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Uma semana depois da festa cívica que coroou o exercício da vontade popular por meio do voto secreto, universal e periódico, o país sofreu o pior ataque da história da República inaugurada em 1988. Diante do mais duro golpe à democracia, feroz ao atingir o âmago de suas simbólicas instituições, os líderes de Poderes correram para tomar as medidas mais eficazes a socorrê-las e à população como um todo. A democracia sofreu um ultraje tão covarde quanto inacreditável.
Feito o diagnóstico, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, além de repudiar veementemente o ataque (por nota divulgada no próprio dia 8 de janeiro),(1) oficiou aos chefes dos três Poderes constituídos, colocando-se à disposição para o fortalecimento da democracia.(2) Disponibilizou os esforços de seus integrantes para ações reativas concretas, acompanhamento de investigações e análise de toda a documentação necessária à mais rápida possível volta à normalidade.
Esclarecido isso, e enfatizada a solidariedade que é a força motriz e inalienável para a realização concreta do Estado Democrático de Direito, deve-se pontuar, contudo, que na democracia não existe mito, herói. O país mal se livrou dos emblemas de uma e outra figura enganosa e perniciosa e não pode correr o risco de repetir o erro, entregando os anseios pela reconfiguração democrática aos exercícios de poder em uma ou outra pessoa, ainda que repleta de boas intenções.
O Poder Executivo tomou decisão de cunho político ao decretar a medida de intervenção no Distrito Federal para debelar o comprometimento da ordem pública, em atitude a indicar que a União está de pé e que há motivos para corrigir a inoperância (por aparentemente deliberada omissão em prever e conter os bárbaros atos preparados) de um ente federativo.
E do Poder Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal, agora se espera a continuidade do comportamento de guardião da Constituição. A Corte e sua respeitabilidade se constituem em particular patrimônio a ser protegido. Tecnicamente há investigação a seguir, há audiências de custódia a serem realizadas, há direitos a serem observados, inclusive dos indivíduos envolvidos nos gravíssimos atos antidemocráticos testemunhados. O exemplo de controle contra o autoritarismo, da tábua de salvação para a observância dos direitos individuais, deve vir justamente do Supremo Tribunal Federal, que não deve perder a serenidade e responsabilidade por reerguer a combalida democracia.
Nenhum argumento deverá ser aceito para justificar atropelos no tratamento dos direitos de cidadãos, por mais abjetos e vis que sejam os atos porventura praticados, a ser objeto de investigação séria e profunda com vistas a identificar mandantes e instigadores, possivelmente com poderio econômico e político a insuflar a horda de cidadãos que executaram os piores ataques ao patrimônio material e imaterial da democracia brasileira das últimas décadas. Ainda assim, algo que se assemelhe a uma cruzada contra os inimigos da democracia não pode fazer parte do cotidiano do Poder Judiciário.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, atento ao plano do Ministério da Justiça e Segurança Pública de elaboração de novos projetos de lei com vistas a coibir ataques tão inimagináveis como os vistos no último dia 8, reitera a disposição em, com olhos na dignidade da pessoa humana e na percepção de que o Direito Penal e o Direito Processual Penal são remédios tão amargos que supõem aplicação criteriosa e parcimoniosa, cooperar criteriosamente com os atos a serem colocados em prática. Da mesma forma, na atuação que por certo se espera do Supremo Tribunal Federal, exemplar como entidade secular na proteção dos direitos individuais e pilar da democracia brasileira, firma-se o compromisso de envidar todos os esforços para a cooperação com qualquer assunto em que demandado.Não se defende, sob nenhuma hipótese, postura leniente com quem quer seja, mesmo porque todos os brasileiros e brasileiras, como vítimas do pior ataque de que se tem notícia recente, têm a mesma legitimidade de ver a rigorosa aplicação da lei aos algozes do país. Mas o combate aos atos organizados que tentaram colocar de joelhos a democracia brasileira não pode ser feito às custas de mais violações de direitos.
Em momentos tão dramáticos como esse, há um teste a ser feito para a defesa válida da democracia: o da reação dentro do sistema de garantias instituído pela Constituição. Não há outra regra a ser seguida. Dentro das regras do Estado Democrático de Direito é que se deve atingir solução admissível. Não há outro caminho.
Notas
1 https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/9032
2 https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/9033
Nayara Chioma Coghi Uzoukwu
Mestra em Políticas Públicas na UFABC. Graduada pela PUC-SP. Coordenadora na OAB/SP. Advogada.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4370319896402404
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7294-1606
nayara.uzoukwu@gmail.com
Resumo: O artigo propõe a exposição de alguns aspectos do instituto da remição de pena por prática de atividades educacionais, com ênfase na leitura no contexto de cumprimento de pena. Após a regulamentação da remição de pena nessa modalidade pela Resolução 391, de 2021, do Conselho Nacional de Justiça, desafios em sua implementação pelas Varas de Execução Penal exsurgem como a ausência de Comissões de Validação para apreciação dos relatórios de leitura, assim como o déficit de obras literárias e bibliotecas nas unidades prisionais.
Palavras-chave: Remição leitura; Execução penal; Conselho Nacional de Justiça.
Abstract: The article proposes to the exposition of some of the aspects of the penalty remission institute for the practice of educational activities with emphasis on reading activity in the prison context. After the regulation of the penalty remission institute by reading, from Resolution 391, of 2021, of the National Council of Justice, challenges in its implementation by the Criminal Execution Courts arise as the absence of Validation Commissions for the appreciation of reading reports, as well as the deficit of literary works and libraries in prisons.
Keywords: Reading Remission; Criminal Execution; National Council of Justice.
A problemática prisional há muito é notória, seja em relação às massivas violações de Direitos Humanos, seja na falaciosa pretensão ressocializadora que está inserida na lógica criminal de penalização e aprisionamento, que conforme já demonstrado pela produção de dados e estudos, não tem o condão de repercutir em efeitos práticos de redução da violência ou reinserção social do egresso prisional.
Nesse contexto, houve decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 347/2015, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional em que se encontra o sistema prisional brasileiro, declarando assim a responsabilidade institucional do Estado pela grave questão da violência institucionalizada que representa as prisões brasileiras.
Dessa forma, após a declaração dada pela ADPF 347/2015, qualquer potencialidade de garantia de direito dentro das prisões, assim como antecipação do cumprimento de pena em regime diverso do fechado, deve ser considerada como medida urgente de aplicação.
Sendo assim, a aplicabilidade da Lei n. 7.210/1984, a Lei de Execução Penal (LEP), no que tange às disposições de remição de pena, seja por trabalho ou por estudo, deve regular e garantir os direitos do apenado no cumprimento de pena, visto que diante do cenário calamitoso do sistema prisional, reforça-se ainda mais a necessidade de se fazer cumprir a legislação, naquilo que possa ser mais protetivo ao apenado.
