Boletim - 350
Janeiro de 2022
Um novo código de processo penal


Data: 22/12/2021
Autor: IBCCRIM

Desde a criação de grupo de juristas incumbido de formular as bases do novo Código de Processo Penal, em 2009, anseia-se pela superação do ideário do agora octogenário sistema nascido em 1941.

Desde então, nos interstícios do processo legislativo, a sociedade assistiu aos debates havidos no Projeto de Lei do Senado Federal (PLS 156/2009), depois remetido à Câmara dos Deputados (PL 8045/2010), e agora acompanha os trabalhos conduzidos por Grupo de Trabalho recém-criado na Câmara dos Deputados.1

Não há dúvida de que, passados 80 anos do advento do Código gestado no Estado Novo, o Brasil merece um novo Código de Processo Penal. Prova disso são as reformas pontuais que se sucedem no tempo, em matérias centrais, como o regime de interrogatório (Lei 10.792/2003), o regime de provas no processo penal (Lei 11.690/2008), procedimentos (Lei 11.719/2008), sistema de videoconferências (Lei 11.900/2009) e outros.

As reformas pontuais, se servem como um sinal da superação das ideias originárias do Código, avisam também que é necessário se alterar, de uma vez por todas, todo o sistema processual penal. Hoje, vive-se um sistema que mais parece uma colcha de retalhos, imaginando-se por quanto tempo será possível conviver com anacrônicas previsões inquisitoriais ao lado de novidades salutares, como, por exemplo, a regra que estipula o fim do sistema presidencialista em audiências (art. 212, CPP).

Há matérias importantíssimas que serão objeto de debates no novo Código de Processo penal. Assim, por exemplo, o sistema de reconhecimento pessoal (PLS 676/2021), a conformação uniforme das audiências de custódia (que teve início a partir de determinação do CNJ em 2003), a previsão de investigação defensiva (que abrange naturalmente a advocacia pública e a privada para fazer frente à investigação pública conduzida pelas polícias ou Ministério Público, agora colocada na berlinda por decisão liminar na ADIn 6852), o necessário full disclosure aos investigados, inclusive para fins de possibilitar pleno entendimento sobre viabilidade de aceitação de acordos na persecução penal, o respeito à magnitude do habeas corpus como o mais importante mecanismo jurídico usado contra o cometimento de ilegalidades no processo penal e, nesse particular, inclusive o direito de os advogados sustentarem oralmente as causas em agravos internos (objeto do PL 746/2021).

Isso sem falar na não implementação da figura processual do juiz de garantias diante da liminar concedida em ADIn 6299, e da atenção que merecem os meios tecnológicos de produção de prova no processo penal (como, por exemplo, geolocalizadores e outros, tema da ordem do dia, como dá conta o STF no RE 1.301.250).

O parlamento brasileiro, com o processo legislativo que redundou na elaboração da Lei 13.964/2019, já deu provas de estar atento aos anseios atuais da sociedade brasileira. Há mais, contudo, a se fazer.

O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que já havia atuado no início dos debates sobre as razões de necessidade de um novo Código de Processo Penal,2 permanece vigilante aos andamentos dados pelo Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados.

O referido Grupo de Trabalho mantém uma página para acesso aos andamentos dos debates e recebimento de contribuições da sociedade civil.3

 Os esforços do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais continuam no sentido de, assumida a legitimidade da participação como ente da sociedade civil, caminhar-se decididamente para um modelo consentâneo ao sistema acusatório, tal como imaginado pelo Constituinte em 1988 e como aplaudido pelos mais modernos diplomas processuais, inclusive em países contíguos, como Chile e Uruguai.  

Nesse cenário, o código de maiorias e minorias impositivo da arena política é respeitado, mas é essencial garantirmos a evolução pretendida. Não podemos correr riscos de retrocessos.

 Um Código de Processo Penal, para que seja longevo, deve naturalmente contemplar interesses díspares, mas deve se constituir como um corpo harmônico. Um Código deve ser uma tábua de segurança, um piso para que sobre ele se construa a interpretação consentânea aos seus ideais. Se não for assim, o país continua a depender de erráticos posicionamentos jurisprudenciais.

