.
Muito se critica, com razão, o populismo penal. A resposta simplista e de curto prazo, que se utiliza do anseio por justiça da população para implementar políticas públicas irracionais de endurecimento do sistema penal (como se esse fosse o único caminho para uma maior efetividade da Justiça), produz efeitos perversos sobre toda a população, especialmente sobre pretos e pobres. Além de reproduzir o conhecido círculo vicioso de ineficácia quanto à segurança pública e de desrespeito a direitos e garantias individuais, o populismo penal reforça a percepção de que vontade da maioria e racionalidade do sistema penal seriam elementos dissonantes ou, até mesmo, contrários.
Não há dúvida de que o sentimento majoritário de uma população não é critério de justiça. O papel do Direito Penal é precisamente evitar o linchamento popular e o justiçamento, em suas várias modalidades. No entanto, seria um equívoco entender que se pode melhorar o sistema de justiça penal sem incluir a população nessa discussão. Não há progresso efetivo – e muito menos progresso sustentável a longo prazo – sem uma mudança da percepção popular sobre as questões penais e processuais penais.
Nesse sentido, as eleições – esse momento do regime democrático em que se dá um especial diálogo entre a classe política e os eleitores – são uma excelente oportunidade para uma melhor compreensão da população sobre o sistema de justiça penal. Ao mesmo tempo, caso haja omissões e descuidos, a campanha eleitoral pode se converter em circunstância especialmente danosa, com reprodução e consolidação de preconceitos, ideias racistas, percepções enviesadas, etc.
Em sua missão de contribuir para um sistema de justiça penal menos racista e menos seletivo, mais racional e mais humano, o IBCCRIM faz um alerta especial a todos os associados sobre a importância de que cada uma, cada um, de acordo com suas possibilidades, contribua para um debate mais qualificado sobre as questões penais e processuais penais. Em vez de reforçar o populismo penal, a campanha eleitoral deve ser ocasião para difundir consensos mínimos civilizatórios sobre a Justiça Penal, seus métodos e seus fins.
Não é possível que este grande momento da democracia – a campanha eleitoral – se converta em um show de horrores, como infelizmente ocorreu tantas vezes, com a difusão massiva de desinformação sobre segurança pública, direitos e garantias fundamentais, moralidade pública, etc. As eleições devem ser ocasião de fortalecimento da cidadania, e não de manipulação, embrutecimento, barbárie ou retrocesso civilizatório.
Depois de três anos especialmente adversos para os Direitos Humanos no País, com um nítido rebaixamento da sensibilidade cívica, o IBCCRIM considera fundamental estabelecer um diálogo, tão amplo quanto possível, com partidos e candidatos sobre questões sensíveis do sistema de justiça penal.
Todo o trabalho realizado pelo IBCCRIM e seus associados – a produção científica, as pesquisas, os seminários, debates, sua atuação no processo legislativo, etc. – pode e deve contribuir para que os programas de governo sejam minimamente consistentes em relação à política penal e à segurança pública. Não haverá avanço no sistema carcerário ou no controle das polícias – assim como em qualquer outro tema – se o eleitor é instado apenas a oferecer respostas punitivistas, racistas, demagógicas.
É dever do IBCCRIM, como organização da sociedade civil, contribuir para um debate público qualificado. Se essa dimensão da atuação do instituto está sempre presente, ela é especialmente importante em um ano eleitoral, quando se discutem as grandes propostas para o País. Não se trata de se envolver em política partidária. Por força de seu estatuto e para cumprir adequadamente sua missão, o IBCCRIM é necessariamente apartidário. O objetivo é justamente trabalhar para que a melhoria efetiva do sistema de justiça penal seja uma preocupação – verdadeira prioridade – a mais transversal possível entre partidos, candidatos e opções políticas.
