Boletim - 355
Junho de 2022
A (ir)racionalidade do processo legislativo penal

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Data: 31/05/2022
Autor: IBCCRIM

O processo legislativo penal no Brasil é bastante falho em sua racionalidade. O Congresso produz frequentes alterações normativas, mas, em sua intensa atividade legislativa, não utiliza um conhecimento metódico e fundamentado da realidade. Observa-se um agir legislativo cego, tanto à realidade que pretende modificar, como às consequências que pretende gerar. Exemplo dessa atuação desorientada é o chamado Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), que alterou, entre outros assuntos, a execução da pena, sem, no entanto, ter estudo prévio sobre o impacto nas penitenciárias (BRASIL, 2019).

A racionalidade do processo legislativo não é um tema acessório dentro das Ciências Criminais, mas toca o seu cerne. Não basta estudar, debater e buscar a melhor aplicação do Direito. É essencial estudar, debater e buscar a melhor produção das fontes de Direito. Todo o sistema de Justiça penal tem por base o Direito posto. Se a legislação é desequilibrada, o funcionamento da Justiça penal é inteiramente prejudicado, com danos para toda a sociedade.

Ao avaliar o processo legislativo brasileiro sob o ponto de vista de sua racionalidade, dois fenômenos saltam à vista: a falta de estudos empíricos que fundamentem as propostas legislativas e a falta de acompanhamento dos efeitos dos atos legislativos. É uma produção legislativa, que dialoga não com a realidade, mas com percepções superficiais e, muitas vezes, preconceituosas e equivocadas da realidade. Em muitos casos, as audiências públicas legislativas, em vez de aportarem embasamento teórico ao processo, apenas reverberam demandas políticas.

No Brasil, todo projeto de lei deve estar acompanhado de uma “exposição de motivos”. No entanto, não há requisito a respeito do conteúdo dessas razões. Não há nenhuma exigência (de conteúdo) minimamente vinculante na produção legislativa.

Do início ao fim, o processo legislativo brasileiro está marcado pela predominância da retórica, como se a essencial dimensão política da produção legislativa tivesse de ser indiferente aos dados empíricos e à ciência. Trata-se de compreensão equivocada da autonomia da política, uma vez que, ao não estar vinculada a um mínimo de racionalidade, ela se desvincula da realidade e do próprio sentido da atividade legislativa. As leis existem para produzir resultados práticos.

São muitas as propostas para aumento da punição dos tipos penais, que surgem, em geral, como consequência de algum caso com repercussão midiática. Mesmo nos casos em que existem estudos sobre a matéria, a atividade legislativa fica à margem dessa discussão, sem efetiva verificação da necessidade e adequação da proposta em análise. A Lei dos Crimes Hediondos é exemplo dessa disfuncionalidade. Criada para um objetivo, nunca realizou sua pretensa finalidade.

Além disso, não há um efetivo acompanhamento sobre os efeitos de toda essa produção legislativa. Ao dificultar o controle dos efeitos, o Congresso gera intensa legislação extravagante, com normas duplicadas ou que contenham, para uma mesma conduta, preceitos sancionatórios diferentes.

É essencial aprimorar o processo legislativo, aproveitando o que já foi feito. É possível aperfeiçoar os Regimentos Internos das Casas Legislativas, fixando parâmetros mínimos de racionalidade, bem como o funcionamento das Comissões e Grupos de trabalho legislativo. Várias experiências internacionais podem ajudar nessa tarefa. A Suíça prevê períodos de teste para as novas leis, checando se os efeitos esperados foram de fato produzidos. A Espanha exige memoriais de impacto legislativo.

Não são soluções fáceis. É um desafio constante o equilíbrio entre a dimensão política da atividade legislativa e a análise científica. De toda forma, é possível avançar na compreensão de que os dados empíricos, mais do que condicionarem a vontade política, contribuem para tornar efetiva a vontade política. As leis nascem para produzir resultados, para resolver problemas. É necessário, portanto, avaliar se esses problemas são reais e se os resultados gerados são os esperados.

O aprimoramento do processo legislativo é tarefa coletiva. O IBCCRIM tem muito a contribuir, tanto com seu trabalho de advocacy, em parceria com outras muitas instituições da sociedade civil, como por meio de sua produção científica, qualificando o debate público e questionando esse afazer legislativo que, desconectado dos dados empíricos, corre o risco de agravar as injustiças, a seletividade e disfuncionalidade do sistema de Justiça penal.


Notas de rodapé

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A criminologia do dano e um olhar para a dor no tempo no enfrentamento às violências cometidas contra as mulheres


Luanna Tomaz de Souza. 

Pós-doutora em Direito pela PUCRio. Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra. Professora da Faculdade de Direito, do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento da Amazônia da UFPA. Advogada. 

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8385-8859

luannatomaz@ufpa.br 


Ricardo Dib Táxi. 

Doutor em Direito pela UFPA, com período sanduíche na Birkbeck College - University of London. Professor da Faculdade de Direito, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. 

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4950-6112

ricardoadt@ufpa.br


Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a temporalidade do sofrimento na vida das mulheres que enfrentam uma situação de violência no sistema de justiça criminal e a necessidade de um olhar criminológico para essas dimensões de dano. Analisa-se as contradições dessas temporalidades, com as dinâmicas jurídico-processuais e as narrativas impressas nesses espaços. Pode-se observar como a temporalização realizada pelo Direito produz muitas vezes uma segunda forma de violência e, assim, obriga as mulheres a reviverem infinitamente aquela violência e impõe uma espera tortuosa que traz novas dinâmicas de sofrimento. É fundamental reposicionar epistemologicamente o olhar criminológico para os diversos danos produzidos, como o do tempo, indo além do crime e das pessoas que o cometeram.

Palavras-chave: Sofrimento – Violências – Tempo – Morosidade.

