A operação policial na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro desfaz qualquer pretensão de otimismo de que estaríamos, em alguma medida, avançando na segurança pública. O País segue batendo recordes de letalidade policial. Uma operação cujo objetivo era cumprir o mandado de prisão preventiva de 21 pessoas produziu 28 mortes.
O Rio de Janeiro apresenta um quadro particularmente difícil, mas o problema da segurança pública não se restringe ao Estado fluminense. Está espalhado por todo o País, com suas múltiplas consequências: caçando vidas, destruindo famílias, aprofundando desigualdades, privando gerações de uma cidadania digna.
Não é apenas que o sistema funcione aquém do desejável. Ele agrava miseravelmente os problemas. Tal quadro deve suscitar indignação. Por mais frequentes que sejam as notícias das muitas consequências da falência da segurança pública – a violência policial é apenas uma delas –, não cabe se acostumar com esse dramático quadro.
O IBCCRIM nasceu da indignação frente ao massacre do Carandiru. Surgiu da profunda aspiração de transformar essa absurda e desumana realidade do sistema penal. Muito se fez ao longo dessas quase três décadas. Mas é de justiça reconhecer – chacinas como a do Jacarezinho impedem outra interpretação – que muito pouco se fez.
Perante as imensas necessidades ainda existentes, perante as intensas atrocidades que o sistema teima em reproduzir, muito pouco se fez. Isso não é uma crítica ao passado. É sobretudo uma chamada de responsabilidade ao presente e ao futuro. É tarefa do IBCCRIM contribuir para políticas de segurança pública consistentes, tanto de prevenção como de investigação.
São muitas as frentes possíveis, de curto, médio e longo prazos. É preciso realizar diagnósticos precisos. Detectar as causas. Aprender com os erros. Mas acima de tudo, olhar para o problema com o objetivo de trazer melhorias. Há urgência em promover medidas efetivas – acessíveis e efetivas – para a segurança pública. Não pode ser apenas um trabalho para as próximas décadas. É – deve ser – para o presente, para as atuais gerações.
Por exemplo, prover um efetivo controle sobre a atuação das polícias. Se todo serviço público deve estar submetido a mecanismos de acompanhamento, controle e revisão, essa necessidade é especialmente grave em relação à polícia.
No entanto, o que temos? Quais meios dispomos para uma reconstrução minimamente fidedigna dos fatos ocorridos na manhã do dia 6 de maio na favela do Jacarezinho? Os fatos precisam ser apurados, mas, há de se convir, continuaremos sem uma resposta definitiva, assim como em tantos outros casos.
Um meio que pode contribuir para uma melhor transparência na atuação repressora é a câmera individual acoplada ao uniforme do policial. Não é uma panaceia, tampouco exclui a necessidade de aprimorar a formação e o treinamento dos policiais. No entanto, esse dispositivo – que deve servir para ser acessado sempre que se questionar a atuação policial – é ainda pouco utilizado no País.
A câmera não auxilia apenas em casos de grandes operações. A utilidade do instrumento também se verifica no dia a dia da atuação policial. Afinal, quantos não são os casos em que se discute a legalidade do cumprimento de buscas e apreensões levadas a efeito em residências? A câmera poderia poupar, nesses casos, discussões infindáveis acerca do fatídico “consentimento” dado pelo morador.
O objetivo da câmera não é engessar o policial. Ao contrário: dá ao servidor sério a possibilidade de se proteger diante de eventuais alegações de abuso; para uma polícia comprometida com a lei, nada melhor do que um instrumento para comprovar a legitimidade de seus atos. Via de regra, a atuação do policial deve ser pública – e sempre dentro da lei. Por isso, o sentido da câmera.
Outro tema que requer urgente aprimoramento refere-se à abordagem policial. O caso Fernandes Prieto & Tumbiero vs. Argentina, recentemente julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos oferece mais um alerta de que precisamos mudar – e rápido – as nossas políticas internas sobre o tema. O precedente, que infelizmente se amolda perfeitamente à nossa realidade, revela que as abordagens arbitrárias caracterizam violação direta aos direitos humanos.
Hoje, existem critérios em lei no Brasil quanto às abordagens, mas a prática os ignora completamente. E tudo isso sob o insofismável jugo do racismo. A “fundada suspeita” já surge em razão da cor do indivíduo. A população negra é alvo preferencial de uma política absolutamente discriminatória, que reproduz e alimenta as profundas desigualdades no País.
A verdade é que não estamos, como sociedade, cumprindo nosso papel. A segurança pública, um dos pilares fundamentais da República, está enviesada e deturpada, com o recorrente uso abusivo da violência. Quando funciona, protege poucos. A imensa maioria segue desprotegida, discriminada, tolhida. São urgentes as mudanças de procedimentos – e da própria lógica – relacionados à atuação policial. Se nada for alterado, infelizmente continuaremos assistindo, estarrecidos e revoltados, a massacres futuros. É preciso ir além da indignação.
Rogerio Schietti Cruz
Doutor e Mestre em Direito Processual pela USP.
Professor da pós-graduação da UniNove.
Ministro do Superior Tribunal de Justiça.
ORCID: 0000-0002-4734-2548
schietti@stj.jus.br
Resumo: O poder judicial de aplicar o Direito oscila historicamente. Desde os tempos em que tudo era permitido ao julgador, passando pelo cerceamento de toda independência no ato de julgar, até o desenvolvimento de um sistema que não cultive a lei como a única fonte normativa, o Direito, via globalização, tem experimentado intercâmbio entre os modelos anglo-americano e romano-germânico, como, p. ex., no aperfeiçoamento da ideia, entre nós, de que o Direito, conquanto preserve valores, deve estar aberto à necessidade de aplicar a lei de maneira estável, coerente e isonômica.
A adoção, pelo Brasil, de mecanismos de funcionalidade do sistema de justiça, sobretudo com o CPC/2015, como a introdução do dever de observância das decisões dos órgãos máximos de jurisdição, proporcionou ganhos processuais inegáveis. Importância maior, porém, reside nos efeitos extraprocessuais, que fortalecem a higidez do sistema de justiça por meio da redução (a) dos recursos desnecessários; (b) do tempo para exame das causas, pela sobrecarga de trabalho; (c) do desgaste da função jurisdicional, em função da insegurança jurídica e da ausência de isonomia na aplicação da lei.
A estrutura do Poder Judiciário baseia-se em competências não coincidentes. Enquanto juízes e tribunais julgam, sem relação de subalternidade, a partir da reconstrução histórica dos fatos, aos quais aplicam o Direito, os órgãos de cúpula têm por função precípua dizer o direito (juris-dictio), de modo que tais diretrizes, por meio de seus precedentes qualificados, devem ser seguidas pelos demais órgãos de jurisdição, aí incluída a Corte que produziu a norma, a fim de garantir a unidade e a ordenação do sistema.
Não se busca engessar a figura do juiz, nem ferir sua independência, pois continua o julgador do caso concreto autorizado a dizer o direito, desde que explicite as peculiaridades distintas e relevantes a justificar a exceção ao precedente. Ao mesmo tempo, cobrar respeito aos precedentes não implica na sua imutabilidade, pois é possível submetê-los à permanente reavaliação. O que se pretende é evitar o voluntarismo judicial, ainda que permeado de boas intenções, que desafie uma compreensão já consolidada na jurisprudência dos órgãos jurisdicionais incumbidos, legal e constitucionalmente, de tal competência principal.
Palavras-chave: Interpretação da lei; Coerência e unidade do sistema jurídico; Isonomia; observância dos precedentes; Estrutura do Poder Judiciário; Competências não coincidentes; Precedentes vinculantes; Independência judicial.
Abstract: Historically, applying the law waves. First, the judge was free. Then, the independence of the judge was weak. Since the development of a system where the norm is not the only source of the law, the exchange between different models, such as the American and the European ones, has increased. Preserving values and applying the law stably, consistently, and equally are ideas that have been improving. The new Code of Procedure from 2015 (CPC 2015) says that lower courts shall observe the high court decisions. It is worthy of the system. In fact, it reduces the number of appeals, procedures length of time, and the lack of trust in enforcement law. Courts' unique competencies are the framework of the Judiciary Branch. On the one hand, the lower courts judge the facts, working on the pieces of evidence. On the other hand, the high courts dictate what the interpretation of the law must be. It gives unit and coherence to the system. It does not mean that lower court judges are bounded since they still are the ones who will deal with which particular case. Therefore, they can apply the law precisely. Nonetheless, respect to the precedents does not means that they are settled. The idea is to avoid that the judges act by their own will, even when they have good feelings. Hence, the rule of law is preserved by respecting the precedents.
Keywords: Legal interpretation; Coherence and unity of the legal system; Equality. Following precedents; Strengthening the legal system; Judicial Independence; Structure of the Judiciary; Distinct authorities.
“Logo que, numa inovação, nos mostra alguma coisa de antigo, ficamos sossegados.” - Friedrich Nietzsche
Com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, acentuou-se a tendência, já então em construção, a tomar como mais persuasivas, ou até vinculantes, decisões judiciais anteriormente proferidas sobre igual situação fático-jurídico posta ao exame jurisdicional, nas quais se tenha estabelecida uma ratio decidendi, assim entendida, simplificadamente, como as razões determinantes do julgado, em sua complexidade fático-normativa.
A história, com seus naturais pêndulos, oscila no que diz com os poderes judiciais de interpretar e aplicar o Direito. Modelos pré-modernos, em que tudo era permitido ao julgador – pois atuava em nome do, e por dependência ao, governante – deram lugar a um modelo de cerceamento de qualquer liberdade e independência do ato de julgar. A célebre frase de Montesquieu, equiparando os juízes à boca que pronuncia as palavras da lei, “seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o rigor das leis”, bem evidencia a desconfiança à figura do então plenipotente senhor dos destinos alheios. O positivismo, por sua vez, não foi capaz de obviar a falibilidade humana na elaboração das leis, cuja rigorosa aplicação, ainda que geradora de graves danos, não se punha a questionar. Dura lex sed lex foi a quintessência dessa ideologia.
O mundo se convulsionou. Na “Era dos Extremos” (Hobsbawn), governos totalitários e Estados orgânicos desprezaram o indivíduo, em nome de ideais coletivos, germinados sob lideranças que – ao menos no caso alemão – quase tudo fizeram sob o amparo das leis. Reativamente, as Nações Unidas, no pós-guerra, sedimentaram o caminho do desenvolvimento regido pelas corretas relações humanas, e não mais se cultivou a lei, em sentido estrito, como a única fonte do Direito, pois nem sempre adequada, justa e proporcional à miríade de situações em que a realidade – mormente em uma sociedade cada vez mais líquida e cambiante – desafia o texto frio votado em um Parlamento.
A globalização não foi apenas econômica. Também no cenário jurídico, viu-se a crescente diminuição do gap entre os modelos de tradição anglo-americana e os de tradição romano-germânica. Uma dessas aproximações sistêmicas foi o aperfeiçoamento, nestes últimos, da ideia de que o Direito, conquanto se apresente como um saber conservador – pois preserva valores, bens e direitos incorporados à vida social –, deve estar aberto às transformações que naturalmente se produzem na dinâmica dos povos. E essa abertura concilia, no âmbito do poder jurisdicional, a necessidade de interpretar e aplicar a lei de maneira estável, coerente e isonômica, com a possibilidade de, ante situações não percebidas no momento de dizer concretamente o direito, ou demandantes de uma nova interpretação, lograr solução jurídica diversa da anteriormente alcançada, em nome da racionalidade e da justiça do caso concreto.
Sob tal perspectiva, vimos o Brasil avançar, normativamente, na adoção de mecanismos de maior organização e funcionalidade do sistema de justiça, nomeadamente com a edição do CPC de 2015, mercê da introdução do dever de observância, por todos os juízes e tribunais do país, das decisões enumeradas no seu art. 927, presumivelmente mais qualificadas, haja visa provirem dos órgãos máximos de jurisdição e se destinarem a ostentar uma autoridade não apenas persuasiva, mas também vinculante (binding authority).
A novidade traz ganhos processuais inegáveis, máxime para a aceleração e economia processual, tais como, apenas para referir o âmbito do processo civil, a autorização para Julgamento fora da ordem cronológica – art. 12, § 2º, II; a permissão para a concessão de Tutela da evidência – art. 311, II; a dispensa da remessa necessária – art. 496, § 4º; a possibilidade de liminarmente julgar improcedente o pedido – art. 332, III; a autorização para emissão de decisão monocrática – art. 932, IV e V; e o recebimento de apelação sem efeito suspensivo (tutela provisória) – art. 1.012, § 1º, V, todos do CPC.
São, porém, de importância muito maior os efeitos extraprocessuais que defluem da fiel observância dos precedentes qualificados oriundos das Cortes de Vértice, responsáveis, por definição da Carta Política de 1988, pela última interpretação e aplicação das normas federais e constitucionais do país.
A esse respeito, é importante bem situar o papel do STF e do STJ no organograma do Poder Judiciário quanto à função, inerente a todo e qualquer magistrado, de dizer o direito (juris-dictio). Diga-se, de partida, que os julgadores que integram a estrutura judicial estadual e regional federal não são subalternos aos que oficiam em Tribunais Superiores, mas é preciso que se tenha como clara a percepção de que o Poder Judiciário se estrutura em formato de um sistema no qual os órgãos judiciais têm competências não coincidentes, e que as diretrizes definidas jurisdicionalmente por sua cúpula devem ser seguidas pelos demais órgãos de jurisdição, aí incluída a Corte que produziu a norma.
Sob essa perspectiva, os juízes e tribunais, em geral, realizam a pretendida justiça dos casos que julgam, a partir da reconstrução histórica dos fatos, aos quais aplicam o Direito, sendo, pois, desimpedidos de interpretar os textos normativos e dar-lhes o significado mais adequado para a fattispecie posta em juízo, sob o alerta de que “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correcta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor” (KELSEN, 1979, p. 467).
A seu turno, as Cortes Supremas (lato sensu) têm a função principal de interpretar o Direito e formar diretrizes, por seus precedentes qualificados (assim entendidos os que incorporam uma ratio decidendi aos respectivos julgados), para aplicação a casos similares que vierem a ser julgados no futuro. A atuação, portanto, das Cortes Supremas é proativa (não meramente reativa) e voltada mais para o futuro e menos para o passado (correção ou controle da decisão recorrida).
Como conciliar, assim, tais competências, quando, aparentemente, o juiz se defronta com um dos precedentes indicados no art. 927 do CPC, em que não se conferiu igual interpretação do texto (legal ou constitucional)? Ou seja, de que modo o juiz, com sua liberdade de julgar – de acordo com as provas dos fatos submetidos ao seu crivo, em atividade contraditória das partes, e em conformidade com o Direito que entenda aplicável à espécie – convive com a função nomofilácica dos Tribunais Superiores, diante de um real conflito de interpretações dos textos normativos?
Não há outra maneira, creio, se não pela aceitação de que a particular visão de mundo de um magistrado pode ser até a mais correta, mas não poderá sobrepor-se à de quem, por mera divisão de competência constitucional, é responsável, com os ônus e os bônus, por atribuir ao dispositivo legal, em última instância, o significado que considera correto ou mais adequado na situação examinada.
A não ser assim, teremos tudo, menos um verdadeiro sistema – de cujo conceito não se afastam as características da unidade e da ordenação (CANARIS, 2002, p. 12) –, o qual é condição sine qua non ao alcance de algumas qualidades essenciais para que um dado ordenamento jurídico cumpra sua função de regular a vida e as relações intersubjetivas e entre o Estado e os indivíduos.
Deveras, um sistema jurídico em que se observam os precedentes vinculantes é sadio apenas se: (a) assegura a igualdade de todos os jurisdicionados perante a lei e perante o resultado da interpretação e aplicação da lei; (b) afasta qualquer sentimento de incredulidade na imparcialidade subjetiva e objetiva dos juízes; (c) evita decisões contraditórias e intrinsecamente incoerentes a minar a credibilidade do Judiciário; (d) produz a segurança jurídica, princípio fundamental e estruturante de um Estado de Direito, e que se expressa pela estabilidade da ordem jurídica e previsibilidade das consequências jurídicas das condutas humanas.
Se um juiz ou tribunal, portanto, mesmo ciente de que a situação fático-jurídica que lhe é submetida a julgamento corresponde a precedente qualificado do Supremo Tribunal Federal (decisão de seu Pleno, por exemplo), desconsidera tal diretriz e interpreta o Direito de modo diverso à ratio decidendi desse precedente, obrigará o jurisdicionado prejudicado pela decisão dissonante a manejar recurso ou habeas corpus – no STJ e eventualmente no STF – para ver reconhecido o Direito negado pelo juízo ordinário.
O dano ao jurisdicionado é manifesto pela notória desigualdade de tratamento que lhe é dispensado no resultado concreto da interpretação e aplicação da lei, como bem pontua Marinoni: “A advertência de que a lei é igual para todos, que sempre se viu escrita sobre a cabeça dos juízes nas salas do civil law, além de não mais bastar, constitui piada de mau gosto àquele que, em uma das salas do Tribunal e sob tal inscrição, recebe decisão distinta a proferida – em caso idêntico – pela Turma cuja sala se localiza metros mais adiante, no mesmo longo e indiferente corredor do prédio que, antes de tudo, deveria abrigar a igualdade de tratamento perante a lei” (2012, p. 11).
E semelhante postura não apenas prejudica o titular do direito, mas compromete a higidez do sistema de justiça, que se vê abarrotado de recursos e postulações cujo resultado será inevitavelmente a reforma, ou anulação, do julgado desconforme à jurisprudência das Cortes Superiores, causando tanto a demora no gozo do direito indevidamente negado à parte prejudicada – e quem poderá avaliar o custo pessoal e social dessa anomalia jurisdicional nas situações, por exemplo, em que se mantém, por essa postura judicial, uma prisão indevida do acusado (?) – quanto o gravame causado a outros jurisdicionados, pelo maior tempo para exame de suas causas, mercê da sobrecarga produzida pelo prolongamento desnecessário desses conflitos hermenêuticos.
Em suma, “o resultado dessa insistente desconsideração às diretrizes normativas derivadas das Cortes de Vértice é um desgaste permanente da função jurisdicional, com anulação e/ou repetição de atos, a implicar inevitável lesão financeira ao erário, bem como insegurança jurídica e clara ausência de isonomia na aplicação da lei aos jurisdicionados” (BRASIL, 2020).
Ademais, é fundamental asserir que, quando se postula essa coerência sistêmica na aplicação dos precedentes qualificados, definidos pelas Cortes de Vértice, não se busca, de modo algum, engessar a figura do juiz, e muito menos ferir sua independência e liberdade para julgar. Em verdade, continua o julgador do caso concreto autorizado a dizer o direito, desde que explicite que o caso em análise possui “características fáticas e jurídicas distintas relevantes a justificar que o contexto argumentativo não está abarcado pelo precedente” (ARENHART; PEREIRA, 2019)
Cobrar respeito aos precedentes não implica, portanto, dizer que são eles imutáveis. O Direito é sempre, como qualquer ciência, sujeito à evolução ou, ao menos, a novas interpretações, pois “A mudança é conatural ao Direito, que vive na cultura e na historicidade” (MITIDIERO, 2013, p. 78).
Sempre será, assim, possível submeter o precedente à permanente reavaliação e, eventualmente, dar-lhe novos contornos, por meio de alguma peculiaridade que distinga a situação fática que lhe conferiu (distinguishing), ou, então, por meio da sua superação, total (overruling), ou parcial (overturning). E, no que se refere ao Superior Tribunal de Justiça (assim como, em relação à Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal), é acertada a observação de que lhe cabe “[...] não só outorgar sentido aos textos legais, mas também conferir-lhe novo sentido quando necessário, diante da alteração da realidade social e da concepção geral acerca do direito.” (MARINONI, 2013, p. 96).
O que se não há de aceitar é que, por simples decisionismo ou voluntarismo judicial – ainda que permeado de boas intenções e firme crença no acerto e na justiça da própria decisão – se desafie a compreensão sobre uma questão jurídica incidente sobre igual realidade fática, já consolidada na jurisprudência dos órgãos jurisdicionais incumbidos, legal e constitucionalmente, de tal competência principal.
É plenamente possível ao magistrado, de qualquer instância, explicitar, nos autos, no magistério ou em obras técnicas (art. 36, III, segunda parte, da LC 35/79), o que considere equívocos de decisões judiciais. Ou apenas, como é muito comum na praxe de muitos tribunais – inclusive no STJ –, registrar a ressalva do entendimento pessoal, em necessário exercício de humildade intelectual do magistrado. Do contrário, o que se tem é arrogância e ausência de comprometimento com a sanidade e a funcionalidade do sistema de justiça.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1979.
CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002
MARINONI, Luiz Guilherme – Coordenador. BARBOSA, Adriano et al. A força dos Precedentes. 2ª ed., revisada, ampliada e atualizada. Salvador: Juspodivm, 2012.
BRABRASIL. Superior Tribunal de justiça (6. Turma). Habeas Corpus 596.603. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz, 8 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/08092020%20HABEAS%20CORPUS%20N%C2%BA%20596603.pdf. Acesso em: 21abr. 2021.
ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Paula Pessoa. Precedentes e casos repetitivos. Por que não se pode confundir precedentes com as técnicas do CPC para solução da litigância de massa? Revista de Processo Comparado, v. 5 n. 10, p. 17-54, jul./dez 2019.
MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
Gustavo Badaró
Professor Titular de Direito Processual Penal da USP.
Advogado Criminalista e Consulto Jurídico.
ORCID: 0000-0002-4526-9316
gustavobadaro@usp.br
Resumo: O presente artigo analisa a prova digital e os problemas decorrentes de suas diferenças com as provas tradicionais. Diante do caráter não material e da congênita mutabilidade da prova digital, defende-se que sua validade epistêmica depende da observância dos standards metodológicos próprios para computer forensics, para individualizar o suporte informático que contém o dado digital útil à investigação, sua obtenção, conservação, análise e apresentação judicial dos resultados, mediante prova pericial, bem como da completa e integral documentação da cadeia de custódia.
Palavras-chave: Prova Digital; Cadeia de Custódia; Computação Forense.
Abstract: This article analyzes digital evidence and the problems arising from its differences with traditional evidence. Due to the non-material character and the “congenital mutability” of digital evidence, it is argued that its epistemic validity depends on the compliance with specifics methodological standards of computer forensics, which are required to individualize the computer system that stored the digital data useful to the investigation, its collection, conservation, analysis and results presentation in Court, through digital evidence expert opinion, as well as the complete chain of custody documentation.
Keywords: Digital Evidence; Chain of Custody; Computer Forensics.
Na chamada prova digital ou, como se costuma denominar, digital evidence, o adjetivo “digital” decorre exatamente de a prova se originar de uma manipulação eletrônica de número 1, ou nas palavras de Kerr, “zeros and ones of eletricity”.2
Entre os diversos temas novos e difíceis da prova digital, destacam-se duas diferenças relevantíssimas, comparadas com os meios de provas tradicionais: uma ontológica e outra metodológica.
Os elementos de prova relevantes, no caso da computer forensics, são conservados e transmitidos em linguagem não natural, mas digital. Assim, ainda que os dados digitais, em seu conteúdo informativo, possam ser diretamente percebidos por quem está em contato com eles, eles não possuem uma materialidade 3 imediatamente constatável.
Justamente por isso, para que produzam informação jurídica útil para a reconstrução histórica dos fatos, devem seguir os princípios informáticos. O National Institute for Standard and Technology (NIST) distingue quatro fases da computer forensics: em suas fases de coleta dos dados, exame, análise e relatório:
Durante a coleta, os dados relacionados a um evento específico são identificados, rotulados, registrados e coletados, e sua integridade é preservada. Na segunda fase, de exame, ferramentas e técnicas forenses adequadas aos tipos de dados que foram coletados são executados para identificar e extrair as informações relevantes dos dados coletados, protegendo sua integridade. O exame pode usar uma combinação de ferramentas automatizadas e processos manuais. A próxima fase, a análise, envolve a análise dos resultados do exame para obter informações úteis que abordem as questões que foram o ímpeto para a realização da coleta e do exame. A fase final envolve relatar os resultados da análise, que podem incluir a descrição das ações executadas e recomendar melhorias para políticas, diretrizes, procedimentos, ferramentas e outros aspectos do processo forense.4
A doutrina processual penal tem aderido a tal sistemática, sugerindo sua aplicação nos casos de produção de digital evidence.5
Por todas essas diferenças, quando comparadas com as tradicionais provas utilizadas no processo penal, em especial as chamadas fontes reais de provas, notadamente os documentos, a digital evidence, a produção da prova informática, exigiria uma intervenção legislativa, com regras legais próprias para sua produção, admissão e valoração, sendo muitas vezes inadequadas as regras tradicionais sobre as provas clássicas do processo penal.6
Para garantir a autenticidade, evitando a contaminação da prova digital, o ideal seria que o legislador pudesse estabelecer uma técnica específica a ser empregada para a individualização e apreensão da prova digital, sob pena de inutilizabilidade da prova. Todavia, considerando, de um lado, que a informática é uma ciência relativamente jovem e ainda não há meios e técnicas uniformemente aceitos e, de outro, que tem havido rapidíssima mutação e evolução das técnicas computacionais, tal solução se mostra inviável.
Assim sendo, diante do desarmador silêncio por parte do legislador, o aplicador do direito se vê constrito a adaptar os tradicionais meios de prova e meios de obtenção de prova às específicas dinâmicas de obtenção dos dados digitais.7 Para essa aplicação analógica das regras probatórias dos códigos para a prova digital, duas características são destacadas como mais relevantes: a desmaterialização e a dispersão dos elementos de prova.8
No que toca à sua “desmaterialização”, não se trata de provas pensáveis como objetos físicos, dotados de uma evidente corporeidade.9 E é exatamente dessa impalpabilidade que decorre os caráteres de volatilidade e fragilidade da própria prova digital,10 razão pela qual há necessidade de uma maior preocupação com a possibilidade de falsificação ou destruição.11 Há, na prova digital, uma “congênita mutabilidade”.12 Em suma, trata-se de fonte de prova que pode ser facilmente contaminada, sendo sua gestão muito delicada, por apresentar um alto grau de vulnerabilidade a erros.13
Justamente por isso, a prova digital é tema central da chamada computer forensics, que deve se valer de instrumentos técnicos ou tools adequados para os trabalhos de investigação de dados digitais que poderão constituir uma prova utilizável em processo judicial. Para tanto, é necessário: (i) individualizar o suporte informático que contém o dado digital útil à investigação; (ii) obter o dado digital através de técnica de interceptação, no caso de fluxo de comunicação, ou mediante o sequestro e cópia ou espelhamento do suporte em que está registrado o arquivo de dados; (iii) conservar os dados digitais obtidos e copiados em local seguro e adequado; (iv) realizar a análise dos dados obtidos – examinando exclusivamente a cópia do suporte informático – que sejam relevantes para o objeto da investigação; (v) apresentar os resultados da investigação em juízo, mediante a produção de prova pericial e eventuais esclarecimentos verbais dos peritos em audiência.14
É imprescindível que o método empregado garanta a integridade do dado digital e, com isso, a força probandi do conteúdo probatório por ele representado.15 Normalmente, é necessário fazer uma cópia ou “espelhamento”, obtendo o bitstream da imagem do disco rígido ou suporte de memória em que o dado digital está registrado. Além disso, por meio de um cálculo de algoritmo de hash, é possível verificar a perfeita identidade da cópia com o arquivo original. Com isso, de um lado, se preserva o material original e, de outro, se garante a autenticidade e integridade do material que foi examinado pelos peritos.
Evidente que todo esse processo técnico precisa ser documentado e registrado em todas as suas etapas. Tal exigência é uma garantia de um correto emprego das operating procedures, especialmente por envolver um dado probatório volátil e sujeito à mutação.16 Exatamente pela diferença ontológica da prova digital com relação à prova tradicional, bem como devido àquela não se valer de uma linguagem natural, mas digital, é que uma cadeia de custódia detalhada se faz ainda mais necessária.17
Realmente, a documentação da cadeia de custódia é essencial no caso de análise de dados digitais,18 porque permitirá assegurar a autenticidade e integralidade dos elementos de prova e submeter tal atividade investigativa à posterior crítica judiciária das partes, e excluirá que tenha havido alterações indevidas do material digital.19
Quanto ao laudo técnico, no qual se consubstanciará a prova digital, deve conter uma completa e exaustiva descrição dos sistemas informáticos utilizados, um elenco dos instrumentos (tolls) utilizados e um detalhado relatório dos resultados obtidos. 20 Segundo Casey, o laudo pericial deve conter: (i) introdução; (ii) descrição da fonte de prova; (iii) resumo do exame; (iv) o sistema de arquivos examinados; (v) análise pericial e os resultados encontrados; (vi) conclusão.21
No campo internacional, destacam-se na matéria os standards técnicos da sério ISO/IEC 27000, publicados pela ISO (International Organization for Standardization) e pela IEC (International Electrotechnical Commission), com destaque para: ISO/IEC 27035:2011, com indicações sobre a gestão dos incidentes informáticos; ISO/IEC 27037:2012, que contém uma série de indicações concernentes à identificação, recolhimento, aquisição e conservação da prova digital; ISO/IEC 2741:2015, que fornece indicações destinadas a garantir a idoneidade e a adequação dos métodos investigativos; ISO/IEC 27042/2015, consistente num guia de análise e interpretação das provas digitais, com o objetivo de enfrentar as questões de continuidade, validade, reproduzibilidade e repetibilidade dos resultados obtidos.
Também podem ser citados, do ponto de vista operacional, e no que se refere a mobile forensics, o NIST Guidelines on Mobile Forensics, de 2014, sob responsabilidade do National Institute for Standards and Technology (NIST), o SWGDE Best Practices for Mobile Devices Evidence Collection and Preservation, Handling, and Acquisition, de 2019, sob responsabilidade do Scientific Working Group on Digital Evidence, e o INTERPOL Global Guidelines for Digital Forensics Laboratory, da INTERPOL, que, de uma maneira geral, são guias com indicação das melhores práticas para recolhimento, conservação, aquisição, análise e apresentação de relatório em dispositivos móveis.
Enunciados as características, os métodos técnicos e o regime legal da chamada prova digital, resta analisar quais as consequências da violação da cadeia de custódia da prova digital, de um lado, e da violação dos standards metodológicos próprios da computer forensics.
A necessidade de documentação da cadeia de custódia é fundamental para assegurar o potencial epistêmico das fontes de prova reais. As coisas, por existirem independente e extraprocessualmente, deverão ser coletadas e levadas ao processo por algum meio de prova correspondente, como a juntada de documentos, o laudo pericial ou mesmo a inspeção judicial. Para tanto, será necessário manter um registro rigoroso de todas as pessoas que tiveram sob seu poder físico os elementos de prova, desde sua coleta até a sua apresentação em juízo.
A cadeia de custódia da prova penal passou a ter disciplina no processo penal com a Lei 13.964/2019, que inseriu os art. 158-A a 158-F no Código de Processo Penal.
O art. 158-A do Código de Processo Penal traz uma definição de cadeia de custódia: Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.
Como facilmente se percebe, não se trata de definição da cadeia de custódia em si, mas sim da documentação da cadeia de custódia.
Importante destacar que, quando se fala em “cadeia de custódia”, a expressão deve ser entendida como a elipse de “documentação da cadeia de custódia”. A cadeia de custódia em si, deve ser entendia com a sucessão encadeada de pessoas que tiveram contato com a fonte de prova real, desde que foi colhida, até que seja apresentada em juízo. É o conjunto de pessoas, uma após a outra (p. ex.: o investigador, o delegado de polícia, o perito, o escrivão do cartório etc.), que teve contato com tal coisa (p. ex.: uma arma, um líquido, um tufo de fios de cabelo). Esse conjunto de pessoas e os momentos específicos em que cada uma delas teve contato com a evidência precisam ser registrados, isto é, documentados, para que se saiba, exatamente, quem teve contado com a coisa e quando isso ocorreu.
Sobre o sujeito que tem o dever de registrar a cadeia de custódia, como já destacamos: A documentação da cadeia de custódia é de responsabilidade das pessoas que têm contato com a fonte de prova custodiada. Assim, na investigação criminal, conduzida por órgãos oficiais, como é o caso do inquérito policial, o dever de registro e documentação da cadeia de custódia é dos funcionários públicos que tiverem contato com os elementos materiais que servem de prova.22
No que toca às consequências da chamada “violação da cadeia de custódia”, é importante ressaltar que, do ponto de vista terminológico, não é possível violar a cadeia de custódia em si. Uma pessoa ou tem ou não tem contato com a fonte de prova. Por sua vez, essa fonte de prova – ou vestígio, como se refere o § 3º do art. 158-A do CPP – pode se manter integra ou ser adulterada. Falsificar a fonte de prova real não é violar a cadeia de custódia (isto é, a documentação da cadeia de custódia), é fraudar ou adulterar a própria fonte de prova. Não se viola a sucessão de pessoas que teve contato com a coisa, mas a documentação que atesta essa realidade.
Se não há nenhum registro das pessoas que tiveram contato, p. ex., um pen-drive coletado na cena do crime, inexiste “cadeia de custódia”, entendida como “documentação da cadeia de custódia”, por ausência do procedimento de integral registro das pessoas que tiveram contato com tal fonte de prova. Mas é evidente que houve uma cadeia de custódia, isto é, um conjunto maior ou menor de pessoas que tiveram contato com a prova. Por outro lado, se houve o registro somente de algumas das pessoas que tiveram contato com a fonte de prova, há uma documentação parcial da cadeia de custódia. Nesse caso, pode-se dizer que a cadeia de custódia, no sentido de documentação da cadeia de custódia, foi violada, porque essa não foi registrada em sua integralidade.
De qualquer modo, sem a documentação da cadeia de custódia, será possível questionar a autenticidade e integridade de tal fonte de prova e, consequentemente, dos elementos de prova dela extraídos. O legislador, contudo, não estabelece quais as consequências processuais de seu desrespeito, sejam em termos de admissibilidade, seja quanto à valoração do meio de prova dela correspondente.
Na doutrina, uma corrente defende que, não documentada integralmente a cadeia de custódia, a prova se torna ilegítima, não podendo ser admitida no processo. Outro posicionamento supera o problema de admissão da prova, resolvendo o vício da falha na documentação da cadeia de custódia, dando menor valor ao meio de prova produzido a partir de fontes de prova cuja cadeia de custódia tenha sido violada. Ou seja, para os primeiros, a prova é inadmissível; para os segundos, é lícita, mas terá o seu valor probatório reduzido. Filio-me à segunda corrente: é possível que haja apenas omissões ou irregularidade leves, sem que haja indicativos concretos de que a fonte de prova possa ter sido modificada, adulterada ou substituída. Em tais casos, a questão deve ser resolvida no momento da valoração. 23
No caso da digital evidence, contudo, a solução deve ser diversa ante a desmaterialização dos elementos de prova, que impede a constatação diretamente pelos sentidos, e a facilidade de mutação dos elementos de prova, se sua obtenção e produção não respeitarem as best practices. Se forem utilizados métodos não fiáveis, os elementos de prova digitais não terão o mínimo potencial epistêmico, e a prova eletrônica não será apta a provar qualquer fato. Em regra, portanto, é necessário o emprego de um método adequado, de acordo com as melhores práticas, e que haja a documentação completa da cadeia de custódia. Se o método for inadequado ou se, embora adequado, não houver comprovação de seu emprego por ausência de registro da cadeia de custódia, não há como garantir a tutela da genuinidade e não alteração do dado informático devido a sua natureza frágil e volátil. Assim, “o emprego de métodos de aquisição incorretos muda a própria natureza da prova, a qual perde, de uma vez por todas, a idoneidade para prova qualquer coisa, porque irremediavelmente contaminada”. 24
Nesse caso, num sistema que respeite a presunção de inocência, não se poderá exigir do acusado a demonstração do prejuízo pela não utilização das melhores práticas segundo a computer forensics, devendo a prova ser destituída de valor probatório.
Como explica Lupária: A tutela da genuinidade da eletronic evidence constitui um valor absoluto, ao qual deve se conformar os órgãos de investigação, sob pena de inutilizabilidade do material obtido por unreliability. Isto é, por inidoneidade da prova para assegurar um acertamento atendível dos fatos criminosos. Ao imputado cumpre somente demonstrar que a modalidade utilizada para a apreensão, para a manutenção da cadeia de custódia e para a sucessiva elaboração não respeitaram os cânones geralmente reconhecidos como aceitáveis. Onde isso ocorre, grava sobre a acusação o peso de demonstrar que o método, ainda que em desconformidade com a melhor prática técnica, não alterou, no caso concreto, os dados e salvaguardou a chamada ‘integridade digital’.25
Em suma, no caso das provas digitais, para que seja minimamente atestada a sua autenticidade e integridade, devem ser seguidos os métodos informáticos de obtenção, registro, armazenamento, análise e apresentação dos elementos de prova digitais que registrem as best practices nacionais e internacionais. Sua apresentação judicial, para que tenha potencial epistêmico adequado, deve se dar por meio de prova pericial, sendo essencial a completa documentação da cadeia de custódia.
1 DANIELE, 2011, p. 283.
2 KERR, 2005, p. 284.
3 A ausência de materialidade da prova digital, como destaca Daniele, não significa que a mesma seja privada de “fisicidade”: trata-se de “impulsi elettrici che rispondono ad una sequenza numerica prestabilita e che, convogliati in un supporto informatico dotato di una memoria, originano informazioni intelligibili”. (DANIELE, 2011, 284.)
4 KENT, 2006.
5 Nesse sentido: ZICARDI, 2007, p. 120; VACIAGO, 2012, p. 7; PITTIRUTI, 2017, p. 4. Com pequena variação, Caria divide a análise forense nas seguintes fases: identificação, aquisição, análise e relatório. (CARIA, 2020, p. 3)
6 Kerr sustenta a necessidade de repensar todas as regras probatórias comuns, originariamente concebidas para as provas tradicionais (KERR, 2005, 290 e segs.). De modo semelhante, DANIELE, 2011, p. 284.
7 LUPÁRIO, 2007, p. 133.
8 Nesse sentido: DANIELE, 2011, p. 284; PITTIRUTI, 2017, p. 6.
9 DANIELE, 2011, p. 284.
10 Nesse sentido: PITTIRUTI, op. cit., p. 11.
11 PITTIRUTI, 2017, p. 25; ZICARDI, 2007, p. 117.
12 DANIELE, 2011, p. 292.
13 ZICARDI, 2007, p. 51.
14 VACIAGO, 2012, p. 23. De modo semelhante; ZICARDI, 2007, p. 57.
15 LORENZETTO, 2009, p. 149.
16 PITTIRUTI, 2017, p. 114.
17 PITTIRUTI, 2017, p. 115.
18 Nesse sentido: DANIELE, 2011, p. 292; LORENZETTO, 2009, p. 150. No mesmo sentido: CASEY, 2011, p. 60.
19 PITTIRUTI, 2017, p. 114-115.
20 VACIAGO, 2012, p. 100.
21 CASEY, 2011, p. 76-77.
22 BADARÓ, 2020, p. 511.
23 BADARÓ, 2020, p. 511-515, item 10.2.9.3.
24 PITTIRUTI, 2017, p. 159.
25 LUPÁRIA, 2007, p. 197.
Referências
CARIA, Giovanni. Le quattro fasi dell’analise forense: identificazione, acquisizione, analisi, reporting. In: IASELLI, Michele (Org.) Invesytigazione ditigali. Milano: Giuffrè Francies Lefebvre, 2020, p. 3
CASEY, E. Digital evidence and computer crime. 3. ed., London: Elsevier, 2011, p. 60.
DANIELE, Marcello. La prova digitale nel processo penale. Rivista di Diritto Processuale, v. 66, n. 2, p. 283-298, 2011, p. 283.
KENT, Karen; CHEVALIER, Suzanne; GRANCE, Tim; DANG, Hug. Guide to Integrating Forensic Techniques into Incident Response. Recommendations of the National Institute of Standards and Technology. Gaithersburg: NIST, 2006. Disponível em: https://nvlpubs.nist.gov/nistpubs/Legacy/SP/nistspecialpublication800-86.pdf. Acesso em: 12 mai. 2021.
KERR, O.S. Digital evidence and the new criminal procedure. Columbia law review, v. 105, p. 279-318, 2005, p. 284.
LORENZETTO, Elisa. Le attività urgente di investigazione informatica e telematica, In: LUPÁRIO, Luca (Coord.). Sistema penale e criminalità informatica. Profili sostanziali e processuali nella Legge attuativa della Convenzione di Budapest sul cybercrime. Milano: Giuffrè, 2009.
LUPÁRIO, Luca. Processo penale e scienza informatica: anatomia de una trasformazione epocale, In. Luca Lupária; Giovanni Ziccardi, Investigazione penale e tecnologia informatica. L’accertamento del reato tra progresso scientifico e garanzie fondamentale, Milano: Giuffrè, 2007.