O respeito aos direitos e garantias fundamentais não é uma espécie de opção política, passível de ser combatida em campanha eleitoral ou rejeitada nas urnas. É uma obrigação constitucional, um compromisso cívico, um imperativo de humanidade. Avançar nessa compreensão é elemento essencial para a consolidação do regime democrático.
Renato Stanziola Vieira.
Doutor e mestre em processo penal pela USP.
Mestre em direito constitucional pela PUC-SP.
Advogado.
ORCID: 0000-0001-6910-958X
renatovieira@kv.adv.br
Resumo: O artigo analisa a extensão da regra de corroboração prevista no art. 4º, §16, da Lei 12.850, sobretudo sua aplicabilidade às medidas cautelares e aos meios de obtenção de prova.
Palavras-chave: Corroboração – Medidas cautelares – Meios de obtenção de prova.
Abstract: This paper analyzes the extension of the corroboration rule provided for by art. 4, §16, of Law 12,850, especially regarding its applicability to precautionary measures and means of obtaining evidence.
Keywords: Corroboration - Precautionary measures – Means of obtaining evidence.
Tratar de temas a partir de olhares distintos é passo importante na construção de melhor sistema de justiça criminal e reflete a maturidade do IBCCRIM. Além da constatação objetiva da oportunidade para o debate, eu me sinto envaidecido pelo convite ao diálogo com meu caro amigo Andrey Borges de Mendonça, a partir de seu instigante artigo Meios de Obtenção de Prova e a Necessidade de Corroboração. Privo da amizade de Andrey há anos e, com ela, cresceu também minha admiração.
Eu concordo com alguma parte do que consta do artigo. Parece-me correta, por exemplo, a premissa (no artigo pouco explorada, e sobre isso tratarei no final do meu texto) da “desconfiança epistemológica” que cerca a palavra do colaborador. Mas divirjo respeitosamente de seu conteúdo em outros pontos.
Não me parece que “as cautelares probatórias estão excluídas da vedação prevista no art. 4º, § 16, da Lei 12.850”1. Abaixo indico os motivos de minha discordância.
1.
Houve, no artigo, uma colocação interessante sobre a transposição do conceito processual civil de cautelaridade para o processo penal, algo com o que nós brasileiros ainda convivemos. Deveras, seja pelas noções de Calamandrei, seja por outros autores que a ele se seguiram sem se desgarrar de suas bases teóricas, é inegável que a lógica imperante no Código de Processo Penal, com questionamentos quanto à sua atecnia, conecta o fumus commissi delicti ao periculum libertatis. Assim permanece, até hoje, a noção de cautelaridade. Mas, a essa escolha doutrinária não se segue, ao menos com a lógica desenhada no artigo em debate, a separação conceitual para que se cheguem aos “meios de obtenção de prova”.
A categoria dos “meios de obtenção de prova”, ou as demais que começam a se sedimentar no Brasil, como “técnicas ocultas de investigação”,2 “técnicas especiais de investigação”3 ou “métodos ocultos de investigação”,4 não decorrem de superação da categorização das chamadas “medidas cautelares”.
A ideia, como grassou nos estudos que redundaram no Codice di Procedura Penale de 1988, foi a de adoção, exclusivamente no contexto do Direito Probatório, de nova terminologia tendo em conta três critérios: terminológico, lógico e técnico-operativo.5 Não havia ligação entre a nova categoria e as chamadas “medidas cautelares”. Tanto que a sistematização do sistema processual penal italiano, quanto à separação entre “meios de prova” e “meios de pesquisa de prova”, não se confunde com a já conhecida sobre medidas cautelares.6
E, no cipoal que tem se tornado o sistema processual penal brasileiro, deve-se ver que até hoje se preveem as chamadas “medidas assecuratórias” (arts. 125 e ss., CPP) ao lado da famigerada “busca e apreensão” (arts. 240 e ss., CPP) e, inclusive, dos recentemente indicados “meios de obtenção de prova” (Lei 12.850/13). Esse não é o lugar para tanto – e não haveria extensão para aqui se dissecar os institutos – mas é possível se entender que a busca e apreensão, objeto das preocupações trazidas no artigo, era vista doutrinariamente também como “meio de obtenção de prova” inclusive antes do advento da Lei 12.850/2013.7
Alguém poderia dizer, interpretando o artigo ao qual faço o contraponto, que a característica sedimentada do periculum in mora, tal como se conhece em matéria de medida cautelar, deixou de ser considerada ao se utilizar o conceito de “meio de obtenção de prova”. Esse argumento, além de não ser plenamente verdadeiro (as atividades de infiltração policial, ação controlada, interceptação de comunicações telefônicas demandam o periculum in mora, ao passo que outras não, como acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, afastamento de sigilos financeiro, bancário e fiscal), é inócuo.