Abstract: This article aims to reflect on the temporality of suffering in the lives of women who face a situation of violence in the criminal justice system and the need for a criminological look at these dimensions of harm. The contradictions of these temporalities with the legal-procedural dynamics and the narratives printed in these spaces are analyzed. It can be observed how the temporalization carried out by law often produces a second form of violence and, thus, forces women to infinitely relive that violence and imposes a tortuous wait that brings new dynamics of suffering. It is essential to epistemologically reposition the criminological look at the various damages produced, such as time, going beyond the crime and the people who committed it.

Keywords: Suffering – Violence – Time – Slowness.

Data: 31/05/2022
Autor: Luanna Tomaz de Souza e Ricardo Dib Táxi

Introdução

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a temporalidade do sofrimento na vida das mulheres que enfrentam uma situação de violência no sistema de justiça criminal e a necessidade de um olhar criminológico para essas dimensões de dano. Analisa-se as contradições dessas temporalidades, com as dinâmicas jurídico-processuais e as narrativas impressas nesses espaços.

Aqui são apresentadas algumas reflexões sobre o tempo, as violências e a atuação do sistema de justiça, que são aprofundadas em outros trabalhos (SOUZA; DIB TÁXI, 2021), a partir de técnicas como a observação participante na Clínica de Atenção à Violência da Universidade Federal do Pará (CAV/UFPA) e entrevistas semiestruturadas e conversas com mulheres em situação de violência atendidas na CAV/UFPA.1

Em regra, nos estudos sobre enfrentamento às violências, o debate acerca da sobrecarga do tempo é secundarizado, o que invisibiliza um dos mais perversos efeitos da violência. Muitas vezes, o assunto é tratado de forma genérica pelo signo da morosidade. Este, contudo, é insuficiente para abordar a referida problemática. É fundamental, nesse sentido, ouvirmos as mulheres em situação de violência, algo que a criminologia tem se afastado sob o signo de que as demandas da vítima são sempre de punição (SOUZA, 2016).

O ato de ouvir as mulheres também implica perceber que a morosidade é um conceito insuficiente também porque pressupõe um tempo homogêneo, que caminha, em maior ou menor velocidade, para frente. No entanto, nessas narrativas se enxerga justamente o passado sendo revivido, reconfigurado, paralisado pelo evento traumático, entrecruzado com o presente.

Ao narrarem acontecimentos que marcaram suas trajetórias, as mulheres convidam a sentir a dor de seus corpos (DAS, 2008). Desta forma, na medida em que há um sofrimento que foi partilhado, a escrita jamais poderia se tornar isenta. Questionar uma racionalidade acadêmica pretensamente neutra é fundamental em uma proposta de descolonizar a pesquisa em Direito. Isso significa reconhecer que as ferramentas e instituições precisam ser reinventadas. Esse pensamento contribui para a deslocalização do Direito na abertura crítica ao ainda desconhecido (MANTELLI; ALMEIDA, 2021). E, no caso, ao não ouvido e ao silenciado. 

Um olhar para a violência e para o dano

A violência é um grande problema contemporâneo, ocupa espaço na agenda dos governos e é colocada como preocupação central da sociedade. De acordo com José Vicente dos Santos (2004), a violência surge como nova questão social global e está provocando mudanças nos diferentes estados, com a configuração de estados de controle social repressivo. Multiplicam-se assim projetos para prevenir as violências, com foco principal no âmbito criminal. Com a maior intervenção do Estado, aumentam-se as denúncias ao sistema de justiça e o debate público sobre as violências. 

De acordo com Alessandro Baratta (1993), a violência abarcada pelo sistema de justiça criminal é, todavia, apenas uma ínfima parte das diversas formas de violência. Em regra, o sistema penal se ocupa da violência individual ou transforma outras dimensões de violência, como a institucional, em individual.

O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher é algo interessante a se observar nesse contexto. O advento da Lei Maria da Penha, a Lei 11.340/2016, tornou os casos de violência doméstica e familiar cometidos contra as mulheres mais visíveis ao espaço público. Antes das varas especializadas, muitos casos terminavam diluídos no universo do judiciário. Ademais, a falta de um tratamento legal específico dificultava a construção de dados, estudos e intervenções (SOUZA, 2016).

A chegada da Lei Maria da Penha evidenciou também as estratégias utilizadas no enfrentamento às violências e seus limites, inclusive as soluções penais, que têm ganhado cada vez mais relevo na atualidade. David Garland (2001) destaca um contexto internacional em que governos adotam rapidamente soluções penais como medidas supostamente imediatas, viáveis e fáceis de serem implementadas, mas que escondem propostas de legitimação do Estado e de seus agentes diante do clamor público, principalmente em frente aos crimes violentos. Essas mudanças nas práticas de controle do crime impactam as dinâmicas de enfrentamento das situações de violência, com reforço das saídas judiciais.

Dissemina-se, nos mais diversos casos de violência, inclusive na violência de estado, a construção da figura vítima/herói e a projeção da busca do judiciário como sinônimo de “justiça”. O manejo do delito, pela mídia e pelas autoridades, todavia, está dirigido a conseguir créditos de governabilidade e sucessos eleitorais (PASSETI, 2010). Joga-se a vítima, para tanto, no horror judicial. Isso provoca, de um lado, processos de visibilização do tema e de responsabilização. Mas, de outro, o aumento na judicialização das demandas faz com que mais pessoas passem a lidar com as agruras do Poder Judiciário.

Percebe-se assim que a política judicial imprime muita dor e sofrimento para as pessoas em situação de violência. Algumas dessas dores, porém, continuam invisibilizadas, como a gestão do tempo no processo. Para aprofundar a crítica ao sistema penal precisamos olhar com mais atenção aos diversos danos produzidos.

O dano aparece como um objeto de profundas possibilidades analíticas na criminologia (BUDÓ, 2021). É fundamental redefinir o objeto da criminologia e ir além do estudo do crime e dos processos de criminalização. Precisamos superar essa visão legalista e individualista, inclusive para identificar o Estado como produtor de dano (MICHALOWSKI, 2010). 

