. III) ou de que resulte considerável prejuízo para a vítima (parágrafo único, inc. IV).

Adicionalmente, ao se observar o conjunto das circunstâncias fáticas que atualmente qualificam o tipo legal de dano, nota-se que todas elas – as duas supracitadas e as do crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (parágrafo único, inc. I) ou com emprego de substância inflamável ou explosiva (parágrafo único, inc. II) – abrangem hipóteses de gravidade nitidamente superior à da figura simples, sob o ângulo do desvalor da conduta ou do resultado. Tal não ocorre com a figura projetada, que, não obstante, tenciona implicar consequência penal muito maior, incorrendo em notável falha sistêmica e violação ao princípio da proporcionalidade.

O quantum de pena privativa de liberdade proposto é de todo desproporcional às situações fáticas a que visa abranger. Ademais, a consequente insuscetibilidade de aplicação do benefício da suspensão condicional do processo para os casos em que presentes os seus requisitos objetivos e subjetivos (Lei 9.099/95, art. 89), tende a agravar os problemas de congestionamento de processos sobre fatos bagatelares na Justiça Criminal, e, pior, o superencarceramento. Arrisca-se, assim, a canalizar recursos públicos escassos para a repressão de atos menos graves em detrimento da persecução e punição a crimes que preocupam a sociedade brasileira em muito maior medida.

De se ver ainda que a aprovação de tal figura faria que qualquer dano patrimonial praticado em manifestações ou concentração de pessoas acarretasse pena significativamente maior do que a do crime de lesão corporal, mesmo se aprovada a causa de aumento a este reservada no PLS em apreço, revelando-se que o texto projetado atribui valor muito maior ao patrimônio do que à incolumidade física do ser humano. Trata-se, pois, de mais uma desproporcionalidade flagrante e inaceitável sob o ponto de vista constitucional, violadora do art. 1.º, inc. III da Constituição da República.

IV. Considerações finais

Comparando-se o substitutivo com o texto original do PLS, identifica-se naquele o inegável mérito de apresentar alguma preocupação com a coerência sistêmica da legislação penal, não se propondo a meramente consagrar mais um tipo penal excessivamente vago, que criminaliza com penas absolutamente desproporcionais diversas situações inócuas – ou seja, um tipo à toda evidência inconstitucional em ambos os preceitos, primário e secundário. Ao passo que o texto original, injurídico prima facie, cabe ser desde logo descartado, afigura-se louvável, no substitutivo do Sen. Pedro Taques, a busca de adequar a suposta demanda neocriminalizadora a institutos atualmente vigentes da parte geral e especial do direito penal.

Aí, porém, reside sua primeira falha: haveria, com efeito, uma demanda social pela criminalização? Em outras palavras: haveria uma necessidade de recrudescer previsões legais de natureza criminal para lidar com os eventos ilícitos verificados em manifestações populares?

Ora, como visto, todas as hipóteses fáticas contempladas no substitutivo já são devidamente criminalizadas pela legislação, o que justifica e impõe a intervenção estatal para fazer cessar eventuais atos dessa natureza. Se a prevenção não está a funcionar a contento, certamente tal circunstância não se deve a uma escassez de legislação penal, porquanto ela existe e é perfeitamente aplicável a crimes cometidos no âmbito de manifestações populares.

Em verdade, o que se tem visto na prática é bem o contrário do que se afirma como o propósito dos projetos neocriminalizantes associados a manifestações públicas: tem-se assistido a um preocupante uso desmesurado da força oficial em manifestações populares, consubstanciado, sobretudo, em intervenções policiais que ultrapassam os limites da legalidade, o qual importa extravagante limitação aos direitos constitucionais de reunião e de manifestação do pensamento. É claro que excessos devem ser contidos, mas devem sê-lo de forma escrupulosa e moderada, sem a truculência e o autoritarismo que não se coadunam com o regime democrático.

A experiência brasileira com manifestações populares, observada desde junho de 2013, tem reafirmado de maneira eloquente que a resposta oficial excessiva, para além do flagrante menoscabo às instituições jurídicas democráticas, somente tem sido geradora de mais violência nas ruas e nas multidões. É necessário refrear esse ciclo de violência ilegal, flagrantemente catalisado por ações estatais ineptas, reprimindo-se ações ilegais localizadas que se verifiquem no âmbito de manifestações populares ao mesmo tempo em que se garanta a todos a segurança devida para o exercício de liberdades públicas fundamentais que são indissociáveis da vida em uma democracia sadia.

Não são estes, contudo, os objetivos e os efeitos que poderão decorrer da eventual aprovação do PLS 508/2013, cujo texto, sem embargo – repita-se – das nobres intenções de seu proponente, foi permeado de inconstitucionalidades materiais desde seu início, das quais tampouco se salvou o substitutivo apresentado à CCJ do E. Senado Federal.

Em conclusão, o parecer é no sentido da rejeição do PLS 508/2013, texto original e substitutivo, ante as graves inconstitucionalidades materiais acima apresentadas.

São Paulo, 05 de abril de 2014.