O Brasil precisa de novo Código de Processo Penal. Mas o desafio que está colocado, como percebido há anos pelo IBCCRIM, é de qual Código o país precisa, e como se chegar lá, com a necessária participação da sociedade.

 Um novo Código deve priorizar o controle efetivo da fiabilidade das informações no processo penal, reduzir ao invés de ampliar os poderes de atuação de ofício de juízes, privilegiar a oralidade em detrimento do cartorialismo, respeitar a esfera de liberdade de autodeterminação informacional dos investigados, respeitar o interrogatório como meio de defesa em sua inteireza, implementar a separação funcional entre investigação, fase intermediária e fase de juízo oral. Entre outras coisas. Estes são alguns dos assuntos que movem o IBCCRIM a participar como sociedade civil deste movimento por um novo Código de Processo Penal brasileiro. Que seja novo ao olhar o futuro, e que afaste de vez o conhecido passado autoritário ainda vigente.


Notas de rodapé

1 O referido grupo de trabalho disponibilizou página na internet por meio do endereço: www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/gt-anteprojeto-do-novo-codigo-de-processo-penal/documentos/sugestoes-ao-substitutivo. Acesso em: 10 dez. 2021.

2 Sugestões apresentadas em 2017 podem ser conferidas em: https://arquivo.ibccrim.org.br/docs/2017/20170601_ReformaCPPIBCCRIM.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.

3 O conteúdo está disponível em: www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/gt-anteprojeto-do-novo-codigo-de-processo-penal/documentos/sugestoes-ao-substitutivo. Acesso em: 10 dez. 2021.

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Meios de obtenção de prova e a necessidade de corroboração

Andrey Borges de Mendonça. 

Doutor e mestre em processo penal pela USP. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide na Espanha.

Procurador da República.

ORCID: 0000-0002-7318-5638

andreyborges@yahoo.com.br


Resumo: O artigo analisa a extensão da regra de corroboração prevista no art. 4º, §16, da Lei 12.850, sobretudo sua aplicabilidade às medidas cautelares e aos meios de obtenção de prova.

Palavras-chave: Corroboração – Medidas cautelares – Meios de obtenção de prova.


Abstract: This paper analyzes the extension of the corroboration rule provided for by art. 4, §16, of Law 12,850, especially regarding its applicability to precautionary measures and means of obtaining evidence.

Keywords: Corroboration - Precautionary measures – Means of obtaining evidence.

Data: 22/12/2021
Autor: Andrey Borges de Mendonça

A palavra do colaborador sempre foi vista com desconfiança epistemológica, por um motivo justificável: como recebe benefícios para contribuir com a persecução penal, existe sempre a possibilidade de que seu depoimento seja mendaz e fabricado, visando apenas receber benefícios, com o potencial de levar à injusta condenação de inocentes. Justamente para neutralizar tal risco, a jurisprudência já entendia, mesmo ainda sem previsão legal expressa, que as palavras de um acusado que incriminassem outro somente levaria à condenação se houvesse corroboração por outros elementos.1 Estes devem ser extrínsecos e independentes ao colaborador (ou seja, dados, provas ou circunstâncias diversas de suas declarações), capazes de demonstrar a verossimilhança e confiabilidade de seu depoimento.2 A finalidade primordial da regra de corroboração é, assim, evitar condenações injustas de inocentes e, como outro lado da moeda, evitar que as autoridades de persecução se acomodem.

Com a edição da Lei 12.850, a regra de corroboração foi reconhecida pela redação originária do art. 4º, §16, asseverando que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Após algum período de discussão e o aumento exponencial dos casos de colaboração premiada, houve a edição da Lei 13.964/2019, alterando-se o §16 para exigir a corroboração não apenas para as sentenças condenatórias e o recebimento da denúncia ou queixa (inc. II), mas também para as “medidas cautelares reais ou pessoais” (inc. I). Com tal dispositivo, o legislador adotou uma postura clara, ao determinar aos órgãos de persecução uma postura ainda mais rigorosa na seleção dos casos de exercício do poder coercitivo.3 O objetivo da presente análise é compreender qual a extensão da regra de corroboração para as “medidas cautelares reais ou pessoais”, especialmente para avaliar se as medidas cautelares probatórias e os meios de obtenção de prova, como a busca e apreensão, estão ou não inclusos na referida regra. Recentemente a 5ª turma do STJ, no HC 624.608, decidiu que sim, afirmando ser necessária a corroboração para a decisão de busca e apreensão, sendo inviável a sua decretação apenas com base na palavra do colaborador.4 Da leitura do acórdão, verifica-se que a premissa essencial que embasou referida decisão é que a busca e apreensão seria medida cautelar real, sob o argumento de que se pretende a busca da verdade real por meio de obtenção de provas.