A linguagem do direito e a dor do tempo

Quando as mulheres chegam até a justiça para denunciar uma violência sofrida precisam narrar o ocorrido, ela precisa contar o que lhe ocorreu e aqui já ocorre a primeira violência por parte do Direito, pois a linguagem jurídica estabelece desde quando o fato se torna relevante e quais elementos são importantes para tipificar condutas. Isso sem contar a infeliz e usual desconfiança de seu relato pelos homens que lidam com o processo. Sempre que tenta contar uma história, é tolhida e forçada a contar apenas “o que interessa”, cindindo assim temporalmente e linguisticamente o acontecido.

Além disso, juízes, promotores e advogados costumam perguntar para mulheres que sofreram violência, por exemplo, porque demoraram tanto tempo para denunciar, imputando aqui mais uma desconfiança e não compreendendo como funciona o processo de maturação da força necessária para expor esse tipo de situação.

Ademais, a linguagem jurídica é inteiramente dominada por uma suposta impessoalidade, expressa em frases como “que a denunciante afirma haver sofrido violência verbal”. Assim aquilo que precisa ser narrado já desde o início circundado e traduzido2 para o mundo do Direito, com inegável perda de conteúdo. Assim, a temporalidade da violência é cindida pelo Direito, que instaura sua própria temporalidade de compreensão do fato.  

Não se pode deixar de lado obviamente a temporalidade do próprio processo, com sua lentidão, suas várias ocasiões em que a mulher precisa repetir várias vezes a mesma história, obrigando-a a reviver o ocorrido inúmeras vezes. Nesse momento, o que salta aos olhos é como as mais ínfimas mudanças na narrativa do ocorrido dão margem a desconfianças, como se devesse gerar um depoimento idêntico a cada nova situação.

Quem trabalha com etnografia geralmente percebe melhor como os relatos, sobretudo de eventos traumáticos, são muitas vezes distintos e é necessário lê-los em conjunto para ter a dimensão do que aconteceu. Além disso, o próprio ocorrido vai sendo redimensionado com o passar do tempo pela pessoa que sofreu. Uma das figuras trabalhadas por Butler (2017) a partir da noção de narrativa é a elipse, que implica um salto na cronologia narrativa. Em um filme, por exemplo, quando vemos duas mulheres saindo do trabalho e então a cena corta e já as vemos chegando em casa, sabemos que elas foram do trabalho para casa. Essa elipse, ou seja, não narrar tudo pois fica implícito, adquire outro significado quando se trata de trauma, pois muitas vezes a memória das mulheres bloqueia o evento como forma de defesa ou a memória vai assumindo contornos diferentes em distintos momentos.

O Direito e o processo judicial tratam esse elemento como um elefante numa loja de porcelana, destruindo e uniformizando tudo, tratando a mais ínfima alteração como prova da inverdade do relato, obrigando a repetição constante do relato. Essas cisões e reinterpretações do tempo do ocorrido acontecem inúmeras vezes, desde o primeiro atendimento jurídico.

Há que se destacar também que a compreensão do tempo (e as formas de o narrar) para quem sofreu uma situação de violência é diferente daquela da pessoa que faz o atendimento junto ao sistema de justiça. Exige-se um atendimento marcado por fatos jurídicos, com uma ocorrência policial, o divórcio, a denúncia, enquanto a pessoa que relata tem uma história entremeada de significados como, por exemplo, o nascimento da pessoa, como as pessoas se conheceram, a violência, as formas com que a pessoa lidou com o trauma.

Seu relato, muitas vezes, ocorre em um vai e vem de significados e emoções que o Direito tenta moldar. Desta forma, constantemente as pessoas precisam ter que reconstruir suas histórias para além da forma com que as interpretam, o que configura em si uma verdadeira violência. De acordo com uma das entrevistadas o relato é persistentemente interrompido e marcado por frases como: “mas, a senhora fez a ocorrência, sim ou não?”.

Muitas vezes a pessoa está falando de outros fatos que, para ela, são relevantes na construção daquela situação e que poderiam impactar para a compreensão jurídica, mas o formato de atendimento e da audiência não consegue apreender isso e reforça lógicas de não reconhecimento das humanidades ali presentes.             

Há, todavia, uma grande invisibilização acerca da dor promovida pelo tempo no sistema de justiça. Isso tem variadas explicações, sendo uma delas o fato de que, no Brasil, a violência é majoritariamente contra a população negra. Segundo Ana Flauzina e Felipe Freitas (2017), uma das maiores interdições impostas no narcisismo pelo racismo no Brasil é quanto ao sofrimento. O descarte da humanidade das pessoas negras e a exploração dos seus corpos levou diretamente à violência, ao mesmo tempo, em que há o alijamento do direito de reclamar o sofrimento por ela derivado. Isso permite que a branquitude siga indiferente a toda essa dor e sofrimento.

No Brasil, a população negra representa 75,7% das vítimas de homicídio. (ACAYABA; ARCOVERDE, 2020) As mulheres negras são 75% das mulheres assassinadas no Brasil (VELASCO; GRANDIN; CAESAR; e REIS, 2020),  sofrem 73% dos casos de violência sexual (MALIA, 2020) e são 65% dos casos de violência obstétrica. (MULHERES..., 2020) Na Clínica de Atenção à Violência, 80 % das mulheres atendidas são negras (CAV, 2020).

Para além de todas as violências cotidianas sofridas, para as pessoas em situação de violência, adentrar o mundo processual significa enfrentar outras dimensões de sofrimento, sendo o tempo uma delas. Lidar com o tempo do processo é em si um verdadeiro martírio, em especial para quem já precisou lidar com uma situação de violência anterior. Um processo leva, em média, de 2 a 3 anos para ser julgado e um recurso de 8 meses a 1 anos, conforme dados do Conselho Nacional da Justiça (CNJ, 2018).