Rogério Fernando Taffarello

[1] O presente documento foi produzido por solicitação da organização Conectas Direitos Humanos, por meio de seu coordenador do programa de Justiça, Rafael Custódio, a quem o autor agradece o honroso convite e a outorga do consentimento para esta publicação. O parecer foi apresentado aos integrantes da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aos 06 de maio de 2014, por ocasião da inclusão do PLS 508/2013 em pauta para deliberação, por duas sessões consecutivas (07.05.14 e 14.05.14). E, felizmente, foi levado em consideração por alguns senadores, os quais, inclusive, citaram nas sessões da CCJ alguns de seus trechos (com destaque para as manifestações do Sen. Randolfe Rodrigues e do Sen. Lindbergh Farias), além de outros argumentos e documentos adicionais que subsidiaram o seu convencimento. O Poder Executivo acabou por retirar o apoio inicialmente dado ao PLS, que foi retirado de pauta e não chegou a ser deliberado; no momento presente, agosto de 2015, segue em tramitação na mesma Comissão, ainda no aguardo de deliberação ou arquivamento.

[2] Apresentado pelo Sen. Armando Monteiro.

[3] Apresentado pelo Sen. Pedro Taques.

[4] Análise da Profa. Dra. Jacqueline Muniz (Iuperj/Ucam; GEE-Coppe/UFRJ), integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em entrevista à BBC Brasil publicada em 21.06.2013. Disponível em: [http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/06/130620_manifestacoes_confrontos_pacificos_cq.shtml]. Acesso em: 05.04.2014.

[5] Note-se que o § 4.º do art. 1.º originalmente projetado refere-se ao porte ou ao uso de “armamento ou artefato de guerra, inclusive ‘coquetel molotov’ [...]”, no que comete uma contradição lexical, visto que não se trata o coquetel molotov de artefato de guerra. Eis mais uma violação à exigência – imposta pelo princípio da legalidade – de clareza e determinação da norma penal.

[6] Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 19.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 267 – grifamos.

Rogério Fernando Taffarello

Mestre em direito penal e criminologia pela Universidade de São Paulo.

Especialista em direito penal pela Universidad de Salamanca

Contos
O mensageiro de Deus
Data: 24/11/2020
Autores: Gustavo Samuel

Para o púlpito da Câmara dos Deputados, o ranzinza Pastor Marcondes se dirigia. Cumprimentou alguns colegas de partido e bateu a mão na pasta cheia de papéis que tinha em mãos. Acostumado a falar com multidões, o deputado sabia como fazer discursos arrebatadores e estava pronto para iniciar a discussão sobre o projeto que considerava o mais importante da sua vida:

– Senhoras e senhores deputados... É com muito orgulho que venho diante de vocês revelar os desígnios para esse país. Ele, o Altíssimo, Senhor dos Povos e Exércitos, está preocupado com as últimas ações do diabo na terra, que tem conquistado cada vez mais espaço. As famílias de bem têm sofrido e se desestruturado. São os sinais do Apocalipse.

Os outros deputados ouviam atentos. Era o início habitual do discurso de Marcondes, mas sabiam que algo importante estava para ser anunciado:

– Antes, quando Deus não tinha concorrência no coração das pessoas, as crianças eram calmas e tranquilas. Choravam apenas quando estavam com fome ou sujavam as fraldas...

Uma deputada mais idosa cochichou para um outro ao seu lado:

– Mas que droga de mundo esse cara tá falando? Tive quatro filhos e quinze netos, todos choravam por qualquer coisa. Alguns ainda choram, mesmo grandes.

– Hoje, já no útero, chutam as próprias mães, agredindo-as sem qualquer consideração. Com aquelas carinhas falsamente inocentes e a voz estridente, tornam a vida dos pais um inferno, com verdadeiras extorsões. Tornaram-se verdadeiros criminosos! Precisam do rigor da lei para puni-los. Os pais, verdadeiros reféns, não conseguem mais mantê-los na linha. A sociedade pede socorro.

Cochichos se espalharam por todos os lados.

– Já antevejo pessoas, esses esquerdopatas ateus, comunistas do diabo, dizendo que as crianças estão em desenvolvimento. Estão aprendendo e que é preciso educação, blablabla. Mas vejam só... Esses delinquentes já nascem espertos. No mesmo dia em que nascem, procuram o peito da mãe. Numa atitude completamente despudorada, fazem de tudo para conseguir se empanturrar de leite. Novinhos, já acessam tablets, smartphones, notebooks. Alguns nem ler sabem, mas pegam o controle da TV sozinhos e impõe a programação na TV da sala e ai do coitado do pai que tentar assistir ao futebol no lugar de Peppa ou Galinha Pintadinha.

Um estudante de jornalismo, que cobria a sessão para o jornal da universidade, interrompeu o discurso do pastor:

– Isso é loucura! Será que ninguém mais está escutando esse contrassenso?

O presidente da Câmara apontou o dedo e três policiais já abordaram o estudante, o imobilizaram e o retiraram do local. O pastor continuou:

– Amigos, irmãos em Cristo, espero que estejamos juntos nessa cruzada contra o mal. Pela responsabilização criminal de todas as pessoas, independentemente da idade. Se já sabe cometer um crime, tem que saber cumprir a pena. Deus nos abençoe.