No entanto, o tema merece reflexão. De início, a doutrina assevera, corretamente, que as classificações não são certas ou erradas, mas sim úteis ou não para a compreensão de um fenômeno. No entanto, o fato é que o legislador adotou como critério legal uma distinção doutrinária ao editar a Lei 13.964. Urge, assim, verificar como a doutrina classificava as medidas cautelares, para compreender a extensão do dispositivo legal.

A partir da classificação adotada pelo jurista argentino Ramiro Podetti, a doutrina nacional sempre diferenciou as medidas cautelares, considerando a matéria, em pessoais, reais (ou patrimoniais) e probatórias, ou seja, para assegurar pessoas, coisas e elementos de prova, respectivamente.5 Assim, enquanto as cautelas patrimoniais são aquelas “medidas cautelares destinadas a assegurar a reparação ou ressarcimento do dano resultante do delito” ou a perda do produto do crime,6 as probatórias visam “assegurar a prova”7 ou a instrução do processo.8 Essa classificação tripartida das medidas cautelares é seguida pela maioria da doutrina nacional.9

Embora essa classificação não seja isenta de críticas – pois tanto as medidas cautelares reais quanto as probatórias muitas vezes recaem sobre coisas e, nesse caso, o que as diferenciam é a finalidade da medida – é certo que a doutrina e o Direito estrangeiro (como Itália e Portugal) sempre apartaram as medidas cautelares reais e probatórias. As reais são funcionalmente preordenadas a tutelar os interesses pecuniários conexos ao ilícito penal, incluindo a reparação do dano nascente do crime e o perdimento do produto do crime.10 Por sua vez, as probatórias são vocacionadas a preservar os elementos de prova contra eventual destruição ou desaparecimento. Por isto, independentemente do nome, é certo que a função e a finalidade das medidas cautelares reais e probatórias não se confundem.

A partir disto, sabendo que o legislador se valeu de uma classificação doutrinária e considerando que a lei se referiu a apenas a duas das três espécies mencionadas pela doutrina, conclui-se que as cautelares probatória estão excluídas da vedação prevista no art. 4º, §16, da Lei 12.850, por uma regra lógica de interpretação. Houve, assim, silêncio eloquente do legislador. Em consequência, não há vedação legal para que estas sejam deferidas mesmo sem corroboração. Por exemplo, um depoimento ad perpetuam rei memoriam – uma testemunha dos fatos que está em vias de falecer em razão de doença grave – pode ser deferido apenas com base nas palavras do colaborador, sem necessidade de corroboração.

Por outro lado, como lembra Scarance Fernandes, os estudos de cautelaridade no processo penal em geral são feitos a partir do empréstimo das lições do processo civil, sempre com bastante dificuldade de adaptação, sobretudo em razão das características próprias da persecução penal.11 Esta dificuldade se verifica nas chamadas cautelares probatórias, o que tem levado diversos doutrinadores a se referir não mais às medidas cautelares probatórias, mas sim aos meios de obtenção de prova, ao lado das medidas cautelares reais e pessoais.12