Lidar com o tempo da espera de uma decisão judicial causa severos impactos na vida dessas pessoas, que nutrem expectativas de resolução e acabam definhando à espera da sentença. Suportar o peso da espera é excruciante para a maioria das pessoas entrevistadas. Muitas relatam sintomas do adoecimento, tais como perda de peso, perda de cabelo, ansiedade, depressão, dentre outros.

Além disso, há um profundo impacto patrimonial, que envolve constantes gastos com transporte, entre idas e vindas em fóruns, delegacias e balcões de atendimento, assistência jurídica, custas e outros decorrentes do processo. Isso sem contar o gasto com a própria subsistência, porque a violência sofrida impacta diretamente na dinâmica de vida dos sujeitos, que precisam criar formas de subsistência. O processo, todavia, segue indiferente ao sofrimento negro (FLAUZINA; FREITAS, 2017).

Em verdade, segundo Alessandro Baratta (2011), a política penal pode ser justamente um processo de distribuição (desigual) de dor e sofrimento, uma verdadeira ode à violência e uma pregação ao sofrimento humano deliberado e aceito culturalmente. Configura-se assim processos de tortura e imposição deliberadas de dor sustentada por um discurso de que se combate a violência por meio do uso pretensamente legítimo de mais violência (LEAL, 2021).

Além da dor da espera, as mecânicas temporais do processo representam constante violência. Com a espera, a angústia pelas audiências aumenta e muitas entrevistadas apontam que, quando chega esse momento, precisam ainda agir no tempo que o/a juiz/a deseja: uma audiência rápida (com outras em sequência), em que se controla o tempo de fala, de arguição, de intervenção. Quando se trata de casos de violência de Estado, a demora é ainda maior para as audiências e para as mecânicas de resolução, com a espera eterna pelo pagamento de um precatório. Isso sem contar outros efeitos perversos do decurso do tempo como, por exemplo, a prescrição.

Observa-se, contudo, que, mesmo o campo crítico ao sistema penal, ao evidenciar as mazelas do sistema de justiça costuma ignorar as diversas dimensões do tempo, o que invisibiliza todos esses processos de dor. É fundamental reposicionar epistemologicamente certas análises para que se olhe para o dano, o sofrimento, a dor e não apenas para o crime e para as pessoas que o cometeram. Isso pode contribuir para a construção de novas possibilidades de enfrentamento das violências e para mitigar o sofrimento imposto. 

Considerações Finais

Diversas temporalidades permeiam a vida de quem enfrenta uma situação de violência no sistema de justiça e essas se contrapõem às dinâmicas jurídico-processuais. A política judicial imprime muita dor e sofrimento para as pessoas em situação de violência. Todavia, algumas dessas dores continuam invisibilizadas, como a gestão do tempo no processo, o que contribui para o não reconhecimento das humanidades ali presente. O direito e o trauma constituem temporalidades que devem ser mais bem evidenciadas.

A temporalização realizada pelo Direito obriga a uma constante espera, a lidar com diferentes percepções do tempo pelos/as agentes do sistema, e obriga as mulheres a reviverem infinitamente aquela violência a qual, incapaz de ser adequadamente narrada e transmitida pela linguagem do Direito, retorna ciclicamente e impede que uma resposta adequada permita que a vida siga em frente e que o passado possa de fato ficar para trás. 

Evidenciar esses processos de vitimização contribui para a construção de possibilidades de enfrentamento das agruras judiciais e para a construção de sentidos de humanidade no sistema de justiça.

É preciso um reposicionamento epistemológico e processual, que coloque a dor e o reconhecimento de humanidades como algo central, de forma a não promover reiteradamente novas violências. Ademais é preciso pensar em formas de atenção a essas pessoas, que considere as agruras do tempo e retire a centralidade das respostas judiciais.


Notas de rodapé

1 A CAV/UFPA foi criada no ano de 2016, vinculada à Faculdade de Direito. É um espaço voltado para a formação prática dos/as alunos/as da Faculdade de Direito e, para além disso, ao atendimento e serviço à comunidade em casos relativos à violência (SOUZA, 2021).

2 Importante lembrar aqui que as faculdades de direito operam justamente ensinando os estudantes a traduzir o mundo da vida para uma linguagem jurídica, captando dos relatos fáticos aquilo que importa ser dito para o direito. Infelizmente, o caminho de volta não é geralmente trilhado e nós acabamos resumindo a vida das pessoas à explicação normativa construída pela ciência do direito.

Referências

ACAYABA, Cíntia; ARCOVERDE, Léo. Assassinatos de negros aumentam 11,5% em dez anos e de não negros caem 12,9% no mesmo período, diz Atlas da Violência. G1, 27 ago. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/27/assassinatos-de-negros-aumentam-115percent-em-dez-anos-e-de-nao-negros-caem-129percent-no-mesmo-periodo-diz-atlas-da-violencia.ghtml. Acesso em: 12 abr. 2022.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

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MANTELLI, Gabriel Antonio Silveira; ALMEIDA, Júlia de Moraes. Descolonizar e deslocalizar radicalidades contra-jurídicas. Boletim IBCCRIM. Ano 29, n. 339, p. 4, fev. 2021.

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VELASCO, Clara; GRANDIN, Felipe; CAESAR, Gabriela; e REIS, Thiago. Mulheres negras são as principais vítimas de homicídios; já as brancas compõem quase metade dos casos de lesão corporal e estupro. G1, 16 set. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/16/mulheres-negras-sao-as-principais-vitimas-de-homicidios-ja-as-brancas-compoem-quase-metade-dos-casos-de-lesao-corporal-e-estupro.ghtml. Acesso em: 12 abr. 2022. 

Autores(as) convidados(as)




Disciplina carcerária: apontamentos sobre déficits de constitucionalidade na execução penal

    


Taiguara Libano Soares e Souza. 

Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Professor de Criminologia e Direito Penal da UFF e do IBMEC-RJ. Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da UFF. Advogado Criminalista

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0772405324793889

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9383-5901

taiguaralsouza@gmail.com


Rafael Barcelos Tristão. 