Diante de um de seus objetivos legais, qual seja a reintegração social, a aplicação da LEP deve visar incentivar o bom comportamento do apenado intramuros, com o fim de cumprir aquilo que persegue, a readaptação ao convívio social. Contudo, a estigmatização e consequente ausência de oportunidades permanece como forte elemento que inviabiliza a reinserção ou recolocação no mercado de trabalho, relegando aos egressos prisionais apenas trabalhos precarizados em subempregos.
É nesse sentido, que entende-se que a LEP deve operar, não apenas para garantir direitos na prisão, mas para auxiliar na desprisionalização, considerando o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional e os instrumentos que prevê, que permitem uma tentativa de reintegração após o cárcere mais qualitativa, com o envolvimento do apenado em atividades socioeducativas e laborais, aptas a contribuir com o seu processo enquanto egresso prisional.
Aspecto fundamental que se propõe aqui abordar, assim, reside no fato de que, durante o cumprimento de pena privativa de liberdade, o apenado, conforme público e notório convive em um ambiente que não fornece condições mínimas de dignidade, tampouco, oferta atividades salutares, mas meramente o ócio, a violência e a privação.
Desse modo, entende-se que, a remição de pena por meio do estudo e leitura, tem caráter pedagógico, formativo e lúdico que pode contribuir com a manutenção da dignidade da pessoa presa, considerando que constitui a educação direito constitucional de toda a população (BRASIL, 1988, Art. 6º).
E, diante do cenário de superencarceramento e seus nefastos efeitos sociais, todas as medidas necessárias para minimizar os impactos do aprisionamento e que possam gerar desencarceramento devem ser adotadas e ratificadas pelo poder público. Nesse sentido, o instituto da remição de pena por trabalho e estudo tem forte impacto para que o desencarceramento se consolide antecipadamente.
A previsão legal da remição de pena por estudo está no artigo 126 da LEP, a partir da alteração da Lei 12.433/2011, que até então previa apenas a remição de pena por trabalho. E a revogada Recomendação 44/2013, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já dispunha sobre a leitura como atividade complementar para fins de remição. A regulamentação, contudo, ocorreu em 10 de maio de 2021 por meio da Resolução 391 do CNJ, que constitui um marco legal a regulamentar o direito à remição de pena por estudo e leitura, ou seja, práticas educacionais não formais e práticas desportivas e assim passou a estabelecer critérios para a utilização da leitura para remir pena, considerando-a prática educacional.
Tal Resolução tem por base a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 190.806/SC (BRASIL, 2020), em março de 2021, que reconheceu o direito à remição de pena a uma apenada aprovada no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA). Na decisão, o STF incumbe o CNJ de oferecer “condições de estudo aos reeducandos”.
A partir da Resolução, os apenados aprovados em exames nacionais como o Encceja e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) poderão ter a sua pena remida, considerando 50% da carga horária definida legalmente para cada nível de ensino, fundamental ou médio (Art. 3º, Parágrafo único). No mesmo sentido, as atividades desportivas e culturais, não relacionadas à educação formal serão consideradas a partir do número de horas de participação.
A recente Resolução 391 do CNJ (BRASIL, 2021), no entanto, vai além e considera que a leitura de obras literárias deve ser levada em consideração como prática socioeducativa e, logo, pode também ser revertida na remição de pena. Para fins de remição de pena, serão consideradas três tipos de atividades educacionais realizadas durante o período de encarceramento: educação regular (quando ocorre em escolas prisionais), práticas educativas não escolares e leitura. Para fazer jus à antecipação da liberdade, a pessoa condenada terá de cumprir uma série de critérios estabelecidos pela Resolução para cada uma das três modalidades de estudo.
Após registrar o empréstimo da obra literária escolhida, o apenado terá de 21 (vinte e um) a 30 (trinta dias) para fazer a leitura e, após esse período, mais 10 dias para apresentar um relatório de leitura, como uma resenha, que não será avaliado o desempenho, mas sim a realização, de acordo com o roteiro estabelecido pelo Juízo competente ou pela Comissão de Validação (artigo 5º, IV). Esta comissão pode ser formada por voluntários da área da educação, docentes, bibliotecários e organizações da sociedade civil.
Cada obra lida e relatada concede o direito à remição de quatro dias de pena, caso validada pelo Juízo de Execuções Penais. Foi instituída uma limitação de 12 livros por ano e, portanto, é possível remir até 48 dias de pena anualmente (artigo 5º, V). E de acordo com o previsto na Lei 13.696/2018, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita, ficam vedadas a censura, a existência de lista prévia de títulos para fins de remição e a aplicação de provas para avaliação de conhecimento e desempenho.
A discussão quanto ao estabelecimento de procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário, para o reconhecimento do direito à remição de pena por leitura e estudos nas unidades prisionais, ocorreu no contexto do Grupo de Trabalho “Plano Nacional de Fomento à Leitura nos Ambientes de Privação de Liberdade”, do CNJ, composto por membros do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNDU), membros do Poder Judiciário e Sistema de Justiça, membros do Poder Executivo e sociedade civil.
Em Nota Técnica 72/2021, do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), reitera-se o desafio e a importância do fomento e implantação de bibliotecas prisionais adequadas, já que legitimadas desde a primeira versão da Lei de Execuções Penais. E sendo parte da nova Resolução, será necessário incrementar os acervos existentes, que por vezes não são bibliotecas completas, mas meras salas de leitura com poucas opções de literatura disponíveis.
É pertinente, ainda, ponderar que a capacidade da atividade de leitura diante das condições prisionais, consiste em elemento que contribui para o desenvolvimento humano e intelectual do indivíduo, com diversos benefícios individuais e sociais que podem ser extraídos dessa atividade.
A prática da leitura propicia a ampliação de conhecimentos em um ambiente em que há muito pouco ou nenhum estímulo ao exercício intelectual. O hábito de ler desperta o interesse dos apenados por temas que suplantam o cotidiano vivido nas celas e arredores. Além disso, contribui como fator de lazer e evita o ócio, diante da ausência de outras atividades disponíveis.
Trata-se, evidentemente, de iniciativa que, para ter a sua aplicação prática consolidada, necessita observar e compreender as particularidades da população prisional a que se destina. O perfil da população aprisionada indica que é constituída em 96% por homens, 54% destes entre 18 e 29 anos e 64,4%, são pessoas autodeclaradas negras (pretas e pardas). Quando confrontamos os dados de escolaridade, constatamos que 51% dos apenados não concluiu o ensino fundamental, 15% não têm o ensino médio completo e apenas 0,5% têm educação superior completa (IBGE, 2020).
O enfrentamento à baixa escolaridade, que justamente é a pedra de toque para se pensar uma reorganização e reinserção do indivíduo no seio social, no contexto das prisões, não recebe o incentivo necessário, com a devida oferta educacional, visto que 64% dos estabelecimentos prisionais informam que há detentos em atividades educacionais, contudo, dos 820.689 presos brasileiros, apenas 123 mil pessoas estão matriculadas em alguma dessas atividades (BRASIL, 2019). E apenas 10,6% do total de apenados participam de atividades educacionais, sendo 9,6% envolvidos em atividades de educação formal e 1% em atividades educacionais complementares, de educação não formal como leitura, esportes e cultura (BRASIL, 2017).