PITTIRUTI, Marco. Digital evidence e procedimento penale. Torino: Giappichelli, 2017.
VACIAGO, Giuseppe. Digital Evidence. I mezzi di ricerca della prova digitale nel procedimento penale e le garanzie dell’indagato. Torino: Giappichelli, 2012.
ZICARDI, Giovanni. Le linee guida della Association of Chief Police Officers Inglese, In: LUPÁRIO, Luca; ZICCARDI, Giovanni. Investigazione penale e tecnologia informatica. L’accertamento del reato tra progresso scientifico e garanzie fondamentale, Milano: Giuffrè, 2007.
Ana Beatriz de Souza Reis
Bacharel em Direito pela PUC-SP.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4513397521026280
ORCID: 0000-0001-7286-9029
anabeatrizsreis@gmail.com
Tiago Caruso
Doutorando, Mestre e Graduado em Direito pela PUC-SP.
Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0058782737252453
ORCID: 0000-0002-5902-6817
carusotorres@gmail.com
Resumo: O presente artigo pretende conferir se o Direito Penal pode ser utilizado como instrumento idôneo de tutela contra a difusão de fake news no Brasil. A análise se desenvolveu a partir do conceito de fake news, dos danos causados pela sua disseminação e da constatação de que há uma aparente lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro. Com isso, foi possível concluir que, embora o Direito Penal possa ser uma ferramenta para a contenção dos referidos danos, eventual criminalização das fake news depende, necessariamente, da observância da função do Direito Penal, dos seus princípios informadores e dos direitos e garantias constitucionais.
Palavras-chave: Direito Penal; Fake News; Bem jurídico.
Abstract: This study intends to verify if the Brazilian Criminal Law can be used as a suitable instrument of protection against the spread of fake news in Brazil. This analysis is developed from the concept of fake news, the damage caused by its dissemination and the finding that there is an apparent gap in the Brazilian Law system. Thereafter, it was possible to conclude that, although Criminal Law could be a tool able to contain the damages mentioned, the criminalization of fake news necessarily depends on the observance of the function of Criminal Law, its informing principles and the constitutional rights and guarantees.
Keywords: Criminal Law; Fake News; Protected legal interest.
I. Introdução
De acordo com estudos do Instituto Ipsos (2018), mais de 120 milhões de brasileiros acreditam em Fake News.(1) É notório o alto nível de propagação e o impacto das fake news no Brasil. Embora a divulgação de notícias falsas não seja um fenômeno novo,(2) seu reflexo ainda demanda análise jurídica mais detida, principalmente no âmbito do Direito Penal.
O presente artigo pretende verificar se o Direito Penal é ferramenta idônea para a contenção dos danos causados pela difusão de fake news, cuja prática ainda não tem regulação no país. Para tanto, oferece-se um conceito jurídico possível de fake news. Dele é que se compreenderá se o Direito Penal, com base nos princípios que o fundamentam, funciona para proteger a ameaça ou a lesão daquilo que pode, por ora, ser considerado como um dos bens jurídicos que se visa a proteger: as instituições democráticas.(3)
II. Pós-verdade e o conceito de fake news
“Pós-verdade” é um adjetivo que exprime ou denota circunstâncias nas quais as emoções e as crenças pessoais são mais influentes na opinião pública do que os fatos objetivos.(4) Eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford em 2016,(5) ano da eleição presidencial de Donald Trump, o termo “pós-verdade” pode ser sintetizado como menosprezo à verdade factual em prol da defesa de opiniões e ideologias a todo custo.
Essa definição pode explicar o motivo pelo qual as fake news têm causado vultosos danos à sociedade informacional (da era da informação). Ainda que não se trate de um fenômeno propriamente novo – dado que a disseminação de informações falsas tem registros históricos –, a rede mundial de computadores foi o combustível para a difusão de notícias falsas em escala industrial.
Via de regra, essa difusão ocorre pelas redes sociais ou aplicativos de mensagens instantâneas e apresenta grande potencial viral, sendo, por vezes, financiada por terceiros interessados e propagada por meio de perfis fakes, bots, supostos veículos jornalísticos, ou, ainda, figuras políticas(6) (vide Inq 4781/STF).
Mas, afinal, o que se entende por fake news? Segundo o Dicionário Collins, “if you describe information as fake news, you mean that it is false even though it is being reported as news, for example by the media”(7). Uma tradução adequada poderia ser notícia fabricada, denotando não se tratar apenas de uma mentira e conectando o termo à veiculação da informação pela mídia ou imprensa.(8)
Ainda que apresentadas como factualmente corretas, as fake news não são notícias meramente falsas, mas intencionalmente falsas e fraudulentas. Correspondem a informações, histórias ou dados inverídicos, criados à sombra de propósitos escusos, voltados a maquiar, ocultar ou fraudar a realidade fática, para, assim, influenciar posicionamentos e tomadas de decisões individuais, atendendo aos interesses de quem as criou ou de terceiros.
Portanto, a difusão de fake news pressupõe, necessariamente, dolo. O sujeito visa a enganar e induzir alguém em erro, mediante a propagação da notícia fraudulenta, fazendo com que seu receptor suponha, de forma equivocada, tratar-se de uma realidade, quando, na verdade, está diante de outra.
Essas notícias fabricadas frequentemente propagam conteúdo de ódio e violência, incentivam a quebra da normalidade institucional e democrática, geram desinformação em massa, manipulam a opinião pública e, assim, atentam contra direitos e garantias fundamentais e o próprio Estado Democrático de Direito, uma vez que ameaçam a capacidade de autodeterminação e de participação consciente do cidadão na vida política. Afinal, um indivíduo mal informado não consegue escolher livremente seus posicionamentos, nem fiscalizar o poder público.
Em razão desses fatores, ocorre verdadeiro abuso do direito fundamental à liberdade de expressão, o qual deixa de ser exercido dentro dos limites constitucionais (art. 5º, inc. IV e IX, CF).
III. O Direito Penal como instrumento de tutela contra as fake news
A partir do conceito delineado acima, fácil é concluir que as notícias falsas demandam resposta estatal que coíba sua difusão. Para tentar regular essa prática, o Projeto de Lei 2630/2020, de autoria do Senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE), foi o que mais avançou ao dispor sobre aspectos cíveis atinentes aos deveres das redes sociais nesse contexto. Havia, nesse projeto, proposta de tipificação do financiamento das fake news, a qual, no entanto, foi retirada.
Além do Legislativo, o Judiciário também reagiu e o Supremo Tribunal Federal instaurou o Inq 4781/STF para investigar suposto esquema de propagação de fake news, apelidado como “gabinete do ódio”, no qual possível associação criminosa teria sido criada para disparar notícias falsas, formular denunciações caluniosas, realizar falsas comunicações de crimes, fazer ameaças e praticar, dentre outros delitos, crimes de calúnia, injúria ou difamação.(9)
Contudo, não há, até o momento, tipos penais capazes de capturar, com completude, a complexidade do fenômeno das fake news. Crimes contra honra (calúnia, injúria e difamação), incitação ou apologia ao crime, ou aqueles previstos nos arts. 22 e 26 da Lei de Segurança Nacional, não abrangem o grau de ilicitude e a transcendência desse fenômeno. Daí a aparente lacuna no ordenamento jurídico brasileiro.(10)
A ausência de tipo penal vigente que, dentro de um Estado Democrático de Direito, proteja as instituições democráticas da alargada disseminação de notícias fabricadas, que rompem os limites da liberdade de expressão e carregam desvalor de conduta e desvalor de resultado próprios (os quais já vão muito além da mácula à imagem de terceiros), consiste, então, no verdadeiro fundamento para a criminalização da difusão de fake news.
Exemplos reais e concretos demonstram os perigos e os danos causados pelas fake news no Brasil e no mundo e servem como argumento de política criminal a justificar a tutela penal.
Nos Estados Unidos da América, há notícias de que a última eleição presidencial foi bastante influenciada pela propagação de notícias falsas favoráveis a um candidato em detrimento da outra candidata.(11) Aliás, teria sido nessa eleição que se originou o termo fake news.(12)
A eleição presidencial de 2018, no Brasil, também parece ter sido influenciada pela divulgação de notícias falsas. De acordo com um estudo da Organização Avaaz, 98,21% dos eleitores foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a eleição e 89,77% acreditaram que eram verídicas.(13)
Antes disso, ainda em 2014, um caso ocorrido na cidade de Guarujá (SP) também denota a potencialidade do dano decorrente da disseminação de fake news. Segundo as notícias, Fabiane Maria de Jesus morreu em razão do linchamento que sofreu em virtude de falsa acusação de que praticara magia negra. Ela foi confundida com a pessoa que, supostamente, raptava crianças para os rituais. A acusação foi postada em página da internet e recebeu 56 mil curtidas. Todavia, após a devida investigação, a polícia concluiu que, na época, não havia quaisquer registros de sequestro de crianças na cidade e que a morte de Fabiane decorreu da divulgação de informação falsa.(14)
Os exemplos não se esgotam por aqui e casos como esses continuam ocorrendo, o que reforça a importância da criminalização, na qual, aliás, só há espaço para punição na modalidade dolosa, pois as fake news pressupõem dolo específico destinado a enganar o seu receptor.
Todavia, ainda que a tipificação da propagação deste tipo de conteúdo seja demanda premente, sua tipificação não poderá ocorrer às pressas, pois dependerá da estrita observância aos limites da intervenção estatal e às técnicas legislativas previstas no nosso ordenamento.(15) Afinal, o Direito Penal possui função muito limitada, que é a proteção fragmentária e subsidiária de bens jurídicos.(16)
IV. Um obstáculo à criminalização: a definição do bem jurídico ameaçado pelas fake news que mereça proteção penal
O Direito Penal tem por função proteger, de forma subsidiária e fragmentária, concretizações dos valores constitucionais relacionados aos direitos fundamentais.(17) Por isso, a ideia de bem jurídico limita a proibição penal para as condutas que lesionem tais bens ou os ameacem de lesão.(18) Trata-se de se oferecer um critério racional para as incriminações.(19) Isso quer dizer que a criminalização das fake news será possível se, e somente se, houver clara definição do bem jurídico digno de proteção penal que está ameaçado pela propagação de notícias falsas.
Há quem entenda tratar-se da proteção das instituições democráticas, posição aqui compartilhada, justamente porque constitui princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, CF). Outros, entendem que se trata de proteger a liberdade de informação, a verdade ou, ainda, aspectos eleitorais,(20) como a liberdade para a formação do voto.(21)
Partindo da ideia de que as fake news violam as instituições democráticas – ou ainda, a liberdade de informação ou de formação do voto –, parece haver determinação de ofensa a bem jurídico com dignidade penal, atendimento ao princípio da subsidiariedade, pois tais bens jurídicos ainda não possuem tutela penal adequada, e da fragmentariedade, uma vez que apenas a difusão dolosa de notícias falsas, com finalidade de desinformar para proveito próprio ou alheio, seria objeto de criminalização.
Contudo, esses são apenas os primeiros obstáculos para a criminalização das fake news. Ultrapassados, outros surgem e se referem à observância aos princípios que norteiam o Direito Penal, como a taxatividade, a pessoalidade, a culpabilidade e a proporcionalidade.(22)
A tarefa não é fácil, nem deve ser, pois o Direito Penal sempre lida com um dos valores mais caros da vida em sociedade, que é a liberdade do indivíduo.
V. Outros aspectos que devem balizar a criminalização das fake news: a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa
Eventual proposta de lei que pretenda punir penalmente a divulgação de fake news não pode se furtar a determinar os limites dessa criminalização, de modo a não colocar em risco a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, essenciais ao Estado Democrático de Direito.
Para tanto, parece que, em um primeiro momento, seria útil uma boa definição do termo fake news e a delimitação da incidência do tipo penal, a partir da análise das principais formas de propagação de notícias fabricadas no Brasil.
Ou seja, o conceito de fake news não pode abarcar as opiniões, sátiras, paródias, críticas ou informações culposamente equivocadas veiculadas pela mídia, sob pena de se punir a liberdade de expressão humorística, decorrente de estratégias retóricas que usam ironias e sarcasmos, e a liberdade de imprensa, exercida sem qualquer propósito de enganar o ouvinte.
O ônus decorrente dessas liberdades é que seu abuso já prevê punição no âmbito civil, com direito à indenização e de resposta por parte daquele que foi prejudicado pela crítica, sátira ou notícia equivocada a seu respeito. O cuidado na elaboração desse tipo penal também perpassa o fato de que muitas notícias falsas são difundidas por terceiros sem que sequer saibam que se trata de notícia fabricada. Por isso, parece recomendável que a proibição penal recaia somente sobre os precursores da difusão daquela fake news.
Essa é uma prova difícil de ser feita no caso concreto, mas será capaz de afastar a incidência do crime que, como visto, somente poderá admitir a punição na modalidade dolosa. Do contrário, impor-se-ia dever de informação desproporcional ao sujeito que recebe a notícia (de sempre ter de checar, suficientemente, se é verdadeira ou falsa antes de transmiti-la a terceiros) e se equipararia, de forma indevida, a quebra desse dever de cuidado ao dolo.
Não se deve cercear, sem fundadas razões, a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa, elementos imprescindíveis para a existência da democracia, até porque o enfretamento do abuso dessas liberdades demanda mais liberdade, não menos: maior acesso a fontes de informação, maior fortalecimento da atividade jornalística séria e de qualidade, maior conscientização da impressa e maior capacidade de reflexão crítica dos receptores das notícias.(23)
VI. Considerações finais
Com o que foi exposto ao longo do presente artigo, é possível concluir que (i) a disseminação propositada de notícias fabricadas tem reflexos penais, porque nela há desvalores da conduta e do resultado próprios; (ii) existe uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro e razões de política criminal que justificam e demandam a criação de um tipo penal para criminalizar o fenômeno das fake news; (iii) para criar um tipo penal, é necessária a clara identificação de um bem jurídico digno de proteção penal, que esteja ameaçado pela divulgação das fake news, provavelmente as instituições democráticas; (iv) a criminalização dessa conduta depende da boa definição do conceito de fake news; e (v) além da observância à fragmentariedade, subsidiariedade e aos princípios informadores do Direito Penal, a criação desse tipo penal deve ter o cuidado de não tolher, de forma indevida, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, mas, sim, o abuso desses direitos em uma sociedade estabelecida sob a égide de um Estado Democrático de Direito.
(1) BRASIL é o país que mais acredita em fake news no mundo. Terra, 05 out. 2018. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/dino/brasil-e-o-pais-que-mais-acredita-em-fake-news-no-mundo,acbdeccec78a0351201bafd2285942a0b1ehpqxx.html>. Acesso em: 22 fev. 2021.
(2) Nesse sentido, GENESINI, Silvio. A pós-verdade é uma notícia falsa. Revista USP, São Paulo, n. 116, p. 47-48, jan./mar. 2018.
(3) O outro estaria relacionado ao aspecto eleitoral. Sobre o tema, v. LEITE, Alaor; BORGES, Ademar; TEIXEIRA, Adriano. Fake News: mentiras criminosas? Estadão, São Paulo, 10 jun. 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/fake-news-mentiras-criminosas/>. Acesso em: 22 fev. 2021.
(4) FÁBIO, André Cabette. O que é pós-verdade, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford. Nexo Jornal, 16 nov. 2016. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O-que-e-pos-verdade-a-palavra-do-ano-segundo-a-Universidade-de-Oxford. Acesso em: 22 fev. 2021.
(5) 'Pós-verdade' é eleita a palavra do ano pelo Dicionário Oxford. Portal G1, 16 nov. 2016. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/pos-verdade-e-eleita-a-palavra-do-ano-pelo-dicionario-oxford.ghtml>. Acesso em: 22 fev. 2021.
(6) Ainda em andamento no STF, Inq 4781, Relator(a): Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma.
(7) Tradução livre: “Se você descreve uma informação como fake news, significa dizer que é uma informação falsa, ainda que reportada como uma notícia, por exemplo, pela mídia”. Conceito de fake news. Collins_Dictionary._Disponível_em:<https://www.collinsdictonary.com/pt/dictionary/english/fake-news>. Acesso em 22 de fevereiro de 2021. FAKE News. In: COLLINS Dictionary. New York: Collins, 2017. Disponível em: https://www.collinsdictionary.com/us/dictionary/english/fake-news. Acesso em: 22 fev. 2021.
(8) Nesse sentido, SILVA, Virgílio Afonso. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021, p. 633.
(9) Polícia Federal aponta Carlos Bolsonaro como articulador do gabinete do ódio. CONJUR, [s. l.], 25 abr. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-25/pf-aponta-carlos-bolsonaro-articulador-fake-news>. Acesso em: 22 fev. 2021.
(10) LEITE, Alaor; BORGES, Ademar; TEIXEIRA, Adriano. Fake News: mentiras criminosas? Estadão, São Paulo, 10 jun. 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/fake-news-mentiras-criminosas/>. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
(11) MARS, Amanda. Como a desinformação influenciou nas eleições presidenciais?. El País, Nova York, 25 fev. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/24/internacional/1519484655_450950.html>. Acesso em 22 fev. 2021.
(12) GENESINI, Silvio. A pós-verdade é uma notícia falsa. Revista USP, São Paulo, n. 116, p. 45-58, jan./mar. 2018, p. 47.
(13) PASQUINI, Patricia. 90% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram em fake news, diz estudo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 02 nov. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/90-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-em-fake-news-diz-estudo.shtml>. Acesso em: 22 fev. 2021.
(14) CARPANEZ, Juliana. Veja o passo a passo da notícia falsa que acabou em tragédia em Guarujá. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 set. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/veja-o-passo-a-passo-da-noticia-falsa-que-acabou-em-tragedia-em-guaruja.shtml>. Acesso em: 22 fev. 2021.
(15) O Decreto Lei 9191/2017 estabelece as normas e as diretrizes para elaboração, redação, alteração, consolidação e encaminhamento de propostas de atos normativos ao Presidente da República pelos Ministros de Estado, prevendo, também, os requisitos necessários para a criação de norma penal.
(16) ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Madrid: Civitas, 2008. p. 65-66.
(17) Esse é um dos conceitos possíveis de bem jurídico penal. Nesse sentido, v. BECHARA, Ana Elisa Libatore Silva. O rendimento da teoria do bem jurídico penal no direito penal atual. Revista Liberdades, São Paulo, n. 1, p. 16-29, maio/ago. 2009.
(18) ROXIN, Claus. Sobre o recente debate em torno do bem jurídico. In: ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 65.
(19) PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2019, p. 28.
(20) Sobre liberdade de informação e verdade, v. BRASIL. Projeto de lei o senado n. 473, de 2017. Brasília, DF: Senado Federal, 2017. Disponível: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131758>. Acesso em: 7 ago. 2020; e LEITE, Alaor; BORGES, Ademar; TEIXEIRA, Adriano. Fake News: mentiras criminosas? Estadão, São Paulo, 10 jun. 2020. Disponíveis em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2184846>; <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/fake-news-mentiras-criminosas/>. Acesso em: 22 fev. 2021
(21) NEISSER, Fernando Gaspar. Crime e mentira na política. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 161.
(22) PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal brasileiro: parte geral. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 126.
(23) SILVA, Virgílio Afonso. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Edusp, 2021, p. 633.
Fernando Martinho de Barros Penteado
Mestre em Direito pela PUC-SP.
Especialista em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura.
Juiz de Direito no Estado de São Paulo.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1830762220815573
ORCID: 0000-0002-0455-6108
fernandombpenteado@gmail.com
Resumo: O presente artigo aborda a prisão ex lege nos julgamentos do Tribunal do Júri instituída pela Lei 13.964/19. A partir de bases teóricas e dogmáticas que legitimam o uso da prisão processual como medida cautelar, o estudo visa aferir a compatibilidade convencional e constitucional do novo artigo 492 do Código de Processo Penal, especialmente em face do princípio da presunção de inocência e sua repercussão no rito dos crimes dolosos contra a vida.
Palavras-chave: Lei 13.964/19. Tribunal do júri. Prisão processual. Presunção de inocência.
Abstract: This article discusses the Law 13,964/19 and its ex lege prison in the Jury Trial. From a theoretical and dogmatic basis that legitimizes the use of the procedural prison as a precautionary measure, the study aims to answer about the conventional and constitutional compatibility of the new article 492 of the Criminal Procedure Code, in particular with the presumption of innocence and its repercussion in the Jury procedure.