Doutorando em Direito Penal pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela UFF. Professor de Direito Penal. Defensor Público do Estado de São Paulo 

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2516255283891511

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3171-4930

rafael_btristao@hotmail.com


Resumo: Trata-se de reflexão teórica acerca dos marcos jurídicos da Disciplina Carcerária, especialmente avaliando déficits de constitucionalidade na Execução Penal. O trabalho toma por base a teologia redutora (redução de danos no âmbito carcerário), numa abordagem teórica crítica à realidade prisional, visando questionar a adequação jurídico-constitucional de entendimentos consolidados sobre a disciplina carcerária em sede doutrinária e jurisprudencial. Com isso, busca-se desenvolver parâmetros interpretativos integrados à finalidade normativa da Execução Penal, qual seja, a reintegração social do sentenciado (Art. 1º da LEP). Os parâmetros disciplinares desenvolvidos são: i) legalidade estrita e ampliada; ii) proporcionalidade executória; iii) presunção de inocência disciplinar; e iv) culpabilidade disciplinar. Salienta a necessidade de se repensar a Disciplina Carcerária, com vistas à superação de um paradigma punitivo/sancionatório para uma perspectiva educativa, que oportunize a readequação da pena em prol das necessidades de integração social do sentenciado (individualização da pena).

Palavras-chave: Execução Penal – Disciplina Carcerária – Reintegração Social.

Abstract: The present study is a theoretical reflection on legal guidelines regarding Prison Discipline, focusing on the analysis of constitutional deficits in Penal Execution. It’s based on reductive theology (harm reduction in the prison environment), in a critical theoretical approach to the reality of prison life, aiming to question the legal-constitutional adequacy of consolidated understandings Discipline in doctrinal and jurisprudential grounds. We’re seeking to develop interpretative parameters integrated to the normative purpose of Penal Execution, which is the social reintegration of a legally sentenced person (Art. 1 of the LEP). The disciplinary parameters developed are: i) strict and extended legality; ii) enforceable proportionality; iii) presumption about Prison of disciplinary innocence and iv) disciplinary culpability. This study also emphasizes the need to rethink Prison Discipline with a different perspective in order to overcome a punitive/sanctional paradigm for an educational outlook that allows the sentence’s readjustment in favor of the convict's needs for social integration (individualization of penalties).

Keywords: Prison Discipline: Reflections on Constitutional Deficit in Penal Execution.

Data: 31/05/2022
Autor: Taiguara Libano Soares e Souza e Rafael Barcelos Tristão

1. Introdução

A disciplina carcerária demanda delimitações constitucionais, notadamente buscando uma interpretação redutora do poder punitivo1 e salientando déficits de constitucionalidade em certas interpretações correntes na Execução Penal. Dessa forma, considerando a realidade de dessocialização do cárcere,2 busca-se operar uma diminuição da seletividade, estigma e repressão do Sistema Penal.

A Execução Penal pressupõe uma pena concreta,3 uma vez que deve efetivar os preceitos da sentença condenatória (pena) ou absolutória imprópria (medida de segurança),4 de modo que visa executar o título executivo penal que se formou.5 Depreende-se, assim, que o título execução é, ao mesmo tempo, requisito e limite para a Execução Penal, mediante leitura sistemática dos Artigos. 1º e 3º da Lei de Execução Penal.6

O Sistema de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia) deve verificar a correlação entre o título executivo (programa punitivo) e a execução concreta (cumprimento individualizado). Uma leitura redutora de danos no âmbito da Execução Penal deve buscar a ampliação dos espaços de liberdade e a reintegração do sentenciado durante o cumprimento da pena, mitigando os danos provocados pela segregação punitiva.

Diante deste quadro, é necessário fazermos uma distinção entre o Processo de Conhecimento e o Executório. O processo de conhecimento se dirige ao passado, visando descobrir o que ocorreu e em quais circunstâncias se deu o fato delitivo, bem como angariar elementos para eventual atribuição de responsabilidade penal e assim constituir um título executivo. A execução penal, por sua vez, se volta para o futuro, objetivando o cumprimento do título executivo e a (re)integração do condenado à sociedade (Art. 1º da LEP).7

Tal noção deve guiar o cumprimento da pena em busca de uma perspectiva de esperança aos executados, especialmente objetivando a estruturação de expectativas e oportunidades. Para tanto, é necessário repensar a lógica punitiva que normalmente acompanha as reflexões sobre a Disciplina Carcerária.8

2. Sistema Disciplinar Executório

A disciplina pode ser conceituada como a manutenção de conjunto de regras de conduta entre os membros de um agrupamento, visando garantir a convivência institucional,9 com vistas à colaboração com a ordem e a garantia de obediência às determinações da autoridade (cumprir as obrigações na microssociedade).10

Tal concepção marca os liames tradicionais acerca da temática. Porém, numa perspectiva constitucional acerca da Execução Penal, a referida noção deveria ser lida com ressalvas, uma vez que pode dar guarida a arbitrariedades institucionais. A disciplina está historicamente associada a concepções alheias às garantias legais, como a constituição de espaços de subordinação do indivíduo aos poderes estatais.11-12

Há uma ideia corrente na prática jurídica de que a gestão da pena deveria “atender aos interesses da coletividade”. Trata-se de concepção perigosa, pois vulnera a perspectiva contramajoritária do Poder Judiciário (garantir os Direitos Fundamentais, ainda que, para tanto, entre em rota de colisão com as maiorias eventuais). Além disso, a Execução Penal é permeada por demandas punitivas,13 que buscam a ampliação da intensidade penal em nome de noções difusas, como “segurança pública dos cidadãos” ou “vontade da sociedade”, o que vulnera a concretização dos Direitos Fundamentais dos presos em sede executória.