A Resolução apresenta ainda possibilidades a todos os apenados, mesmo aqueles que são analfabetos (20% da população prisional) ou possuem defasagem educacional de remir pena pelo estudo e leitura. Dentre as estratégias adotadas está a leitura por outro apenado em voz alta, para aquele que é analfabeto, podendo ambos argumentarem conjuntamente sobre o conteúdo lido, um de forma oral e outro de forma escrita, assim como é possível apresentar desenhos ou leitura por meio de audiobooks (artigo 5º, § 2º). Ademais, o relatório a ser encaminhado para a Comissão, não precisa ser uma resenha formal, mas sim, a apresentação da compreensão individual quanto ao conteúdo.
Tal previsão certamente não soluciona a problemática do déficit de obras literárias, pois a maioria é fruto de doação e principalmente obras em braile ou audiobooks, sendo fundamental a construção de um programa que considere as já existentes falhas de prestação educacional existentes no sistema prisional.
A superlotação e a infraestrutura precária dos presídios são outros fatores que dificultam a aplicação prática do direito à remição por leitura. O convívio em ambiente insalubre, com pouca ou nenhuma iluminação artificial, certamente não configura o ambiente ideal para a prática da leitura e escrita de relatórios.
As premissas da ressocialização estão baseadas na ideia de reeducação e de desenvolvimento de habilidades e conhecimentos que afastem o apenado do retorno à prática de crimes. Nesse sentido, não é possível dissociar a proposta de remição pela leitura do processo de formação intelectual do preso e das atividades de educação formal que também são voltadas à perspectiva de trabalho e reinserção no mercado.
A possibilidade de remição da pena pela leitura e atividades educacionais deve ser ofertada para contribuir em duplo caráter, quais sejam a ampliação de conhecimentos, lazer e formação profissional, e por outro lado, como para viabilizar a antecipação da saída do sistema prisional, visto que deficitário e operante de modo inconstitucional.
Contudo, no cenário atual, conforme dados produzidos pelo Grupo Educação nas Prisões (2020-2021), em relatório diagnóstico sobre projetos de leitura realizados em presídios, a maioria deles realizada em São Paulo, que tem a maior quantidade de projetos de leitura (63,6%), afirma que dentre o acervo literário disponível, há maior presença de romances e biografias, contudo os livros religiosos (20%) sobressaem aos livros didáticos e/ou técnicos.
A Resolução 391/2021 assim determina que sejam adotadas medidas urgentes pelas Varas de Execução Criminal, para que, na ausência de projetos de leitura nos presídios, seja aferida a realização da atividade pelo próprio Juízo de Execução Penal. Dessa forma, determina que o apenado leitor entregue um Relatório de Leitura, que deverá ser submetido à Vara de Execução para apreciação e seja dada a devida validação ao que foi produzido, para fins de cômputo dos dias a remir.
O desafio atual é, diante da ausência das Comissões especializadas que possam averiguar os relatórios produzidos, a apreciação pelo Juízos de Execução desses relatórios, até que estrutura institucional seja apropriadamente constituída.
Considerando que a legislação não impõe critérios de aprovação dos relatórios produzidos e nem mesmo para avaliação de desempenho daqueles que estudam na prisão, não há impedimento para a efetividade dessas medidas de forma emergencial pelo Juízo de Execução, considerando a morosidade em implementar programas dessa natureza.
O regramento próprio que agora detém o Poder Judiciário para aplicação dessa disposição legal, exige também uma atuação em conjunto com o Poder Executivo, para implementação dos projetos de leitura nas prisões brasileiras em que tais programas estão em processo de desenvolvimento ou nem mesmo iniciaram.
Uma questão que se desdobra diz respeito às Comissões de Validação, que conforme artigo 5º, § 1º, inciso II, da Resolução 391/2021, têm caráter voluntário, isto é, a implementação desse direito na prática, resta frágil e instável. Nem todos os estados brasileiros têm grupos voluntários de leitura nas prisões, que poderão integrar essas comissões e, ademais, a dependência de profissionais e técnicos que possam integrar essas comissões de forma voluntária impõe empecilho para a implementação dessa política prisional.
Ainda que em vigor desde maio de 2021, a Resolução do CNJ ainda encontra dificuldade em sua aplicação no cotidiano do Poder Judiciário, por ausência de projetos com mediadores de leitura e das Comissões de Validação. A implementação da Resolução é acompanhada pelo Programa Fazendo Justiça, do CNJ com vistas a ampliar o seu impacto nos estabelecimentos prisionais.
Apesar de devidamente regulamentada, a remição por leitura não está consolidada como prática ratificada por todo o Judiciário. Em setembro de 2021 a 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (SÃO PAULO, 2021) concluiu que a “mera leitura” de livros não justifica a remição de pena. O recurso em questão foi impetrado pelo Ministério Público, sob o argumento de que o artigo 126 da Lei de Execução Penal não prevê tal benefício, de modo que a remição está condicionada ao trabalho do condenado. O relator chegou a afirmar que a leitura seria “uma forma de fugir ao trabalho”.
Em vista da fase de implementação dos projetos de leitura, de forma sólida nos presídios e Varas de Execução Penal, o papel do Juízo de Execuções mostra-se primordial e determinante, já que a legislação autoriza que é sua incumbência, alternativamente à ausência das devidas Comissões de validação, avaliar os relatórios de leitura para remir a pena.
São muitos os entraves para aplicação da remição de pena por leitura, problemas de ordem estrutural das instituições prisionais, morosidade do Poder Público em atender às necessidades desse grupo populacional e as conhecidas e reiteradas violações de direitos no cumprimento de pena.
A ampliação das hipóteses de remição de pena por estudo e leitura representam atividades que podem ser realizadas de modo mais autônomo pelos apenados e têm importante função social, de redução das desigualdades e promoção da dignidade humana intramuros, além, obviamente, da redução de dias a cumprir com restrição de liberdade.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Atualização: jun. 2017. Brasília, DF: Infopen, 2017.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Atualização: jun. 2019. Brasília, DF: Infopen, 2019.
BRASIL. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021. Estabelece procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade.
Diário da Justiça/Conselho Nacional de Justiça, n. 120, Brasília, DF, 11 maio 2021. p. 2-5.
BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 MC/DF, 000XXXX-77.2015.1.00.0000. Relator: Ministro Marco Aurélio. Pesquisa de Jurisprudência. Diário da Justiça/Conselho Nacional de Justiça, n. 237, Brasília, DF, 25 nov. 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (6ª Turma). Habeas Corpus 190.806/SC - 0101977-48-2020.1.00.0000. Relator: Ricardo Lewandowski. Diário da Justiça/Conselho Nacional de Justiça, n. 222, Brasília, DF, 8 set. 2020. p. 283-284.