A tônica que chama a atenção é a medida da invasividade na esfera dos direitos fundamentais. Só isso já indica um necessário reforço de argumentação de qualquer decisão atrelada ao deferimento de meios de obtenção de prova, que não deve, portanto, ser amparada nos meros relatos internos de colaboradores. Aliás, vários meios de obtenção de prova nomeados na Lei 12.850/13 são conhecidos antes da regulamentação da delação premiada (interceptação telefônica, quebras de sigilo bancário e fiscal, p.ex.,) e sua utilização sempre decorre de específica fundamentação judicial obviamente independente de relatos internos de delações premiadas, até porque anteriores à regulamentação desse instituto. Não é correto, portanto, com a novidade da regulamentação da delação que se autorize, sem mais, a utilização de tais meios de obtenção de prova a partir de relatos internos de colaboradores. A alteração legislativa, segundo me parece, não oportunizou maior flexibilidade na utilização de meios de obtenção de prova que antecediam as previsões de delação premiada.
De qualquer sorte, e ainda que com críticas,8 os “meios de obtenção de prova” podem ser instrumentais na coleta da prova (como mecanismos probatórios de 2º grau, eles possibilitam chegar aos elementos de prova, mas não ostentam aptidão probatória), e são conhecidos como aparatos utilizados majoritariamente na primeira fase da persecução penal, fora do contexto rígido de contraditório, frequentemente acompanhados de um “elemento surpresa” por parte do alvo das medidas.9 Mas essa categoria não suplanta a cautelaridade.
E com isso se volta à busca e apreensão.
No Brasil, se por um lado deve haver “fundadas razões” para a busca como regra geral (art. 240, p. 1º, CPP), na busca pessoal deve haver “fundada suspeita” das situações ali previstas (art. 240, p. 2º, CPP). Além disso, os cuidados com que se cerca o legislador para validar as buscas domiciliares (art. 245, CPP) e os requisitos do mandado (art. 243, CPP) evidenciam que não se cuida de varejamento ou providência qualquer. Há, em matéria de busca e apreensão, palpável previsão de cuidado a partir do fumus comissi delicti.
Com isso chego a uma conclusão: a exigência de cuidados específicos previstos na legislação, sejam os do Código de Processo Penal, sejam os da Lei 12.850/13, com a corroboração externa ao relato de colaborador, não decorre da finalidade do instrumento que se pretenda utilizar a partir de relatos contidos em delação premiada.
Discordo do argumento segundo o qual se a natureza “preponderante” do instituto for probatória, isso dispensaria a regra de corroboração. A preocupação do legislador não foi com a “natureza preponderante” do instituto, e sim com os riscos inerentes à utilização da medida em si, seja a finalidade probatória, seja outra.
As escolhas político-criminais, seja a de 1941, seja a de 2019, que conferiu a redação atual ao dispositivo constante da Lei 12.850/13, não foram utilitaristas ao ponto de sopesar os meios em razão dos fins, para a partir daí ser mais lassa ou rigorosa quanto aos meios para que eles sejam atingidos. Elas decorreram do instituto em si e do que ele significa de potencial ofensa a direitos fundamentais, e não da preocupação com o fim almejado com ele.