Mais da metade do Plenário levantou e ovacionou o deputado. Dois coronéis, um da polícia militar e outro do cerrado goiano, cumprimentaram o deputado e já colocaram seus partidos à disposição na aprovação da PEC.

Uma ala de deputados, no entanto, vaiou o deputado, enquanto ele saía da sala.

– Ateus de merda – respondeu o pastor.

Um dos deputados que puxava as vaias levantou o dedo e respondeu:

– Marcondes, você sabe muito bem que não sou ateu. Sou pastor, como você. E se você não lembra, um certo carpinteiro uma vez disse: “Vinde a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos céus”.

Marcondes deu de ombros e respondeu:

– E o que um carpinteiro entende de política?

[1] Observação: O conto foi parido antes das declarações do Deputado Laerte Bessa. Duvido que meus leitores-beta tenham algum contato com o deputado, então não acho que ele tenha me plagiado. A ideia era de que o conto denunciasse como uma hipérbole a realidade, mas ao que parece, os absurdos têm se compatibilizado com o cotidiano brasileiro.

Gustavo Samuel

Defensor Público do Estado de São Paulo

Cadeia de Papel
nome de horror
Data: 24/11/2020
Autores: Debora Diniz

No asilo dos loucos criminosos, fiz imagens pelos nomes e pelas sobrevivências dos habitantes — eles foram Bubu, Jaime, Antônio e Almerindo. Não havia o crime como motivo da internação; o roteiro do filme foi um poema em três atos (Diniz, 2013). No presídio das mulheres, falei de necessidades da vida conversadas com o jaleco branco; raras vezes o crime ganhou palavra nas histórias (Diniz, 2015a). Na cadeia de papel, malfeitos de horror aparecem a cada narrativa — Laura, latrocínio; Júlia, homicídio; Ângela, tentativa de homicídio. E todos por motivos medonhos. Mas o principal desaprumo para o sistema não é esse. É o tráfico de drogas, e uma das histórias veio em formato de dupla com cinco malas de 130 kg de maconha. Pelo peso da mercadoria ou pelo sofrimento da vítima, os horrores têm nome sério de crime para mulheres adultas e latejam as histórias das meninas.

Preciso me explicar. Começo pelo que acredito não fazer — o horror é desnudado para proteger a confiança nas histórias, mas não escrevo pelo apelo ao terrível. Laura me contou a tarde da matança, deu detalhes dos minutos de enforcamento e detalhou como vive no silêncio da espera. Sua história foi antes publicada em notícias, uma das quais a descreveu como “cretina interesseira”. Os termos não foram do jornalista, mas tradução própria da menina após ter lido o passado pelas palavras de quem perseguia a maldade pueril entre trancas. Para o jornalista, talvez houvesse um enredo prévio à narrativa, cujo tema central seria o horror e a natureza criminosa das meninas (Campbell, 2013). Os dois anos de cadeia de papel de Laura foram reduzidos a vinte linhas e, para seu desespero, ela soube pelo jornalista que o namorado duvidava de sua sinceridade no enredo amoroso — “Ela sempre gostou de homens mais velhos. Desconfio até que estava saindo com o mestre de obras quando aquilo aconteceu. Está tudo acabado entre nós”, teria dito o menino ao jornalista (Campbell, 2013).

“Até o outro autor do crime tornou-se vítima da jovem manipuladora, não me ponho por inocente, pois enxergo a futilidade de minhas razões”, me escreveu Laura a respeito das palavras do jornalista. Assim como o dr. Juiz, o dr. Promotor ou o jornalista, nomeei o enredo amoroso como latrocínio em meu texto sobre sua história, mas a menina marcou diferença entre as narrativas, “Não senti necessidade de retratar-me com seu texto. Não tive vergonha de me reconhecer em tudo que li. Fui contada, e ser contada é ser enxergada, descrita, dar em papel a própria vida, é como olhar o próprio retrato sem procurar a si mesma, e encontrar-se no lado oposto da história”. [2] Assim como ela, eu não quis negar a futilidade do horror assumindo em tom puritano que a malfeitora seria vítima, um risco de quem escreve sobre o abandono: é no encontro inesperado e ambíguo entre a infância e o crime que se formam a cadeia de papel e as biografias de suas habitantes.

monumento ao gênero

É assim que ensaio escrita diferente das pesquisas sobre os arquivos judiciais do século passado, quando a tranca era o destino para as mulheres fora da época, como mostraram os estudos sobre as loucas do Hospital do Juquery ou sobre os presídios femininos (Cunha, 1986; Angotti, 2012). Não são as fora da lei do gênero, como as prostitutas ou as mulheres independentes, as que caem na roda do sistema socioeducativo. Minha hipótese é o reverso da que moveu os estudos históricos sobre os sentidos da prisão ou dos asilos para o encarceramento das mulheres. As meninas malfeitoras são aquelas que fizeram monumento da ordem do gênero: Laura esteve em um enredo amoroso e espera o futuro para resolver a paixão não rompida; Ângela engravidou do namorado, e o ciúme a fez esfaquear um desafeto; Júlia matou outra para salvar a mãe; a dupla provisória das malas de maconha assumiu crime para proteger um homem maduro e líder do tráfico. A ordem do gênero aciona uma linhagem de parentesco e localização do feminino para subordiná-la ao poder dos homens ou à ordem familiar pela paixão, pelo sexo ou pela dependência — não é qualquer menina, mas aquela já precarizada por outras desordens de inteligibilidade, como a da geografia, classe, cor ou educação.