GRUPO EDUCAÇÃO NAS PRISÕES. Diagnóstico de práticas de educação não formal no Sistema Prisional do Brasil. dez. 2020 – mar. 2021. Disponível em: https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2021/06/relatorio_educnasprisoes-2M.pdf. Acesso em: 29 jun. 2022.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. IBGE, 2020.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Acórdão. 6ª Câmara de Direito Criminal. Processo nº 0004892-66.2021.8.26.0502. Data do Julgamento: 29/07/2021. Relator Des. Ricardo Cardozo de Mello Tucunduva.
Autora convidada
Pedro Simões
Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela USP. Advogado.
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1118738444127155
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4085-5762
Resumo: O texto explora os principais tópicos de relevância na política criminal atinente à lavagem de dinheiro e à sua prevenção, bem como aos assuntos relacionados à prevenção do financiamento do terrorismo, em especial, o papel que o COAF ocupa como autoridade de inteligência e de tratamento de dados pessoais.
Palavras-chave: COAF; Prevenção à Lavagem de Dinheiro; Financiamento do Terrorismo; Inteligência.
Abstract: The text exposes the main topics of national relevance regarding the criminal policies on money laundering and its prevention, as well as topics related to the fighting of financing of terrorism, in special the role played by COAF (the Brazilian Financial Intelligence Unit) in the Brazilian intelligence system and data protection.
Keywords: COAF; Anti-Money Laundering; Financing of Terrorism; Intelligence.
Os ataques realizados por bolsonaristas em Brasília no último 8 de janeiro não podem, formalmente, ser classificados como atos terroristas, nos termos da Lei Federal 13.260/2016, a qual exclui a motivação política como uma das finalidades específicas que caracterizam o crime de terrorismo.
Um dos efeitos práticos dessa impossibilidade está no fato de que o aparato de inteligência financeira voltado à persecução do financiamento de atos terroristas não pode ser mobilizado para a identificação das fontes de recursos que bancaram os eventos de 8 de janeiro de 2023. Esse aparato envolve todas as pessoas obrigadas pela Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei Federal 9.613/1998 – LLD), nos termos da Lei Federal 13.810/2019.
A LLD criou, no final dos anos 1990, um sistema de inteligência financeira no Brasil que inclui, de um lado, um rol de empresas atuando em segmentos visados por lavadores – o rol do artigo 9º da LLD – e, de outro, a nossa Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
Infelizmente, nosso sistema constitucional não prevê, nem regula o que seria um “sistema de inteligência”, da forma como ocorre, por exemplo, com o sistema de defesa nacional ou com o de segurança pública.
Há mais de uma explicação para isso. Uma delas é o fato de que o Brasil desenvolveu seus serviços democráticos de inteligência em tempos de paz, mas a Constituição de 1988 pode ter deixado de lado a inteligência à la regime militar de propósito. Essa escolha teve papel relevante para a reinstauração de um governo civil, mas a ausência de um desenho institucional claro está na raiz da disputa política que presenciamos sobre o “local” do COAF ao longo do governo Bolsonaro (TATEMOTO, 2019) ‒ e que retorna, acertadamente, ao Ministério da Fazenda em 2023 ‒, bem como da situação de aparelhamento em que se encontrava a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) no início de 2023, após uma série de abusos (CONJUR, 2020) terem sido relatados ao longo do governo de Jair Bolsonaro.
Uma primeira expectativa que começa a se criar, portanto, é a de um desenho institucional da inteligência, algo inseparável das preocupações que já ganharam terreno público e privado com relação à proteção de dados pessoais, afinal, seja via ABIN ou COAF, um serviço de inteligência terá o papel de vasculhar dados pessoais de milhares de pessoas.
A forma como dados de inteligência são coletados e utilizados em processos de natureza sancionadora – e, em especial, em procedimentos criminais – é assunto que já vem sendo tratado pelo Supremo Tribunal Federal, desde o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.980. Referida ação pleiteava pela inconstitucionalidade do artigo 83 da Lei Federal 9.430/1996, com redação dada pela Lei Federal 12.350/2010. Tal artigo determina a remessa da representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária pela Receita ao Ministério Público assim que proferida a decisão administrativa final sobre a exigência fiscal do crédito tributário.
A dúvida que pairava dizia respeito à natureza do “sigilo fiscal”, tema também pouco regulado, apesar da obrigação de sigilo imposta à Receita pela Lei Complementar 104, que aditou o Código Tributário Nacional. O compartilhamento de dados entre Receita e Ministério Público foi considerado lícito, prescindindo de autorização judicial, em que pese a previsão de sigilo.
O mesmo caso já trazia um debate relevante sobre o COAF, uma vez que a UIF foi historicamente vinculada à Receita. Ao final daquela ação, o assunto foi dividido e os Ministros se voltaram ao COAF em um caso de grande repercussão midiática, que envolvia a elaboração de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), pelo COAF, que foram requeridos pelo Ministério Público do Rio de Janeiro acerca de Flávio Bolsonaro para integrar o rol de indícios no caso das “rachadinhas”.
Neste caso, o Supremo decidiu – acertadamente – que os RIFs do COAF somente poderiam ser realizados mediante requisição de uma autoridade pública que já estivesse investigando ou processando alguém, caso contrário, a situação seria considerada uma violação da intimidade e do sigilo (fiscal e bancário, já que o COAF recebe e trata informações dessa natureza). A investigação “encomendada” por uma autoridade e sem justa causa (sem a prévia instauração de um procedimento) é recurso conhecido como fishing expedition e foi proibido pela nossa Suprema Corte, uma vez que esse tipo de conduta pode ser utilizado para perseguir inimigos políticos sem que haja um fato concreto sob investigação.
Esses “ajustes” homeopáticos na atuação do COAF, como os que foram feitos pelo Supremo ou por leis esparsas – a exemplo da Lei Federal 13.810/2019 que vincula as pessoas obrigadas pela Lei de Lavagem às obrigações de prevenção ao financiamento do terrorismo e da recém-editada Lei Federal 14.478/2022, que regulamenta o universo dos prestadores de serviço de ativos virtuais, ou seja, as exchanges de criptoativos e as inclui no rol de pessoas obrigadas da LLD – poderiam bem ser abordados de maneira ampla e sistemática com a necessária reforma da própria Lei de Lavagem de Dinheiro, projeto que chegou a ser iniciado nos últimos anos, mas que infelizmente não avançou.
Uma possível reforma da Lei de Lavagem poderia atualizar diversos pontos da regulação do assunto, a começar pela própria tipificação da lavagem, em nosso ordenamento ainda presa ao dogma da “ocultação ou dissimulação” previstos no caput do artigo 1º, enquanto que a redação do inciso I, § 2º do art. 1º é muito mais apropriada, levando-se em consideração a regulação internacional da matéria e o intuito de se criar um sistema compartilhado entre o poder público e os agentes privados de inteligência e prevenção: o inciso criminaliza quem “utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”.