Na seara executória, ao contrário, deveria haver uma exaltação dos Direitos Fundamentais dos sentenciados, pois há uma vulnerabilidade intrínseca ao preso durante a execução da pena, bem como uma estigmatização que alcança o egresso muito tempo após o término do cumprimento da pena. Ademais, a tarefa político-criminal de reintegração social demanda esforços institucionais e investimentos públicos massivos.14

2.2. Premissas interpretativas para uma redução de danos disciplinar

Há quatro premissas que deveriam ser seguidas no campo disciplinar para a construção de uma redução de danos no âmbito executório: i) legalidade disciplinar estrita e ampliada; ii) proporcionalidade executória; iii) presunção de inocência disciplinar; e iv) culpabilidade disciplinar.  

2.2.1. Legalidade Disciplinar Estrita e Ampliada

A legalidade disciplinar estrita e ampliada parte da compreensão de que a elasticidade e indeterminação dos tipos disciplinares tornam o manejo disciplinar um campo fértil à violação de Direitos Fundamentais, ampliando a distância do sentenciado em relação ao mundo livre e representando um verdadeiro entrave à reintegração social.

A lei de execução penal indica parâmetros para a administração da magnitude e das formas de cumprimento da pena. A concretização da pena pode ser mais dura ou mais suave aos condenados conforme o curso da trajetória executória. Dessa maneira, o Princípio da Legalidade no âmbito executório preconiza que toda forma de agravar as condições de encarceramento/segregação de liberdade deve estar autorizada por lei, o que aborda especialmente sanções e faltas disciplinares, evitando-se a constituição de um “espaço de não direito” na prática disciplinar.15

Tudo na execução penal deve ser legalmente previsto e estritamente interpretado, notadamente no que tange à restrição de direitos e ampliação do gradiente punitivo. Trata-se de um instrumento de contenção do arbítrio administrativo e judicial,16 de modo a garantir um cumprimento adequado da pena, especialmente subordinado aos limites do título executivo e visando a reintegração do condenado. Sendo assim, a Execução Penal deve ser compreendida como segregação de direitos legalmente vinculada.

Destarte, a Execução Penal deve ser compreendida como um instrumento de limitação racional do poder punitivo, evitando a constituição de uma “punição dentro da punição”. A disciplina penal deve ser compreendida como reeducativa, uma vez que a punição já foi delimitada pelo título executivo durante o processo de responsabilização penal. Deve-se, assim, adequar a conduta do sentenciado a sua demanda específica de reintegração social/redução da estigmatização, bem como promover Direitos Fundamentais, num contexto de violação sistemática da dignidade humana ante as condições precárias de encarceramento. Por tais fatores, a lógica punitiva deve estar afastada da disciplina executória, que deveria contribuir para a retomada da adequação executória que poderia estar afetada por eventuais desvios disciplinares, construindo-se uma individualização executória numa perspectiva de redução de danos.  

Para isso, é necessário estruturar os requisitos para a caracterização de uma falta disciplinar, bem como definir de forma clara as consequências do descumprimento das normas atinentes à execução da pena. Além disso, uma leitura ampliada da legalidade deve dar guarida no âmbito disciplinar a todos os conteúdos limitativos do Direito Penal (por exemplo: tentativa; prescrição; desistência voluntária; condições de procedibilidade etc.).17 Se tais aspectos restritivos valem para a caracterização do crime (pressuposto para a constituição de um título executório), com muito mais razão deveria valer para a estruturação disciplinar (caráter instrumental e condicional da execução penal).

Ademais, é necessária uma leitura desclassificatória exauriente em relação às faltas disciplinares médias e leves presentes no ordenamento prisional estadual, de modo que as faltas presentes nos Artigos 50 e 52 da LEP devem ser entendidas como subsidiárias. Só se poderia falar em falta grave se houvesse uma desconsideração fundamentada das faltas médias e leves relacionadas à conduta analisada.18

Passamos agora à análise dos tipos disciplinares em espécie e a uma leitura crítica de faltas disciplinares trazidas pela lei de execução penal, com base no princípio da legalidade:

i) Subversão da ordem (Art. 50, I da LEP): a definição de ordem é feita com base nos interesses e necessidades da gestão prisional, algo fluído e que gera insegurança jurídica aos sentenciados. Por isso, a necessidade de delimitação exata e concreta de como a dinâmica prisional, que foi alterada com a indicação de modificações na rotina do estabelecimento. De igual modo, verifica-se a necessidade de alteração das escalas de trabalho dos agentes, suspensão/restrição do funcionamento dos serviços prisionais (estudo, trabalho, alimentação e limpeza) etc.;

ii) Fuga (Art. 50, II da LEP): é necessário fazer uma diferenciação entre situações juridicamente distintas: a) atraso: retorno tempestivo sem maiores implicações na rotina carcerária dentro de um prazo razoável; b) retorno espontâneo: é o regresso voluntário ao estabelecimento após expressivo decurso de tempo, devendo nesta hipótese ser aplicada por analogia o arrependimento posterior (Art. 16 do CP), com a consequente redução da sanção disciplinar; e c) fuga: evasão sem a pretensão de retorno, interrompida por circunstâncias alheias a vontade do agente.19 Somente a última hipótese pode ser caracterizada como falta grave;

iii) Instrumento Ofensivo (Art. 50, III da LEP): o tipo disciplinar viola a legalidade estrita pela ausência de precisão, uma vez que uma série de objetos podem ser considerados como ofensivos. Para afastar dúvidas são necessárias duas providências: a) realização de perícia no objeto a fim de indicar o caráter ofensivo20; e b) a indicação de como o sentenciado estava manejando o objeto e o perigo concreto causado;

iv) Inobservância dos Deveres (Art. 50, VI c/c Art. 39, II e V da LEP): a amplitude da norma dá margem a manipulações, que vulneram os direitos fundamentais dos presos. Por isso, é necessário que a autoridade carcerária aponte especificamente quais deveres foram violados, em que consistiu o ato de desobediência/desrespeito ao servidor. Eventuais questionamentos ou pedidos de informação sobre procedimentos e rotinas prisionais estariam compreendidos como exercício do direito à liberdade de expressão (Art. 5º, inciso IX da CF);

v) Aparelho de Comunicação – telefônico, rádio ou similar (Art. 50, VII da LEP): a capacidade de gerenciamento de grupos criminosos e convulsões no sistema prisional é restrita a uma parcela bem reduzida de presos. Tais reclusos deveriam, fundamentadamente e de forma individual, ter o direito à comunicação restringido. Logo, a limitação indiscriminada à comunicação dos condenados é desproporcional, impossibilitando um contado efetivo com amigos e familiares, restringindo o acesso a oportunidades laborais21 e fomentando um mercado paralelo de privilégios. O aparelho apreendido deveria ser periciado para que haja a comprovação de que permite a comunicação nos termos do tipo disciplinar.22 A apreensão de chips, baterias e acessórios majoritariamente caracteriza a presente falta.23 Porém, tal entendimento caracteriza como uma distorção da legalidade, uma vez que a LEP menciona aparelhos que permitam a comunicação.