Nesse particular, a menção a uma nova divisão entre as medidas cautelares – não só as medidas cautelares pessoais e reais, como também, ao seu lado, as probatórias, não infirma meu ponto de vista.
No Brasil, ou as medidas cautelares são pessoais, ou reais/patrimoniais,10 isto é, elas podem recair sobre alguém ou sobre algum objeto. Feita a distinção, a variada finalidade de cada medida cautelar – e aí entra a terminologia da cautelar probatória para quem a prestigia, e cuja fluidez classificatória é reconhecida pelo próprio autor do artigo contraposto11 – não altera o regime jurídico, que decorre de sua essência como medida cautelar, mas não de sua variada finalidade.
A razão de ser da escolha legislativa é essencialista, mas não utilitarista.
No detalhe, é curioso se pretender que, se a medida de busca ou apreensão amparada exclusivamente em colaboração premiada tiver aspecto de “medida cautelar real”, ela precisaria de corroboração externa, ao contrário do que se defendeu se a mesma medida tiver aspecto probatório. E essa não me parece a melhor posição, por estabelecer distinção interna do instituto a partir de sua imaginada finalidade “preponderante”, desnaturando seu regime jurídico.
O problema não está na finalidade da medida (probatória, assecuratória ou outra), mas nela mesma. E, para o que interessa nessa abordagem, já que conectada aos informes de colaborador, no que lhe dá sustentação.
2.
Com isso, chego a um segundo aspecto. No artigo que me serviu de provocação, defendeu-se que a busca e apreensão com finalidade (então chamada de preponderante) probatória deveria ser aceita mesmo sem elemento externo de corroboração e só com a palavra do delator para que a própria colaboração pudesse ser “vestida”.
Por essa lógica, a admissibilidade da busca e da apreensão sem reforço algum a não ser a própria palavra do colaborador residiria na constatação de que, a não ser assim, a própria corroboração estaria inviabilizada. Segundo se apontou, com esse permissivo, seria possível fugir do que se viu como uma tautologia: exige-se corroboração para decretar os meios de obtenção de prova e as cautelares probatórias, mas para corroborar são necessários tais instrumentos.
Aqui me parece que o artigo sobrevalorizou a relevância do informe do delator e diminuiu a importância da premissa de sua desconfiança epistemológica. E, com isso, discordou dos cuidados vistos pelo legislador brasileiro.
Escolhas político-criminais podem satisfazer ou não a determinados fins. Assim foi e continua sendo com a longa discussão teórica sobre a conveniência ou não das exclusionary rules, idealizadas em solo norte-americano há mais de um século. É conhecida, aliás, a postura de Wigmore a respeito.12 Da mesma forma, não há como se objetar que o Direito Probatório é todo institucionalizado, objeto de disciplinas jurídicas que, a um tempo, lhe conferem artificialidade, e a outro, lhe conferem segurança a partir exatamente da adequação à política criminal fundante de cada sociedade.13
E, nesse particular, como aponta Mirjan Damaška, “a regulação legal da prova é, em resumo, influenciada tanto por fatores epistêmicos como contra epistêmicos.”14
Quando o legislador, portanto, estatuiu, a partir de delações premiadas, que medidas cautelares só podem ser deferidas a partir de corroboração externa, foi feita a escolha político-criminal. Não houve nem silêncio eloquente nem tautologia, e sim, assunção de sinal a partir exatamente da baixa fiabilidade intrínseca de palavras de colaborador.
A preocupação do legislador, ao mencionar as cautelares “reais ou pessoais” no dispositivo questionado, demonstrou preocupação com o instituto jurídico, e não com a sua variada finalidade. Por isso, entender que as cautelares “probatórias” deveriam estar ali abrangidas é imaginar lacuna legislativa onde ela não existe. Também as cautelares “probatórias”, supondo-se que a finalidade renda alguma classificação, estão abrigadas pela vedação legal do art. 4º, §16, da Lei 12.850, já que também elas ou são reais ou são pessoais.