Essa descrição típica cobre a ideia central de que a circulação do ativo ilícito “carrega”, por assim dizer, tanto o potencial de falsear sua origem (sem que isso se torne um problema em termos de prova do dolo), quanto incontáveis distorções econômicas (o dinheiro lavado é subtributado, gera vantagens competitivas ilícitas e acúmulo de riqueza ilegal).
Não por outro motivo, havendo ou não reforma na Lei de Lavagem, nosso país deve caminhar para uma paulatina confluência com o cenário internacional de regulação da lavagem, em especial, com as diretivas do Grupo de Ação Financeira (GAFI), como já vem ocorrendo nos últimos anos com a onda de atualizações normativas por parte dos reguladores brasileiros.
Entre 2020 e 2022, o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários, a Superintendência de Seguros Privados e o próprio COAF atualizaram suas normas para aderir ao conceito de “Abordagem Baseada em Risco” e de “Supervisão Baseada em Risco”. Sob essa perspectiva, os agentes regulados ganham mais margem de ação para adaptar seus controles de acordo com o risco que efetivamente assumem em sua atividade, bem como seu apetite de risco. Ainda, essa perspectiva altera a forma como os reguladores exercem seu poder de polícia e passam a divulgar sua própria percepção sobre os riscos que identificam no mercado. Os reguladores também precisam respeitar a percepção e autonomia dos agentes regulados e que atuam de boa-fé ao delimitar seus riscos.
Essas novidades ainda não geraram impacto em nossos Tribunais, mas é apenas questão de tempo para que os assuntos listados aqui inundem casos policiais, reguladores com atuação sancionatória e, claro, nosso Judiciário. O que esperamos não apenas para este, mas também para os próximos anos, é um aprofundamento dos temas que tangenciam a lavagem e sua prevenção, bem como o próprio financiamento do terrorismo.
Referências
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BRASIL. Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022. Dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros; e altera a Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que define crimes contra o sistema financeiro nacional, e a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre lavagem de dinheiro, para incluir as prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol de suas disposições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 dez. 2022.
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Autor convidado
Luciana Silva Reis
Doutora e Mestra pela USP. Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT). Pesquisadora associada do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3103558068074381
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1872-653
lucianareis@ufu.br
Resumo: Por que podemos pensar nas práticas de responsabilização, dos cidadãos comuns e especialmente de agentes políticos, não como um conflito com a garantia de estabilidade democrática, mas, pelo contrário, como uma manifestação de profundo imbricamento entre democracia, igualdade e responsabilidade? Para responder essa questão, este texto apresenta o conceito de responsabilidade como um operador que explicita e concretiza vínculos jurídicos. A partir de uma concepção de democracia que ressalta seu fundamento igualitário, são articulados dois argumentos que especificam como a responsabilidade jurídica é constitutiva de uma ordem democrática.
Palavras-chave: Responsabilidade jurídica; Responsabilidade política; Democracia; Igualdade; Teorias da democracia.
Abstract: Ordinary citizens and political agents in special must be subject to responsibilities, and this requirement is not in conflict with the guarantee of democratic stability, but, on the contrary, is a demonstration of the deep imbrication between democracy, equality, and responsibility. Arguing for this position, this paper presents the concept of responsibility as an operator that makes legal bonds explicit and concrete. From a concept of democracy that emphasizes its egalitarian foundation, two arguments are articulated that specify how legal responsibility is constitutive of a democratic order.
Keywords: Legal responsibility; Political responsibility; Democracy; Equality; Theories of democracy.
1. Introdução
“Sem anistia!”, gritou espontaneamente a multidão que compareceu à posse para o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto ele fazia o segundo discurso do dia, para o público. Em discurso anterior, para o Congresso Nacional, o presidente já anunciava:
Não carregamos nenhum ânimo de revanche contra os que tentaram subjugar a Nação a seus desígnios pessoais e ideológicos, mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal. O mandato que recebemos, frente a adversários inspirados no fascismo, será defendido com os poderes que a Constituição confere à democracia (BRASIL, 2023).
Logo após a posse, algumas análises políticas apressaram-se em apontar o que viam como possível “caça às bruxas” (GIELOW, 2023), uma perseguição ao movimento político que sustentou o mandato presidencial anterior. Outras análises, de caráter menos conjuntural e mais conceitual, apontaram a existência de uma suposta contraposição entre a justiça, expressa na ideia de “primado da lei”, e a exigência, que seria ínsita à própria estabilidade democrática, de que não haja perseguição de projetos políticos derrotados na urna: “Para que os perdedores aceitem mansamente a derrota, devem estar convencidos de que não serão perseguidos pelos vencedores e de que seus projetos poderão ser retomados numa eventual volta ao poder” (SCHWARTSMAN, 2023).
Pretendo questionar essa contraposição, argumentando que não há conflito entre democracia e justiça, e desdobrando o que de conceitualmente interessante existe na ideia presente no discurso presidencial de que há “poderes que a Constituição confere à democracia”. Aqui estamos no terreno já muito explorado da reflexão sobre estado de direito e governo democrático, mas minha intenção é nele ingressar para nele tratar de um conceito ainda pouco referido nesses termos: responsabilidade. Por que podemos pensar nas exigências de responsabilização, de cidadãos comuns e especialmente de agentes políticos, não como um conflito com a garantia de estabilidade democrática, mas, pelo contrário, como uma manifestação de seu profundo imbricamento com a própria democracia?
2. Responsabilidade
Antes de delinear a relação entre responsabilidade, democracia e igualdade, é necessário trazer o primeiro conceito a seu adequado contexto de uso, seja no discurso comum, seja no discurso jurídico. Neste, ele é em geral referido a partir de outro conceito jurídico fundamental, o de obrigação, ou, mais abstratamente, vínculo jurídico. A ideia de um vínculo que ata as pessoas umas às outras, ao Estado ou à comunidade, é uma noção que, como diz Hart na maior obra de teoria do direito do século XX: “atormenta boa parte do pensamento jurídico” (HART, 2009, p. 113).(1)
Não é difícil entender o motivo da tormenta. Se a promessa da comunidade política liberal, que resulta do constitucionalismo, é a de liberdade de ação para todas as pessoas, a existência de um vínculo que ata as condutas deve ser cuidadosamente fundamentada. O ônus dessa fundamentação não é superado pela invocação de um lugar-comum que, originado do discurso jurídico, começa agora a se incorporar no discurso leigo. Para esse lugar-comum, só existem “liberdades com responsabilidade”. Isso nada diz sobre a relação entre os dois conceitos, e não revela de forma adequada como a ordem democrática pode ser fundada nas bases do constitucionalismo liberal.