Realmente, diversas medidas antes classificadas dentre as medidas cautelares probatórias não pressupõem o periculum in mora – no caso, o risco de perecimento ou destruição das provas. Por exemplo, as medidas judiciais para obter determinadas informações que se encontrem em poder do Estado ou de empresas – e, portanto, que o imputado não tem acesso e não pode alterar – dificilmente se enquadrariam no conceito de medidas cautelares probatórias, por lhes faltarem o periculum in mora. Isto porque a demora não traz, em regra, qualquer risco para o perecimento ou manipulação do elemento de prova (a não ser que o lapso de tempo para acautelamento da informação estiver em vias de se esvair). Assim, os afastamentos de sigilo bancário, fiscal e de dados em poder do Estado, de instituições financeiras ou de concessionárias não são propriamente medidas cautelares probatórias, uma vez que ausente o risco de demora, característica essencial de uma medida como cautelar. Também é difícil caracterizar o risco de demora em medidas como a colaboração premiada, a infiltração policial, dentre outras. Justamente por isto, vários doutrinadores abandonaram o conceito de medidas cautelares probatórias para se referirem aos meios de obtenção de prova, entendidos como instrumentos que permitem chegar a outros meios de prova13 ou como “técnicas ocultas de investigação que restringem, legitimamente, direitos fundamentais do investigado, em geral liberdades públicas ligadas à sua privacidade ou intimidade ou à liberdade de manifestação do pensamento”.14 Nesta mesma trilha caminhou a própria Lei 12.850, que preferiu não se referir a tais medidas como cautelares probatórias e sim como meios de obtenção de provas, como consta no nome do capítulo II da Lei 12.850 – que fala “Da investigação e dos meios de obtenção da prova”. O próprio art. 3º da Lei afirma que serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, “os seguintes meios de obtenção da prova”, indicando uma lista de medidas que incluem a captação ambiental, a ação controlada, o acesso a dados telefônicos, telemáticos e a dados cadastrais; a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, o afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal e a infiltração policial. Veja mais uma vez: o próprio legislador se referiu a estes meios de obtenção de provas no art. 3º e o art. 4º, §16, inc. I, da Lei 12.850 silenciou sobre tais medidas, ao evidenciar que, por interpretação literal e sistemática, não estão abrangidas pela exigência de corroboração. Realmente, parece evidente que se a intenção do legislador fosse exigir corroboração para a decretação de tais medidas, teria feito expressa menção às medidas do art. 3º ou aos meios de obtenção de prova. Mais uma vez o silêncio é eloquente.

Ademais, também a interpretação teleológica justifica o silêncio do legislador sobre a exigência de corroboração para os meios de obtenção de prova ou para as cautelares probatórias. Isto porque tais medidas são as normalmente utilizadas pelos órgãos de persecução exatamente para corroborar as palavras do colaborador. Realmente, a exigência de corroboração prévia à decretação de medidas cautelares probatórias ou dos meios de obtenção de provas, embora sempre desejável, pode se mostrar inviável por não haver fontes de prova pessoais e documentais disponíveis. Deve-se recordar que são características do crime organizado a “cultura da supressão da prova” e a lei do silêncio (omertá) imposta pela violência.15 Por isto, exatamente para “vestir” a colaboração e corroborá-la é essencial que os órgãos de persecução possam se valer das cautelares probatórias ou dos meios de obtenção de prova, mesmo que sem corroboração prévia. Do contrário, se o legislador tivesse vedado a decretação de tais medidas sem corroboração estaria, na prática, inviabilizando a própria corroboração das palavras do colaborador. Dito de outra forma, exigir a corroboração para que seja possível decretar os meios de obtenção de prova e as cautelares probatórias seria o mesmo que determinar como premissa exatamente aquilo que se busca alcançar, ou seja, exigir a corroboração para que seja possível a corroboração. Seria uma tautologia ou um círculo vicioso: exige-se corroboração para decretar os meios de obtenção de prova e as cautelares probatórias, mas para corroborar são necessários tais instrumentos... Por isto, negar tais medidas de investigação com base na palavra do colaborador seria inviabilizar muitas vezes a própria colaboração premiada, já que impediria muitas vezes a sua corroboração.

Some-se a isso que muitas vezes a urgência pode impedir que se logre obter, em tempo viável, elementos de corroboração prévios. Imagine-se uma busca e apreensão para liberação de vítima sequestrada com base nas palavras de um colaborador. Impor que as autoridades de persecução aguardem a corroboração de tal informação parece inadequado à luz da urgência indiscutível da medida.