Nessa esteira, a partir de mecanismo de reconhecido baixo valor epistemológico (delação), passar-se a admitir medida probatória cuja invasividade é inquestionável (busca e apreensão) a partir da propalada instrumentalidade probatória é caminhar no sentido contrário ao que a lei estatuiu. Do sabido déficit epistemológico de informes de delatores, sem mais, admitir-se-ia medida invasiva como a busca e apreensão. O recado do legislador não foi esse. Eventual caminho para sua correção não passa por torcer o sentido do texto legal com o argumento do “fim preponderante” do instituto ou com o utilitarista de “para corroborar é preciso da busca ou da apreensão”.
À vislumbrada tautologia imaginada no artigo, responde-se que: se a corroboração externa da delação depende do implemento de medidas cautelares, assume-se não só a fraqueza valorativa do informe da própria delação, como se instrumentaliza ainda mais a utilização de medidas de força no processo penal para salvar palavras de delatores. E a ideia que está por trás da regra de corroboração externa é o oposto disso: delação premiada não pode isoladamente gerar medidas cautelares.
Por isso mesmo é que, dos investigadores em geral, de posse de informações fornecidas pelos delatores, se deve exigir pertinácia para não se socorrerem do atalho de construir todo o pretenso arcabouço probatório sobre delações, e às custas de direitos vilipendiados.
Houve, ponderando livremente para o diálogo com o caríssimo Andrey, um risco assumido pelo legislador. A assunção de que a busca e apreensão (ainda que “preponderantemente” probatória) independe de corroboração externa significa abrir exceção indevida ao comando da lei.
3.
Resta a consideração conclusiva sobre porque no instigante artigo se defendeu aquele ponto de vista, que à essa altura poderia já até ter sido intuída: colocou-se em segundo plano a própria “desconfiança epistemológica” da delação premiada para, como dito no texto, “vesti-la”. Ou seja: a questão toda não é somente a finalidade da busca e apreensão, ou a questão conceitual (meio de obtenção de prova, medida cautelar pessoal ou real, com possível finalidade probatória), mas sim, a validação do conteúdo de delação premiada.
Há um percurso argumentativo longo a partir do instituto (busca e apreensão), que desqualificou a cautela do legislador não com relação à busca ou mesmo aos erros ou acertos terminológicos com relação às situações de cautelaridade, mas que se presta a validar, a meu ver à margem da lei, a delação sem outros elementos informativos válidos a ela externos.
O problema, pois, está também na delação e no que com ela se sustenta, e não na conceituação do que vem depois.
Reforço meu argumento: o que é pouco fiável não pode justificar medidas invasivas. E essa premissa foi pouco referida no artigo debatido. A partir do momento em que há informes de delator, é sim forçoso se insistir para que investigadores e futuros acusadores diligenciem com outros meios, mas não os meios de obtenção de prova (busca e apreensão entre elas), para corroborar as palavras do delator. Antes: deve sim haver a corroboração externa para, quebrada a causalidade imediata a partir da delação, cogitar-se de meios invasivos, como é o caso da medida de busca e apreensão.
A regra de ouro não deve ser aquela segundo a qual para corroborar a delação é possível inclusive, ainda que com elegante e inteligente forma de expor, contrariar a lei, mas sim entender que, se a base é movediça como é (delação), o solo probatório não sustenta tamanhas medidas (probatórias) invasivas como a busca e a apreensão.
O caminho assumido pelo legislador brasileiro foi o contrário do entendido no artigo que é aqui contraposto: a vedação do art. 4º, § 16, da Lei 12.850/13, aplica-se às medidas cautelares (mesmo que tenham, como visto, as tais finalidades probatórias, pois isso não desnatura a sua essência) ou aos meios de obtenção de provas, pois eles só podem ser decretados se houver fator externo ao conteúdo das palavras do delator que os amparem.