Antes de invocar a noção de responsabilidade como um qualificativo ou uma restrição das liberdades, necessário compreendê-la em sua complexidade. Responsabilidade é, na dogmática jurídica, o conceito necessário para explicitar o vínculo jurídico e torná-lo operante na concretude das ações humanas, ou seja, para garantir a força normativa de obrigações e deveres que qualificam uma conduta como lícita ou ilícita. Essa é, de forma geral, a função ou o valor da ideia de responsabilidade jurídica. Por meio dela, a abstração de uma conduta obrigatória, permitida ou proibida – não em razão de moralidades ou visões de mundo particulares, mas em razão do fato de compartilharmos uma mesma comunidade política – desce ao chão da vida cotidiana.
Mas o termo não é, claro, privativo do discurso jurídico. Como nos lembra Hart, em seu Punishment and Reponsability, há sentidos múltiplos nos quais usamos a noção de responsabilidade. Para isso, ele fornece um relato hipotético:
Como capitão de um navio, X era responsável pela segurança de seus passageiros e carga. Porém, em sua última viagem, embriagou-se todas as noites e foi responsável pela perda do navio com tudo o que carregava. Corriam boatos de que estava louco, mas os médicos o consideraram responsável por seus atos. Durante a viagem, X comportou-se de forma muito irresponsável e vários incidentes, durante o percurso, demonstraram que não era uma pessoa responsável. O capitão sempre afirmou que as tempestades torrenciais foram as responsáveis pela perda do navio, mas em um processo judicial que se seguiu ele foi considerado responsável pela perda de vidas e bens. Ele ainda vive e é moralmente responsável pela morte de muitas mulheres e crianças (HART, 2008, p. 211).
Há pelo menos quatro sentidos de “responsabilidade” nessa passagem (HART, 2008, p. 212; NINO, 2015, p. 218-221). Há responsabilidade no sentido kelseniano, quando se diz que o capitão foi considerado responsável pela perda de vidas e bens em um processo judicial, ou seja, foi considerado um sujeito suscetível à sanção. Nesse sentido ainda, pode se falar também, fora do direito, em censura, ou sanção, moral, a ser aplicada no nosso próprio mundo ou, quiçá, a depender da crença, em outros planos de existência.
Há, além disso, responsabilidade como capacidade de sofrer imputação e de agir com devida diligência. Quando se diz que “o capitão não era uma pessoa responsável” é esse o sentido invocado, mas, para o direito, essa mera invocação não basta: há critérios específicos, assim como procedimentos, que devem ser aferidos e invocados no curso do processo jurídico para que se torne possível excluir a responsabilidade nessa esfera.
Um terceiro sentido é a responsabilidade como indicativo de uma relação de causa e efeito – as tempestades teriam sido responsáveis pela perda do navio. Esse sentido é o de menor relevância jurídica. É importante notar que, no exemplo de Hart, o sentido não é usado para se referir a uma ação, mas a uma ocorrência natural. Isso porque, para o autor, está claro que a responsabilidade, como atributo da agência humana, é necessariamente, seja no discurso jurídico ou fora dele, normativa.
O último sentido de responsabilidade é provavelmente o que mais dúvidas suscita no pensamento jurídico, apesar de sua frequência na linguagem comum. Ele aparece no primeiro uso da palavra no texto de Hart: “Como capitão de um navio, X era responsável por seus passageiros e sua carga”. O termo é usado aqui para se referir a obrigações derivadas de certo cargo, certa relação ou papel social. É o mesmo uso que aparece em frases como “Os pais são responsáveis pelos filhos”, “O contador tem responsabilidade pela correção dos cálculos”, “O Estado é responsável pelas pessoas encarceradas” ou “O presidente da República é responsável pela condução do governo”.
Em relação a esse sentido, Santiago Nino nota que não é apropriado substituir a palavra “responsabilidade”, de forma automática, por “obrigação”:
Habitualmente, não se diz “o porteiro tem a responsabilidade de trabalhar a partir das 7”; em contrapartida, diz-se, por exemplo “o porteiro é responsável por cuidar da entrada do edifício”. Parece que o termo é usado, nesse sentido, quando a obrigação não se cumpre de forma mecânica, permitindo, sim, um certo jogo de alternativas a serem manejadas conforme a habilidade ou diligência de quem cumpre a função” (NINO, 2015, p. 218-219).
Essa percepção é de especial importância porque revela a possibilidade de se falar em responsabilidade sem referência à constituição de um débito específico ou de uma obrigação de reparar dano já ocorrido. A referência é a possíveis danos futuros, e se veicula a esperança de que eles sejam eventualmente mitigados por ações, no presente, daqueles considerados responsáveis. O capitão é responsável pelo navio – embora não suponhamos que ele seja obrigado a impedir tempestades, exigimos, sim, que ele tenha habilidade e meios materiais para com elas lidar, empreendendo esforços para evitar perdas de vida e de bens.
Esse tipo de responsabilidade nos leva necessariamente a abandonar a lógica individualista, em que ela deriva de uma obrigação, isso é, de um vínculo entre particulares. Nessa outra lógica, os limites e a precisão dos deveres são mais imprecisos e potencialmente controversos: só se pode falar de obrigação em sentidos muito específicos, como, por exemplo, o de que o capitão pode ter “obrigação” de fazer um curso obrigatório sobre navegação em condições adversas. Mesmo que tal obrigação exista, seria ainda assim discutível se não bastaria, para que o capitão cumprisse com sua responsabilidade, que ele se comprometesse pessoalmente a desenvolver essa habilidade.
Em grande medida, o sistema jurídico já cuida de antemão dessa especificação, por exemplo, determinando a obrigatoriedade de certificações. Para se tornar motorista de automóveis (um papel social específico), é obrigatório adquirir certo conhecimento e demonstrá-lo em um teste. Quem exerce esse papel sem ter a necessária certificação, viola um dever e, portanto, submete-se a punições. Além disso, conceitos como diligência, precaução, cuidado, negligência, imperícia, imprudência, entre outros, são instrumentos úteis para operar, de forma geral, a responsabilização decorrente de papéis, cargos ou relações sociais. Eles não apontam deveres concretamente delimitados, mas servem como padrão razoável de medida das condutas.
De todo modo, da responsabilidade em razão de cargos, papéis ou relações decorre uma prática constante de progressiva explicitação de deveres normativos. E essa prática de atribuição de responsabilidades – a responsabilização – é fundamental para um adequado governo democrático, e mais ainda quando se fala na responsabilização daqueles que ocupam papéis de liderança política. É, além disso, uma forma de garantir que o valor gerado pela responsabilização jurídica seja distribuído de forma igualitária na sociedade.
3. Democracia e igualdade
Democracia é por vezes um conceito usado exclusivamente para qualificar um tipo de tomada de decisão política – aquela feita por meio da regra de maioria, conduzida por pessoas eleitas, por meio do mesmo tipo de regra, para essa tomada de decisão. Essa concepção de democracia não capta a dimensão normativa que fundamenta a própria regra de maioria. É que esta só faz sentido, como forma de tomada de decisões, se enxergamos todas as pessoas de uma comunidade política como igualmente dignas de influírem em seus rumos.