É no conjunto das meninas mais pobres e escuras, da periferia e com pouca escola que se conformam as meninas da cadeia de papel. Não parece haver equívoco judiciário no julgamento pela internação, e os malfeitos não são eufemismos para desvio: alguns são crimes de matança; outros, crimes de trabalho ilegal infantil, como é o tráfico de drogas. Uma menina malfeitora obedece a, pelo menos, dois regimes de poder: o criminal e o patriarcal. O bando masculino também se move por esses regimes segundo um marco prévio de precarização, mas há diferenças entre eles e elas. Eles atuam em firminhas, calçados com um buldogue ou protegidos por um soldado no ponto do tráfico. Aprendem com outros a vida da malandragem em uma quebrada comum. São iniciados ainda mais jovens que elas, saem da escola sem manuscrito, só com digital, e, como parte de um processo sem ritos claros, “engrossam a voz” nos anos de tranca. Caem em grupo, reconhecem-se no carômetro como fiéis ou cabritos e movem-se para o ataque ou a defesa também no plural.

Elas chegam solitárias. No teste do carômetro, não identificam desafetas ou conhecidas. Passam os dias nos barracos de adaptação em solidão ainda maior, pois não há isso de quarto próprio para menina pobre que perambula pela rua. Na banda masculina, os barracos de adaptação estão sempre lotados; disputa-se já ali quem dormirá no morro ou na favela. É momento para novas alianças, aprendizado das regras de hierarquia e sobrevivência. Por sua vez, elas se descobrem miúdas no silêncio da primeira tranca, ameninam-se ainda mais — talvez por isso seja comum dizer que o trabalho de Donagente na banda feminina seria ainda mais custoso. Mas há um reconhecimento mútuo na chegada: a multidão das provisórias conversa sobre como foi traída pelo objeto amoroso, alguém que antes as teria enchido de sentido para a matança ou o tráfico. “Ele já arrumou outra”, me contava a dupla das cinco malas de maconha em conversa pela bocuda, onde vive há 42 dias. Uma delas tem 14 anos recentes, a outra tem 17. O parceiro amoroso e do crime da mais jovem delas, que insiste em chamá-lo de “marido”, era dono da boca de fumo: um homem de 26 anos, com passagens longas pelo presídio masculino. O marido estava na batida policial, mas escapou limpo. Nunca a visitou ou mandou notícias, menos ainda o advogado prometido.

A dupla das malas vive no barraco mais escondido no M6, o módulo das provisórias à espera de sentença. Só sabe o que se passa no exterior pelas notícias em formato de grito da habitante do barraco mais próximo da tranca do módulo. “Ela é moreninha!”, anunciou o pouco visto da recém-chegada. Era terça-feira de carnaval, a menina foi pega vendendo crack no centro da capital. Sentamos juntas enquanto as ordens da casa eram anunciadas, “Mãos sempre para trás, prenda os cabelos ao sair do quarto, não se meta em confusão, banho de sol e refeição serão avisados”. A menina era chochinha, os olhos, muito redondos, e o rosto, desenhado como de boneca. Segunda rodada, primeira internação, o enredo era parecido ao das vizinhas — marido mais velho, experiente no crime, foi pego pela polícia. Ela o visitava no presídio, prometeu fidelidade, assumiu a chefia da venda. Terminou pega pela polícia com crack escondido nas cavidades naturais.

Elas matam, mas a matança tem enredo certo: ciúme ou revide. Elas traficam, mas são parte de um bando familiar chefiado pelo marido ou pelo pai. O crime é horrível, no entanto o gênero também se mostra terrível quando sobreposto ao regime de precarização da vida pela pobreza, geografia ou cor, cujo resultado é nefasto para a sobrevivência. O gênero conforma o feminino a uma ordem patriarcal de poder; porém, é no cruzamento com outras formas de precarização da vida que surgem as meninas da cadeia de papel (Diniz, 2015b). Ângela troca as próprias fraldas por um tiro com trajeto incerto no corpo, mas nunca cuidou das fraldas da filha; o marido já fez segundo filho na desafeta das facadas. [3] É com os meninos que elas aprendem o poder do crime, é por eles que elas lutam com outras meninas, e é por eles que choram nos barracos. Havia onze meninas provisórias no M6. Passeei pelas bocudas com pergunta única: “Caiu aqui por homem?”, e a resposta foi sim para todas. Eles eram maridos ou namorados.

É assim que nomear o crime é também nomear o patriarcado. Elas não matam ou traficam apenas pelo mundo do crime, com suas vantagens e seduções, mas pelo mundo patriarcal do crime. Umas poucas, como em uma catacrese da alienação pelo gênero, apresentam-se como as “Noivas do Chucky”, tatuando no corpo o que a tranca inscreve como sentença. [4] A entrada na cadeia de papel tem idade mínima, 12 anos, e algumas chegam com aniversário ainda na lembrança. A iniciação no crime é múltipla. Camila é uma provisória, cresceu vendo o pai ensacando maconha pela sala — “Minha lembrança mais antiga, eu tinha uns cinco anos” —, e explica que ele traçava fronteira entre a casa e a quebrada, “Meu pai não gostava que os bichos viessem comprar a erva em casa”. Cresceu com o pai no presídio, foi cuidada pela mãe, que a visita na cadeia de papel. Seu crime foi uma tentativa de homicídio com facadas em uma desafeta do sexo — uma vizinha disputava o namorado.