Keywords: Law 13,964/19. Jury. Procedural prison. Presumption of innocence.
Introdução
Dentre as inúmeras alterações promovidas na legislação penal e processual penal, a Lei 13.964/19 instituiu modalidade de prisão processual obrigatória por força de lei (ex lege), exclusiva para o rito do júri. Em suma, a necessidade cautelar da prisão é presumida pelo legislador pelo fato objetivo de existir condenação em plenário a pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.
A presente reflexão visa aferir a compatibilidade constitucional e convencional da nova redação do art. 492, I, “e”, do CPP, em especial frente ao princípio da presunção de inocência. O objetivo é analisar, resumidamente, as bases conceituais que legitimam a prisão processual como medida cautelar e então confrontar tais noções com a inovação legal.
O estudo é estruturado em duas partes. Na primeira será feita a diferenciação com a questão pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal do RE 1.235.340. Na segunda, o conteúdo jurídico do art. 492 será verificado à luz da garantia da presunção de inocência.
1. Da distinção com o objeto do RE 1.235.340
A partir de uma análise retrospectiva, o art. 492, I, “e”, do CPP pode ser compreendido como fruto do debate sobre a execução antecipada da pena iniciado na Suprema Corte, em 2016, com o HC 126.292/SP.
Repercutindo esse entendimento para o Tribunal do Júri, a Primeira Turma do STF fixou a tese de que “A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade” (STF, 2017a).
Muito embora posteriormente a execução antecipada da pena tenha sido reconsiderada no julgamento das ADC’s 43, 44 e 54, a questão não foi resolvida no âmbito do Tribunal do Júri sob o argumento de um suposto diferencial: a soberania dos veredictos.
Nesse sentido, a discussão sobre a constitucionalidade da execução antecipada da pena no Tribunal do Júri foi retomada no STF no RE 1.235.340, com repercussão geral reconhecida (tema 1068), mas ainda não julgado definitivamente.(1)
As hipóteses do RE 1.235.340 e da nova redação do artigo 492 se aproximam por envolverem o tensionamento da presunção de inocência. Contudo, os fundamentos são distintos.
No RE 1.235.340 se discute a execução imediata da pena como suposta consequência da soberania dos veredictos, enquanto a Lei 13.964/19 instituiu hipótese de prisão automática com fim pretensamente cautelar a partir da presunção legal de perigo processual decorrente do fato de ter sido aplicada pena igual ou superior a 15 anos de reclusão.
Imposta pena inferior a 15 anos no julgamento de um crime doloso contra a vida, muito embora essa decisão também goze de soberania, a prisão imediata não terá cabimento. Não se trata, portanto, de questão afeta à soberania dos veredictos, pois do contrário toda decisão emitida pelos jurados seria passível de imediata execução, independentemente do quantum da pena.
Basta notar que, mesmo se rejeitada a tese de que a soberania dos veredictos permite a execução antecipada da pena, ainda assim remanescerá a previsão legal de prisão processual automática para condenações iguais ou superiores a 15 anos. Assim, a distinção é relevante para a adequada compreensão e controle do conteúdo do art. 492.
2. Presunção de inocência e prisão processual obrigatória
Segundo Binder (2003, p. 85-88), a jurisdicionalidade (nulla culpa sine iudicio) e a presunção de inocência são garantias básicas do processo penal e estão intrinsecamente relacionadas, pois ninguém pode ser considerado ou tratado como culpado enquanto uma sentença não o declare como tal, pois o que se pretende é justamente que a pena não seja imposta antes do julgamento prévio.
A presunção de inocência exerce inevitável influência sobre a regulamentação da prisão processual em um ordenamento jurídico, pois impõe ao legislador ordinário que sejam observados os limites do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos sobre o tema (RODRÍGUEZ, 2009, p. 148).
Prevista no art. 5°, LVII, da Constituição de 1988, a garantia da presunção de inocência, em sua vertente de regra de tratamento, impede que o acusado seja tratado como se fosse culpado ao longo do processo. Por força do estado jurídico de inocência, a prisão antes de determinada a culpa através do devido processo legal deve ser sempre considerada como exceção, evitando-se que atue como castigo.
Apesar de resultar na mesma consequência sobre o estado de liberdade do indivíduo, ou seja, o cerceamento, a prisão processual se distingue da prisão pena justamente por visar a fins diversos, remetendo à noção de cautelaridade (GUERRA PÉREZ, 2011, p. 46). Por essa razão, na definição sobre a natureza cautelar da prisão deve ser questionado o seu escopo e não o efeito dela decorrente.
A prisão processual, como espécie de medida cautelar, deve proteger e evitar riscos ao desenvolvimento regular do processo ou, em outras palavras, conservar a utilidade e eficácia do provimento futuro a ser proferido na ação penal condenatória (BADARÓ, 2018, p. 1038).
Portanto, o caráter excepcional decorrente da obrigatória vinculação a finalidades estritamente processuais é o que confere legitimidade ao emprego da prisão durante o processo. Inexistindo tais fins, a prisão ensejará indevida execução antecipada da pena.
Na verdade, a excepcionalidade é característica de qualquer medida cautelar, pois em maior ou menor grau afetam direitos fundamentais. Contudo, a medida mais gravosa e, portanto, a mais excepcional é a prisão processual, o que resulta em uma dupla excepcionalidade, ou seja, tanto como cautelar em si, como perante às demais medidas cautelares.
Por outro lado, além da previsão de fins genuinamente processuais, exige-se a comprovação de circunstâncias objetivas e concretas que permitam concluir pela existência do perigo processual gerador da necessidade da medida cautelar.
Nesse sentido, o risco processual, além de grave, sério e provável (CAFFERATA NORES, 2011, p. 219), não pode ser presumido e deve ser passível de demonstração concreta.(2)
Adverte Bovino (1998, p. 147-148) que a determinação de uma situação fática potencialmente geradora da necessidade da prisão não pode ser imposta pelo legislador mediante o estabelecimento de presunções gerais de perigo processual, que não admitam prova em contrário. Disposições legais desta natureza, criadoras de vedações apriorísticas e abstratas da liberdade provisória (delitos no excarcelables), usurpam a função jurisdicional de verificação das circunstâncias concretas do caso aptas a gerar ou não a situação de perigo processual justificadora da prisão cautelar.
Na seara do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao interpretar combinadamente os arts. 7.5 e 8.2 da CADH, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem reiteradamente assentado premissas relevantes sobre a prisão processual:
i) em decorrência da presunção de inocência, a prisão preventiva é uma medida cautelar e não punitiva;(3)
ii) por se tratar da medida cautelar mais severa, a prisão processual necessariamente deve ter caráter excepcional(4) e a legislação não pode estabelecer a custódia cautelar como regra;(5)
iii) além de observar a legalidade (previsão legal das causas de privação de liberdade e sujeição aos procedimentos previstos), é necessário que a lei e sua aplicação não sejam arbitrárias, ou seja, a prisão processual deve respeitar fins processuais (evitar obstrução processual e risco de fuga) e observar o princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito);(6)
iv) a decretação de medidas cautelares demanda fundamentação clara e suficiente, além de estar sujeita a revisão periódica;(7)
v) o perigo processual nunca deve ser presumido, cabendo a verificação em cada caso concreto a partir de circunstâncias objetivas e específicas;(8)
vi) a legislação não pode vedar em abstrato a liberdade provisória(9) ou determinar a prisão automática exclusivamente pelo tipo de crime que se imputa ao acusado, olvidando a necessária ponderação de elementos concretos.(10)
Realizado o cotejo constitucional e convencional da presunção de inocência e sua relação com a prisão processual, retoma-se a análise da nova redação do art. 492.
Ao determinar o encarceramento automático e sem motivo cautelar específico, inverte-se a noção de excepcionalidade da prisão processual e impede-se a atividade cognitivo-judicial sobre a presença das circunstâncias concretas que justificariam a medida cautelar mais gravosa, violando a presunção de inocência.
O critério eleito pelo legislador para a prisão – quantum da pena aplicada na sentença condenatória – parte de uma equivocada presunção de perigo processual, que não se relaciona a um fim cautelar, caracterizando hipótese de “execução provisória das penas”, o que inclusive é admitido textualmente no art. 492, § 3º.
Incompreensível a ótica do legislador ao estabelecer arbitrariamente e sem critério racional uma presunção de risco processual ou de periculosidade do agente apenas pelo montante da pena de uma condenação.
Sob esse viés, é de se indagar qual a diferença entre uma pena de 15 anos ou de 14 anos e 11 meses ou, ainda, a razão do tratamento desigual comparativamente ao acusado de crimes comuns, pois fora do rito do júri não ficará sujeito à prisão automática apenas pelo fato de receber pena igual ou superior a 15 anos.(11)
O novo dispositivo evidencia verdadeiro retrocesso, revivendo em certa medida a ratio da redação original do art. 312 do CPP, que estabelecia a decretação obrigatória da prisão preventiva em caso de crime cuja pena máxima fosse igual ou superior a 10 anos independentemente da situação concreta.(12)
Além disso, ignora que o STF reconheceu em duas oportunidades, depois da Constituição de 1988, que a vedação em abstrato da liberdade provisória por tipo de crime – o que equivale à prisão processual obrigatória e desvinculada de cautelaridade – é inconstitucional por afrontar a presunção de inocência (STF, 2007; e STF, 2017b).(13)
Registre-se ainda que, em clara disfuncionalidade e desarmonia sistêmica, outros preceitos contidos na própria Lei 13.964/19 contrariam a prisão processual obrigatória, como a vedação de decretação da prisão preventiva “com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena” (art. 313, § 2°), necessidade de a prisão preventiva ser fundada “em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada” (art. 312, § 2°) e presença de “indício suficiente [...] de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (art. 312, caput).
Por fim, ainda que haja certa relativização no rigor da decretação da prisão obrigatória ao permitir que o juiz presidente deixe de autorizá-la (art. 492, § 3°) ou que o tribunal ad quem conceda efeito suspensivo à apelação (art. 492, § 5°), a modificação legal segue insustentável juridicamente.
Além do emprego de termos genéricos e imprecisos, sujeitos a inevitáveis subjetivismos (“questão substancial” ou “propósito manifestamente protelatório”), a lei declaradamente estabelece a não decretação da prisão processual como hipótese excepcional, tornando o encarceramento como regra nas condenações iguais ou superiores a 15 anos, o que é inadmissível frente ao estado de inocência.
Considerações finais
Pelas razões expostas, ao instituir hipótese de prisão processual ex lege e indiretamente vedar em abstrato a liberdade provisória, o art. 492, I, “e”, do CPP institui prisão sem fim processual e impede a verificação jurisdicional de circunstâncias concretas e objetivas justificadoras das medidas cautelares, resultando em execução antecipada da pena.
Independentemente da discussão travada no RE 1.235.340 acerca da soberania dos veredictos, a autorização de prisão processual automática e sem os requisitos de cautelaridade incide em inconstitucionalidade e viola a Convenção Americana de Direitos Humanos sob o prisma da presunção de inocência, além de não observar o entendimento pretérito firmado pelo Supremo Tribunal Federal em controle abstrato de constitucionalidade e com repercussão geral sobre o tema.
(1) RE 1.235.340/SC, Relator Roberto Barroso. Até 24 de março de 2021, o julgamento contava com três votos proferidos. Os Ministros Roberto Barroso e Dias Toffoli deram provimento ao recurso extraordinário para autorizar, sob o fundamento da soberania dos veredictos, “a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”, enquanto o Ministro Gilmar Mendes negou provimento e entendeu pela vedação da execução imediata da pena imposta em razão da presunção de inocência e do direito de recurso do condenado. Por sua vez, o Ministro Ricardo Lewandowski pediu vista em 04 de maio de 2020.
(2) Para Pastor (2010, p. 141), não se trata de exigir a comprovação de uma conduta futura e ainda não praticada (v.g., efetiva evasão). O risco deve ser constatado fundamentadamente a partir de elementos concretos e demonstráveis, muito embora a constatação desse risco não signifique que o fato temido acontecerá.
(3) Caso Suárez Rosero vs. Equador, de 12 de novembro de 1997, § 77. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_35_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
(4) Caso Tibi vs. Equador, de 07 de setembro de 2004, § 106. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_114_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
(5) Caso Palamara Iribarne vs. Chile, de 22 de novembro de 2005, § 212. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_135_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
(6) Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez vs. Equador, de 21 de novembro de 2007, § 93. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_170_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
(7) Caso J. vs. Peru, de 27 de novembro de 2013, §§ 163 e 166. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_275_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
(8) Caso Hernández vs. Argentina, de 22 de novembro de 2019, § 108. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_395_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
(9) Caso López Álvarez vs. Honduras, de 01 de fevereiro de 2006, § 81. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_141_esp.pdf. Acesso em: 25 mai. 2020. No caso citado, a legislação local admitia a fiança (caución) apenas em crimes com pena inferior a 5 anos, o que foi determinante para que o réu permanecesse preso, pois a imputação de tráfico de drogas que lhe foi dirigida tinha pena de 15 a 20 anos de reclusão. Ver ainda caso Suárez Rosero vs. Equador, de 12 de novembro de 1997, § 93. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_35_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021; e caso Acosta Calderón vs. Equador, de 24 de junho de 2005, § 135. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_129_esp1.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021. Nesses dois últimos casos, dispositivo legal vigente à época previa hipóteses automáticas de liberdade provisória em caso de prolongamento da prisão preventiva sem apresentação da acusação ou encaminhamento do réu a julgamento, mas a lei excluía expressamente os acusados de crimes previstos na Lei de Drogas.
(10) Caso Pollo Rivera vs. Peru, de 21 de outubro de 2016, § 125. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_319_esp.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021. O caso dizia respeito a dispositivo legal, que estabelecia a prisão automática unicamente pela emissão do auto de abertura da instrução em crimes de terrorismo.
(11) Nesse sentido, Silva e Felix (2020, p. 22) lembram que os crimes dolosos contra a vida não se distinguem em desvalor de gravidade a crimes como latrocínio, estupro com resultado morte e semelhantes.
(12) A alteração legislativa parece se situar na terceira etapa do debate sobre a prisão preventiva travado na América Latina. Recorda Riego (2010, p. 6-7) que, nas últimas três décadas, é possível perceber três momentos chaves: i) na década de 1980, estudo do ILANUD (Instituto Latinoamericano de Naciones Unidas para la Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente) alertava para os altos índices de pessoas presas sem condenação e advertia sobre o emprego indiscriminado da prisão preventiva a partir de leis que facilitavam sua decretação; ii) num segundo momento, a edição de novos códigos processuais penais em que muitos países substituíram antigos regimes de automatismo da prisão preventiva por um sistema fundado na lógica cautelar e com acréscimo de medidas alternativas à prisão; iii) na fase mais recente, nota-se um movimento de contrarreforma normativa, na qual se tornou a alargar o uso da prisão preventiva sob argumento de uma percepção de insegurança e um suposto “excesso de garantismo”.
(13) Aliás, por idênticas razões, o art. 310, § 2º, do CPP, na redação dada pela Lei 13.964/19, ao impedir em abstrato a liberdade provisória, padece de inconstitucionalidade e não-convencionalidade. Frise-se, por oportuno, que foram ajuizadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal questionando o art. 492, I, “e”, do CPP (ADI’s 6.345, 6.735 e 6.783, Relator Luiz Fux).
Referências
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BINDER, Alberto M. Introdução ao direito processual penal. Tradução de Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
BOVINO, Alberto. El encarcelamiento preventivo. In: BOVINO, Alberto. Problemas del derecho procesal penal contemporáneo. Buenos Aires: Del Puerto, 1998.
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CAFFERATA NORES, José I. Proceso penal y derechos humanos: la influencia de la normativa supranacional sobre derechos humanos de nivel constitucional en el proceso penal argentino. 2. ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2011.
GUERRA PÉREZ, Cristina. La decisión judicial de prisión preventiva. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011.
PASTOR, Daniel R. Las garantías de libertad del imputado. In: PASTOR, Daniel R. et al. Garantismo y crisis de la Justicia. Medellín: Universidad de Medellín, 2010.
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Lucas Arieh Bezerra Medina
Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia ICPC.
Advogado criminalista.
Link lattes: http://lattes.cnpq.br/4620259090953642.
ORCID: 0000-0002-7706-6169
lucas@fabriziofeliciano.adv.br
Fabrízio Antônio de Araújo Feliciano
Advogado criminalista
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8353322528729825
ORCID: 0000-0002-1374-0521
fabrizio@fabriziofeliciano.adv.br
Resumo: O artigo questiona a utilização da “gravidade concreta” como argumento para fundamentar prisões preventivas. Inicialmente, contextualiza-se a relevância de se pensar critérios rigorosos para imposição desta cautelar, dados o cenário de crise do sistema prisional e a necessidade de compatibilizar este instituto com a doutrina e a lei processual penal. Em seguida, defende-se que esta tese, na linha em que vem sendo sustentada na prática forense, conflita com o princípio da provisionalidade e com a exigência de atualidade dos fatos ensejadores destas. Por último, procura-se interpretar a “gravidade concreta” considerando os requisitos discutidos no HC 143.333/STF.
Palavras-chave: Prisão preventiva; Gravidade concreta; Princípio da provisionalidade.
Abstract: The article questions the employment of “concret gravity” as an argument to support pre-trial detention. Initially, it contextualizes the relevance of thinking about strict criteria for the imposition of this precaution given the scenario of crisis in the prison system and the need to reconcile this institute with the doctrine and criminal procedural law. Next, it argues that this thesis, in line with forensic practice, conflicts with the principle of provisionality and with the demands of actuality of the facts that give rise to them. Lastly, it aims to interpret the “concret gravity” considering the requirements discussed in HC’s 143.333/STF.
Keywords: Pre-trial detention; Concret gravity; Principle of provisionality.
1. Introdução
Há muito tempo o Brasil consolidou a catástrofe em seu sistema prisional do “Estado de Coisas Inconstitucional” 1 aos quase um milhão de presos e à terceira maior população carcerária do mundo2: os traços desta grande tragédia dos nossos tempos se veem por toda parte.
Curiosamente, embora estes problemas sejam reconhecidos pela Justiça brasileira, a prática forense tem, como regra, colaborado para agravar o cenário, lançando mão de argumentos inidôneos para se prender preventivamente a todo custo. Tomemos o exemplo das prisões preventivas, que constituem cerca de 33% do total das prisões brasileiras.3
Diante de número tão expressivo, deve-se criticar, com rigor, toda e qualquer banalização desta medida cautelar, cujos já rigorosos requisitos foram, recentemente, fortalecidos com o advento da Lei 13.964/2019.
Nesse sentido, o presente artigo pretende propor uma crítica de um dos fundamentos que vêm sendo recorrentemente usados como último recurso para se impor uma prisão preventiva, que é o argumento da “gravidade concreta” do delito. Sustentar-se-á que, no limite, este artifício confunde a gravidade do delito – que pode representar o pressuposto da fumaça do cometimento do delito – com o perigo da liberdade, acarretando a perda da necessidade de fundamentar esta cautelar à luz de perigos concretos, atuais ou contemporâneos, que emanem do estado de liberdade do imputado.
Com efeito, o artigo procederá da seguinte forma: primeiramente, apontará que já existem elementos doutrinários e legais, que deveriam conduzir a uma revisão ampla das prisões fundamentadas tão somente na “gravidade concreta”; em seguida, analisará o HC 143.333, julgado pelo Tribunal Pleno do STF, na tentativa de estabelecê-lo como métrica judicial para compreender quais elementos precisam estar presentes junto com a “gravidade concreta” para se aplicar a prisão cautelar preventiva; e, por fim, sintetizará os argumentos coletados.