Na raiz da ideia de democracia, há, portanto, uma reivindicação igualitária. Não se trata aqui de igualdade de recursos materiais (embora essa demanda possa ser decorrente da mais geral), mas de igualdade de consideração e de respeito, a serem atribuídos a todos os membros da comunidade por parte de quem exerce seu governo.(2)
A exigência é obviamente normativa, o que não significa que seja irreal. Parte da tarefa de pensar modos democráticos de governo é refletir sobre quais são as medidas para se aferir o cumprimento das exigências normativas de igual consideração e respeito. A responsabilidade, para além dos desafios próprios e internos às dogmáticas especializadas, pode ser pensada também sob esse aspecto. A partir de autores como Klaus Günther,(3) dois argumentos podem ser articulados para especificar de que maneira a responsabilidade se relaciona com a democracia e sua exigência igualitária.
Em primeiro lugar, a responsabilização é constitutiva de uma sociedade democrática, orientada pela igual consideração e respeito de seus membros. É por meio da ideia de responsabilidade que se cria uma prática de explicitação dos deveres normativos tidos por cada membro da comunidade, em razão de terem dado papel, cargo ou relação, ou simplesmente em razão de seu status de pessoa de direito. No caso da responsabilidade por papel, cargo ou relação, essa prática é ainda mais relevante, uma vez que os contornos dos deveres de quem os exerce muitas vezes se explicitam no ato mesmo de responsabilização, e não de antemão.
As práticas de responsabilização cumprem, dessa forma, um papel comunicativo essencial em sociedades democráticas (GÜNTHER, 2009a, 2009b). Não só pela explicitação dos contornos de deveres normativos, que são, por assim dizer, seu resultado, mas também pelo procedimento que os atribui. Tais práticas são conduzidas, como regra geral, em público, sob regras procedimentais também estabelecidas de forma pública. A ideia de publicidade aqui faz referência a algo mais amplo que a mera possibilidade de conhecimento por toda a população. Trata-se de uma maneira de qualificar práticas nas quais há possibilidade de engajamento de todas as pessoas, que são consideradas capazes de se orientarem em todas as esferas de sua vida pelos parâmetros por elas próprias criados.
O segundo argumento pode ser pensado como decorrência do primeiro, e afirma que as práticas de responsabilização são maneiras de distribuir um valor de forma igualitária. Como defendido pelo primeiro argumento, por meio da responsabilidade, o vínculo jurídico é explicitado. Disso decorre que a pessoa responsável é definida como elo final, pelo menos no âmbito jurídico, de um determinado curso de ação no mundo. Para uma pessoa que sofre em razão de um ato ilícito – não só sua vítima direta, como também todos aqueles que suportam suas consequências – essa finalização pode ser uma necessidade fundamental no processo de superação do sofrimento trazido por esse ato.
Em uma análise sobre a conduta do ex-presidente da república Jair Bolsonaro, Patricia Campos Mello (2023) menciona uma placa que o ex-presidente americano Harry Truman mantinha sobre sua mesa de trabalho: “The Buck Stops Here”, expressão idiomática que poderia ser livremente traduzida como “a responsabilidade para aqui”. Trata-se de uma forma de dizer “Estou aqui para suportar o fardo de ser o elo final na corrente de responsabilização por tudo de ruim (ou bom!) que aconteça à nação”.
Claro que, colocada dessa forma, isso seria apenas uma expressão de retórica política que necessitaria de muitas mediações para ser incorporada ao direito. Ninguém cogita que um presidente possa ser juridicamente responsável por tudo que se passe com o país. Mas a expressão nos aponta o valor das práticas de responsabilização, política e jurídica, de mandatários democraticamente eleitos: elas atribuem a essas pessoas um fardo que devem suportar em razão do cargo que ocupam.
Pensar na distribuição de fardos como esse é um ponto crucial em qualquer sociedade democrática. Considerar todas as pessoas iguais em dignidade exige levar a sério o fato de que distribuições injustas de sofrimentos afetam essa igualdade, e que a responsabilização é um meio idôneo a corrigir esse desbalanço.
A delimitação dos âmbitos de responsabilidade é fundamental para isso. Em uma das mais conhecidas reflexões filosóficas sobre o tema, Hannah Arendt diferencia o que chama de responsabilidade política, de um lado, de responsabilidade pessoal, de outro. A primeira é potencialmente ilimitada, afirma Arendt, pois qualquer membro de uma comunidade política pode ter de assumir o peso de lidar com seus antepassados, assim como de nascer em uma comunidade injusta na qual pode ocupar uma posição de privilégio. Mas a responsabilidade pessoal, afirma, é diferente. Para esta, é preciso atentar ao seguinte:
Em termos morais, é tão errado sentir culpa sem ter feito nada específico quanto sentir isenção de toda culpa quando se é realmente culpado de alguma coisa. Sempre considerei a quintessência da confusão moral que, durante o período pós-guerra na Alemanha, aqueles que em termos pessoais eram totalmente inocentes assegurassem uns aos outros e ao mundo em geral quanto se sentiam culpados, enquanto muito poucos dos criminosos estavam prontos a admitir sequer o remorso mais tênue. O resultado dessa admissão espontânea de culpa coletiva foi, claro, uma caiação [whitewash] muito eficaz, embora involuntária, daqueles que tinham feito alguma coisa: como já vimos, quando todos são culpados, ninguém é culpado (ARENDT, 2004, p. 90-91).
Na assunção coletiva de culpa, em outras palavras, não há o elo final que alivia as pessoas afetadas de seus sofrimentos. Pelo contrário, elas podem ser parte do coletivo sobre o qual recai o peso da culpa. É apenas a responsabilidade que pode ser pessoalizada – o que se faz de maneira mais evidente e precisa sob a forma da responsabilidade jurídica – que fornece esse alívio. Nesses termos, a responsabilização, especialmente a responsabilização dos agentes estatais que cometem ilícitos, é uma forma crucial de partilhar de maneira adequada, entre membros de uma sociedade democrática, os fardos e sofrimentos de terem de viver com as consequências de ações suas e de outros.
A pandemia de Covid-19 oferece um exemplo de uma partilha potencialmente injusta. A quem cabe a responsabilidade pela morte de uma pessoa idosa que poderia ter se vacinado, caso vacinas disponíveis tivessem sido compradas? Familiares dessas pessoas podem sentir culpa por não terem tomado uma ou outra ação diversa, por não terem, por exemplo, lavado a mão em um dia específico em que chegaram em casa com pressa. O reconhecimento de um elo final de imputação, a assunção de responsabilidade por um agente político, é certamente um alívio necessário nesses casos.