2.2.2. Proporcionalidade Executória

A proporcionalidade executória deve ser entendida como um antídoto contra consequências disciplinares que fujam da razoabilidade. A primeira forma de evitar consequências disciplinares desproporcionais é a comparação da sanção a delitos ou infrações disciplinares funcionais similares à conduta do sentenciado que ensejou a caracterização da falta disciplinar. As infrações disciplinares devem indicar uma responsabilização inferior em relação aos crimes, demandando tratamento consequencialista mais brando que as sanções penais.

A segunda forma de garantir a proporcionalidade é evitar que as consequências disciplinares impeçam a efetivação do sistema progressivo, fazendo com que o sentenciado cumpra a pena integralmente no regime mais gravoso ou que fique por tempo ínfimo no regime prisional mais brando antes do término do cumprimento da pena. O sistema progressivo demanda que o sentenciado cumpra o arco executório, passando pelos regimes prisionais como mecanismo de alcançar uma desinstitucionalização gradual.

A Execução Penal é permeada de instrumentos de reintegração social, familiar e comunitária: i) Saída Temporária (Art. 122 da LEP); ii) Remição – por trabalho e estudo (Art. 126 da LEP); iii) Trabalho Externo (Art. 36 da LEP); e iv) Visitas (Art. 41, inciso X). Tais mecanismos não poderiam ser atingidos pelas consequências disciplinares, pois são essenciais à função lógica e sistemática da execução da pena, qual seja, a reintegração do condenado. Viola a razoabilidade que o instrumento de retomada da integração social (disciplina carcerária numa perspectiva reeducativa) seja utilizado para inviabilizar a sua própria finalidade e afetar o objetivo declarado da intervenção penal.24

2.2.3. Presunção de Inocência Disciplinar

A presunção de inocência disciplinar é marcada pela impossibilidade de responsabilização por atos de terceiros, bem como a necessidade de que a administração carcerária demonstre a ocorrência da prática disciplinar de forma clara, fundamentada e refutável, sob o prisma do contraditório e ampla defesa. É inconstitucional a presunção de culpa no âmbito executório, cabendo ao Estado demonstrar a culpa (e não ao sentenciado provar a inocência), o que inviabiliza o reconhecimento de faltas disciplinares quando não haja a comprovação da participação concreta do sentenciado na dinâmica factual que ensejou a falta.

Como decorrência desta perspectiva, o contraditório e a ampla defesa ganham ressonância nos debates disciplinares, uma vez que o sentenciado deve ter a oportunidade de apresentar a sua versão sobre os fatos, bem como refutar as acusações apresentadas pela administração penitenciária, o que pode demandar acesso a dados funcionais de funcionários, escalas de trabalho, imagens, prontuários, realização de perícias etc. Tal ponto deve indicar uma leitura com ressalvas pelo Poder Judiciário das versões trazidas pela Administração Penitenciária.

2.2.4. Culpabilidade Disciplinar

A culpabilidade disciplinar é definida pela inviabilidade de responsabilização disciplinar por fatores externos a conduta concreta do sentenciado. Com isso, visa-se evitar a responsabilidade objetiva em sede disciplinar, diminuindo a incidência do Direito Penal do Autor (in casu, execução penal do autor), no qual o sentenciado seria responsabilizado pelo que é e não pelo que fez. No cumprimento da pena, como decorrência de um Direito Penal Democrático,25 deve-se privilegiar uma responsabilização jurídica do indivíduo pelos seus atos concretos, devidamente demonstrados em sede de processo disciplinar (Direito Penal do fato). 26

Uma execução penal voltada para os fatos (e não para a personalidade dos executados) impede que juízos negativos sobre os presos (exemplo: rebeldia, histórico de problemas disciplinares, comportamento questionador etc.) sejam utilizados como critério para imputação de faltas disciplinares ou agravamento de sanções. O princípio da culpabilidade demanda uma vinculação subjetiva entre o autor e a prática concreta (vedação à responsabilidade objetiva disciplinar).

Outras consequências da culpabilidade disciplinar podem ser sistematizadas da seguinte forma: i) torna-se necessária a fundamentação judicial, com a indicação de condutas concretas praticadas pelos sentenciados para a retirada de direitos executórios; ii) leitura expansiva da proibição de sanções coletivas (§3º do Art. 45 da LEP), especialmente quando não for possível individualizar os desvios disciplinares; iii) compreensão de que o microssistema penal é dotado de relações de forças, que podem impor responsabilizações artificiais a alguns sentenciados e imunidades a determinados executados; e iv) a gravidade das consequências disciplinares devem ser dosadas para evitar duplas sanções pelo mesmo fato, ainda que em instâncias distintas de responsabilização.

Conclusão

A perspectiva de Reintegração do Sentenciado prevista no Art. 1ª da LEP deve ser compreendida como premissa executória e cerne das interpretações disciplinares. Diante desta lógica, o recluso deve ser entendido como um sujeito de direitos, especialmente ante o reconhecimento de que o encarceramento produz um status de vulnerabilidade, que se retroalimenta de precarização estrutural, estigmas e déficits de socialização.   