Por fim, urge analisar se o deferimento da busca e apreensão exige ou não corroboração. Aqui também, nada obstante a decisão proferida pelo STJ, entendemos que a lei não impõe necessariamente corroboração nesse caso, embora o tema exija algumas reflexões. É certo que sempre houve divergência sobre a localização exata da busca e apreensão na classificação das medidas cautelares, considerando as suas particularidades.16 De início, interessante apontar que o CPP trata a busca e apreensão “como expediente de consecução de prova”, segundo consta do item VII da exposição de motivos do Código. No entanto, esse argumento não é suficiente, pois o CPP nem sempre se prima pela técnica. Em verdade, sempre houve dificuldade em compreender e classificar a busca e a apreensão em razão de a disciplina legal tratar, de maneira unitária, dois institutos que possuem natureza, finalidade e características diferentes: a busca e a apreensão.17 Em verdade, devem ser tratados e analisados como institutos diversos, até mesmo porque é possível busca sem apreensão e apreensão sem busca. Nesta linha, a natureza jurídica da busca – definida como a procura de pessoa (vítima de crime, suspeito, indiciado, acusado, condenado, testemunha e perito), coisas (objetos, papeis e documentos) e vestígios (rastros, sinais e pistas) da infração18 – irá depender de sua finalidade, podendo ser multifacetada. Poderá realmente consistir em meio cautelar de obtenção de provas, “quando visa a assegurar elementos indispensáveis à comprovação da verdade criminal perquirida”. No entanto, nem sempre se dirige apenas a tal finalidade,19 sendo possível a busca voltada para liberar a vítima, para prender algum criminoso em uma residência, para apreensão do produto do crime etc. Assim, deve-se analisar a busca à luz de sua finalidade. Se visa varejar elementos de prova para corroborar uma colaboração premiada, possuem caráter predominante de medida cautelar probatória e, como tal, não estão abrangidas pela restrição do §16 do art. 4º da Lei 12.850, podendo ser deferidas apenas com base na palavra do colaborador. Neste caso, a busca também pode ser classificada dentre os meios de obtenção de prova, o que também afasta a incidência da restrição, conforme visto. 

Dúvidas haverá quando a busca visar apreender o produto do crime (que será devolvido à vítima ou perdido em favor da União) ou os instrumentos do crime. Nesse caso poder-se-ia arguir que a medida teria caráter de cautelar real e estaria vedado o seu deferimento apenas com base nas palavras do colaborador. No entanto, mesmo neste caso parece-nos que se deve fazer uma análise clínica para verificar o intuito preponderante da medida no caso concreto. Se for realmente acautelar futuro perdimento ou reparação do dano, deve-se caracterizar como medida cautelar real, a exigir corroboração. Caso o intuito da medida seja probatório, para demonstrar a materialidade ou a autoria delitiva (considerando que quem se encontra em poder do produto do crime ou de seu instrumento possui alguma ligação com a prática delitiva, ainda que indireta), a medida teria caráter probatório, afastando a restrição. Assim, a exigência ou não de corroboração dependerá da prevalência funcional da medida: se visa, preponderante, a reparação do dano, estaria vedada apenas com base nas palavras do colaborador; se busca, ao contrário, predominantemente demonstrar a materialidade e autoria delitivas, seria admissível. 

Por fim, embora não haja vedação legal à decretação de meios de obtenção de prova ou de medidas cautelares probatórias sem regra de corroboração, duas advertências importantes são necessárias. Sempre que possível, deve-se buscar elementos de corroboração em medidas menos gravosas (testemunhos, provas documentais etc.), que não exijam restrições de direitos fundamentais. Isto decorre da própria ideia de proporcionalidade, na sua vertente necessidade. Somente quando for inviável obter corroboração em medidas menos invasivas é que os meios de obtenção de provas devem ser utilizados. Ademais, neste caso, como já afirmou a Corte Suprema de Cassação italiana, deve-se verificar se a colaboração possui uma “segura confiabilidade intrínseca”, que decorra da riqueza da narrativa particular e pela ausência de incongruência e contradições.20 Estas duas pautas – inexistência de medida menos gravosa para corroborar e confiabilidade intrínseca da colaboração – é que deverão guiar o magistrado na análise do deferimento ou não da medida.

Em conclusão, a vedação prevista no art. 4º, §16, da Lei 12.850 não se aplica às medidas cautelares probatórias ou aos meios de obtenção de provas, que podem ser decretados apenas com base nas palavras do colaborador, desde que possuam confiabilidade interna. Além do silêncio eloquente da Lei 12.850 quanto a elas, a interpretação contrária poderia criar uma verdadeira impossibilidade de obtenção das provas de corroboração, em um juízo tautológico, que desconfiguraria a própria colaboração premiada, instrumento que é essencial para a persecução penal eficiente de crimes graves.