De forma mais geral, seria possível pensar na responsabilização penal feita pelo direito brasileiro como um esquema injusto de atribuição de fardos: pessoas que sofrem por certos crimes (crimes de “colarinho branco”, mas muitos outros, inclusive crimes contra a vida) são, no mais das vezes, privadas da existência de um elo final nos cursos de ação que as afetam. Muitas vezes, não tomam nem mesmo conhecimento dos fatos que constituem esses cursos de ação, o que só ocorreria se uma prática de responsabilização, como uma investigação criminal, fosse iniciada. Nesses casos, os atos ilícitos incorporam-se à paisagem social, como se fossem “ilícitos partilhados” (GÜNTHER, 2016)(4) e todas as pessoas suportam o fardo de responder por eles, mesmo que somente em uma dimensão extrajurídica. A atribuição da responsabilidade jurídica, ao constituir de forma justificada um elo final, é, como medida de justiça, uma forma de distribuir adequadamente tal fardo.
4. Conclusão
A responsabilidade, em especial a responsabilidade jurídica e suas decorrentes práticas de responsabilização, é um elemento constitutivo da democracia e da igualdade. Muito trabalho argumentativo deve ainda ser feito para desdobrar e robustecer essa tese. Mas os argumentos acima apresentados desde logo apontam para uma articulação imprescindível ao nosso tempo. É preciso explicitar as características do processo contínuo pelo qual membros de uma comunidade política comprometida com a liberdade e a democracia se vinculam uns aos outros em práticas que continuamente nos autorizam a constituir e exigir obrigações mútuas, mas que também nos tornam responsáveis, ou seja, sujeitos dessas mesmas obrigações. Nesse processo, somos nós mesmos quem constituímos, ao mesmo tempo em que aplicamos, as medidas de avaliação de nossas ações.
Esse é um esclarecimento necessário para a elaboração de discursos jurídicos e políticos legítimos, que façam frente a estratégias de destruição da própria democracia por meio da invocação desmesurada de supostas liberdades. Com suas falsas promessas, essa desmesura atrai número nada desprezível de cidadãos nas democracias contemporâneas. Os “poderes que a Constituição confere à democracia” – por que não dizer, a legalidade – são o meio pelo qual se explicita publicamente as medidas que a própria comunidade política cria para si. Juristas, com seu conhecimento especializado desse meio, devem estar à altura da grandeza dessa tarefa histórica.
Notas
1 A imagem de um vínculo que ata a pessoa compelida é mobilizada por Hart para se referir tanto ao Direito Civil como ao Direito Penal. “In this figure, which haunts much legal thought, the social pressure appears as a chain binding those who have obligations so that they are not free to do what they want. The other end of the chain is sometimes held by the group or their official representatives, who insist on performance or exact the penalty: sometimes it is entrusted by the group to a private individual who may choose whether or not to insist on performance or its equivalent in value to him. The first situation typifies the duties or obligations of criminal law and the second those of civil law where we think of private individuals having rights correlative to the obligations” (HART, 1994, p. 87-88).
2 Essa concepção de democracia é articulada pelo liberalismo igualitário. Para uma exposição sintética da crítica ao majoritarianismo e articulação de uma concepção de democracia como “parceria”, ver Dworkin (1996, p. 1-38). Para fins do meu argumento, a concepção articulada por Seana Shiffrin é bastante proveitosa: “By democracy, I mean, roughly, a political system that treats all its members with equal concern, regards their lives as of equal importance, and treats all competent members of the community (by which I mean those having reached the age of majority and without profound intellectual disabilities) as, by right and by conception, the equal and exclusive co-authors of and co-contributors to the system, its rules, its actions, its directives, its communications, and its other outputs” (SHIFFRIN, 2021, p. 20). Embora semelhante à de Dworkin, a concepção de Shiffrin se diferencia pela ênfase que ela confere ao núcleo comunicativo da democracia. Ela se aproxima das teorias deliberativas, mas Shiffrin acredita que estas não ressaltariam o significado especial do direito democraticamente criado, como maneira que usamos para veicular os compromissos que assumimos em conjunto (SHIFFRIN, 2021, p. 24). A meu ver, é possível em pensar na teoria de Shiffrin como uma versão analítica e normativa da concepção de democracia articulada pela teoria crítica habermasiana (HABERMAS, 2020), embora ela mesma não tenha Habermas como referência. A discussão não é central para meus argumentos sobre responsabilidade, mas é de se ressaltar que eles são completamente tributários das reflexões sobre democracia e direito presente nesses autores.
3 Klaus Günther (2009a; 2009b) é a referência central para a compreensão das responsabilidades e das práticas de responsabilização como parte integral de um Estado Democrático de Direito. A partir da teoria da democracia habermasiana, que revela a constituição mútua entre direito e poder político (HABERMAS, 2020), Günther mostra as práticas de imputação como garantidoras do trânsito entre dois papéis que qualquer pessoa cumpre nesse tipo de ordem política. Nesta, pessoas deliberativas são ao mesmo tempo cidadãs e pessoas de direito, ou sujeitos de direito. A responsabilização é uma prática social significativa, por meio da qual a comunidade deliberativa ela mesma se responsabiliza pela criação dos requisitos concretos de responsabilização. O primeiro argumento que articulo no texto pode ser visto como uma reapresentação sintética dos argumentos de Günther, com a qualificação de que pretendo enfatizar o papel criador de deveres jurídicos que práticas de responsabilização podem ter (é isso que fazem ao explicitar o vínculo jurídico), e que essas práticas são, de alguma maneira, disponíveis para o engajamento público, ainda que não exatamente na forma dos procedimentos juridicamente regulados. Essa discussão ultrapassa os limites deste texto. Da maneira como vejo, ela exige pensar uma teoria da adjudicação (ela mesma apenas uma das formas possíveis de responsabilização), que mostre como a criação de deveres no momento dos discursos de aplicação, e não somente nos de fundamentação, pode ser legítima no contexto de estado democrático. A distinção entre discursos de aplicação e de fundamentação é feita por Günther (1993), ver também Günther (1995), sobre teoria da adjudicação.
4 Günther (2016, p. 35) apresenta essa ideia da seguinte maneira: “Se uma ação que viola determinada regra deixa de ser refutada ou questionada, então isso significa que suas razões foram ao menos absorvidas, ou até mesmo aceitas por sua sociedade, ainda que elas tenham se dirigido contra uma ordem normativa legítima. Nesse caso, estamos diante de um ilícito cujo resultado acaba sendo partilhado por todos, ou de um shared wrong. A esse significado, acrescenta-se ainda outro, resultante do fato de que, com o cometimento de um ilícito, o próprio status de cidadão da vítima é afetado, posto que ela, enquanto titular do Direito de autodeterminação, acaba por ser alvo de um processo de heterodeterminação. O surgimento desses dois significados exige da sociedade uma refutação por meio de processo de imputação que marque publicamente o comportamento ilícito não apenas como uma alternativa de vida inaceitável, mas também como a obra de uma pessoa individualmente responsável por ele”. Ele aponta, assim, a afetação injusta da vítima, em seu status de cidadão, que é o ponto que enfatizo no segundo argumento. Este pretende, no entanto, mostrar as práticas de responsabilização como formas de redistribuição igualitária de valores, não somente de reconhecimento de um status de pessoa.
Referências
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Autora convidada