2. A gravidade concreta na jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal na contramão da doutrina e da legalidade
É preciso admitir que, nada obstante o julgado que se apreciará mais à frente, a jurisprudência majoritária do Supremo tem se rendido ao reducionismo de equalizar “gravidade concreta” com necessidade da prisão preventiva, em especial nos casos de crimes submetidos ao rito do Tribunal do Júri e o crime de tráfico de drogas, o maior responsável pelo grande encarceramento brasileiro.4
Para se ter uma ideia, pesquisando na ferramenta de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal os 10 (dez) mais recentes julgados,5 todos eles já no contexto da pandemia de COVID-19,6 destacam-se três teses: (i) nenhum deles reverte a cautelar extrema; (ii) parte deles enuncia que a gravidade em concreto do crime e a periculosidade do agente seriam fundamentos idôneos para fundamentar a preventiva;7 e (iii) tal periculosidade se evidenciaria pelo modus operandi do delito.8
Sobre o modus operandi, que aparentemente complementa a “gravidade concreta”, identificou-se que ele foi considerado suficiente para indicar a necessidade da prisão preventiva para a garantia da ordem pública, o que se extraiu das circunstâncias do caso concreto (ex.: “a periculosidade concreta do acusado e o fundado risco de reiteração delitiva ante o modus operandi empregado na ação delituosa – em concurso de agentes, com emprego de arma de fogo, para fazer refém uma família em sua residência. Ficou comprovado, ainda, que o ora paciente foi o mandante do assalto, premeditado”).9
Por sua vez, a gravidade concreta, em outro julgado também do Supremo, teria ficado evidenciada “pela apreensão de enorme quantidade de entorpecente (384kg de cocaína, no porto de Goia Tauro, Itália)”10 a fim de “resguardar a ordem pública”, sem qualquer consideração adicional sobre perigo de reincidência ou periculosidade.
Noutro caso, em que pese o lapso de mais de 03 (três) anos de prisão preventiva para o julgamento pelo Tribunal do Júri, a maioria da Primeira Turma entendeu que o próprio fato (um homicídio tentado e um consumado, contra a companheira e contra a sogra respectivamente) apontaria “estar em jogo a preservação da ordem pública, ante a periculosidade, ao menos sinalizada”11, desconsiderando, ainda, as condições pessoais favoráveis ao custodiado.
Estes julgados exemplificam como a Suprema Corte tem chancelado a tese segundo a qual a “gravidade concreta” sempre se faria acompanhar de uma periculosidade (pressuposta) tal que causaria risco à ordem pública, razão pela qual estaria devidamente motivada a prisão preventiva.
No entanto, ao passo em que esta compreensão reduz o perigo da liberdade à fumaça do cometimento do delito, torna impossível à defesa contraditar a idoneidade da medida preventiva por meio de fatos contemporâneos que atestem a inexistência de perigo por parte do imputado. Dito de outro modo: se o delito supostamente praticado é grave, dele emanaria um invariável perigo da liberdade à ordem pública, não admitindo qualquer argumento defensivo que buscasse demonstrar que tal perigo, a partir de fatos atuais, não subsiste, o que resulta na mudança de regra: da liberdade para a prisão.
Quer dizer: à luz do entendimento adotado pela Corte Suprema, toda pessoa investigada ou acusada por um crime de natureza grave poderia ser presa preventivamente, a despeito da observância dos requisitos objetivos para a decretação desta cautelar extrema. Não raramente as decisões sequer descrevem concretamente a conduta ensejadora da prisão, restringindo-se a citar elementos do delito em abstrato, como qualificadoras e causas de aumento.
Haveria, por obra deste raciocínio, não só a mudança da regra de tratamento decorrente do princípio da presunção de inocência,12 e sim uma transformação do caráter cautelar da prisão para a prisão-pena, agora podendo ser imposta desde a data do suposto cometimento do delito, isto é, desde, por exemplo, a prisão em flagrante.
Não obstante, tal construção processual esbarra no princípio da provisionalidade, consoante o qual se faz “necessário que o periculum libertatis seja presente, não passado e tampouco futuro e incerto”;13 nada mais é do que a necessária resposta, em forma de medida cautelar prisional, a uma conduta atual/contemporânea perigosa a qualquer dos pressupostos do art. 312,14 causada pela liberdade do imputado.
Isto é, a prisão cautelar é situacional, “tutela fática presente”.15 Embora já fosse imprescindível indicar o perigo da liberdade com fatos novos ou contemporâneos para justificar uma prisão preventiva consoante à doutrina e parte da jurisprudência, especialmente no Superior Tribunal de Justiça,16 este requisito ganhou, enfim, status de legalidade expressa com a inclusão do §2º17 do art. 312 e do §1º18 do art. 315, ambos do CPP, pela Lei 13.964/2019.
Portanto, se antes da alteração legal não se justificava sustentar um decreto de segregação cautelar preventivo a partir da mera “gravidade concreta” apartada de qualquer elemento denotador de perigo atual à ordem pública, com a assim chamada “Lei anticrime” isso ficou ainda mais incontroverso do ponto de vista teórico.
Ademais, no único julgado do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal sobre este assunto encontrado em pesquisa, percebem-se outros elementos, que se somam aos já mencionados e reforçam a tese de que a “gravidade concreta” não pode ser fundamento único a embasar uma prisão preventiva, conforme se verá a seguir.
3. O Habeas Corpus 143.333 e os parâmetros já empregados pelo Supremo Tribunal Federal
No habeas corpus epigrafado, discutiu-se a possibilidade de se revogar a prisão preventiva imposta a ex-agente político condenado em primeiro grau, sendo que o decreto de segregação permaneceria sustentado por um suposto risco à ordem pública. Os fatos articulados nesta medida cautelar se referiam à alegada atuação, por parte do paciente, em favor de grande empresa do ramo da construção civil, função que teria sido desempenhada até “meado do ano de 2011”,19 nada obstante a prisão tenha sido efetivada em 2016.
Logo, o principal ponto da defesa era a ausência de contemporaneidade entre o risco à ordem pública e a prisão preventiva, fundamento que está amparado, como se viu, na lei processual penal e na doutrina. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, manteve a prisão preventiva, porque a suposta conduta de corrupção teria passado de 7 (sete) anos de duração, a sugerir “fundado receio de prolongamento da atividade criminosa” (§10 da ementa), bem como porque a alegada lavagem de capitais na forma de ocultar seria delito permanente, dando plausibilidade à reincidência e afastando a ausência de contemporaneidade.
A despeito disso, o julgado trouxe algumas balizas a partir das quais se pode analisar a prisão preventiva decretada a pretexto do risco à ordem pública, decorrente da “gravidade concreta da conduta” (§7º da ementa).
Em síntese: na linha do Tribunal Pleno do STF (cf. parágrafos 7/10 da ementa), a gravidade concreta revela a periculosidade do agente, constituindo a necessidade da prisão preventiva, tão somente quando se verificam (a) possibilidade de a conduta extrapolar os fatos do processo; (b) risco de reiteração; e (c) conjunto maior de práticas delitivas no qual se insere o imputado. Já para compreender se a distância entre o fato e a prisão preventiva afirmam ou desautorizam a hipótese de reiteração, é preciso considerar se se tratou de (d) algo pontual ou não ocasional na vida do agente.
Ressalve-se que – ainda que por essa métrica – nada garante ser possível aferir qualquer probabilidade de periculosidade. Tal exame, baseado praticamente na vida pregressa do imputado, assemelha-se ao que Dieter classifica como “exame anamnésico”.20 A baixa capacidade preditiva deste modelo decorre do fato de que, para que previsões estatísticas sejam confiáveis, com baixa margem de erro, faz-se necessário um enorme conjunto amostral de condutas reiteradas.
Nesse sentido, se, por um lado, é possível estimar o grau de acurácia e precisão de um jogador de basquete em posição de lance livre, por outro, é quase impossível certificar que alguém, ao reincidir em alguma conduta criminosa, voltará a cometer algum comportamento considerado delitivo.21
Feita esta reserva, imagine-se como as construções baseadas no referido habeas corpus se aplicariam a um caso hipotético de homicídio no qual a investigação imputa a um cidadão “A” a conduta de ter contratado para matar a sua companheira um cidadão “B” e, com isso, herdar um considerável patrimônio. O sujeito “A”, preso inicialmente sob a alegação de ter cometido “crime grave” e “tentar coagir testemunha”, tem sua prisão preventiva decretada.
Quatro anos depois, simultaneamente à condenação por homicídio qualificado no Plenário do Júri, “A” é absolvido da acusação de coação no curso do processo e o Juiz Presidente decreta nova prisão preventiva, agora se baseando exclusivamente na sentença condenatória e na “gravidade concreta”. Some-se a isso que “A”, antes de tal fato, não possuía antecedentes e, ao longo de toda a segregação cautelar, foi considerado interno de bom comportamento pelos gestores do presídio.
Nesta hipótese, de fato, a sentença condenatória reforçaria o pressuposto da fumaça do cometimento do delito. Contudo, retomando os requisitos abstraídos do HC 143.333/PR, não se poderia afirmar que a “gravidade concreta” corresponderia à periculosidade, na medida em que (a/c) não haveria nenhuma conjuntura de suspeita da prática de crimes para além do processo no qual foi preso; (b) inexistiria qualquer risco de reiteração, conforme se veria com a ausência de antecedentes e do comportamento bem avaliado como interno; e (d) a própria natureza do crime comprovaria sua ocasionalidade.
Do contrário, segundo Saad, usar a prisão preventiva focando numa suposta “função preventiva de prevenção de novos delitos” demandada, por exemplo, pela “gravidade concreta”, não passaria de um artifício “à execução antecipada da pena”,22 uma vez que abandonaria a função processual de cautelaridade, que objetiva combater uma situação concreta de perigo da liberdade.
4. Conclusão
Finaliza-se retomando que a doutrina e o Código de Processo Penal já ofereciam elementos, agora fortalecidos pela Lei 13.964/2019, no sentido de que a prisão cautelar se destina a proteger quaisquer dos pressupostos do art. 312 do CPP, quando presente alguma situação de perigo da liberdade atual e concreto, a ser indicada pelo respectivo decreto, sendo insuficiente mencionar a “gravidade concreta” do delito, sob pena de modificar a regra processual (da liberdade para a prisão) em casos de crimes reputados graves, como nos homicídios.
Por outro lado, o julgado paradigma do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal oferece requisitos para diminuir a discricionariedade na imposição da cautelar prisional, exigindo que haja um contexto mais amplo a indicar recorrência de condutas delitivas e, portanto, um prognóstico mais rigoroso de risco de reiteração.
Sendo assim, a categoria de “gravidade concreta” como fundamentação que autoriza a preventiva sem observar estes requisitos é, ao fim e ao cabo, mera “gravidade abstrata”. Ignorar esses requisitos a torna, então, um mero recurso retórico que permite, na prática, maquiar prisões preventivas arbitrárias, pois destituídas de perigo da liberdade atual, com base em um fundamento genérico que já foi expressamente vedado pelo próprio STF.
(1) ADPF 347. Relator: Marco Aurélio Mello, 27, 09 de setembro de 2015. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/djEletronico/DJE_20160218_031.pdf. Acesso em: 4 mar. 2021
(2) Disponível em: <https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All>. Acesso em: 08 junho 2020.
(3) “NÃO HÁ qualquer excesso de prisão preventiva no Brasil”, defende moro. Conjur, 15 fev. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-15/nao-qualquer-excesso-prisao-preventiva-brasil-moro. Acesso em: 08 de junho de 2020.
(4) 26% dos homens presos e 62% das mulheres. Cf. Há 726.712 pessoas presas no Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 08 dez. 2017. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil>. Acesso em: 9 de junho de 2020.
(5) Pesquisa feita em 08.06.2020 a partir dos termos “gravidade concreta” e “prisão preventiva”.
(6) Diante da pandemia, o CNJ expediu a Recomendação nº 62 orientando os magistrados a reavaliar as prisões provisórias (art. 4º, I). Cf. Recomendação nº 62. Conselho Nacional de Justiça, 17 mar. 2020. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 9 de junho de 2020.
(7) Cf. HC 178.665 AgR. Relator: Luís Roberto Barroso, 04 de maio de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752733051. Acesso em: 18 abril 2021; HC 183.229 AgR. Relator: Alexandre de Moraes, 15 de maio de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752787099. Acesso em: 18 abril 2021.
(8) HC 178.665 AgR. Relator: Luís Roberto Barroso, 04 de maio de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752733051. Acesso em: 18 abril 2021; HC 183.014 AgR. Relator: Luís Roberto Barroso, 04 de maio de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752675911. Acesso em: 18 abril 2021.
(9) HC 178.665 AgR. Relator: Luís Roberto Barroso, 04 de maio de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752733051. Acesso em: 18 abril 2021, p. 05 do inteiro teor.
(10) RHC 183.082 AgR. Relator: Alexandre de Moraes, 11 de maio de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752712780. Acesso em 18 abril 2021, p. 09 do inteiro teor.
(11) HC 143.583, Relator: Marco Aurélio, 12 de março de 2019. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750295984. Acesso em 18 abril 2021, p. 10 do inteiro teor.
(12) FERRAJOLI, 2002, p. 442-443.
(13) LOPES JUNIOR, 2020, p. 994 (livro digital).
(14) Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
(15) LOPES JUNIOR, p. 994.
(16) A exemplo: HC 509.878/SP, julgado em 05/09/2019.
(17) “Art. 312. (...) § 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(18) Art. 315. (...) § 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(19) HC 143333. Relator: Luiz Edson Fachin, 12 de abril de 2018. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749413076. Acesso em: 18 abril 2021, p. 45 do inteiro teor.
(20) Aquele segundo o qual “a certeza de comportamento agressivo no futuro depende de apenas um elemento, a saber, a quantidade de casos semelhantes registrados pelo mesmo indivíduo” (DIETER, 2012, p. 157).
(21) Mesmo os mais entusiasmados defensores do uso de estatísticas para predizer condutas tidas por criminosas, certos atuários do sistema de justiça criminal estadunidense utilizam-nas apenas para os crimes de natureza patrimonial, que tendiam a se repetir mais vezes do que os demais (BRAIKER; PETERSON apud DIETER, 2012, p. 102).
(22) SAAD, 2013, p. 253.
Referências
DIETER, Mauricio Stegemann. Política criminal atuarial: A criminologia do fim da história. 2012. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo, Saraiva, 2020 (livro digital).
SAAD, Marta. Assimilação das finalidades da pena pela prisão preventiva. Revista Eletrônica de Direito Penal, v. 1, n. 1, p. 247-262, jun. 2013.
Caio Mousinho Hita
Mestrando em Direito Público pela UFBA e especialista em Ciências Criminais pela PUC/MG. Membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.
Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8918585383948256
ORCID: 0000-0002-5397-7793
caiomhita@gmail.com
Marcelo Marambaia Campos
Especialista em Direito Empresarial pela UFBA e em Criminologia pelo Instituto Universitário Atlântico. Membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.
Advogado.
ORCID: 0000-0003-0710-2686
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9509156744890809.
marambaia@sml.adv.br
Resumo: O presente trabalho tem por finalidade, através de uma revisão bibliográfica dos temas da psicologia do testemunho e das falsas memórias, levantar questionamentos sobre os possíveis prejuízos advindos da prática comum nos fóruns criminais de se ler a Denúncia antes do depoimento das testemunhas.
Palavras-Chave: Processo Penal. Prova testemunhal. Falsas memórias. Leitura da Denúncia.
Abstract: This paper aims, through a superficial approach on testimony’s psychology and false memories, to rise questions about de probable disservice that comes from reading the charges before the witness’s testimony.
Keywords: Criminal procedure. Testimonial evidence. False memories. Charge Reading.
A função sancionatória do Direito somente pode se dar sobre fatos passados, sendo, portanto, necessário averiguar, de alguma forma, a verdade desses fatos como fundamento da aplicação da norma a eles (PERES, 2012. p. 1.147). Há muito tempo, no entanto, a doutrina abandonou a ideia da possibilidade de um esclarecimento pleno da verdade, ou da chamada verdade real, que é absolutamente inacessível ao homem (PRADO, 2006. p. 136), sendo a verificação da verdade feita tão somente a partir de “signos do passado, deixados no presente” (LOPES JR, 2012, p. 568).
É claro que a impossibilidade da obtenção desta verdade real não significa que a atividade probatória não deva se pautar pela tentativa de expurgar erros. Assim, a busca incessante pela verdade, em que pese a impossibilidade de sua plena apreensão, deve servir como “um ideal regulativo no direito: nem sempre possível, mas sempre desejado” (MATIDA; HERDY, 2016).
Nessa perspectiva, a decisão judicial é baseada num exercício de reconstrução dos fatos e convencimento do magistrado através das provas produzidas com respeito ao Devido Processo Legal, “aportando ao feito de forma lícita e legítima” (LOPES JR; DI GESU, 2008, p. 100). A rigor, trata-se de uma verdade normativa (DUCLERC, 2004, p. 147), que deve, como ideal regulativo, ser baseada na constante tentativa de se expurgar erros.
Pois bem. Dentre as provas mais utilizadas no processo penal brasileiro para lastrear as decisões judiciais destaca-se a testemunhal. Não raro, “a prova oral é a única a embasar não só a acusação, como também a condenação, diante da ausência de demais elementos” (GIACOMOLLI; DI GESU, 2008, p. 4.340). Todavia, a prova testemunhal se revela frágil, já que exposta a diversos “fatores de contaminação” (BALDASSO; ÁVILA, 2018, p. 374), não sendo a ela dada a atenção que seu abundante uso requer.
A prova testemunhal é, em sua essência, dependente da memória. A memória, por sua vez, é conceituada como “a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações” (ÁVILA; GAUER; PIRES FILHO, 2012, p. 7.170). A memória pode ainda ser classificada como procedural, ligada ao aprendizado de atividades, ou declarativa, que se refere “à memória de fatos, eventos, de pessoas, de faces, de conceitos e de ideias” (LOPES JR; DI GESU, 2008, p. 101). É justamente essa segunda classificação que mais interessa para o presente artigo, já que a testemunha prestará esclarecimentos com base nas memórias que possui acerca do fato ou das circunstâncias relevantes ao redor do fato apurado.
O que diversos autores, por sua vez, vêm alertando em estudos nos quais se interseccionalizam a psicologia e o processo penal é que o ser humano – no caso em apreço, a testemunha – está sujeito ao fenômeno das falsas memórias.
Flaviane Baldasso e Gustavo Ávila conceituam falsas memórias como “lembranças de um evento que não ocorreu ou, caso tenha acontecido, se desenrolou de forma diferente da lembrada pela vítima” (2018, p. 373). Em outras palavras, é possível que, mesmo pensando falar a verdade, a testemunha relate fatos ou circunstâncias que efetivamente não aconteceram ou que aconteceram de maneira diversa. Verdade e mentira, portanto, não são antônimos.
Diversos fatores podem influenciar na criação de falsas memórias, tais como o mero decurso do tempo, que tornam incertos os detalhes do acontecimento (LOPES JR; DI GESU, 2008, p. 101) ou em razão “do processo normal de compreensão” de um fato (STEIN; PERGHER, 2001. p. 354), que pode se dar de maneira diferente para cada indivíduo.
Outro tipo de falsa memória, e aqui o que mais nos interessa, pode surgir de sugestões externas. Em resumo, a informação falsa, que não faz parte da experiência do sujeito, mas com ela guarda relação, é sugerida por algum fator externo. “A pessoa passa a recordar de fatos como se tivessem sido realmente vividos, quando na verdade, estes fatos foram-lhe sugeridos” (STEIN; PHERGER, 2001, p. 354).
Nesse aspecto, Elizabeth Loftus conduziu uma série de experimentos na década de 70 baseada na inserção de informações não-verdadeiras através de perguntas realizadas logo após a exibição de vídeos e perguntas realizadas dias depois. Os resultados alcançados pelas pesquisas demonstraram que, após sucessivas entrevistas, cerca de 30% dos entrevistados submetidos a perguntas que possuíam em si informações falsas reportaram ter visto fatos que efetivamente não ocorreram (LOFTUS, 1975, p. 569; LOFTUS; PALMER, 1974, p. 587).
Vê-se, portanto, que a prova testemunhal pode estar suscetível a falsas memórias, seja pelo mero passar do tempo, seja por influências externas, devendo os atores do Processo Penal envidar todos os esforços para, dentro do possível, evitar sugestionar e buscar preservar ao máximo a fidedignidade do testemunho.
Em sentido diverso, no entanto, é comum presenciar o seguinte fato nos fóruns criminais: antes do início do depoimento, o juiz determina a leitura da Denúncia à testemunha. Apesar de não haver previsão legal nesse sentido, tal procedimento chega a ser sugerido num roteiro de audiência criminal disponibilizado aos magistrados, por exemplo, pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (DI SALVO, 1997). A rigor, o que se busca é que a testemunha seja municiada do contexto dos fatos em apuração para que possa melhor auxiliar na elucidação da questão.
Tal procedimento, no entanto, é extremamente nocivo à fiabilidade da prova testemunhal, já que representa a inserção de uma sugestão externa que, como já vimos, é capaz de influenciar a memória da testemunha. É preciso frisar que a Denúncia não é uma mera descrição de fatos, mas sim um juízo feito pela Acusação acerca de como entende terem os fatos ocorridos, sendo verdadeiro juízo de valor sobre os elementos colhidos na fase pré-processual. Assim, a leitura da peça incoativa pode acabar por influenciar a produção da prova testemunhal.