A admissibilidade ou inadmissibilidade de sua utilização não depende da “confiabilidade interna” das palavras do delator, e sim, de circunstâncias que lhes sejam externas. E em minha opinião, não é o caso de se socorrer de precedente de direito estrangeiro para defender o contrário do que prega a lei brasileira. Tivesse o legislador brasileiro assumido posição diferente quanto ao requisito de corroboração externa para os fins propalados de utilização de meios de obtenção de prova ou medidas cautelares, poderíamos adentrar ao tema da proporcionalidade e então discutiríamos a (i) confiabilidade interna dos relatos e (ii) a sequência de meios de prova admissíveis. Mas nada disso é necessário diante do conteúdo do art. 4º, §16, da Lei 12.850/13. Mais uma vez, não há espaço para debate aprofundado, mas o fato é que, se estivéssemos no campo de princípios, poderíamos até discutir critérios como peso, relevância, proporcionalidade. Mas estamos no campo de regras, em que impera a lógica de tudo-ou-nada, como interpreto o aludido dispositivo legal.
O sistema jurídico só avança com segurança se for erguido em bases sólidas, e o arcabouço probatório também. A delação premiada é, concordando mais uma vez com meu amigo Andrey Borges de Mendonça, “instrumento essencial para a persecução penal eficiente de crimes graves”15. Mas tantos outros o são. E um e outros instrumentos, com propensões probatórias, devem atender aos figurinos legais, sob pena de a busca pela verdade, ou se se preferir, do esclarecimento dos fatos no processo penal, converter-se, como lembra mais uma vez Mirjan Damaška,16 em exercício cognitivo sem freio. E isso não há como admitir.
1 MENDONÇA, Andrey Borges de. 2022, p. 29.
5 CONSO, Giovanni; GREVI, Vittorio; MODONA, Guido Neppi, 1989, p. 504. E também: Relazioni al progetto preliminare e al testo definitivo del codide di procedura penale, delle disposizioni sul processo penale a carico di imputati minorenni e delle norme per l´adequamento dell´ordinamento giudiziario al nuovo processo penale ed a quello a carico degli imputati minorenni (GAZZETTA UFFICIALE DELLA REPUBBLICA ITALIANA. Parte Prima. Roma: Lunedì, 24 ottobre 1988. Supplemento ordinario n. 2, n. 250, del 24 ottobre 1988. Serie Generale, p. 59).
6 UBERTIS, 2015, p. 82, rodapé 8; CHIAVARIO, 2007, p. 299; LOZZI, 2013, p. 207. Também Alessandro Bernasconi (SCALFATI; et al 2018, p. 233) e Oreste Dominioni (DOMINIONI; et al 2018, p. 253-5).
7 BADARÓ, 2015, p. 385. E também: GOMES FILHO, 2018, p. 567. Marcelus Polastri dizia que a busca e apreensão é uma “medida cautelar que visa à obtenção de uma prova para o processo” (2005, p. 134).
8 Em nosso Controle da Prova Penal. Obtenção e Admissibilidade (VIEIRA, 2021), apresentamos críticas quanto à essa categoria.
9 Há uma repetição de tais características, e os autores que se acercam desse conceito são: TONINI, 2000, p. 243-4.; SILVA, 1999, p. 189-90; VALENTE, 2009; JESUS, 2011. No Brasil, a distinção é colocada por, entre alguns outros, GOMES FILHO, 2005,p. 309.
10 BADARÓ, 2008, p. 173; BADARÓ, 2015, p. 937.
11 Como POLASTRI, 2005, p. 113.
13 ANDERSON; SCHUM; TWINING, 2015, p. 354.
14 DAMAŠKA, 2003, v. 2, p. 117.
15 MENDONÇA, art. Cit., p. 30.
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