Notas de rodapé

1BRASIL, 1997.

2 Para uma análise da regra de corroboração, em sua extensão objetiva e subjetiva, Cf. MENDONÇA, 2019.

3  SACCONE (2012, p. 104), referindo-se à alteração do art. 273 do CPP italiano pela Lei 63/2001, que passou a exigir corroboração para a decretação das medidas cautelares pessoais.

4 “DECRETO DE BUSCA E APREENSÃO. FUNDAMENTO APENAS EM DECLARAÇÕES DE COLABORADORES. INIDONEIDADE. ART. 4º, § 16, LEI 12.850/2013. 9. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. DESNECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. DECRETO NULO. 10. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA ANULAR A BUSCA E APREENSÃO. (...) 8. No que diz respeito à alegada carência de adequada fundamentação do decreto de busca e apreensão, em virtude de se embasar apenas em depoimentos contraditórios de colaboradores, registro, de início, que, de fato, o art. 4º, § 16, da Lei nº 12.850/2013, estabelece que "nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador: I - medidas cautelares reais ou pessoais; II - recebimento de denúncia ou queixa-crime; III - sentença condenatória". Na hipótese dos autos, verifica-se, sem necessidade de revolvimento de fatos e provas, mas pela simples leitura do decreto de busca e apreensão, que, realmente, a decisão que decretou a busca e apreensão em desfavor do paciente se encontra deficientemente fundamentada, porquanto embasada apenas em declarações de colaboradores, o que vai de encontro ao disposto no art. 4º, § 16, da Lei n. 12.850/2013. - Precedentes do STF e do STJ” (BRASIL, 2021).

5 BARROS, 2017, p. 30-31.

6 FERNANDES, 2012, p. 287.

7 BARROS, 2017, p. 495; 574 respectivamente.

8 FERNANDES, 2012, p. 287.

9 Nesse sentido, v. g., FERNANDES, 2012, p. 287; LIMA, 2014, p. 99; GOMES FILHO, 1991, p. 56; PACELLI, 2012, p. 490-491; LIMA, 2019, p. 860-861, entre outros.

10 PITOMBO, 2005, p. 234.

11 FERNANDES, p. 286.

12 Nesse sentido, BADARÓ, 2020, p. 1130.

13 FERNANDES, 2006, p. 462.

14 BADARÓ, 2017, p. 130-131.

15 SEIÇA, 2003, p. 1388.

16 Romeu Pires, embora reconhecendo que “poderiam ser classificadas entre as cautelares referentes aos meios de prova”, acaba por classificar a busca e apreensão entre as cautelas reais, por entender que o efeito patrimonial resultante desta medida seria o mais relevante, considerando que importaria na retirada da coisa do patrimônio de alguém (BARROS, 2017, p. 495).

17 PITOMBO, 2005, p. 103.

18 PITOMBO, 2005,  p. 117.

19 PITOMBO, 2005,  p. 117

20 Corte de Cassação; Sezione feriale. 26 de agosto de 1996, Lombardi, citada por SACCONE, 2012, p. 103. Para análise dos critérios de verificação da confiabilidade interna da colaboração, cf. MENDONÇA, 2019, pp. 340-346.


Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017.

BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2020.

BARROS, Romeu Pires de Campos. Processo penal cautelar. Notas atualizadoras de Maria Elizabeth Queijo2. ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2017.

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BRASIL, Supremo Tribunal Federal (2ª Turma). HC 75226, Relator: Min. Marco Aurélio, 12 ag. 1997. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75833. Acesso em 15 dez.2021

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LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 7. ed. Salvador: Juspodivum, 2019.

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PITOMBO, Cleunice Bastos. Da busca e da apreensão no processo penal. 2ª ed. São Paulo: RT, 2005.

SACCONE, Giuseppe. L' indizio “per la prova” e l'indizio “cautelare” nel processo penale. Milano: Giuffrè, 2012.

SEIÇA, Alberto Medina de. Legalidade da Prova e Reconhecimentos “Atípicos” em Processo Penal: Notas à Margem de Jurisprudência (Quase) Constante. In: ANDRADE, Manuel da Costa et al. Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. P. 1387-1421.


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