E nem que se diga que bastaria realizar a leitura da Resposta à Acusação do Réu, seja porque tal peça processual, ao contrário da Contestação do Processo Civil, não precisa necessariamente apresentar uma nova versão dos fatos, seja em razão de ser produzida pela Defesa Técnica, cuja credibilidade perante as testemunhas jamais alcançará a mesma do Órgão Acusatório, em tese, desinteressado com o resultado do feito.
A inquirição de testemunhas no processo penal, como já é cediço, tem por objetivo extrair do depoente informações coerentes e o mais próximas possível da realidade por ele vivenciada. Por outro lado, é certo que tal resultado não depende exclusivamente da testemunha, mas também do comportamento do entrevistador, cujo papel deve ser de evitar ao máximo sugerir, direcionar ou influenciar respostas, buscando um depoimento o mais fidedigno e espontâneo possível.
É dentro desse contexto que a corriqueira conduta forense de leitura da Denúncia antes do início do depoimento, a nosso sentir, revela-se inadequada para a obtenção de informações que estão na memória da testemunha, à medida que extrapola a necessidade de contextualização mínima para a colheita da prova e se enquadra como um comportamento sugestivo capaz de gerar graves prejuízos para a qualidade e a confiabilidade do depoimento.
A versão acusatória contida na Denúncia vai muito além da mera descrição fática e normalmente vem carregada de um juízo de valor, de adjetivos e opiniões, que podem contribuir para uma deformação da fidelidade do testemunho, seja por sugestão, induzimento ou até mesmo receio de eventualmente contrariar uma afirmação do Ministério Público, na qualidade não só de Órgão Acusador, mas como também de fiscal da lei.
É preciso levar em conta que muitas testemunhas não possuem elevado grau de instrução e, ao ouvirem a leitura da peça acusatória, elas tendem a atribuir àquele opinativo preliminar um grau de confiança muito elevado, sob a premissa de que o Ministério Público não teria motivos para mentir, inventar ou distorcer os fatos. Tal circunstância, que pode fazê-la repensar sobre a forma como realmente se deram fatos passados, a fim de adequá-los ao que foi narrado pelo Ministério Público, ficando comprometida, neste caso, a fiabilidade da sua memória.
Ademais, o momento de inquirição de testemunhas no âmbito do processo penal costuma trazer ansiedade e um estado emocional intenso para os depoentes, de maneira que qualquer atitude sugestiva por parte do interrogador pode comprometer a credibilidade das informações. Deve-se privilegiar sempre o relato com mais espontaneidade, cabendo a todos os atores do processo zelar pela produção da prova mais fidedigna possível.
A leitura da Denúncia, portanto, não contribui nesse sentido e, como se não bastasse a ausência de expressa exigência legal, revela-se totalmente desnecessária a permanência da adoção dessa praxe no âmbito forense, cabendo à testemunha, antes de responder às perguntas, ser apenas cientificada genericamente sobre o motivo de ela ter sido convocada para aquele ato processual, sem qualquer sugestionamento adicional acerca dos fatos.
Este seria um procedimento que, sem dúvida, diminuiria bastante o risco de contaminação de uma prova tão frágil e, ao mesmo tempo, tão fundamental para a tomada de diversas decisões judiciais na seara processual penal, que é a prova testemunhal.
Conclui-se, destarte, que a leitura da Inicial Acusatória à testemunha antes de se proceder a colheita da prova oral tem o condão de influenciar e interferir em suas memórias, dando azo à produção de falsas memórias, podendo gerar resultados nocivos à fiabilidade da prova, sendo necessária a abolição de tal prática no dia a dia forense.
REFERÊNCIAS
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DI SALVO, Luís Antonio Johonsom. Roteiro de audiência criminal. Revista do Tribunal Regional Federal da Terceira Região, São Paulo, n. 30, abr./jun., 1997.
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Fernando Nogueira Martins Júnior
Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela UFMG.
Professor Adjunto de Direito Penal, Direito Processual Penal e Prática Jurídica Real no Departamento de Direito – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – Universidade Federal de Lavras.
Advogado criminalista.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9944199020457500.
ORCID: 0000-0003-0327-9951.
fernando.martins@ufla.br.
Resumo: O artigo trata do cenário de luta por direitos fundamentais no Brasil e do quanto tais lutas são frequentemente equiparadas a condutas criminosas. Segue-se então para uma reflexão sobre as condições estruturais de criminalização da luta social no mundo e ao longo da história, o que leva o analista a concluir que o horizonte de qualquer lutador social é o enquadramento de suas condutas como um crime aberta ou veladamente político. Apresenta-se alguns exemplos nacionais e internacionais que validariam tal conclusão e, ao fim, afirma-se o problema que a ausência de um número maior de criminosos e crimes políticos na sociedade gera para fins de consolidação democrática em uma dada sociedade.
Palavras-chave: Crime Político; Criminalização; Luta Social; Direitos; democracia.
Abstract: The paper deals with the scenario of struggle for fundamental rights in Brazil and how such struggles are frequently equated to criminal conducts. After, there is a reflection on the structural conditions for the criminalization of social struggles worldwide and throughout History, which leads the analyst to conclude that the horizon of any social fighter is the framing of her conducts as a openly or overtly political crime. It is presented some national and international examples that would validate such conclusion and, in the end, it is asserted the problem that the absence of a greater number of political crimes and criminal in society generates for purposes of democratic consolidation on a given society.
Keywords: Political Crime; Criminalization; Social Struggle; Rights; Democracy.
Entender o grau de excepcionalidade hiperviolenta que informa e estrutura o sistema penal brasileiro é também entender como uma série de vias de reivindicação antes considerada aceitável e democrática está, desde há muito, mais ou menos bloqueada ou mitigada.
Há quem diga que tais vias nunca estiveram abertas realmente no marco das democracias representativas liberais.1 Ainda que alguns ganhos sejam claramente aferíveis, no quadro geral deste marco, a supressão do dissenso em nome da ordem (que, em nosso país, diz respeito a uma desigualdade social imensa, uma violência socialmente vivenciada alta e em ascensão e uma espoliação imperialista intensa 2) gera hoje índices inauditos de violações: é a “manutenção da ordem, a qualquer custo”.3
E a dinâmica legalidade/ilegalidade, à parte os clamores das belas-almas de todos os tempos, complexifica-se ante os olhos do analista instigado pelo funcionamento concreto das democracias contemporâneas. Isso porque, sob determinado ângulo, toda democracia representativa de corte liberal é, no fundo, um regime autocrático classista – traduzindo os limites que a legalidade “burguesa” traz a qualquer democratização real. Etienne Balibar, remetendo-se a Karl Marx e Vladimir Lênin, afirma que “todo poder de Estado é uma ‘ditadura de classe’. A democracia burguesa é uma ditadura de classe (a ditadura da burguesia); a democracia proletária das massas trabalhadoras é também uma ditadura de classe.”4
Estas afirmações apresentam-se pertinentes para nós e “limpam o campo” quanto à caracterização do regime político sob o qual vivemos: a democracia ocidental contemporânea é uma ditadura de classe – no caso, burguesa. Ou seja, se entendemos que vivemos em uma democracia, na verdade aceitamos – segundo os padrões marxistas de Etienne Balibar e suas referências – um governo ditatorial.
Outro aspecto na mesma problemática é a práxis cotidiana da luta por direitos no país. A criminalização dos defensores de direitos humanos no Brasil é prática recorrente das agências do sistema penal, com o fito de deslegitimar o seu trabalho e de preservar o status quo 5 – isto quando tais defensores não são sumariamente executados (normalmente por particulares, com apoio, conivência ou tolerância de agentes públicos).6 E tudo isso, normalmente, não por se pautar direitos e garantias para além da legalidade posta, mas apenas para garantir-se o cumprimento da lei ou da Constituição já vigentes.
Sejam ocupações de imóveis que há dezenas de anos não cumprem sua função social; sejam clamores para que se deixe de torturar em massa cidadãos infratores nas masmorras insalubres e superlotadas que conformam o nosso sistema prisional; seja o mais simples chamado ao cumprimento mais raso da Constituição da República: ativistas e militantes são, na melhor das hipóteses, ostracizados e ameaçados – quando não são encarcerados, torturados e/ou executados. O uso indiscriminado de prisões preventivas, a blindagem institucional das polícias militares, a orientação punitivista do Ministério Público e do Poder Judiciário, a relativa depreciação da Defensoria Pública: o Estado utiliza amplamente de seu instrumental institucional jurídico para impedir que elementos de democratização direta e mais aprofundada tomem corpo.
Essa natureza fronteiriça da luta democrática, que a coloca sempre em dois potenciais e concomitantes registros – o da legalidade e o da ilegalidade – traz implicações de ordem prática para uma proposta de avanço no tema, sendo que todas elas orbitam em torno de uma conclusão: a dimensão estruturalmente criminosa da luta democrática. Explicamos.
Tomemos como chave interpretativa o crime político. Segundo a doutrina penal majoritária no Brasil: “o crime político é todo ato lesivo à ordem política, social ou jurídica, interna ou externa do Estado (delitos políticos diretos), ou aos direitos políticos dos cidadãos (delitos políticos indiretos). Objetiva ele predominantemente destruir, modificar ou subverter a ordem política institucionalizada (unidade orgânica do Estado).”7 (Itálico e grifo no original).
A concepção mais aceita de crime político, portanto, adota uma teoria mista restritiva: é crime político aquele que atinge o bem jurídico “ordem política, social ou jurídica, interna ou externa do Estado” ou o bem jurídico “direitos políticos dos cidadãos” (requisito objetivo) e, cumulativamente, aquele que tem o intento/dolo predominante de “destruir, modificar ou subverter a ordem política institucionalizada”.
Pois bem. Em se tomando a concepção de crime político na modalidade subversão e no espírito expansionista do punitivismo brasileiro contemporâneo, podemos compreender que em alguma instância todo crime é político: ele é uma manifestação de inconformismo com um corpo normativo posto que reflete necessariamente determinada pauta moral e determinados interesses de grupos que detêm a hegemonia política em dada sociedade. Se o criminoso comum não tem o dolo direto de “subverter a ordem”, a ele poder-se-ia reconhecer ao menos o dolo eventual: o delinquente, ao cometer o delito, pelo menos assumiria o risco de que as consequências da sua ação pudessem vir a ser uma subversão, ainda que momentânea, da lei e da ordem vigentes. Seria essa a razão de fundo da escolha política de se criminalizar uma conduta: reconhecer sua condição de disruptiva da ordem posta e buscar coibi-la.8
Quando se faz a mesma análise tendo como objeto não o crime comum, mas essa conduta fronteiriça e de contornos difusos que é a contestação político-social, as coisas ficam ainda mais claras. Ainda que com objetivos os mais nobres, toda e qualquer contestação avançada do status quo busca, em maior ou menor grau, a subversão da ordem vigente – em nome da construção de outra ordem, mais justa e democrática. Nesse aspecto, e considerando a amplitude desregrada e autoritariamente excepcional da tutela penal no país, pode-se dizer, sem muitas mesuras, que toda e qualquer contestação da ordem pode, se assim entender o Estado, ser considerada um crime.
Uma contestação de uma atuação policial abusiva pode consubstanciar resistência ou desobediência ou, no mínimo, desacato; os votos por uma mudança social, com vistas a dar à luz um outro marco societário menos repressivo e mais democraticamente gestado e gerido, pode ser tomado facilmente como incitação ou apologia ao crime. Isso quando a conduta não recair em um tipo penal político per se, daqueles constantes da ditatorial Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83).
Deve-se assumir essa realidade em toda a sua abissal radicalidade. Todos os direitos e garantias fundamentais previstos em nossa Constituição e em tratados internacionais não foram dados, mas conquistados – às vezes com sacrifícios terríveis.9 E aqueles que advogaram tais direitos, em um momento ou outro, foram considerados criminosos comuns, políticos ou mesmo terroristas.10
A título de ilustração, e apenas quanto à história da luta por direitos no século XX dentro do marco do chamado Estado de Direito: Mahatma Gandhi passou vários anos encarcerado por buscar a independência de seu povo ante um jugo colonial assassino e aviltador;11 Martin Luther King também foi preso muitas vezes, brutalizado pela polícia, e era vigiado ininterruptamente pelo Federal Bureau of Investigation (FBI) e por setores da Inteligência do Exército estadunidense por ser uma “pessoa perigosa”;12 Angela Davis, filósofa e criminóloga estadunidense ainda viva, enquanto membro do Partido Comunista dos Estados Unidos e muito próxima do Black Panther Party na década de 1960, lutando acirradamente em prol dos direitos da população negra em seu país, entrou para a lista dos dez mais procurados pelo FBI e foi alvo de uma das maiores caçadas humanas já realizadas. Foi absolvida de todas as acusações, principalmente devido à mobilização mundial para sua soltura;13 Nelson Mandela, Prêmio Nobel da Paz, ex-presidente da África do Sul, amargou vinte e sete anos de cadeia por clamar pelo fim da discriminação racial assassina que imperava em seu país – o que lhe custou a pecha de “terrorista internacional” ante os órgãos de segurança dos EUA até meados dos anos 2000.14 Militantes em prol do direito à informação como Julian Assange ou mesmo pessoas comuns com espírito democrático como Edward Snowden são considerados criminosos perigosíssimos e altos traidores, perseguidos implacavelmente por todo o globo, coagidos ao exílio ou ao mais opressivo cárcere privado ou público, correndo o risco de serem condenados até mesmo à morte, apenas por terem informado o público sobre os gravíssimos crimes que certas potências estatais cometeram e cometem contra a Humanidade.15 Mesmo no Brasil podemos ver claramente isso se desenrolar: ilustrando, temos os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sendo sumariamente executados devido às suas reivindicações veementes de direitos já previstos na Constituição da República Federativa do Brasil: segurança alimentar, moradia, função social da propriedade (de onde decorre o justo direito à terra), neste país das concentrações de terra chanceladas legalmente, das grilagens e dos escandalosos latifúndios.16
Isso para não falar daquelas pessoas que trabalharam por fora do marco do Estado Democrático de Direito liberal-conservador, contribuíram decisivamente para a luta contra o autoritarismo e pela concretização dos direitos e garantias fundamentais de centenas de milhares ou mesmo milhões de pessoas, e ainda hoje são vistas pela claque bem pensante dentro e fora da academia (através de uma operação intelectual das mais irresponsáveis) como criminosos de alta periculosidade: Vladimir Lenin, Mao Tsé-Tung, Carlos Marighella, Malcolm X, Fidel Castro, Frantz Fanon, dentre inúmeros outros.
Portanto, ao fim e ao cabo, o horizonte da luta consequente pela democratização, no Brasil e no mundo, é (e talvez sempre tenha sido) uma luta em dois fronts simultâneos: o legal e o paralegal. A ação dentro dos limites do ordenamento jurídico posto seria tática válida apenas e tão somente quando aliada a ações de rua, de massas ou “conspiratórias”, enquadradas como “ilegais” pelos poderes estabelecidos – e tudo isso sob o escrutínio de uma análise efetiva da situação histórica concreta. É mutatis mutandis a chamada estratégia de pinça, conhecida de formuladores políticos radicais desde há muito.17
E é nessa toada que os reclamos para que haja uma redescoberta da dignidade do crime cívico se mostram os mais atuais – e urgentes. Sem qualquer romantização do crime como transformador/revolucionário em si, talvez seja o momento de chegarmos à conclusão de que nosso problema nacional em termos criminais não é primordialmente de quantidade, mas sim de qualidade: o problema central não seria o fato de termos criminalização demais, mas sim de que esta criminalização é sintoma da falta tremenda de criminalidade política stricto sensu no dia a dia da luta pelos direitos e garantias fundamentais. Sem o espírito generoso dos criminosos políticos de todas as eras, as possibilidades de uma democracia de alta voltagem, livre das mais diversas formas de opressão (notadamente a policial e a sistêmico-penal em geral) não serão desbloqueadas, destravadas. Serão abortadas sempre pelos limites intrínsecos à legalidade da ordem draconiana, desigual e injusta brasileira.18
1 MASCARO, Alysson Leandro. Todo direito é um golpe. Blog da Boitempo, 25 mai. 2016. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/25/alysson-mascaro-todo-direito-e-um-golpe/>. Acesso em: 03 set. 2020.
2 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SANTOS, Ílson Dias dos. La nueva crítica criminológica: criminología in tiempos de totalitarismo financiero. Quito: Editorial El Siglo, 2019.
3 Algo que se verifica desde o início da colonização do Brasil, informando através dos séculos as chamadas “forças de segurança”. Vide COTTA, Francis Albert. Matrizes do sistema policial brasileiro. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.
4 BALIBAR, Etienne. Sobre la dictadura del proletariado. Madri: Siglo Veintiuno, 1977. p. 33.
5 LIMA NETO, Antônio Francisco de et al (org.). Vidas em luta: criminalização e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos em 2017. Rio de Janeiro: Justiça Global, 2018. Disponível em: <https://terradedireitos.org.br/acervo/publicacoes/livros/42/vidas-em-luta-criminalizacao-e-violencia-contra-defensoras-e-defensores-de-direitos-humanos-no-brasil-2017/22994>. Acesso em: 03 set. 2020.
6 CIDH condena os assassinatos de defensores de direitos humanos vinculados ao direito ao meio ambiente, terra e trabalhadores rurais no Brasil. OEA, Centro de Mídia, n. 168, 27 jul. 2018. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2018/168.asp>. Acesso em: 03 set. 2020.
7 PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes. Delito político e terrorismo: uma aproximação conceitual. p. 9-10. Disponível em: <http://professorluizregisprado.com/Artigos/Delito%20pol%C3%ADtico%20e%20terrorismo.pdf>. Acesso em: 03 set. 2020.
8 “Quando você criminaliza um conflito, faz uma opção política. Não existe um crime natural. Todo crime é político. Nos anos 70, eu me lembro que o Augusto Thompson, que é uma grande figura, deu uma resposta maravilhosa numa conferência, a um aluno que perguntou, ‘professor, qual é a diferença entre criminoso comum e criminoso político?’, e o Thompson falou, ‘a diferença é que o comum também é político, só que ele não sabe’”. BATISTA, Nilo. “Todo crime é político”. Caros Amigos, São Paulo, n. 77, ago. 2003.
9 SIQUEIRA, Dirceu Pereira; PICCIRILO, Miguel Belinati. Direitos fundamentais: a evolução histórica dos direitos humanos, um longo caminho. E-GOV, 28 set. 2012. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/direitos-fundamentais-evolu%C3%A7%C3%A3o-hist%C3%B3rica-dos-direitos-humanos-um-longo-caminho>. Acesso em: 03 set. 2020; MAYER, Arno Joseph. The furies: violence and terror in the French and Russian revolutions. Princeton: Princeton University Press, 2000.
10 SOARES, Denise de Souza. De Marx a Deus: os tortuosos caminhos do terrorismo internacional. São Paulo: Renovar, 2003. A razão da pecha negativa aos lutadores sociais de todos os tempos (lançando suas ações na zona gris entre legalidade e ilegalidade) pode ser entrevista na espirituosa definição de terrorismo dada pelo jornalista e documentarista alemão Gerhard Wisnewski: “terrorismo é sempre toda violência política que não é financiada pelos Estados Unidos”. A citação encontra-se na página 7 da obra citada.
11 Gandhi foi preso 13 vezes entre 1908 e 1942, tendo permanecido encarcerado por 5 anos, 2 meses e 10 dias aproximadamente. Cf. YEARS of arrests & imprisonment of Mahatma Gandhi. Gandhi World Foundation, [201?]. Disponível em: <https://www.gandhiworld.in/english/yearsofarrests.php>. Acesso em: 03 set. 2020.
12 Martin Luther King foi preso por 29 vezes, sendo conduzido para carceragens policiais (jails) e não penitenciárias (prisons). Cf. KING, Coretta Scott. The meaning of the King Holiday. TLB Project, 16 jan. 2017. Disponível em: <https://www.thelibertybeacon.com/meaning-king-holiday-coretta-scott-king-video/>. Acesso em: 03 set. 2020.
13 HAILER, Marcelo. Angela Davis: a mulher mais perigosa do mundo. Revista Fórum, 28 jan. 2015. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/noticias/angela-davis/>. Acesso em: 03 set. 2020; DAVIS, Angela Yvonne. Angela Davis: uma autobiografia. São Paulo: Boitempo, 2019.