Quando passo pela bocuda do barraco de Camila, há sempre uma conversa urgente. Uma delas foi saber se eu conhecia a banda masculina do reformatório, e a felicidade foi gigante ao saber que havia passeado por lá. “Os meninos são bonitos?”, e me perguntou se eu poderia fotografá-la para exibi-la aos vizinhos. O pedido de Camila é uma combinação perigosa entre tolice, sexo e dependência — o que descrevo como o monumento do gênero incorporado naquelas biografias. Nas paredes do barraco, estão as declarações de amor para um fora que a ignora: se escrever nas paredes chama corretivo de indisciplina, o risco parece ser compensado pelo ornamento particular que reafirma os sentidos para ter caído na cadeia de papel. Elas são meninas ainda, mas performadoras de uma ordem destrutiva para a sobrevivência no mundo do crime. Não foram só as facadas que sentenciaram Camila à tranca, mas a subordinação ao gênero.

Há outra ambiguidade na performance do sexo como um monumento do gênero — elas são conhecidas como mais indisciplinadas que os meninos. A indisciplina se caracteriza por um gesto central de formação do corpo na cadeia de papel: elas resistem aos rituais de procedimento. Um menino anda olhando para o chão, não encara Seuagente, mantém as mãos firmes para trás, antecipa repressão e se desculpa no formato aceito pelo reformatório. Isso não significa que a insubordinação do bando masculino inexista; ao contrário, é no lado masculino que há formação de estoque com poder de matança, lutas entre rivais e fugas de cavalo doido. O M10 é o espaço de reflexão para os meninos, sem equivalente para as meninas em formato de multidão: um módulo de castigo com ares de inferno. Da banda feminina, as paredes do módulo se mantêm em pé, estoque é tampa de caneta ou unha alongada, e a principal desordem é grito alto e fino. Nesse jogo entre o bando masculino violento em grandes eventos e as meninas insubordinadas no cotidiano, a tese do cansaço pelo trabalho com as meninas é mantra entre Donagentes e equipe técnica.

É fácil entender a insubordinação cotidiana como um gesto histérico das meninas, a forma tola de rebelar-se pela queixa. A hipótese da histeria me interessa menos que entender na insubordinação uma expressão do gênero como monumento na performance da menina infratora. O conhecimento compartilhado sobre o mundo do crime que move a banda masculina é rarefeito no puxado feminino — elas passam longos períodos sozinhas, muitas descobrem as regras da casa nos intervalos do banho de sol ou na companhia de uma outra no barraco. Reformatório é “fuleiragem” para os meninos; para elas, é “cadeia de papel”. Não é uma diferença só de descrição do espaço, mas de domínio da moral da tranca. Mesmo na primeira passagem, um menino já tem conhecimento da vida na fuleiragem. Conheci muitas meninas que contavam ser elas mesmas como a primeira a ter caído na cadeia de papel.

sexo do acolhimento

É na cena do acolhimento que as bandas da cadeia de papel gritam diferença. Renata foi a primeira que vi sentar na mesa redonda da disciplina para ouvir as regras da casa. Donagente que apresenta regimento é firme, toma nota das respostas, é acompanhada por Donagente Escrivã, que digita detalhes da existência. Renata havia chegado na véspera,

57, sete celulares e vários dinheiros. “Sozinha?”, “Foi”, “Armada?”, “Peixeira”, “Isso é a verdade?” A resposta foi um estalar de língua entre os dentes que não há onomatopeia que me ajude a descrever. Mas o ruído era de confirmação. O corpo ia escorregando na cadeira, os braços se estendiam na mesa, “Ajeite-se! Sente direito”. Não fosse pela ordem de Donagente Gerente, eu estaria prestes a socorrer aquele corpo indolente que ignorava a seriedade do momento. A menina bocejou alto, Donagente alisou papel. Não sei quem respirou fundo. “Onde mora?”, “Com meu marido”, “Marido aos 14? Cadê sua mãe?”, “Na casa dela”, “Tem contato com o pai?”, e de novo o estalido dos dentes, mas que agora sugeria negação. Donagente não parava, “Algum irmão?”, “7 filhos minha mãe tem”, “Algum na vida do crime?”, “Três”, “Algum aqui?”, “Não sei”, “Sua mãe trabalha?”, “Faxineira”, “Só?”, “Ela já pegou pena, já tá acabando”. Novo aliso no papel. “Estuda?”, “Estudei”.