A individualização da pena com vista à reintegração social do sentenciado deve ser a chave de interpretação para processos disciplinares, notadamente para se evitar uma avaliação homogênea e pasteurizada do processo executório. Tomando por base os parâmetros limitativos desenvolvidos ao longo do texto, é possível evitar sanções irracionais, excessivas ou desvinculadas das finalidades da pena. Com isso, visa-se superar a perspectiva punitiva dos processos disciplinares e a legitimação de uma “punição dentro da punição”. Nesta esteira, o melhor entendimento acerca da matéria pressupõe tratar o processo disciplinar como a oportunidade de readequar o programa executório do condenado às suas necessidades e possibilidades. 


Notas de rodapé

1 Há aqui uma clara inspiração no conceito trazido por Nilo Batista e Raúl Zaffaroni de teleologia redutora, com o objetivo de “desenvolver uma estruturação conceitual que seja funcional para a contenção e redução do poder punitivo”. (ZAFFARONI et al, 2010, p. 60-61). Naquilo que Rodrigo Roig chama de teoria redutora de danos na Execução Penal (ROIG, 2016, p. 19).

2 Bitencourt realiza bom panorama dos problemas do cárcere: i) caráter criminógeno; ii) elevados índices de reincidência; iii) efeitos psicológicos nefastos nos condenados. (BITENCOURT, 2011, p. 161-204).

3 BRITO, 2018, p. 35.

4 Em que pese tal leitura mais restrita dos objetos da execução penal, é preciso salientar que há outros títulos de natureza penal que estão sobre a égide da prática executória: i) ação executória de multa penal (Art. 51 do CP); ii) cumprimento dos termos do acordo de não persecução penal (Art. 28-A do CPP); iii) acompanhamento do cumprimento de sursis processual (Art. 89 da Lei 9.099/95).

5 MARCÃO, 2018, p. 29; 33.

6 Art. 1º “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal”. Art. 3º “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.

7 BRITO, 2018, p. 40.

8 Tal perspectiva encontra lastro na perspectiva irradiante da finalidade da pena na Execução Penal: “Essa decisão da finalidade última da programação da pena é nitidamente política, eis que reflete a escolha do Estado e da sociedade. Na medida em que essa opção política é incorporada pelo Direito, irradia-se de imediato para todas as instituições responsáveis por lapidar a relação jurídica que regula as regras e o procedimento de efetivação da pena”. (SALVADOR NETTO, 2019, p. 28).

9 BRITO, 2018, p. 215.

10 MAYRINK DA COSTA, 2016, p. 292-293.

11 “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de ‘disciplinas.’” (FOUCAULT, 2004, p. 118).

12 Não por acaso, Pavarini indica que as necessidades disciplinares oriundas da revolução industrial ofuscam as liberdades burguesas, permitindo que o regime fabril penetre em outras esferas da sociedade civil. (PAVARINI, 2008, p. 72).

13 Ou, nos termos de Vera Malaguti, a chamada “demanda por ordem”. (BATISTA, 2011, p. 19).

14 Partindo desta premissa, Rodrigo Roig salienta a necessidade de se reconhecer um “dever jurídico-constitucional de redução do sofrimento e da vulnerabilidade das pessoas encarceradas”. (ROIG, 2016, p. 26).

15 Os espaços de não direito no âmbito disciplinar tendem a se afastar do conceito de norma jurídica e de jurisdicionalidade, permitindo-se o sancionamento mediante o manejo de tipos disciplinares vagos e genéricos. (PAVARINI, 2018, p. 211). 

16 ROIG, 2016, p. 39.

17 ROIG, 2016, p. 197.

18 Na maioria das vezes, os ordenamentos estaduais adotam descrição mais exauriente de condutas faltosas de teor médio ou leve.

19 PAVARINI; GIAMBERARDINO, 2018, p. 260. No mesmo sentido: ROIG, 2016, p. 209-210.

20 O STJ indica que a dispensabilidade da realização de perícia no objeto apreendido para a caracterização da falta disciplinar sob o curioso argumento da falta de previsão legal (jurisprudência em teses, edição nº 144, tese 8).

21 Fora de dúvida que o celular é uma forma de integração social, que possibilita oportunidades de renda e emprego, bem como possibilita estreitamento dos laços com a família. Além disso, a restrição indiscriminada gera e potencializa a exclusão digital dos detentos, tornando a reintegração social inalcançável.

22 O STJ indica que o exame pericial no aparelho apreendido é dispensável para a configuração da falta em apreço (jurisprudência em teses, edição nº 144, tese 7).

23 “A posse de fones de ouvido no interior do presídio é conduta formal e materialmente típica, configurando falta de natureza grave, uma vez que viabiliza a comunicação intra e extramuros” (jurisprudência em teses, edição nº 144, tese 6).

24 Tal perspectiva visa evitar a seguinte contradição sobre a obediências às regras disciplinares: “(...) tais regras não correspondem, em nenhum aspecto, a um aprendizado do viver em sociedade, mas significam tão-somente uma bem-sucedida socialização à vida carcerária a qual, na maioria das vezes, corresponde a uma dessocialização fora dela” (PAVARINI; GIAMBERARDINO, 2018, p. 254).

25 Nos termos de Juarez Tavares: “Com isso, se passa a recuperar o papel do sujeito na ciência jurídica e a exercer a delimitação democrática do poder do Estado” (TAVARES, 2003, p. 164).

26 CARVALHO, 2013, p. 86-87.


Referências

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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BRITO, Alexis Couto. Execução Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro: fundamentos e aplicação judicial. São Paulo: Saraiva, 2013.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004.

MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Execução Penal. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2016.

PAVARINI, Massimo e GIAMBERARDINO, André. Curso de penalogia e execução penal. Florianópolis: Tirant LoBlanch, 2018.

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ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Curso de Execução Penal. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Jurisprudência em teses, edição nº 144, tese 8. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Consultado em: 05/04/2022.

TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo horizonte: Del Rey, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, segundo volume: teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.


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