14 BIOGRAPHY of Nelson Mandela. The Nelson Mandela Foundation, [20??]. Disponível em: <https://www.nelsonmandela.org/content/page/biography>. Acesso em: 03 set. 2020; MANDELA, Nelson. Long walk to freedom. Boston: Little, Brown and Company, 1994. Por causa do epíteto de terrorista, Mandela só podia entrar nos EUA – no mais das vezes, para comparecer à sede da ONU – com uma autorização especial do governo americano; esta pitoresca situação só mudou em 2008, quando um senador americano denunciou o descalabro da questão toda e pediu a retirada do nome de Mandela do rol de “terroristas internacionais”. Vide WINDREM, Robert. US government considered Nelson Mandela a terrorist until 2008. NBC News, 7 dez. 2013. Disponível em: <http://www.nbcnews.com/news/other/us-government-considered-nelson-mandela-terrorist-until-2008-f2D11708787>. Acesso em: 03 set. 2020; DEWEY, Caitlin. Why Nelson Mandela was on a terrorist watch list in 2008. Washington Post, 7 dez. 2013. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/the-fix/wp/2013/12/07/why-nelson-mandela-was-on-a-terrorism-watch-list-in-2008/>. Acesso em: 03 set. 2020. A atitude conservadora do governo dos EUA era compreensível dentro do contexto da luta contra o apartheid: durante os anos em que ficou preso, e mesmo depois da libertação, Nelson Mandela tinha como companheiros militantes no CNA (Congresso Nacional Africano) muitos membros do Partido Comunista Sul-africano; e mais, Mandela e o CNA não abandonaram a luta armada – empreendida pelo braço militar do CNA, o Umkhonto we Sizwe (“Lança da Nação”) – enquanto o Apartheid não foi completamente desmantelado. LAING, Aislinn. Nelson Mandela’s Spear of the Nation: the ANC’s armed resistance. The Telegraph, Johanesburgo, 5 fev. 2011. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/africaandindianocean/southafrica/8304153/Nelson-Mandelas-Spear-of-the-Nation-the-ANCs-armed-resistance.html>. Acesso em: 03 set. 2020.
15 ASSANGE, Julian. Cipherpunks: a liberdade e o futuro da internet. São Paulo: Boitempo, 2013; GREENWALD, Glen. Sem lugar para se esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano. Rio de Janeiro: Sextante, 2014.
16 BARREIRA, César. Crônica de um massacre anunciado: Eldorado dos Carajás. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 13, n. 4, p. 136-143, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v13n4/v13n4a14.pdf>. Acesso em: 03 set. 2020; DOIS MILITANTES do MST são assassinados em Nova Santa Rita (RS). Sul 21, 01 mai. 2020. Disponível em: <https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2020/05/dois-militantes-do-mst-sao-assassinados-em-nova-santa-rita-rs/>. Acesso em: 03 set. 2020.
17 GUIMARÃES, Juarez. A estratégia da pinça. Teoria e Debate, n. 12, 30 nov. 1990. Disponível em: <https://teoriaedebate.org.br/1990/12/01/a-estrategia-da-pinca/>. Acesso em: 03 set. 2020.
18 Cabível é ainda o conselho dos antigos lutadores sociais (guardadas as diferenças de categorias e momento histórico): “Para chegar à consciência de sua vocação histórica e à legitimidade do seu domínio vencendo todas as resistências, ele [o proletariado] precisa, antes de tudo, aprender e compreender o caráter meramente tático da legalidade e da ilegalidade e afastar tanto o cretinismo legal quanto o romantismo da ilegalidade.” LUKÁCS, Gyorgy. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 487.
Marcelo Pertille
Doutorando e mestre em Ciências Criminais (PUCRS).
Especialista em Direito Processual Penal e em Direito Público (UNIVALI).
Professor de Direito Penal e Direitos Humanos da UNIVALI.
Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4560522200827508
ORCID: 0000-0003-0083-450X.
marcelopertille@yahoo.com.br
Thais Silveira Pertille
Doutoranda e mestra em Direito (UFSC).
Especialista em Filosofia e Direitos Humanos (PUCPR).
Professora de Direito Constitucional e Direito Internacional no Centro Universitário Estácio/SC.
Advogada.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5565671235570735
ORCID: 0000-0003-2939-8238
thaispertille@gmail.com
Resumo: Os processos de colonização alteraram estruturalmente as realidades dos povos denominados descobertos. A partir dos valores europeus de justiça, o retributivismo se tornou hegemônico. Diante das crises dessa epistemologia, algumas formas de justiça restaurativa têm sido discutidas, mas muitas de suas técnicas não representam, em essência, novidades. Pensar alternativas ao retributivismo é também um resgate de valores pré-coloniais.
Palavras-chave: Justiça Retributivista; Justiça Restaurativa; Valores pré-coloniais.
Abstract: The colonization processes structurally altered the realities of the so-called discovered peoples. From the European values of justice, retributivism became hegemonic. With the current crises of this epistemology, forms of restorative justice have been discussed, but many of its techniques do not represent, in essence, novelties. Thinking about alternatives to retributivism is also a rescue of pre-colonization values.
Keywords: Retributivist Justice; Restorative Justice; Pre-colonization values.
1. O SISTEMA RETRIBUTIVO E OS VALORES LIBERAIS DE PROTEÇÃO COMO FATORES COLONIAIS
1.1 Retributivismo como herança colonial
A história dos sistemas penais admite inúmeros recortes, e, certamente, para realidades fruto de processos coloniais passa pelo abandono de práticas locais diante da imposição das epistemologias dos colonizadores. Com as revoluções mercantis iniciadas no século XV, disseminaram-se mundivisões de um típico modelo hierarquizado de homens brancos, cristãos, heterossexuais e de tradições militares (GROSFOGUEL, 2008). E também chegou às terras colonizadas um típico modelo retributivo de justiça. A lógica penal se materializava em processos sancionatórios de imposição de castigos como forma de devolver ao agente taxado de criminoso o mal por ele praticado.
Importante delimitar que o recorte conceitual do retributivismo com o qual se pretende trabalhar aqui foca na dinâmica de um modo de justiça voltado para o passado, infligindo dor e restrições de liberdade como meios de afirmar o castigo enquanto instrumento de purificação e redenção do ser desviante. Sob fundamentos que entrelaçavam valores absolutistas (soberano como líder), morais 1 e religiosos (Inquisição), a pena como resposta ao crime trouxe consigo as específicas maneiras de os colonizadores conceberem o controle de suas organizações sociais (ANITUA, 2018, p. 40).
É preciso dizer que não se desconsidera que é inerente às culturas a defesa e a exaltação de seus valores, o que poderia indicar normalidade no fato de os colonizadores compartilharem seus modos de vida. Todavia, é preciso ressaltar que quanto aos europeus colonizadores impuseram seus hábitos, tradições, conceitos de progresso, civilização e ciência sob a justificativa de um saber universal e neutro (DUSSEL, 2005, p. 30). Não trouxeram perspectiva de convergência e comunhão de saberes, mas a supressão da diversidade em nome de objetivos traçados a partir de suas origens, voltando para lá seus benefícios, inclusive (PERTILLE; PERTILLE, 2020, p. 58).
Nas sociedades que passaram a ser construídas com base nos padrões culturais europeus, é possível ratificar a importância dessas características, diante da inegável brutalidade contra os nativos durante as ditas descobertas dos novos mundos. A lógica mercantil, aliada à necessidade de dominação territorial e ao modo retributivo de se conceber justiça, legitimou violências como métodos de submissão dos colonizados e, com aportes teocráticos, atingiu seu ponto máximo com a escravidão (ZAFFARONI; SANTOS, 2020, p. 23).
1.2 Os valores liberais de proteção do indivíduo e a lógica retributiva
Mario Sbricolli (2001), sugere pensar a história penal europeia “como a história de uma longa fuga da vingança”. O autor adverte, no entanto, acerca da necessidade de se estar consciente do risco teleológico que se incorre ao tomar esse caminho de escape da vingança como medida dos níveis de civilização dos ordenamentos punitivos. Isso porque a justiça penal não pode ser vista em constante progresso. Tal afirmação fica visível no histórico de espaços negociais, os quais podem ser observados já nos séculos XI e XIII, que nessa época diziam respeito à possibilidade da vingança da vítima, uma vez que o crime era entendido como questão privada.
E a noção retributiva de justiça penal sempre esteve intimamente ligada à organização política do poder. Em que pese essa conclusão não revelar novidade nos dias de hoje, permite compreender que, a partir das reorganizações políticas no medievo italiano, as comunidades perderam força frente às noções de Estado organizado. Em consequência, as visões consuetudinárias do justo mostraram-se demasiadamente regionais (SBRICOLLI, 2001, p. 462).
Diante disso, a jurisdição penal monopolizada pelo Estado da qual a contemporaneidade é consequência direta, construiu-se a partir do princípio de que não há crime sem ofensa a um valor socialmente relevante (nullum crimen sine iniuria). Como efeito, a preocupação passou a ser a sistematização de normas penais aptas a racionalizar valores sociais, diante de danos ou perigos de lesão, orientada por ideais de proteção do indivíduo.
Em linhas gerais, os sistemas retributivos de justiça penal, a partir dessas transformações, podem ser diagnosticados tendo em vista algumas importantes características que hoje são frontalmente contestadas. Pode se dizer que o sistema retributivo, até mesmo por seus aspectos ligados à formação do indivíduo enquanto conceito jurídico, tem o agressor como sujeito único na apuração do fato. E as repercussões jurídico-penais devem corresponder à gravidade da conduta e suas consequências, sendo que o acusado e o Estado com atribuição para lhe perseguir colocam-se em relação adversarial. Daqui decorre uma das mais relevantes críticas ao modelo retributivo: a relação jurídica do ofensor se desenvolve com o Estado, ente abstrato que, sob a justificativa de racionalizar a justiça, o afasta do ofendido. Isso se dá, em grande parte, porque a vítima tem apenas papel secundário na construção da resposta judicial, o que acaba por enfatizar que o importante é a apuração da culpa em rituais formais destinados à reconstrução histórica dos fatos (processo). Essa dialética faz com que o acusado acredite que seu problema é apenas com o Estado, que, de outra parte, sequer consegue viabilizar as declaradas finalidades da pena (principalmente a prevenção).
Não se nega, sobretudo no século XX, que a dogmática retributiva, colonizada por valores disseminados pelos direitos humanos, cada vez mais tem buscado se afirmar enquanto limite do Estado de punir. Mas isso não tem impedido que a própria dogmática venha sendo colonizada por valores econômicos, por exemplo. Não resta dúvida, a partir de tudo que já produziu a criminologia que, mesmo diante do potencial universal dos padrões do conceito crime, visto sob a intervenção mínima (ultima ratio), interesses outros exercem fundamental importância nas respostas judiciais dentro do contexto criminal.
2. ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO PODEM SIGNIFICAR RESGATE PRÉ-COLONIAL
É justamente nas insuficiências do modelo retributivo que propostas de justiça restaurativa cada vez mais têm conquistado espaço. Se a lógica retributiva apresenta a pena como método de quitação da responsabilidade penal, visões restaurativas propõem outras estruturas.
Em um sistema restaurativo, a apuração da responsabilidade não se faz centrada exclusivamente na pessoa do produtor da conduta típica, mas num possível conjunto de sujeitos que, de formas variadas, pode ter colaborado para condições objetivas e subjetivas do evento que se pretende apurar. Para além do indivíduo acusado, a justiça restaurativa pressupõe que condutas sociais são frutos de uma rede de relacionamentos. É, nesse sentido, que o crime é visto como um evento a indicar desarmonia nas relações sociais, devendo ser analisado até mesmo nas suas dimensões emocionais e psicológicas. Parte-se da noção de que o crime é uma situação que rompe o tecido social que necessita ser restaurado.
Para tanto, a vítima ganha importância fundamental, visto que se busca pacificar a relação social inaugurada pelo evento criminoso, com o que se pretende dar condições ao ofendido de visualizar o futuro para além do evento traumático. Também se pretende proporcionar ao ofensor as condições para que avalie as consequências dos atos praticados, fazendo-o compreender a dimensão de suas condutas, sob a óptica da responsabilidade. Solucionar o problema causado passa a ser o foco da justiça. Daí a importância de integrar o ofensor no processo de solução do problema a que deu causa.
É claro que alterar matrizes retributivas compreende mudança drástica nas estruturas das dogmáticas penal e processual penal estabelecidas. É, fundamentalmente, outra forma de pensar o mecanismo de direito. Se o atual sistema penal está construído sobre razões de limitação do poder de punir, do monopólio do Estado na eleição de penas e da dialética processual, o modo restaurativo redimensiona desde o conceito analítico de crime até os procedimentos penais (processo).
Mas se as propostas restaurativas sugerem alternativas para problemas crônicos de modelos retributivos, é preciso ter cuidado quando se pretende viabilizar sua coexistência. Isso porque, se na justiça restaurativa a lente do Estado se abre para além do ocasionador do evento típico, buscando outras pessoas que possam ter colaborado com a conduta do ofensor numa cadeia de relacionamentos, misturar essa questão com as nuances retributivas pode significar tornar réu quem nesta lógica não deveria estar na relação processual. Essa crítica se coloca no sentido de que se deve dar atenção aos fins da justiça restaurativa enquanto pacificadora de conflitos e aprimoradora de critérios de responsabilidade, não podendo servir de argumento para colocar abaixo travas de um sistema de garantias pensado sob a dinâmica retributiva.
De outro modo, é possível, como já se vê na realidade brasileira, que o implemento de espaços de negociação no processo penal comece a ser pensado sob a lógica restaurativa, mas ainda como parte de um sistema retributivo, como um sistema de transição.
Entretanto, fundamental assentar que finalidades e métodos restaurativos podem ser tidos como resgate de valores pré-coloniais. Técnicas para a pacificação de conflitos focadas na responsabilização do ofensor diante da vítima e da comunidade, assim como o resgate das relações comunitárias fracionadas, podem ser encontrados na história dos povos indígenas colonizados, por exemplo. Mark Umbreit 2 explica que, em países que possuem um maior envolvimento com tradições indígenas, a implementação da justiça restaurativa costuma ter maior aceitação.
Enfatiza também que essas práticas compreendiam mecanismos naturais de gerenciamento dos modos de vida daquelas sociedades, com as quais se pode aprender sobre a certeza de que conflitos em comunidade são, em verdade, partes indissociáveis de qualquer grupo humano. No instante em que conflitos são vistos como excepcionais, pontos fora da curva na dinâmica de vida, suas soluções também fogem de visões humanizadas, afastando-se, por consequência, de respostas verdadeiramente colaborativas. Se no modo retributivo, o ofensor é retirado do convívio como sanção estabelecida enquanto regra, para os indígenas, com forte ideal comunitário, essa solução poderia significar o enfraquecimento do grupo. Daí, mais uma razão para o diálogo que envolvia toda a comunidade na construção da responsabilidade como centro da resolução de conflitos.
Albert Eglash, a quem se atribui a autoria do termo justiça restaurativa, enfatiza a origem dessas técnicas nas coletividades nativas pré-sociedades estatais e chama a atenção para a implementação dessa visão de justiça em modelos de tradições indígenas do Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia (BITTENCOURT, 2017).
Para além dos princípios de justiça pacificadora, as técnicas restaurativas de hoje remontam também a povos indígenas. Os círculos de diálogos, base para procedimentos de mediação na atualidade, são exemplos de heranças das culturas indígenas. Círculos “são momentos de encontro, atualmente vêm sendo recuperados, recriados e legitimados como tecnologia social traduzida para a atualidade. Essa prática, inspirada em tradições ancestrais de povos indígenas” (PASSOS, 2020). Daí se desenvolveu a importante técnica nomeada Círculos de Diálogo e construção de paz, que tem como princípio que “cada participante se sinta igual em relação aos demais. A simbologia do círculo evoca os sentimentos de unidade, interdependência e encontro”, e hoje tem sido adotada no Brasil com menores infratores e também na resolução de conflitos que envolvem violências escolares (PETTA, 2020).
Outro exemplo é o Bastão da Fala, utilizado em reuniões circulares. Quando assuntos importantes precisavam ser discutidos, o chefe da tribo empunhava o bastão e iniciava a discussão, passando-o depois a alguém apto a colaborar com a solução procurada. (LOCUST, 2020). Essa técnica, ainda hoje, tem o valor de dar segurança ao orador, pois o bastão simboliza o poder e a responsabilidade conferidos a quem fará uso da palavra.
No Brasil, interessante exemplo vem dos Ingarikó, habitantes da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, Monte Roraima. Chama a atenção que, em suas técnicas de pacificação de conflitos, a família ganha importância enquanto primeiro ambiente na busca por consenso: “sendo algo que não pode ficar apenas na esfera privada da unidade familiar, o problema é levado ao Tuxaua (líder político, uma espécie de cacique)” (SILVA, 2017).
A partir dessa perspectiva, pensar justiça restaurativa, sobretudo diante dos espaços de negociação que vêm sendo implementados no processo penal brasileiro, é refletir sobre uma nova dialética de justiça, reconhecendo-se essa necessidade também a partir da valorização de culturas em tempos nos quais ainda não eram influenciadas por mundivisões coloniais.
Por fim, importa lembrar que recuperar práticas indígenas consideradas valores pré-coloniais consubstancia-se como exemplo acerca de um possível giro epistemológico do atual sistema penal. Olhando para momentos anteriores àqueles que representaram as ideias-força 3 que trouxeram o ocidente às realidades do sistema penal contemporâneo, é possível imaginar soluções e rediscutir bases teóricas muitas vezes postas como únicas verdades. A partir dessa lógica é que pensamentos decoloniais ganham importância, haja vista a necessidade de se incutir nas críticas ao sistema penal um olhar de resistência aos valores da ciência eurocêntrica como paradigma da razão. É assim que análises pré-coloniais, aliadas às discussões sobre os problemas diagnosticados do sistema penal atual, podem e devem significar a possibilidade de outras formas de atuação. Se a descoberta dos modos pré-coloniais de vida em sociedade mostra diferentes lógicas, o agir decolonial é que representa a possibilidade de pensar os problemas atuais a partir do conhecimento sobre as violências estruturais que formaram instituições e suas relações de poder. Um olhar decolonial é aquele que “visa problematizar a manutenção das condições colonizadas da epistemologia, buscando a emancipação absoluta de todos os tipos de opressão e dominação” (REIS; ANDRADE, 2018, p. 03). Diante disso é que o agir decolonial - é preciso enfatizar - está para além do conhecimento histórico sobre práticas dos antepassados. Revela-se no atuar de quem, entendendo as consequências da colonização, busca respostas para o sistema penal fora da dinâmica que insiste em perpetuar suas mazelas corriqueiramente apontadas.
1 Mais tarde, nos séculos XVIII e XIX, sob forte influência dos fundamentos éticos desenvolvidos por Kant e Hegel, por exemplo.
2 Cf. JUSTIÇA Restaurativa: um meio de vida para recuperarmos a nossa humanidade. TJDFT, Distrito Federal, 2019. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/entrevistas/2019/justica-restaurativa-uma-forma-de-recuperarmos-nossa-humanidade Acesso em: 25 out. 2020.
3 Expressão aqui utilizada para representar construções teóricas fortemente abraçadas em determinados tempos históricos, sendo capazes de provocar importantes mobilizações, transformações e novos processos de desenvolvimento social (MAGENDZO, 2009, p. 5).
Referências
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Rodrigo Weclav Filla
Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Bacharel em Direito pela Universidade Positivo (UP).
Link Lattes: lattes.cnpq.br/9486676098121195
ORCID: 0000-0001-9256-3924
fillarodrigo@gmail.com
Resumo: A política criminal brasileira é construída diariamente por agências estatais que historicamente priorizam mecanismos repressivos e reproduzem estruturas de dominação econômica impostas pelas classes superiores e pelo imperialismo. Criminologistas são relegados à teoria, por mais propositivas e imprescindíveis que sejam as suas recomendações. Defende-se neste artigo a regulamentação da profissão para auxiliar no giro descolonial.
Palavras-chave: Regulamentação; Criminólogos; Descolonialismo.
Abstract: The Brazilian criminal policy is built daily by state agencies which historically prioritize repressive mechanisms and reproduce structures of economic domination imposed by the upper classes and imperialism. Criminologists are relegated to theory, however purposeful and essential their recommendations may be. This article defends the regulation of the profession to assist in the decolonial turn.
Keywords: Regulation; Criminologists; Decolonialism.