Donagente Gerente me olhou, esperava algum esboço de presença. Fiz esforço para nem piscar, e daí recomeçou como um disco acelerado, “Vou resumir: sua mãe tem 7 filhos, você não tem contato com o pai, terceira série, roubou, por que foi roubar? Porque é dinheiro fácil?”, e no meio do sermão o estalido de novo, o corpo escorregava, só se via a cabeça na beirada da mesa. “Por que você acha que tem direito de roubar? Pense na vida, você é nova, aqui tem regras. E mais: aqui não é vida para ninguém”. De novo, Donagente me olhou, sem querer eu assenti com a cabeça, é verdade, ali não é lugar para ninguém. Sem planejar, fui também a voz da disciplina, tudo anotava, como Donagente Escrivã. Não houve pausa, “Isso aqui não é vida, ele não vai te esperar, quando sair, já vai ter outra no seu lugar ou ele vai estar preso”. Acabou o sermão, a menina levantou-se para a foto do carômetro.

Enquanto ela era fotografada, os procedimentos da casa eram anunciados, sem ordem ou pausa, “Mãos para trás em qualquer deslocamento. Ninguém vai te cobrar isso, mas, se errar, verá a disciplina. As normas da rua ficaram do lado de fora. Não vai desrespeitar ninguém aqui. Não existe isso de ‘Ei, psiu!’, é Dona Agente, Sra. Agente, nada de falar como na quebrada aqui”. O estalido agora foi comprido, havia muito o que concordar. “Sabe mais? Serão 45 dias de revista, vergonha é pouca, imagine sua mãe, três vezes para frente, uma vez para trás, nua, agachando-se. Você escolheu estar aqui. Não ajudou sua mãe.” Não houve estalido, desde a véspera Renata se avexava com a revista, Donagente Gerente desconhecia segredo e falava no genérico.

Renata tem corpo diferente. Não é hermafrodita, é menina no papel e na conformidade dos trejeitos, mas as partes escondidas são diferentes de tudo já visto por ali. A cada vistoria, tenta esconder o que não se exibe. Donagente do M6 tem até fala mansa, mas insiste, “Eu preciso ver, já cansei de ver das outras, vamos, tire a mão”. E a menina teima em cobrir o que não se esconde. Enquanto se lembrava do escondido no M6, Donagente do acolhimento continuava ladainha, “Se tiver indisciplina, banho de sol reduzido, podemos controlar sua água e seu colchão”. Acho que Donagente Gerente sentiu algo diferente em trecho anterior do sermão e palavra certa foi a vistoria do corpo, voltou a ela, “A mesma revista que você faz, sua mãe lá em cima vai fazer. Ela merece?” Ouvi o primeiro “Não” sem estalido.

A menina recebeu papel, nele estava escrito “Acautelamento”, nome difícil para traduzir que agora o Estado lhe devia cuidados. Ela lia com dificuldade, deitava-se sobre o papel, fazia sílabas enormes para letra do nome que precisava assinar. “Sua mãe sabe que você está aqui?”, “Acho que não”. A resposta deu direito a ligação de três minutos, mas antes era preciso responder às perguntas de Donagente Escrivã, “Sua medida de adaptação começou ontem. Serão três dias. Tem bens?”, “Só colar”, “Toma remédio?”, “Não gosto”, “Tem que tomar remédio?”, “Faço tratamento para as vistas”, “Usa óculos?”, “Para as vistas que vejo e ouço”. Novo aliso no papel, acho que é trejeito de Donagente Gerente. “Tatuagem?”, estalido de não como resposta. Ouvi de longe um grito, “Milagre”.

Renata fez fila para a ligação. Os meninos do M10, o módulo da reflexão ou do castigo, ligavam para o que restou do mundo. Seuagente do telefone pede para que não se olhem — meninos virados para a parede e menina do lado de fora da saleta. Esperei seis ligações de meninos para chegar a vez de Renata. Entre os meninos, as regras de conversa foram todas respeitadas: nada de fala cifrada — ao menos aquela óbvia eu identificaria —, conversa só com mãe, pai ou outro aderente autorizado, sem ofensa ou grito com parente do outro lado. Chegou a vez de Renata, “Quem tá falando? Como tá aí? Fica de boa. Aqui tô de boa”, Seuagente interrompe diálogo, “Por enquanto”, “Manda um salve para o pessoal”, Seuagente lembra que nada disso de salve para ninguém de quebrada nenhuma, ameaça cortar a conversa. “Fala para minha mãe trazer cigarro”, Donagente grita, “Nada de cigarro. Fale para sua mãe trazer comida, sabonete, qualquer coisa”, “Fala para minha mãe trazer bolo”, “Sem cobertura”, grita Seuagente, “Sem cobertura”, nisso se passaram os três minutos. “Manda um salve para...”, Seuagente desligou o telefone e a mirou sério. Os meninos baixaram a cabeça, se pudessem tampariam os ouvidos.

referências bibliográficas

Angotti, Bruna. Entre as leis da Ciência, do Estado e de Deus: o surgimento dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2012.

Campbell, Ulisses. Perdidos no Crime. Veja Brasília, 2013.

Cunha, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

Diniz, Debora. A casa dos mortos. Brasília: ImagensLivres, 2008. 23’.

______. A Casa dos Mortos: do poema ao filme. Trama, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 22-35, 2013.

______. Cadeia: relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015a.

______. Feminismo: modos de ver e mover-se. In: . O que é feminismo? Cadernos de Ciências Sociais. Lisboa: Escolar Editora, 2015b.

laura

O crime foi hediondo. Durou “seis minutos e meio”, detalha a menina miúda de olhos gigantes. Laura é a habitante mais antiga da cadeia de papel, e a antiguidade é absoluta, pois não há menino mais velho que ela, nem menina com tão longa estadia. Nem por isso é xerifa ou X-9, sobrevive em quase silêncio, só muito observa. Vive há dois anos no M8, divide barraco com outra, pois ali solidão demais chama tragédia. As cores do cabelo mostram saída recente, “Há um mês foi meu primeiro saidão”. Olhei foto da chegada no arquivo, o rosto tombava para a direita, havia mais peso no corpo. Pensei ser a desgraceira do carômetro, mas ela esclarece que emagreceu doze quilos na cadeia de papel. Só os olhos cresceram, parecem conter susto.

Menina nova, apaixonou-se por outro como ela. O amor era folhetinesco, com direito a rival e ciúme. Sob juras eternas, os dois fantasiaram intruso na paixão, um vizinho mal-afamado como assediador. A paixão crescia e a luta contra o inimigo fervia o pensamento — Laura e o namorado não tinham passagem pelo mundo do crime, desconheciam delegacia ou reformatório. Planejaram enredo trágico sem drogas ou álcool, só não anteciparam detalhes da cena de matança. Talvez o plano fosse menos bruto, quem sabe disciplinar os desejos do vizinho incômodo com uma surra ou um susto. O desfecho é que foi medonho.

Laura achegou-se à casa do vizinho pretextando retribuição às investidas amorosas por dinheiro ou droga. O namorado se fez sombra, entraram juntos e renderam o homem. Primeiro um soco no rosto, depois uma gravata; por fim, um fio de extensão entregue por Laura ao menino matador. A torção do fio que estrangulou garganta pediu força masculina, mas a teresa foi entregue por ela. “Minha mãe quer acreditar que eu não fiz, mas a verdade é que eu fiz”, enfrenta-se sem diminuir a circunferência dos olhos, “Eu sinto vergonha de mim”. O homem morto foi largado em ribanceira, e o corpo, levado em carro roubado. O crime recebeu nome terrível para o sistema, “Latrocínio”.

Pedi detalhes sobre os sentidos da vergonha, Laura explicou-se. “É mais do que arrependimento”, dizia ela, arrumando palavra comum de reformatório. Uma menina com malfeito se arrepende para mãe, dr. Juiz e dr. Promotor, Donagente ou quem mais aparecer assombrando passado ou bondade futura. Arrependimento houve, e chegou justo no dia em que descobriu a literatura como sobrevivência. Achei a conexão outro enredo de folhetim, pedi palavra no miúdo e saí em busca de prova para o dito. “Quando li Crime e castigo, entendi quem eu era. Um monstro”, e de novo os olhos não baixavam, sem audácia buscavam encontro, e a literatura nos socorria, “Quem mais você leu?”, “Saramago, Kafka, Kundera”.

Fui à biblioteca da cadeia de papel. Há um projeto chamado Clube do Livro, uma bonita ideia a meio caminho entre a salvação e o desespero. Quando o reformatório foi inaugurado, não havia luz elétrica nos módulos, as meninas trancavam-se em permanente escuridão e silêncio. Não havia televisão ou rádio, nenhuma forma de conversa com outro mundo senão a imersão naquele. Um Seuagente inventou carrinho de livros, passeia por corredores e módulos, não discrimina capacidade de leitura, recebe os lidos e distribui novidade. A leitura foi o que restou, e Laura desceu do bonde já com escola avançada, quase pronta para a universidade. Passou a ler — nada dos salmos recitados pelas pastoras visitadoras de domingo, mas literatura. “Nós somos cegas, não enxergamos quem somos”, aproximou Saramago do estrangulamento, refez-se sobre a paixão adolescente e a brutalidade do crime.

Entre o crime e o bonde para o reformatório passaram-se três dias. Laura era suspeita, mas a descoberta não veio de confissão em viva voz, e sim dos pés miúdos. A menina tem pés de criança, pequeninos como de uma chinesa antiga deformada pelo feminino. A perícia do estrangulamento encontrou pistas poucas na casa, mas as pegadas foram gigantes para a verdade do crime. Olhei os pés, os dedos enrugaram-se, parece que neles também havia vergonha. Laura esperou longo pelo primeiro saidão, preparou-se para ser outra: diminuiu cabeleira, mudou a cor dos fios, já havia diminuído no volume. Mas não resolveu desarranjo interior — é outra nas formas, e o passado permanece escancarado nos olhos, um desespero de quem encarnou para sempre o tormento da vergonha.

modos de falar

acolhimento: procedimento de apresentação das regras à recém-chegada na cadeia de papel. O acolhimento é feito por Donagente Gerente para as meninas e por Seuagente Gerente para os meninos.

barraco: quarto ou cela onde vive a menina na internação. Há grades e jega para uma, mas em geral habitam duas. Assim, ou se divide jega, ou uma delas dorme em colchão na praia, isto é, no chão.

bicho: é o mundo do malfeito, do crime e da maloqueiragem que vive na quebrada, fora da cadeia de papel.

bocuda: é a janela de grade do barraco. A porta do barraco é composta de duas partes em ferro: na superior, há grades que permitem passar a comida, objetos e os braços; na inferior, é compacta. Bocuda é a parte superior das grades.