1 Introdução
Criminologistas são pessoas que se encarregam da trabalhosa tarefa de estudar o fenômeno criminoso em sua totalidade. Trata-se de um campo complexo, multidisciplinar, vez que o crime é uma realidade social multifatorial que envolve conhecimentos de biologia, psicologia, sociologia, história, direito, economia e estatística. Dentre suas atividades estão a análise criminológica, a investigação criminal, o apoio técnico ao sistema de justiça criminal e de execução penal, bem como a criação e revisão de políticas criminais, as quais servem para prevenir, reprimir e tratar as consequências do comportamento socialmente danoso, consagrando direitos fundamentais em busca do menor custo de vidas e sofrimento humano.
Por maior que seja a paixão individual, o conhecimento sobre a matéria, o envolvimento acadêmico e o engajamento social, uma coisa não pode ser dita sobre o trabalho criminológico brasileiro: que se trata de uma profissão. Essa afirmação, verdadeira no país por ausência de regulamentação legal e postos de trabalho, não é válida em muitas outras localidades, a exemplo de nações europeias e estadunidense, nas quais o exercício da profissão é uma realidade cotidiana.
Discussão que à primeira vista pode aparentar ser superficial e formalista, em análise detalhada se revela central a um dos maiores problemas enfrentados pela classe, que é a inabilidade de aplicar na prática as formulações construídas no âmbito teórico. Procura-se demonstrar, neste breve artigo, que a regulamentação da profissão, juntamente a outras frentes de atuação, contestaria diretamente o controle de centros decisórios de poder por agentes estatais desinteressados em rigor metodológico e que reproduzem estruturas de dominação impostas pela classe dominante e pelo imperialismo. Conforme pretende-se esclarecer sob a lente do materialismo-histórico – sem intenção de exaurir o tema –, o próprio ato de tornar as políticas criminais e de segurança pública mais humanitárias auxiliaria no giro descolonial, na medida em que a gestão eficaz do controle do excedente produtivo possui a capacidade de criar condições favoráveis para que a força de trabalho nacional enfim possa alcançar o seu potencial produtivo completo.
2 Problemas Concretos e Soluções Teóricas
A danosidade social do crime não pode ser negada, especialmente quando envolve a ofensa a direitos inatos da pessoa humana, como à vida, à integridade física ou à liberdade. A prevenção, repressão e tratamento das consequências do delito são imperativos civilizatórios, necessários para manter a ordem social e reduzir o nível de lesões injustas em determinado contexto histórico-social. O grande debate acontece em torno de qual é a política criminal mais eficaz para lidar com esse fenômeno, ou seja, qual o melhor programa oficial de controle do crime e da criminalidade.
No Brasil, a escolha das estratégias e táticas que serão colocadas em prática é realizada de forma conjunta pelas agências estatais responsáveis pela criminalização primária e secundária, ou seja, por quem decide abstratamente quais condutas são crimes e por quem decide concretamente contra quem e de que forma será aplicado o poder punitivo. Historicamente, essas agências priorizam mecanismos repressivos (SOUZA SERRA, 2007, p. 106-198), existindo a crença de que a aplicação mais rigorosa de punições, a retirada de garantias legais e o sacrifício do homo sacer (AGAMBEN, 2007) são eficazes para reduzir os níveis de criminalidade.
Em meados da década de 1970 – diante da evidente incapacidade das autoridades em conseguir reduzir os índices de violência e criminalidade – começa a ser construída em nossa região capitalista periférica uma verdadeira criminologia crítica (DEL OLMO, 2004). Autenticamente latino-americana, essa corrente procura disputar a hegemonia com as estruturas de poder estabelecidas, apontando a ineficácia das políticas criminais punitivistas, ao mesmo tempo em que propõe alternativas, expressas por categorias, conceitos e instrumentos que resolvam as contradições identificadas. Como exemplo, temos a culpabilidade por vulnerabilidade (ZAFFARONI et al, 2017, p. 160-178), a descriminalização das drogas (VALOIS, 2017) e a desmilitarização da segurança pública (SOARES, 2019).
Todavia, por mais propositivas que possam ser as recomendações elaboradas, por mais minuciosas que sejam as análises das determinações por detrás da criminalização e da criminalidade, por mais que sejam produzidas teorias e categorias brilhantes acerca do sistema de justiça criminal, inevitavelmente tais proposições são ignoradas ou vilipendiadas pela prática. Os problemas são concretos, mas as soluções são teóricas. Expulsos dos centros de produção do poder, especialistas em criminologia foram relegados exclusivamente ao âmbito acadêmico, condenados às sucessivas denúncias que não serão escutadas e à elaboração de políticas criminais teóricas que não serão utilizadas.
3 Colonialismo Econômico e Político Criminal
Qual o motivo da insistência em políticas criminais reconhecidamente ineficazes e do afastamento do pensamento crítico nos espaços decisórios? Desde muito se sabe que as contradições do sistema de controle criminal não representam uma crise, mas um projeto bem sucedido, vez que todo sistema produtivo tende a descobrir formas punitivas que correspondam às suas relações de produção (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004). Assim, é necessário descrever algumas particularidades do sistema capitalista dependente e subdesenvolvido brasileiro para que seja possível compreender o sentido da larga adesão a mecanismos repressivos notoriamente violentos e infrutíferos.
Segundo a lei geral da acumulação capitalista, o aumento contínuo da composição orgânica do capital – manifestado pela substituição de força de trabalho por novas tecnologias ou métodos de produção – estimula a criação de uma superpopulação relativa, não incorporada ao mercado de trabalho, responsável por controlar a oscilação no valor dos salários (MARX, 2013, p. 522-632). Nos países capitalistas dependentes, todavia, o curso comum da acumulação interna é prejudicado pela transferência do excedente econômico da periferia para a centralidade econômica. Assim, a taxa de lucro não aumenta pelo desenvolvimento da capacidade produtiva ou pela conquista de mercados, mas tão somente pela superexploração do trabalho (CARCANHOLO; AMARAL, 2008), tolerada pelos trabalhadores em razão da pressão exercida por uma superpopulação relativa que se mantém constante, mesmo em períodos de prosperidade ou carência de mão-de-obra (MARINI, 2000, p. 11-103).
Diversos estudos demonstram que a finalidade primordial da política criminal repressiva no interior de qualquer sistema econômico capitalista é justamente o controle, organização e marginalização desse excedente populacional não produtivo (SANTOS, 2018). Assim, considerando a existência de uma contínua superpopulação relativa brasileira, a violência empregada sistematicamente tem a função de incapacitar parte da força de trabalho e sujeitar permanentemente a classe trabalhadora livre ao sobretrabalho. Essa dinâmica permite a baixa salarial com consequente alta nos lucros, mas também serve para reprimir o potencial produtivo do país e garantir a perpetuação da dependência externa e do subdesenvolvimento econômico.
Em outras palavras, a adesão dos agentes estatais a políticas criminais punitivistas – marcadas pela ineficácia e violência – trata-se de um dos instrumentos de reprodução das estruturas de dominação econômica impostas pela classe dominante, apoiadas pelo capital midiático e por práticas eleitorais populistas, muitas vezes influenciadas diretamente pelo imperialismo, como fica nítido no caso da guerras às drogas. A ausência de regulamentação do exercício profissional da criminologia e o decorrente afastamento do pensamento crítico dos centros de produção e gestão do poder visam manter a hegemonia e o status quo, resultando na morte de milhares de trabalhadores brasileiros todo ano, em números somente equiparáveis a uma guerra civil. Verifica-se, assim, um inquestionável colonialismo econômico e político criminal em pleno desenvolvimento.
4 Regulamentar para Descolonizar
Para superar esse quadro de dependência nada promissor, os criminologistas brasileiros podem atuar em algumas frentes distintas. Neste artigo serão apresentadas três delas, que possuem sentido altamente complementar. A primeira é a regulamentação da profissão, com consequente fundação de um conselho de classe. A segunda é a criação de cursos universitários de criminologia. A terceira é pressionar pela aprovação de uma Lei de Responsabilidade Político-Criminal, a exemplo de um projeto que tramita neste momento no Congresso Nacional. Na sequência, serão rapidamente abordadas cada uma dessas frentes.
A regulamentação da profissão é necessária principalmente para construção de uma estrutura organizada capaz de articular com maior força as reivindicações da classe. Também estipulará os requisitos mínimos para ingresso em seus quadros, definindo de forma clara quem são os capacitados para elaborar e revisar políticas criminais no país, produzir análises criminológicas e exercer as demais atividades características. Trata-se da constituição de um autêntico conselho de classe. Tal como o exercício da advocacia, da engenharia e o da medicina são regulados por conselhos profissionais definidos, o exercício da criminologia deve ser regulado por órgão próprio, e não simplesmente deixado à sua sorte. Um ótimo exemplo de regulamentação da profissão é o Colegio de Profesionales en Criminología de Costa Rica, o único do tipo na América Latina.
Por outro lado, também se revela essencial o fortalecimento dos cursos universitários de criminologia, já tradicionais em muitos países do hemisfério norte, mas raros no sul global. Devido a sua complexidade inerente, somente cursos de nível universitário são aptos para capacitar de forma satisfatória os futuros profissionais, incentivando a construção de um conhecimento verdadeiramente crítico e em compasso com as particularidades da realidade nacional. As universidades federais brasileiras podem ser grandes aliadas no estabelecimento e popularização de tais cursos, os quais se encontram fragmentados e desarticulados pelo território nacional.
Observando o movimento da regulamentação da profissão e criação de conselhos de classe pelo mundo, verifica-se que – em sua maior parte – os recém formados nos cursos de criminologia acabam frustrados pela dificuldade de inserção no mercado e começam articular demandas por maior regularização e organização. Nada indica que o caminho inverso não seja possível. Com a regulamentação da profissão de criminologista, definindo espaços claros de atuação profissional e possibilidades de inserção no mercado de trabalho, pode ser que mais pessoas se interessem pela carreira e procurem influenciar concretamente os rumos da política criminal do país.
Por fim, considerando a grande repercussão da implementação das políticas criminais na vida cotidiana, nenhum indivíduo deve possuir a prerrogativa de atuar nesse campo isento de qualquer responsabilidade pelos impactos causados pelas medidas tomadas. Todavia, esse é o quadro que se verifica atualmente. Não há exigência de qualquer justificativa com rigor metodológico, prestação de contas satisfatória ou reprimenda acerca das políticas criminais escolhidas, independentemente do dano social que produzam ou continuem a produzir. Por esta razão, mostra-se indispensável a aprovação de uma Lei de Responsabilidade Político-Criminal, a exemplo do P.L. 4.373/2016, que pretende impor a análise prévia do impacto social e orçamentário das propostas legislativas punitivistas. Porém, o que falta a esse projeto é ir além da responsabilização pela criminalização primária para também englobar quaisquer ações de segurança pública planejadas no âmbito da criminalização secundária – tanto no âmbito nacional como estadual e municipal.
Sendo expressamente necessária a realização de uma análise criminológica para a implementação e acompanhamento de políticas criminais, e sendo o criminologista o profissional responsável por essas atividades, enfim será possível solucionar a histórica dificuldade em sair da teoria e atuar na prática, ocupando decisivamente espaços de produção do poder. Mas é possível ir além: através de uma política criminal efetiva, a força de trabalho brasileira finalmente estará livre para poder atingir o seu potencial completo. Combater o punitivismo midiático e populista é enfrentar as próprias estruturas de dominação econômica impostas pelas classes dominantes. A regulamentação da profissão auxiliará admiravelmente no giro descolonial, na superação do subdesenvolvimento econômico brasileiro e na quebra da dependência externa. Os criminologistas nada mais têm a perder com ela do que suas correntes. Têm, sim, um mundo a ganhar.
Referências
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CARCANHOLO, Marcelo Dias; AMARAL, Marisa Silva. Acumulação capitalista e exército industrial de reserva: conteúdo da superexploração do trabalho nas economias dependentes. Revista de Economia, v. 34, n. especial, p. 163-181, 2008.
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RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
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SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.
SOUZA SERRA, Marco Alexandre de. Economia política da pena. Dissertação (mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2007.
VALOIS, Luís Carlos. Direito penal da guerra às drogas. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: volume 2, tomo 2. Rio de Janeiro: Revan, 2017.
Pedro Estevam Serrano
Doutor, Mestre e Bacharel em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris-Nanterre; Professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito na Graduação, no Mestrado e no Doutorado da Faculdade de Direito da PUC/SP.
ORCID: 0000-0002-2053-3117
pedroadv@uol.com.br
Fernando Hideo Lacerda
Doutor, Mestre e Bacharel em Direito Processual Penal pela PUC/SP.
Professor de Direito Penal nos cursos de graduação e pós-graduação da Escola Paulista de Direito.
ORCID: 0000-0003-2053-5048 fhl@shm.adv.br
Paulo Teixeira
Deputado Federal
ORCID: 0000-0001-9234-2670
pteixeiraf@gmail.com
Resumo: O objetivo deste artigo é apontar os elementos essenciais de uma verdadeira Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito e analisar criticamente os principais pontos do projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional e define crimes contra o Estado Democrático de Direito (PLs 2462/91, 6764/02 e apensados), aprovado na Câmara dos Deputados.
Palavras-chave: Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito; Lei de Segurança Nacional; Revogação; PL 2462/91; Crimes Contra o Estado Democrático de Direito.
Abstract: The main goal of this article is to point out the essential elements a law that garantees the Democratic Rule of Law must have, as well as critically analyse the most relevant points of the bill that repeals the Brazilian National Security Law and defines crimes against the Democratic Rule of Law.
Keywords: Democratic Rule of Law; Brazilian National Security Law; Crimes Against the Democratic Rule of Law.
A Lei de Segurança Nacional é um esqueleto autoritário no armário da democracia constitucional brasileira. Embora flagrantemente incompatível com a Constituição Federal, fato é que voltou a ser manipulada para instrumentalizar perseguições, intimidações e violações à liberdade de manifestação e crítica política. Nesse cenário, substituí-la por uma Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito é um avanço civilizatório que exige a preocupação central com a preservação da liberdade de expressão, do direito de resistência e dos movimentos sociais.
Os objetivos primordiais de uma verdadeira Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito devem ser a eliminação da doutrina da segurança nacional e da lógica bélica de combate ao inimigo, aliada à proteção dos direitos fundamentais e da atuação dos movimentos sociais, da atividade jornalística, da advocacia e das demais instituições democráticas. Essa mudança de paradigma exige um debate amplo e cuidadoso, com setores diversos da sociedade, para afastar de vez qualquer possibilidade de criminalização de ações sociais e políticas, indispensáveis a qualquer democracia.
Se a tarefa é a superação da Lei de Segurança Nacional, obviamente não basta produzirmos uma nova lei que mantenha a mesma estrutura persecutória coberta por um verniz de legalidade. Ao longo das últimas décadas, foram apresentados diversos projetos de lei, tal qual o PL 6764/2002 encaminhado pelo então Ministro da Justiça Miguel Reale Jr., que, a pretexto de substituir a Lei de Segurança Nacional, reciclam o entulho autoritário sob uma nova roupagem.
Assim, o modelo ideal deve ser a substituição da lei atual, repleta de conceitos amplos e indeterminados, por um projeto minimalista, que delimite o alcance dos tipos penais a atos que efetivamente atentem contra a estrutura do Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido. Como ponto de partida para os debates, o PL 3864/2020 apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira promoveu significativos avanços em face dos projetos anteriores, pautados pela reedição da doutrina da segurança nacional em crimes tais como “atentado à soberania”, “traição”, “insurreição”, “conspiração” e “sabotagem”, historicamente vinculados à perseguição de opositores do governo e não à preservação da democracia.
Embora não recomendável pelo contexto social e político atual, marcado pela necessidade de concentrar esforços para o enfrentamento à pandemia e pelo recrudescimento autoritário característico dos últimos anos, o debate legislativo sobre a revogação da Lei de Segurança Nacional avançou na Câmara dos Deputados, conduzido pela relatoria da Deputada Margarete Coelho, que não se furtou ao debate com entidades da sociedade civil e dos movimentos sociais.
No fim do dia, conseguiu-se aprovar na Câmara dos Deputados um projeto adequado que, embora ainda distante do modelo ideal, promove inegável avanço democrático em relação à lei vigente.
Como pontos positivos, destacam-se:
i) a previsão expressa de que não constituem crimes contra o Estado Democrático de Direito as manifestações críticas, a atividade jornalística e a reivindicação de direitos (art. 359-T);
ii) a exclusão de tipos penais absolutamente incompatíveis com a ordem constitucional, que permaneciam formalmente vigentes na Lei de Segurança Nacional e vinham sendo utilizados como instrumento de perseguições políticas;
iii) a tentativa de limitação do poder punitivo, que poderia ter sido aperfeiçoada com a inclusão sugerida pelo PL 3864/2020 sobre o uso ou ameaça de utilização de “arma de fogo”, mas que resultou em algum avanço em face da lei vigente a respeito do âmbito de incidência dos crimes contra as instituições democráticas (arts. 359-L e 359-M); e
iv) a preocupação legítima, que também poderia ter sido aperfeiçoada ao longo de um debate com efetiva participação social, com o funcionamento do processo eleitoral (arts. 359-N a 359-Q).
Entretanto, é preciso sublinhar que existem pontos críticos que ainda demandam reflexão ao longo do processo legislativo. Nesse ponto, destaca-se negativamente a perpetuação da lógica bélica de combate ao inimigo, reeditada especialmente nos crimes de atentado à soberania (art. 359-I), atentado à integridade nacional (art. 359-J), espionagem (359-K) e sabotagem (art. 359-R), pois a utilização de conceitos indeterminados e historicamente relacionados à doutrina da segurança nacional podem, mesmo contra a vontade do legislador, servir de instrumento para perseguição dos movimentos sociais e da liberdade de expressão.
O ordenamento jurídico brasileiro possui diversos mecanismos para o enfrentamento de uma improvável situação de guerra, tais como a Lei de Mobilização Nacional, a previsão constitucional do Estado de Sítio e dispositivos do Código Penal Militar e do próprio Código Penal. Nesse sentido, uma lei de defesa da democracia não deve tratar de questões ligadas à segurança externa, já contempladas em outras normas; mas sim pautar-se pela eliminação da lógica bélica do combate ao inimigo e concentrar esforços na limitação do poder punitivo, visando à preservação dos movimentos sociais como elementos centrais da democracia.
É impossível pensar uma Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito sem compreender a importância do papel dos movimentos sociais na história da construção da democracia tal qual conhecemos hoje. A democracia não é apenas um regime político de Estado, mas um regime sociopolítico, um modelo social, portanto, não há Estado democrático sem uma sociedade democrática.
Ainda que as Revoluções Francesa e Americana sejam um marco para o estabelecimento de Estados Democráticos ocidentais, nem de longe foram as responsáveis pelo ideal de democracia universal. A Constituição americana, bastante enxuta, foi criada para conter avanços democráticos nas legislações regionais. A primeira Constituição francesa, por sua vez, estabeleceu o voto censitário baseado na renda para o parlamento, o que excluía a maior parte da população: uma típica democracia burguesa. A democracia se expande e se universaliza, de fato, por conta das lutas dos movimentos sociais. Estes e os trabalhadores foram responsáveis pela conquista de direitos trabalhistas essenciais, como o estabelecimento das jornadas de trabalho de oito horas e descanso semanal, bem como pelo direito a voto dos despossuídos.
Uma verdadeira Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito não deveria restringir-se à inclusão de crimes ao Código Penal. A utilização de tipos penais abertos e a crença no punitivismo penal não contribuem com o avanço civilizatório buscado por um novo marco legal. Ao contrário, perpetuam o risco de desvirtuamento da lei para intimidar e perseguir os movimentos reivindicatórios e as vozes dissidentes.
O canto da sereia anuncia que a partir da segurança nacional se instala a ordem democrática, mas a história revela que a autoridade extrema e o punitivismo penal só produzem o caos e a violência. Não há democracia se não houver cumprimento da lei, mas também não há democracia sem a convivência equilibrada com movimentos sociais ativos e livres.
Nesse sentido, embora se revelasse muito mais adequada a adoção de uma lei minimalista, como o PL 3864/2020 apresentado pelo deputado Paulo Teixeira, é preciso reconhecer que o projeto recém-aprovado na Câmara dos Deputados promove inegável avanço democrático em relação à atual Lei de Segurança Nacional e aos projetos anteriores que se prestavam à reciclagem desse entulho autoritário. Resta ao Senado Federal amadurecer o debate legislativo e, ao final, caberá ao Congresso Nacional enfrentar os prenunciados vetos de um presidente descompromissado com a preservação da liberdade de expressão e a luta dos movimentos sociais.