buldogue: revólver, em geral, um .38.

cabrito: é o dedo-duro do módulo. Em geral, faz firminha com Seuagente ou Donagente e cagueta vizinhos. Um barraco estratégico para posicionar o cabrito é o primeiro da entrada do corredor do módulo — permite vista panorâmica para o vidro de vigilância dos agentes. O cabrito também é conhecido como X-9.

cadeia de papel: é a unidade socioeducativa de internação. O nome é dado pelas meninas internadas.

calçado: “estar calçado” é expressão que resume o menino ou a menina com arma escondida no corpo.

carômetro: uma folha em branco com a fotografia 3x4 dos habitantes de cada módulo. O menino ou menina recém-chegado estuda os rostos do carômetro antes de ser deslocado para um novo barraco. O carômetro arruma amizades e guerras entre os meninos

cavalo doido: fuga em massa.

donagente/seuagente gerente: é vocativo para designar quem veste preto e se multiplica aos olhos das meninas e dos meninos. São os agentes de segurança, atendentes de reintegração socioeducativos (ATRS) ou carcereiros, termos que se sobrepõem a depender do contexto. Seuagente é o vigia da banda masculina, e Donagente, da banda feminina. Na hierarquia da casa, só está abaixo do diretor da unidade, acima do C2, o gerente de segurança de cada plantão.

favela: também conhecida como praia. “Dormir na favela” é dormir no chão.

fiel: parceiro de malfeito, em geral, fidelidade já construída no crime e fora da cadeia de papel.

firminha: alianças e pequenos grupos com poder nos módulos. Uma firminha difícil de ser quebrada é aquela de fiéis de tempo anterior à cadeia de papel. Donagente e Seuagente C2 quebram a cabeça tentando identificar e desmembrar firminhas.

fuleiragem: é a cadeia de papel, nome comum à banda masculina para descrever a unidade socioeducativa de internação para adolescentes.

M10: módulo do castigo ou de Seguro para meninos sem possibilidade de convivência nos módulos. Ali vivem os intocáveis e os indisciplinados. No lado direito, o corredor da reflexão, estão os que cumprem medida disciplinar por atos graves, como tentativa de fuga ou agressão; no lado esquerdo, estão os intocáveis, uma categoria ampla de meninos sem lugar na cadeia de papel — loucos, estupradores ou gays.

marido: descreve o companheiro com quem a menina coabitou. Não significa expectativas de direitos da ordem jurídica, mas aponta para um status de gênero e conjugalidade.

morro: dormir com direito a jega própria no beliche. A expressão é “dormir no morro”.

procedimento: movimentações e ações de segurança de Donagentes e Seusagentes. Procedimento é também o gesto de abaixar a cabeça, virar-se para a parede e voltar as mãos para as costas. Há procedimento para entrar e sair do barraco, para vistoriar o corpo (revista vexatória) ou para se mover no reformatório.

provisória: condição temporária da menina após receber uma sentença por ato infracional. A provisória permanece até 45 dias na cadeia de papel, podendo receber sentença de cumprimento de medida em meio aberto ou fechado. Se receber medida em meio fechado, será uma sentenciada na cadeia de papel.

quebrada: é o local onde a menina mora, mas também a geografia precisa de onde atua na venda da droga. Há fiéis da quebrada e inimigos de quebradas.

reformatório: maus modos próprios de descrever a unidade de internação socioeducativa. Nos termos das meninas, ali é cadeia de papel ou fuleiragem.

revista: procedimento de vistoria do corpo nu, feito a cada entrada e saída das meninas ou meninos do barraco: são três agachamentos frontais e um de costas; ao final, de cócoras, o menino ou a menina deve assoprar o braço. Vistoria-se o cabelo, a boca, a língua, as dobras do corpo. Pode ainda haver revista no barraco, em dias de procedimento geral. A entrada de algo escondido no corpo pode ser descrita como “erro de revista” ou “erro de procedimento”.

rodar: ser pega pela polícia, o que pode resultar em uma ocorrência com liberação ou com sentença de medida socioeducativa. Um sinônimo comum é “cair”.

salve: mesmo que “alô”, mas em linguagem do mundão do crime e da quebrada.

sentenciada: menina que recebeu sentença de internação por tempo indeterminado, entre 6 meses e 3 anos.

soldado: é o fiel da quebrada, menina ou menino recém-chegado para o tráfico de drogas. Em geral, é também o aviãozinho.

teresa: qualquer coisa que sirva de corda. Em geral, teresa chama forca para suicídio.

X-9: é a cabrita, a dedo-duro do módulo.

xerifa: é a líder do módulo. A liderança pode ser “positiva” ou “negativa” — a positiva é aquela com habilidade para negociar com as Donagentes e a disciplina; a negativa é a que divide o módulo e provoca discórdia entre as habitantes.

[1] Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. É autora do livro Cadeia, relatos sobre mulheres (Civilização Brasileira, 2015, 224 p.).

[2] Meninas e Donagentes são as primeiras leitoras do que escrevo.

[3] A história de Ângela foi contada na edição anterior desta coluna.

[4] Chucky é personagem de filme de terror em que o boneco é um matador.

Debora Diniz

Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética

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